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1 SUMÁRIO 1 CORPO, MENTE E EMOÇÕES ......................................................... 2 1.1 O Problema Mente-Corpo .................................................................... 3 1.2 Psicossomática e Psicanálise .............................................................. 6 2 NEUROFISIOLOGIA E AS TEORIAS SOBRE AS EMOÇÕES ....... 18 3 O CAMPO DA PSICOSSOMÁTICA ................................................. 25 3.1 Entre o biológico e o somático: um corpo para além do organismo ... 27 4 TRANSTORNOS PSICOSSOMÁTICOS: UMA QUESTÃO DE LIMITES? 31 4.1 Experiências precoces: o papel do corpo na constituição de defesas precoces 33 4.2 Stress e aspectos psicossociais nas doenças crônicas de pele ......... 37 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 40 2 1 CORPO, MENTE E EMOÇÕES1 Fonte: rosamix0.blogspot.com A compreensão do processo saúde-doença envolve as concepções adotadas acerca dos fatores que podem estar relacionados com a manutenção e a promoção da saúde, e com os determinantes do processo de adoecimento. Essas concepções podem estar fundamentadas numa visão materialista, que considera que os únicos fatores relevantes neste processo são de natureza física, ou numa visão mais ampla, que considere também aspectos cognitivos e emocionais como determinantes da saúde e da doença. As explicações puramente biológicas da doença, apesar de ainda serem predominantes na Medicina, têm sido questionadas em diversos estudos que evidenciam a influência da mente e das emoções nos estados de saúde. Hoje sabe- se que o sistema nervoso autônomo, responsável pela coordenação do funcionamento de todos os órgãos internos, é regulado pelo sistema límbico, que por sua vez é afetado pelas experiências afetivas e emocionais do indivíduo em seu contexto social. A psiconeuroimunologia, que investiga as interações entre o sistema neuroendócrino, imune e os aspectos psicológicos e comportamentais, tem mostrado 1 Texto extraído do link: http://www.ibb.unesp.br/Home/Departamentos/Educacao/Simbio- Logias/CorpoMenteeEmocoes.pdf 3 que o sistema imune influencia e é influenciado pelo cérebro (URSIN, 2000). As concepções filosóficas nas quais o processo saúde-doença se fundamenta estão presentes no pensamento médico e, consequentemente, nas modalidades de diagnóstico e de intervenção, assim como na orientação das ações por parte do sistema de saúde para prevenção de enfermidades e a promoção da saúde. Desse modo, reflexões acerca da interação entre os aspectos somáticos, cognitivos e emocionais contribuem para o questionamento dos fundamentos a partir dos quais a ciência médica se constrói e se desenvolve. Este estudo se propõe a contribuir para esta reflexão, por meio de uma revisão teórica das principais abordagens do problema mente-corpo, destacando as perspectivas da psicossomática psicanalítica e da psicofisiologia. Serão apresentados alguns dos principais autores que se dispuseram à reflexão sobre as relações entre corpo, mente e emoções. 1.1 O Problema Mente-Corpo Fonte: pt.slideshare.net O problema mente-corpo tem sido tema de discussão desde a antiguidade. As concepções sobre saúde e doença e sobre a natureza das enfermidades constroem- se dentro de uma perspectiva dualista, que considera mente e corpo como entidades distintas, ou numa perspectiva monista, que considera a unicidade e indissolubilidade 4 de ambos. Ao longo da história, tem-se observado oscilações entre ambas as concepções que repercutem também no pensamento médico. Na Grécia Antiga, Aristóteles e Hipócrates consideravam o homem como uma unidade indivisível. Hipócrates (460 a.C.), numa tentativa de explicar os estados de saúde e enfermidade, postulou a existência de quatro fluidos (humores) principais no corpo: bile amarela, bile negra, fleuma e sangue. Desta forma, a saúde era baseada no equilíbrio destes elementos. Ele via o homem como uma unidade organizada e entendia a doença como uma desorganização deste estado. Hipócrates entendia que a doença não representava a vontade divina, mas surgia por antecedentes lógicos. A saúde, para ele, consistia de um equilíbrio harmônico com o mundo ao redor, enquanto a doença surgia de desafios a esse equilíbrio. Essa visão racionalista fundamenta a medicina moderna (VOLICH, 2000). Cláudio Galeno (129-199) resgatou a teoria humoral e ressaltou a importância dos quatro temperamentos no estado de saúde. Via a causa da doença como endógena, ou seja, estaria dentro do próprio homem, em sua constituição física ou em hábitos de vida que levassem ao desequilíbrio. O conceito de Galeno a respeito de saúde e doença prevaleceu por vários séculos, até o suíço Paracelsus (1493-1541) afirmar que as doenças eram provocadas por agentes externos ao organismo. Ele propôs a cura pelos semelhantes, baseada no princípio de que, se os processos que ocorrem no corpo humano são químicos, os melhores remédios para expulsar a doença seriam também químicos, e passou então a administrar aos doentes pequenas doses de minerais e metais (CASTRO et al., 2006). Durante a Idade Média, a Igreja Católica buscou organizar o conhecimento a partir do paradigma da vida após a morte, exaltando a soberania da alma, refletindo sobre a ideia de doença e de um corpo menosprezado (VOLICH, 2001). A doença era atribuída ao pecado, sendo o corpo o locus dos defeitos e pecados, e a alma, o dos valores supremos, como espiritualidade e racionalidade (FAVA e SONINO, 2000). No século XVII, Descartes postulou uma disjunção entre mente e corpo, por considerá-los substâncias de naturezas diferentes, denominando como res extensa a matéria e res cogitans a alma pensante, e assim favorecendo no âmbito da ciência o aspecto material (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Entretanto, o principal problema detectado na perspectiva dualista é a dificuldade em explicar como essas duas substâncias interagem. Descartes sugeriu que essa comunicação seria por meio da 5 glândula pineal. Embora esta solução pareça ser arbitrária, diversos autores, inclusive na época contemporânea, têm pesquisado as funções desta glândula, e alguns deles acreditam que ela tenha realmente funções especiais. Fonte: corpomenteemocao.blogspot.com Deste modo, seria possível interpretar a filosofia cartesiana como um dualismo interativo, em que ocorrem processos causais em ambas as direções (do corpo para a mente e da mente para o corpo - a chamada "causação mental"). Portanto, apesar da demasiada valorização da substância material em detrimento da substância mental atribuída pela ciência por influência do dualismo cartesiano, não se pode afirmar que na perspectiva Descartes as duas substâncias sejam completamente separadas. Espinosa, também no século XVII, dedicou-se à reflexão sobre o problema mente corpo, ao qual trouxe grandes contribuições. Ele apresentou uma perspectiva diferente da de Descartes quando disse que o pensamento e a extensão, embora distinguíveis, são produtos da mesma substância. A referência a uma única substância serve ao propósito de apresentar a mente como inseparável do corpo, o que deixava de requerer a integração ou interação desses dois aspectos. A mente e o corpo nasciam em paralelo da mesma substância sem que houvesse uma relação causal entre ambos (Damásio, 2004). 6 Para o monismo espinosiano, haveria o chamado "paralelismo psicofísico", doutrina segundo a qual todos os eventos corporais são também mentais e todos os eventos mentais são também corporais, conduzindo à conclusão de que tanto a saúde quanto a doença são fenômenos psicofisiológicos. No século XIX, a visão dualista foi fortalecida com as descobertas de Pasteur e Virchow (CASTRO et al., 2006), que atribuíram as causas das enfermidades a agentesexternos, como microorganismos, o que destaca a importância dos aspectos biológicos em detrimento da mente no processo saúde-doença. No início do século XX, Freud resgata a importância dos aspectos internos do homem com o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Em 1917, Groddeck publica “Determinação psíquica e tratamento psicanalítico das afecções orgânicas”, sendo este considerado o marco da medicina psicossomática. Groddeck estendeu o campo da psicanálise a todas as doenças e atribuía a elas uma significação. Walter Cannon, em 1929, reforça a concepção holística com uma base fisiológica ao definir o conceito de homeostase, afirmando que qualquer estímulo, inclusive o psicossocial, que perturba o organismo, perturba-o em sua totalidade (CALDER, 1970). Em seu trabalho, Cannon avaliou as alterações fisiológicas decorrentes da excitação emocional. 1.2 Psicossomática e Psicanálise Fonte: www.psic.com.pt/psicossomatica 7 O termo “psicossomática” foi utilizado pela primeira vez em 1818 por Heinroth, um psiquiatra alemão, em seus estudos sobre insônia e as influências das paixões na tuberculose, destacando a possibilidade de uma influência dos fatores psicológicos nas patologias (LIPOWSKI, 1984). A compreensão da relação mente-corpo, até então, era baseada numa visão dualista, tanto em relação ao princípio como em relação à função desses dois aspectos. O funcionamento de ambos era considerado quase que independente um do outro e a interação ocorreria numa via dupla de forma psicossomática ou somato- psíquica. A compreensão da interação mente e corpo ganha novas perspectivas a partir da Psicanálise, quando ambas as dimensões são pensadas de forma conjunta e dinâmica, possibilitando a criação de um campo de saber denominado Psicossomática (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Sigmund Freud No final do século XIX, Freud (1835-1930) resgata a importância dos aspectos internos do homem com o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Não encontrando lesão orgânica nos corpos das histéricas que justificassem os sintomas apresentados, Freud (1893), em seu livro “Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas” afirma que “a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta”. Uma paralisia nos membros inferiores ocorria mesmo com os músculos e nervos intactos, ou uma afasia ocorria sem que a área de Broca estivesse comprometida. Pela hipnose, podia- se retirar ou até alterar os sintomas momentaneamente, demonstrando que o organismo estava em condição de funcionamento “normal”. Exemplos como esses desafiaram a Medicina da época, pois não havia até então explicação para esses eventos, fazendo com que a histeria caísse no âmbito da encenação e teatralidade. 8 Fonte: www.verdadesdocorpo.com Pelo método da associação livre, que se tornou a técnica psicanalítica por excelência, as histéricas diziam o que lhes vinha à mente e acabavam por relembrar uma cena traumática e que, de certo modo, esse trauma se associava com os sintomas. Essa associação era tal que, ao conseguir verbalizar a situação traumática, os sintomas eram abrandados. Assim, eles passam a possuir um sentido que é construído pelo sujeito, uma motivação que é desconhecida para o indivíduo, é inconsciente, mas remontando a uma cadeia lógica, ao verbalizar e trazer à tona esse evento traumático e reprimido, os sintomas eram aliviados (FREUD, 1895). Apesar de não ter se aprofundado nas questões de somatização, com os estudos sobre histeria, Freud assinala a relevância dos aspectos psíquicos em algumas manifestações somáticas, fornecendo bases para se pensar na interação entre o psíquico e o somático a partir da psicanálise. Georg Groddeck Em 1917, Groddeck (1866-1934) publica “Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise” no periódico Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, sendo este considerado o marco da medicina psicossomática. Neste texto já aparece o conceito de Isso, “por quem somos vividos”, ao qual atribui poder de ação sobre todo o organismo. Groddeck define a doença como uma das expressões do Isso, tal como seriam o formato do nariz, o jeito de andar, 9 enfim, como uma manifestação de vida, e não como um mal a ser combatido a qualquer preço. Groddeck implica o Isso até nos acidentes que nos acontecem (CASETTO, 2006). A doença não provém do exterior, o próprio ser humano a produz; o homem só se serve do mundo exterior como instrumento para ficar doente, escolhendo em seu inesgotável arsenal de acessórios ora a espiroqueta da sífilis, ora uma casca de banana, depois uma bala de fuzil ou um resfriado (Groddeck, 1923, p. 219) Groddeck estendeu o campo da psicanálise a todas as doenças e atribuía a elas uma significação. Acreditou encontrar no significado da doença o valor simbólico dos sintomas, já que considerava o homem como um ser inatamente predisposto à simbolização. Assim, dores de cabeça aplacam os pensamentos; magreza e fraqueza denunciam a nostalgia da condição de recém-nascido; uma barriga, o desejo de gravidez. Groddeck cita vários de seus próprios sintomas que fez desaparecer – inclusive gota – somente com a autoanálise (CASETTO, 2006). Sendo o sintoma uma manifestação do Isso, a doença tem um sentido próprio, particular do indivíduo. Um sentido impossível de determinar genericamente, pelo seu caráter particular porque não há limites definidos entre o saudável e o doentio, entre onde começa a enfermidade e onde termina a saúde. O papel do analista seria de decifrar esse sentido por meio da análise, pois a retomada da consciência sobre o que fez com que a pessoa desenvolvesse tal sintoma faz com que ela seja curada. Franz Alexander Na década de 1930, surge na cidade de Chicago, sob a direção de Franz Alexander (1891-1964), o Instituto Psicanalítico de Chicago. Alexander sustentava um modelo psicossomático de base psicofisiológica. Defendia que as doenças orgânicas poderiam ser entendidas basicamente como respostas fisiológicas exacerbadas decorrentes de estados de tensão emocional crônica motivados por processos mentais inconscientes desprovidos de significado simbólico (HAYNAL e PASINI, 1983). Segundo ele, estados emocionais reprimidos provocariam a cronificação das alterações fisiológicas que normalmente acompanham as emoções, alterações que se regularizam quando tais emoções são expressas e se desfazem. Assim, por exemplo, a raiva é acompanhada por um aumento da pressão sanguínea; trata-se de 10 um concomitante fisiológico que não tem finalidade expressiva, sendo apenas uma resposta regida pelo sistema nervoso simpático preparando o organismo para a ação. Mas se a raiva não pode ser diretamente expressa, nem encontrar um caminho alternativo, as alterações neurovegetativas associadas, como as relativas à pressão, deverão se manter num patamar elevado (CASETTO, 2006). Fonte: www.blogbemestar.com.br Associada à psicogênese, Alexander cria a teoria da especificidade, que diz que as respostas fisiológicas para estímulos emocionais, tanto normais quanto mórbidos, variam de acordo com a natureza do estado emocional precipitante. A resposta vegetativa de determinado estímulo emocional varia de acordo com a qualidade da emoção e todo estado emocional tem sua síndrome fisiológica. Para Alexander, os aspectos emocionais e fisiológicos são expressões concomitantes diferentes de um mesmo processo. O aspecto emocional é expresso por palavras, enquanto o fisiológico é expresso por meio de alterações nas funções corporais, como por exemplo, a alteração da pressão arterial, na experiência emocional da raiva. O aumento da pressão arterial é o concomitante (a expressão somática) daquele momento de vida da pessoa que está com raiva – expressão emocional daquelemomento (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Os sintomas psiconeuróticos corresponderiam, na visão de Alexander, à construção de caminhos alternativos, individuais, para a expressão de emoções reprimidas. Portanto, não seriam eles os responsáveis pelas organoneuroses, mas a psiconeurose seria uma forma de expressão alternativa do reprimido. Afirmava que a pressão sanguínea de alguns 11 hipertensos normalizava-se quando do desenvolvimento de certos sintomas neuróticos. Alexander rompia com a tradição que situava os males orgânicos como resultado direto ou indireto da psiconeurose (CASETTO, 2006). As proposições de Alexander foram questionadas nas décadas seguintes por autores que acreditavam que seu modelo psicossomático de base psicofisiológica se apoiava em uma visão dualista do homem. Endossando esses questionamentos, diversos psicanalistas franceses organizaram-se com o intuito de delinear uma nova via de formação das manifestações corporais do sofrimento emocional (PERES, 2006). Pierre Marty Em 1962, Pierre Marty (1918-1993) e Michel de M’Uzan propuseram a noção de pensamento operatório. Tratava-se da conceituação de uma forma de atividade psíquica diferente da neurose e da psicose. Ela descrevia um modo de pensamento consciente que parecia desprovido de simbolizações, de atividades oníricas, de duplos sentidos, de metáforas, de atos falhos e de fantasia (VALENTE e RODRIGUES, 2010; CASETTO, 2006), mas excessivamente orientado para a realidade externa e estreitamente vinculado à materialidade dos fatos (PERES, 2006), o que denota a existência de uma carência funcional do psiquismo (HORN e ALMEIDA, 2003). A fala desses pacientes é usada mais como modo de se livrarem rapidamente das tensões do que para significar suas experiências (CASETTO, 2006). Em 1966, Marty propõe o conceito de “depressão essencial”. Esta decorreria de eventos traumáticos e colocaria o sujeito em posição particularmente vulnerável ao adoecimento. O pensamento operatório poderia se estabelecer na cronificação desse estado, no qual a capacidade de elaboração psíquica do impacto da vida cotidiana estaria bastante comprometida (CASETTO, 2006). Essa sintomatologia depressiva defini-se pela falta: apagamento, em toda a escala, da dinâmica mental (deslocamentos, condensações, introjeções, projeções, identificações, vida fantasmática e onírica). Não se encontra, nessa depressão “conveniente”, a “relação libidinal” regressiva e ruidosa das outras formas de depressões neuróticas ou psicóticas. Sem contrapartida libidinal, portanto, como a desorganização e a fragmentação ultrapassam sem dúvida o domínio mental, o fenômeno é comparável ao da morte, onde a energia vital se perde sem compensação (p. 19) 12 Marty (1993) define o psiquismo como um conjunto de funções complexas, que seriam evolutivamente mais recentes que as somáticas e, portanto, mais susceptíveis à desorganização. Ele permitiria aos organismos lidar com o impacto afetivo de situações da vida. O psiquismo deficiente, tanto emocionalmente como simbolicamente, desorganiza-se progressivamente com a introdução de um distúrbio, cabendo então ao somático ter de lidar com tal distúrbio (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Neste caso, um processo regressivo atingiria algum ponto de fixação somático, fazendo com que um distúrbio se estabelecesse na função correspondente a esse ponto, de modo a estancar o processo involutivo e permitir a reorganização posterior e gradual do sujeito (CASETTO, 2006). Tais pontos de fixação seriam em parte herdados, em parte constituídos pela história de vida do sujeito, sendo as manifestações somáticas ausentes de sentido próprio. Dessa forma, cada indivíduo apresentaria uma sintomatologia com fortes traços que lhe são próprios, particulares, de tal forma que a psicossomática deve ser pensada a partir do sujeito, e não a partir da doença (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Fonte:www.altoastral.com.br A somatização, então, surgiria em decorrência de estruturas psíquicas deficitárias na capacidade de representação e elaboração simbólica. Assim, o sintoma ocorreria pela ausência de sentido, em virtude da incapacidade do psiquismo de lidar com o distúrbio. Portanto, um menor grau de atividade mental corresponde a uma maior vulnerabilidade somática. 13 A capacidade de elaboração simbólica, que indicaria a qualidade e a quantidade das representações psíquicas, Marty (1998) denominou mentalização. Quanto melhor a mentalização, maior a capacidade do psiquismo em sustentar os choques dos traumatismos no registro psíquico (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Marty recomendou uma terapêutica diferente, especialmente nos casos de somatizações graves. Devido à negatividade simbólica e ausência de referências afetivas, resultantes do pensamento operatório, sua proposta era a de um trabalho psicoterápico, em que o papel do terapeuta seria de nomeação dos estados psíquicos e sobretudo afetivos, de forma a suprir a carência simbólica, que visasse “o estabelecimento ou o restabelecimento do melhor funcionamento possível” do psiquismo do paciente (1990, p. 57). Sessões face-a-face para não deixar o paciente no desamparo perante sua pobreza simbólica e apenas uma vez por semana, pela sobrecarga psíquica que representam para uma estrutura frágil (CASETTO, 2006 e VALENTE e RODRIGUES, 2010). Joyce McDougall McDougall (1996) propõe o conceito de desafetação para explicar o processo de somatização. Esse conceito corresponde a um mecanismo que ejeta do psiquismo percepções, pensamentos e fantasias capazes de (res)suscitar afetos insuportáveis, ou seja, relacionados a experiências traumáticas primitivas. Ocorre um esvaziamento de significação afetiva da palavra. Esse recurso exigiria novas formas de dispersão da energia que foi ejetada, que poderia tomar a forma de comportamentos aditivos ou de somatizações. O sentido da doença diz respeito a um drama não representado, e para sê-lo, precisa vir ao âmbito da linguagem por meio da análise. McDougall fala da somatização a partir de uma demanda de sentido, como uma história a ser reconstruída (VALENTE e RODRIGUES, 2010). A tendência a “ejetar” do próprio psiquismo percepções, fantasias e pensamentos associados a afetos se assemelha, em seus aspectos principais, a um mecanismo de defesa citado por Freud (1894/1996): o repúdio para fora do ego (Verwerfung). Tal recurso não somente promove a exclusão de sentimentos do plano da consciência, mas também leva o indivíduo a agir como se nunca tivesse tido acesso aos conteúdos repudiados. Entretanto, na concepção freudiana, o repúdio para fora do ego leva ao surgimento de fenômenos alucinatórios e delirantes, de maneira que 14 pode ser entendido como uma defesa específica das psicoses. McDougall (1996), por sua vez, propõe que os afetos “ejetados” do aparelho mental de pacientes somáticos não geram como subproduto alucinações ou delírios, mas, sim, se perdem sem qualquer espécie de compensação psíquica. Como consequência, tendem, ao contrário do que ocorre com os psicóticos, a ser reduzidos a sua pura expressão somática. Desse modo, McDougall (1996) defende que as emoções podem – ao contrário do que sugerem os pressupostos metapsicológicos clássicos – efetivamente desaparecer do aparelho psíquico mediante a expulsão do plano consciente de pensamentos, fantasias e representações associadas a afetos capazes de provocar sofrimento (PERES, 2006). Fonte: amemdesejoamem.blogspot.com O termo desafetação indica, por si só, o rompimento do indivíduo com seus próprios sentimentos. A desafetação leva o sujeito a encontrar dificuldades para apreender contrastes emocionais e discriminar tanto seus afetos quanto os das demais pessoas com as quais convive, conduzindo ao estabelecimento de vínculos pouco consistentes (BUNEMER, 1995). McDougall (1996) destaca como causa centralda desafetação as perturbações relacionais entre mãe e bebê. O bebê, como assinala McDougall, antes de ter a capacidade de representar a si mesmo e o mundo em palavras, é necessariamente alexitímico. As mensagens enviadas pelo corpo ao psiquismo, e vice-versa, eram inscritas sem representações de palavras no psiquismo, como no início da infância, e assim, o indivíduo reagiria a uma emoção angustiante com a somatização (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Essa 15 hipótese parte do princípio de que a figura materna tem como principal tarefa a proteção do filho contra as tensões provenientes do mundo exterior. Para tanto, deve interpretar a comunicação primitiva e nomear os estados afetivos de seu bebê, promovendo a progressiva “dessomatização” do aparelho mental. O adequado desempenho dessa tarefa subsidia o acesso da criança à palavra e favorece o desenvolvimento da capacidade de simbolização (PERES, 2006). Marty e McDougall concordam que os sujeitos que apresentam processos de somatização se caracterizam por uma marcante restrição da capacidade de elaboração psíquica. Em função disso, tanto Marty quanto McDougall entendem as afecções orgânicas potencializadas pelo pensamento operatório ou pela desafetação como manifestações desprovidas de valor simbólico (PERES, 2006). Entretanto, o modelo de McDougall apresenta uma diferença importante em relação ao de Marty, ao dizer que a somatização é consequência de uma defesa do psiquismo e não um processo de desorganização; a desafetação seria precisamente para evitá-la. Fonte: psico.online A doença teria, portanto, um sentido, mas que por algum motivo não pôde ser representado em decorrência da angústia que suscitaria (VALENTE e RODRIGUES, 2010). Marty (1993) e McDougall também concordam que a utilização do termo “psicossomático” como adjetivo remete ao antigo dualismo cartesiano. Seguindo esse raciocínio, consideram um erro afirmar que uma dada doença é psicossomática e 16 pensam que a unicidade mente-corpo faz do homem um ser psicossomático por definição. Ambos reconhecem a multicausalidade do adoecimento e não atribuem exclusivamente a determinantes psíquicos a eclosão de enfermidades somáticas. Em virtude da complexidade de tal processo, contudo, inegavelmente privilegiam a análise dos fatores emocionais associados a esse processo (PERES, 2006). As abordagens de Marty e McDougall não se caracterizam como um reducionismo psicológico semelhante aos modelos apresentados nos primórdios da psicossomática psicanalítica, mas sim como um recorte necessário diante das múltiplas facetas do fenômeno que se propõem analisar. Tais abordagens são perfeitamente compatíveis com o modelo biopsicossocial de compreensão do processo saúde-doença vigente nos dias de hoje. Além disso, as proposições de Marty e McDougall não excluem outras tentativas de explicação da gênese de enfermidades orgânicas – sejam elas médicas, culturais, sociais ou de outro caráter – apoiadas em elementos conceituais de raciocínio distintos (PERES, 2006). Christophe Dejours Christophe Dejours, para explicar os processos de somatização, propôs o conceito de subversão libidinal: “processo pelo qual funções biológicas seriam ‘colonizadas’ por jogos eróticos no contexto da relação afetiva materna. Corresponde à constituição do corpo erógeno a partir do corpo biológico”. (CASETTO, 2006). A subversão libidinal seria essencial para o trabalho psíquico das pulsões e, sobretudo, para a atenuação da violência que representam em estado bruto. Se diante da mobilização dessas forças no cotidiano não houver a possibilidade de representação, restam os caminhos da atuação (violenta) ou da somatização. O adoecimento ocorreria, portanto, para se evitar a ação destrutiva, partindo-se do veto à representação. Dejours questiona a visão solipsista de Marty, que dá demasiada ênfase aos aspectos intrasubjetivos envolvidos nos processos de traumatismo, fazendo análises restritas aos movimentos psíquicos interiores e dando menor atenção aos aspectos externos. Para Dejours, o sintoma somático aconteceria na relação com o outro, se “adoeceria por alguém”. Destaca, então, a importância de se considerar os aspectos intersubjetivos nessa discussão: “Na relação com o outro eu mobilizo não somente pensamentos, ideias e desejos, mas também o meu corpo para 17 expressar este pensamento e este desejo. De certa forma, eu mobilizo o corpo a serviço da significação”. (DEJOURS, 1998). Sendo dirigido a um outro, Dejours atribui ao sintoma somático um caráter de intencionalidade e, mais precisamente, uma intencionalidade expressiva. O sintoma ocorreria porque a captura libidinal não pôde ser feita e transformada em um “agir expressivo” dirigido a um outro. O corpo é convocado para produzir significações e, sobretudo, para produzir efeitos – sedução, medo, sono etc – no outro. Mas isso depende do corpo erógeno, de haver sido constituído pela gradativa “colonização” do orgânico pelo psíquico. Entretanto, algumas funções do corpo podem ficar fora dessa transformação, por dificuldade dos pais em “brincar” com ela, de modo a não se colocarem “a serviço do agir expressivo dos movimentos e estados afetivos (ou emocionais) do corpo” (DEJOURS, 1999, p. 30). A essa impossibilidade Dejours chama de “forclusão da função”. Quando, no contexto de uma dinâmica intersubjetiva, uma função não subvertida for convocada, estará criado o contexto mais favorável à somatização. O seu sentido, no entanto, não está na origem, e sim no a posteriori de seu surgimento, já que deverá ser produto elaborado no contexto da relação com um outro: “o sentido do sintoma somático, se é que ele existe, não está no sintoma, mas no trabalho de interpretação eventualmente desencadeado por ele” (DEJOURS, 1999, p. 40). O sentido do sintoma precisa ser criado, mas isto não se fará senão com alguém. Para que o analista seja esse alguém, diz Dejours, ele precisará se deixar questionar por esse acontecimento, revendo sua compreensão da transferência, repensando suas hipóteses de trabalho. Em outras palavras, ele deverá permitir que a surpresa – não há previsibilidade em análise – ou que a concretude do sintoma transforme-se em um enigma da relação – e não somente do paciente -; ele deverá se deixar afetar (DEJOURS, 1999). A anterior oposição entre doença com ou sem sentido foi transformada na admissão de que o sentido – e a significação – estariam no cerne do processo de adoecimento, mas não em sua origem (CASETTO, 2006). Apesar das divergências nas formas de compreender e lidar com o fenômeno psicossomático, percebe-se que alguns atributos se mantêm entre as propostas, de maneira que a noção psicanalítica de somatização vai ganhando forma. Ela se coloca na relação entre o psíquico e o somático, quando em decorrência de estresse psicossocial, o corpo experimenta sintomas e distúrbios que são influenciados pelo 18 psiquismo, seja no surgimento, manutenção ou término destes. Nessas manifestações corporais, havendo ou não a presença de lesão anatômica, a feição emocional é bem explícita. 2 NEUROFISIOLOGIA E AS TEORIAS SOBRE AS EMOÇÕES Fonte: www.ibnbrasil.com No âmbito da neurofisiologia, alguns teóricos se dispuseram a explicar as inter- relações entre os aspectos cognitivos, emocionais e os processos somáticos. William James (1842-1910) e Lange propuseram uma relação entre experiências emocionais e processos corporais e argumentaram que a experiência emocional surgia da percepção das mudanças no corpo. Eles definiram a emoção como uma sequência de eventos que começa com a ocorrência de um estímulo e termina com um sentimento, ou seja, uma experiência emocional consciente. Para James e Lange, há três passos essenciais na produção de uma emoção: O primeiro passo está relacionado com as alterações somáticas desencadeadas pelo estímulo. No segundo passo, essas mudanças são detectadas por receptores sensoriais periféricos e transmitidas ao cérebro. No terceiro passo, o cérebro gera a atividade que é necessária ao sentimento de uma emoção (JAMES, 1884; 1894). James associa excitações emocionais aos instintos. Objetos de raiva, amor, medo, etc, não apenas levam um homem a realizar atos exteriores, mas provocam alterações características na sua atitude e fisionomia e afetam sua respiração, circulação e outras funções orgânicas de forma específica. 19 Desse modo, cada objeto que excita um instinto excitaria também uma emoção (JAMES, 1890). De acordo com a teoria de James-Lange, emoções causam sentimentos diferentes de outros estados mentais porque elas estão envolvidas com respostas corporais que originam sensações internas e diferentes emoções causam sentimentos diferentes porque elas são acompanhadas por diferentes respostas corporais e sensações (LEDOUX, 1996). Por exemplo, numa situação de perigo, durante o ato de fugir, o corpo passa por alterações fisiológicas: aumento da pressão sanguínea e da frequência cardíaca, dilatação das pupilas, transpiração das palmas, contração muscular. Outros tipos de situações emocionais resultarão em diferentes respostas corporais. Em cada caso, as respostas retornam ao cérebro na forma de sensações corporais e o único padrão de feedback sensorial dá a cada emoção uma qualidade única. O medo causa sensação diferente da raiva e do amor porque tem diferentes sinais fisiológicos. O aspecto mental da emoção, o sentimento, é um escravo de sua fisiologia, não o contrário: nós não trememos porque temos medo ou choramos porque estamos tristes; nós temos medo porque trememos e ficamos tristes porque choramos. Além disso, para James e Lange, diferenças individuais na qualidade da representação corporal podem constituir a base de diferenças individuais na experiência emocional: alguém “constitucionalmente” sintonizado às sensações de seu coração pode experimentar algumas emoções (talvez medo e amor) com maior intensidade do que um outro indivíduo com uma representação mais forte do funcionamento do estômago. Damásio (1996) aponta algumas limitações sobre a perspectiva de James. Segundo ele, o principal problema não é tanto o fato de ele reduzir a emoção a um processo que envolve o corpo, mas o fato de ele ter atribuído pouca ou nenhuma importância ao processo de avaliação mental da situação que provoca a emoção. Outra questão problemática foi o fato de James não ter estipulado um mecanismo alternativo ou suplementar para criar o sentimento correspondente a um corpo excitado pela emoção. Na perspectiva jamesiana, o corpo encontra-se sempre interposto no processo. Além disso, James pouco ou nada tem a dizer sobre as possíveis funções da emoção na cognição e no comportamento. Em suma, James postulou a existência de um mecanismo básico em que determinados estímulos no meio ambiente excitam, por meio de um mecanismo inflexível e congênito, um padrão específico de reação do 20 corpo. Porém, no caso de seres humanos, que são essencialmente seres sociais, sabe-se que há emoções que são desencadeadas por um processo mental de avaliação que é voluntário e não automático. A teoria de James-Lange dominou a psicologia da emoção até ser questionada na década de 1920 por Walter Cannon (1871-1945), um notável fisiologista que pesquisava as respostas corporais que ocorriam nos estados de fome e emoções intensas. A pesquisa de Cannon o levou a propor o conceito de uma “reação de emergência”, uma resposta fisiológica específica do corpo que acompanha qualquer estado no qual a energia precise ser empregada. De acordo com a hipótese de Cannon, o fluxo do sangue é redistribuído às áreas do corpo que estarão ativas durante uma situação de emergência, de modo que o suprimento de energia, que é transportado pelo sangue, alcançará os músculos e órgãos críticos. Na situação de luta, por exemplo, os músculos precisarão de mais energia do que os órgãos internos (a energia usada para a digestão pode ser sacrificada em prol da energia muscular durante uma luta). A reação de emergência, ou resposta de “fuga ou luta”, é então uma resposta adaptativa que ocorre em antecipação e em serviço ao gasto de energia, como é frequentemente o caso nos estados emocionais (LEDOUX, 1996). Cannon acreditava que as respostas corporais que compõem a reação de emergência eram mediadas pelo sistema nervoso simpático, uma divisão do sistema nervoso autônomo (SNA). O SNA é composto por uma rede de células e fibras neurais localizadas no corpo que controlam a atividade dos órgãos internos e das glândulas em resposta a comandos do cérebro. Os sinais corporais característicos da excitação emocional – como corações batendo e palmas suando – eram considerados como o resultado da ativação da divisão simpática do SNA, que se acreditava agir de uma maneira uniforme, independente de como ou porque haviam sido ativados. Dada esta suposta singularidade do mecanismo da resposta simpática, Cannon propôs que as respostas fisiológicas que acompanham diferentes emoções deveriam ser independentes do estado emocional particular que é experimentado. Como um resultado, James não poderia estar certo sobre porque diferentes emoções causam sensações diferentes, considerando que todas as emoções, de acordo com Cannon, têm a mesma manifestação no SNA. Cannon também notou que as respostas do SNA são muito lentas para contribuir para os sentimentos – nós já 21 estamos sentindo a emoção no momento em que essas respostas ocorrem. Então mesmo se diferentes emoções tivessem diferentes manifestações corporais, essas seriam muito lentas para contribuir para o que quer que sintamos, seja amor, ódio, medo, alegria, raiva ou desgosto, numa situação específica. A resposta para o enigma da emoção, de acordo com Cannon, se encontra completamente no cérebro e não requer que o cérebro “leia” as respostas corporais, como James havia dito (LEDOUX, 1996). Cannon argumentou que apesar de o feedback corporal não poder contribuir para diferenças nas emoções, ele desempenha um papel importante, dando às emoções seu senso característico de urgência e intensidade (LEDOUX, 1996). Apesar de James e Cannon haverem discordado sobre o que distingue diferentes emoções, eles parecem ter concordado que as emoções causam sensações diferentes de outros estados (não emocionais) da mente devido a suas respostas corporais. António Damásio Damásio revigorou o campo de estudo das emoções com testes neuropsicológicos de laboratório e com observação clínica de pacientes neurológicos com lesão em diferentes regiões no lobo frontal, que o levou a formular a Hipótese do Marcador-Somático, propondo uma inter-relação entre processos cognitivos e emocionais. Damásio (1996) compreende a emoção como a combinação de um processo mental de avaliação, simples ou complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas ao corpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas também dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral), resultando em alterações mentais adicionais. Em outras palavras, a emoção é simplesmente um conjunto de mudanças no estado corporal associado a imagens mentais específicas (pensamentos) que ativaram sistemas específicos no cérebro. Ele distingue emoções primárias e secundárias, sendo as primárias consideradas inatas, pré-organizadas e não específicas, ou seja, que podem ser causadas por um grande número de seres, objetos e circunstâncias (ex: medo, raiva, amor). As emoções secundárias provêm de representações dispositivas adquiridas e não inatas, que incorporam a experiência única do indivíduo ao longo da vida. As emoções primárias dependem da rede de circuitos do sistema límbico, especialmente daamígdala e do cíngulo, enquanto as secundárias envolvem 22 processamentos nos córtices frontais, embora os estímulos possam ainda atuar diretamente no sistema límbico. Na experiência da emoção, o corpo passa por mudanças significativas e é levado a um novo estado. O processo inicia-se com uma avaliação cognitiva do acontecimento, que invoca imagens cerebrais verbais e não verbais. Num nível não consciente, redes no córtex pré-frontal reagem automática e involuntariamente aos sinais resultantes do processamento de tais imagens. Essa resposta pré-frontal provém de representações dispositivas que incorporam informações relativas à forma como determinados tipos de situações têm sido habitualmente combinados com certas respostas emocionais na experiência do indivíduo. Ainda de forma não consciente, automática e involuntária, a resposta das disposições pré-frontais é assinalada à amígdala e ao cíngulo anterior. As disposições nessas últimas regiões respondem: a) ativando os núcleos do sistema nervoso autônomo e enviando os sinais ao corpo por meio dos nervos periféricos; b) enviando sinais ao sistema motor, de modo que a musculatura esquelética complete o quadro externo de uma emoção por meio de expressões faciais e posturas corporais; c) ativando os sistemas endócrino e peptídico, cujas ações químicas resultam em mudanças no estado do corpo e do cérebro; e d) ativando, com padrões especiais, os núcleos neurotransmissores não específicos no tronco cerebral e prosencéfalo basal, os quais liberam então as mensagens químicas em diversas regiões do telencéfalo (ex: gânglios basais e córtex cerebral). 23 Fonte: slideplayer.com.br A Hipótese do Marcador-Somático (HMS) relaciona os estados emocionais ao processo de tomada de decisão. Para Damásio (1996), a emoção decorrente da pré- avaliação cognitiva (formação de imagens sensoriais) é expressa por meio de mudanças na representação de estados corporais, que por sua vez geram um feedback ao cérebro influenciando também processos cognitivos, como a tomada de decisão. Antes de aplicar qualquer análise de custos/benefícios às premissas e antes de raciocinar com vista à solução do problema, sucede algo importante. Quando surge um bom ou um mau resultado associado a uma dada opção de resposta, o indivíduo tem uma sensação visceral que pode ser agradável ou desagradável e essa sensação é levada em conta na tomada de decisão. Como fenômeno envolve sensações corporais, Damásio atribuiu o termo técnico de estado somático; e, porque o estado “marca” uma imagem, chamou-lhe marcador. A função do marcador-somático é convergir a atenção para o resultado negativo a que a ação pode conduzir e atua como um sinal de alarme automático que diz: atenção ao perigo decorrente de escolher a ação que terá esse resultado. O sinal pode fazer com que o indivíduo rejeite imediatamente o rumo de ação negativo, levando-o a escolher outras alternativas. O sinal automático protege-o de prejuízos futuros, sem mais hesitações, e permite-lhe depois escolher entre um número menor de alternativas. A análise custos /benefícios e a capacidade dedutiva adequada ainda têm o seu lugar, mas só depois de esse processo automático reduzir drasticamente o 24 número de opções. Os marcadores-somáticos são um caso especial do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários. Quando um marcador-somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto um marcador-somático positivo, o resultado é um incentivo. A maior parte dos marcadores-somáticos que usamos para a tomada racional de decisão foi provavelmente criada nos nossos cérebros durante o processo de educação e socialização, pela associação de categorias específicas de estímulos a categorias específicas de estados somáticos. Os marcadores-somáticos são, portanto, adquiridos por meio da experiência, sob o controle de um sistema interno de preferências e sob a influência de um conjunto externo de circunstâncias que incluem não só entidades e fenômenos com os quais o organismo tem de interagir, mas também convenções sociais e regras éticas. O conjunto crítico e formativo de estímulos para os emparelhamentos somáticos é, sem dúvida, adquirido na infância e na adolescência. Mas o crescimento do número de estímulos somaticamente marcados termina apenas quando a vida chega ao fim, pelo que é adequado descrever esse crescimento como um processo contínuo de aprendizagem. 25 3 O CAMPO DA PSICOSSOMÁTICA Fonte: www.bebee.com No campo psicanalítico muito já se discutiu sobre o corpo no âmbito dos quadros histéricos. Contudo, a reflexão sobre sintomas corporais que estão fora do registro da representação ainda é um domínio a ser explorado. Durante boa parte do tempo, uma série de psicanalistas que vieram nas esteiras dos primeiros trabalhos freudianos insistiu em circunscrever o processo analítico numa leitura da representação e elaboração dos processos psíquicos, o que teria excluído da reflexão teórico-clínica tudo aquilo que não fosse passível de ser dito pelo discurso. O imperativo da palavra, para além do afeto e da dimensão corpórea nos parece desconsiderar os avanços teóricos que se descortinaram a partir virada teórica de 1920. Neste tipo de leitura, o corpo pré-verbal, ainda em vias de elaboração psíquica, manteve-se “silenciado”, ignorando que pode haver algo a ser construído no processo analítico. Fernandes (2011) aponta para um duplo movimento em relação ao corpo: por um lado, as evidências das implicações da subjetividade no corpo são relegadas a uma espécie de esquecimento; por outro, são identificadas exclusivamente com o discurso psicossomático, cuja ênfase é no corpo doente e nas falhas dos mecanismos psíquicos. Interessada na dimensão pré-verbal e na discussão teórico-clínica sobre 26 os processos psíquicos em jogo no sintoma psicossomático, a psicanalista Joyce McDougall (2000) chama atenção para o silêncio que pesava sobre as dores somáticas. Segundo afirma, tal “silêncio” é compreensível quando verificamos como as origens das manifestações somáticas na maioria das vezes têm raízes muito precoces. Joel Birman (2003) também compartilha da visão de que há um corpo silenciado. Como observa, na tradição ocidental podemos perceber um silêncio do somático, no qual o mal-estar se materializa pela demanda de cuidados e alívio. Segundo argumenta, na cena clínica nos depararmos com um corpo ao mesmo tempo ruidoso e silencioso, perante o qual a medicina se vê impotente e a psiquiatria não pode regular pela via dos remédios. Fazendo uma crítica a alguns manejos clínicos que foram sendo adotados para lidar com as problemáticas corporais, o autor aponta para os limites de uma psicanálise ligada estritamente ao campo da fala e da linguagem, que parece ter sempre a expectativa de que o inaudível do corpo se transforme em verbo para que possa, então, dar forma aos cuidados. Tal situação é geradora de impasses clínicos e perplexidade. Fonte: www.equilibriumrs.com.br Fernandes (2003) ressalta que o fato da psicanálise usar fundamentalmente a linguagem como material de trabalho levou alguns críticos a insistir que ela teria negligenciado o corpo, privilegiando apenas a palavra. Entretanto, como vimos em Freud, toda a sua teoria indicou que havia diversos elementos corporais a serem 27 investigados, pois o corpo seja enquanto cenário de uma sexualidade infantil fragmentada ou já unificado pelo narcisismo – como fica evidente na primeira teoria pulsional – seja na interseção entre o transbordamento pulsional e o Eu-corporal, pode vir a fazer parte de uma cadeianarrativa. 3.1 Entre o biológico e o somático: um corpo para além do organismo Fonte: psicossomaticaararaquara.blogspot.com Ao longo da construção de seu aparato teórico, Freud se valeu algumas vezes de figuras da biologia e neurologia para ilustrar os processos psíquicos que vinha observando e procurando descrever. Esta perseverança revela uma busca por um aspecto que fundamentasse o psíquico em termos biológicos. Ao longo da construção de seu aparato teórico, Freud se valeu algumas vezes de figuras da biologia e neurologia para ilustrar os processos psíquicos que vinha observando e procurando descrever. Esta perseverança revela uma busca por um aspecto que fundamentasse o psíquico em termos biológicos. Oposição ao pensamento organicista de sua época, a teoria psicanalítica se constitui como uma experiência clínica, na qual o corpo da histérica, como um corpo falante, é o primeiro paradigma de uma lógica para além das regras anatômicas e fisiológicas da medicina (BIRMAN, 2003). Ao destacar perspectiva de corpo-escritura (FERNANDES, 2003) para traduzir os sintomas histéricos, a psicanálise, em seus primórdios, revela como o corpo pode 28 se expressar por meio de uma sintomatologia multiforme, seguindo uma lei e uma ordem que lhe são próprios. A psicanálise perante a medicina traz uma “ruptura das bases sobre as quais se assenta o modelo fundamental de relação entre aquele que trata e aquele que é tratado” já que o “tratamento médico consiste em oferecer ao doente auxílio em alguma forma de tratamento que elimine a dor, anule as manifestações dos sintomas da doença, e faça o possível para afastar a morte” (ÁVILA, 2002:18). Tradicionalmente, a medicina é compreendida como uma prática social, regulada institucionalmente, cujo papel fundamental é o de assistência ao paciente cuja queixa gira em torno de questões de um ideal de saúde e de doença. A última entendida a partir de um estado negativo, de ausência de saúde. Do ponto de vista da medicina, indivíduo doente é aquele que não possui o que ele próprio considera definidor de seu bem-estar. O indivíduo, considerado puramente como um corpo biológico, fica restrito à perspectiva anátomo-fisiológica da medicina, visão cuja lógica do funcionamento somático é fixa e imutável. Já no campo psicanalítico o corpo, atravessado pelo erotismo, implica um trabalho incessante de elaboração, nomeação e significação das experiências corporais. Estas têm um caráter transitório, “alimentadas” por investimentos libidinais. O trabalho analítico, de fato, é propiciador de um processo de exploração do psiquismo via uma narrativa construída ou reconstruída no setting analítico. Essa abertura para a narração das experiências subjetivas para um outro permite um alargamento das possibilidades do sujeito de compreensão de si mesmo. O método freudiano consiste em “saber do próprio doente algo que se ignora e que também ele não sabia” (FREUD, 2013[1910]: 239). Se no modelo médico o indivíduo deve se colocar como paciente, isto é, passivo perante o “doutor”, no modelo psicanalítico este precisa se apropriar de sua história, contando-a através palavras. É possível avançar nesta discussão ao levarmos em consideração que na relação entre analista e paciente, o corpo de um e do outro pode tomar às vezes de uma moeda de troca que vai mediar esta relação (FERNANDES, 1997) e produzir, entre o par analítico, a constituição de uma narração co-construída. Neste contexto, a palavra circula por meio do encontro com o outro, que testemunha o sujeito em sofrimento. 29 Quando abordamos os quadros de adoecimento psicossomático, as fronteiras entre um corpo biológico e um corpo erótico ficam menos evidentes, de forma que este quadro situa-se no campo de interseção entre a intervenção médica e a escuta analítica. Cabe, então, evidenciar a distinção entre o corpo biológico, objeto da intervenção médica e o corpo pela relação com um outro, isto é, um corpo erótico. Esta distinção é fundamental para que possamos avançar na compreensão sobre o fenômeno psicossomático. Assim, cabe lembrar que o médico, atravessado por uma visão organicista, ocupa o lugar de portador de um saber sobre seu paciente. Ele é aquele que orienta, toca, indica e direciona ações visando acima de tudo a saúde e o bem-estar, ou seja, um ideal de funcionamento orgânico. Já o psicanalista se propõe, através de seu manejo clínico, pôr o psiquismo a trabalho, visando a (re) construção de uma narrativa sobre o sujeito. Naturalmente, o objeto de intervenção da medicina é o corpo anatômico, a doença em sua concretude. No caso da psicanálise, é o sujeito em seu sofrimento. No processo analítico, as questões subjetivas são consideradas, a “cura” localizada muito mais no sentido que é dado/ construído por meio de uma narrativa sobre si do que os fatos propriamente ditos. Freud, tomando o sintoma conversivo histérico como paradigma, evidencia como o sofrimento psíquico se revela por meio de sua teatralização somática. Este é um corpo com valor simbólico no qual a realidade biológica encontra- se inserida num sistema de significação e narrativa. Entretanto, ao final de sua obra verificamos que diferentes aspectos corporais podem estar em jogo no processo analítico, inclusive aqueles que dizem respeito ao adoecimento corporal. Por conseguinte, faz sentido afirmar que a origem da psicanálise testemunha um retorno à experiência de adoecimento e sua reflexão. A partir desse movimento, ela desmonta a cartografia corporal estabelecida pela racionalidade médica, enunciando uma nova cartografia na qual a linguagem e o fantasma são fundantes. Propondo um olhar e um sentido original para as manifestações somáticas, a psicanálise rompe com a concepção de uma medicina mecanicista e intervencionista. Para esclarecer a importante ruptura entre o saber psicanalítico e o saber normativo médico, Ávila ressalta a relevância do dualismo cartesiano na concepção moderna sobre o corpo e a psique. A partir deste modelo, segundo o autor, o corpo ganha um estatuto de “máquina” dando origem ao pensamento mecanicista na medicina. O sintoma histérico, como o sintoma funcional, marca uma abertura para uma nova 30 forma de investigação clínica, que busca explorar o lugar do psiquismo na produção do sintoma. De fato, nos primórdios de sua teorização, Freud já antecipava que seu método partiria “não do exame do corpo, mas dos conteúdos da mente, fazendo da análise do Eu [...] o seu objeto” (2013 [1910]: 67). Sobre esse ponto, Birman entende a ruptura com a tradição cartesiana promovida pela psicanálise como um movimento marcado por diversos obstáculos e caminhos tortuosos, exigindo que o discurso freudiano ultrapassasse o paralelismo psicofísico presente na psicologia científica e na racionalidade médica. Logo, pela ênfase atribuída à linguagem, podemos traçar uma articulação entre os polos psíquico e somático, estabelecendo outro nível de complexidade. A formulação da noção de aparelho da linguagem vem nessa direção, promovendo uma amarração entre as substâncias corpórea e pensante. Consequentemente, como adverte Birman, no pensamento freudiano não há como dissociar a reflexão sobre o corpo dos movimentos pulsionais e de suas intensidades. A dimensão corporal arcaica, forjada no encontro com outro, carrega marcas do que pôde ser metabolizado das intensidades pulsionais. A partir da experiência de satisfação das necessidades corporais, uma dimensão de prazer pode se estabelecer, viabilizando a possibilidade de elaboração psíquica. A pulsão como força constante está sempre colocando o psiquismo a trabalho, mas se não existisse um outro capaz de regular a tendência à descarga total de excitação, transformando-a em experiência de satisfação, o caminho seria a morte, adverte Birman. Para este autor, o corpo teórico psicanalítico seestrutura a partir do entendimento de que há, efetivamente, uma impossibilidade biológica do organismo de realizar a autorregularão automática. No bebê humano, o acolhimento e a transformação da força pulsional em prazer são condições de possibilidade para o nascimento do aparelho psíquico e a aquisição da capacidade de pensar. Indo além, podemos supor que a capacidade narrativa também nasce do acolhimento do outro. O autor defende, ainda, que no interior do discurso freudiano encontramos “uma outra leitura sobre o psiquismo, no qual esse se fundaria sempre no corpo” (2003: 14 [grifo nosso]). Segundo ele, o corpo é da ordem do artifício, da criação através da relação com um outro fundamental, não se identificando nem com o somático, nem com organismo. Diferenciando-se da ordem vital, o corpo se constitui por meio de diferentes territórios, regulados por diversas modalidades de 31 funcionamento. Com efeito, podemos falar de diferentes formas de subjetivação, forjadas a partir destes territórios corporais e a partir de, podemos pensar, diversas apropriações que cada um pôde fazer de tais territórios. Em última instância, o discurso freudiano se funda numa íntima articulação entre o corpo e formas de subjetivação. O corpo em Freud não se confunde com organismo biológico, pois ele emerge como espaço de inscrição do psíquico com o somático (FERNANDES, 2003b). Percebemos, então, a importância do corte epistemológico introduzido pela visão freudiana sobre os sintomas somáticos. A autora ressalta que encontramos em Freud uma abordagem própria do corpo que se situa no centro de construção teórica, fazendo com que haja uma dupla racionalidade do corpo: uma psíquica, outra somática. Vale ressaltar que a primeira está fundamentada na segunda, isto é, no encontro do indivíduo com a trama de relações parentais que se fazem presentes nos cuidados corporais cotidianos. Em suas palavras: “[...] se o corpo que a construção teórica de Freud anuncia não se confunde com o organismo biológico, objeto de estudo e intervenção da medicina, ele se apresenta, ao mesmo tempo, como palco onde se desenrola o complexo jogo das relações entre o psíquico e o somático, e como personagem integrante da trama dessas relações. Como se verá mais adiante, essa dupla inscrição se evidenciaria no conceito de pulsão, o conceito-limite entre o psíquico e o somático, ao colocar 62 o corpo ao mesmo tempo como fonte da pulsão e como finalidade, lugar ou meio de satisfação pulsional. Assim, a teoria freudiana permitiria colocar em evidência que o somático, isto é, o conjunto das funções orgânicas em movimento, habita um corpo que é também o lugar da realização de um desejo inconsciente” (FERNANDES, 2003b: 33-34). Nesse sentido, a psicossomática, como um campo que emerge na interseção entre o saber médico e psicanalítico permanece sendo um grande desafio para a clínica. A discussão sobre que tipo de escuta pode ser oferecido para este corpo que padece é enriquecida a partir do trabalho de psicanalistas que se dedicaram a aprofundar a compreensão sobre os processos psíquicos subjacentes aos quadros de adoecimento orgânico. 4 TRANSTORNOS PSICOSSOMÁTICOS: UMA QUESTÃO DE LIMITES? A problemática dos limites vem sendo tema de debates cada vez mais frequentes no cenário psicanalítico contemporâneo, seja devido aos impasses clínicos 32 das chamadas novas configurações psicopatológicas - que incluem perturbações na constituição dos limites internos e externos do aparelho psíquico (CARDOSO, 2005) -, seja por meio das reflexões teóricas promovidas pelo movimento definido por Luiz Claudio Figueiredo (2009) - como reabilitação dos ‘analistas marginais’ que se propuseram trabalhar pacientes “não analisáveis”. Em termos clínicos, os conhecidos pacientes difíceis ou, no limite do analisável, nos convocam a repensar nossa prática e a buscar novos fundamentos teóricos. Como argumenta Green (1990), a discussão dos casos-limite surge como uma demanda, já que o modelo clínico apresentado por Freud não estava dando conta de algumas problemáticas que se manifestavam no consultório. Green opta por discutir a questão dos limites em termos metapsicológicos, sustentando que estes quadros possuem uma organização própria e estável: são organizações-limite com uma estrutura autônoma. Segundo defende, é uma problemática que não se restringe aos limites do eu, mas se situa na ordem de uma desorganização das fronteiras no interior do aparelho psíquico. O autor julga que a reflexão sobre a psicossomática e dos quadros psicóticos são dois dos maiores avanços da psicanálise pós-freudiana, já que a primeira, por mais controvertida que seja, propiciou uma base de reflexão de um funcionamento psíquico distinto das estruturas clássicas da psicanálise. Diversos autores contemporâneos defendem que os quadros psicossomáticos estão inseridos nas chamadas problemáticas narcísico-identitárias ou organizações- limite, cujas características marcantes são as dificuldades nos processos de simbolização. A psicanalista Joyce McDougall, ao apontar para a problemática dos limites nos casos de somatizações, entende-a como expressões-através-do-ato que utilizam o corpo como espaço de descarga. Em suas palavras: “Quando um adulto representa inconscientemente seus limites corporais como estando mal definidos ou não separados dos outros, as experiências afetivas com um outro que tem importância para ele [...] a consequência pode ser uma explosão psicossomática, como se, em tais circunstâncias, não existisse senão um corpo para dois” (MCDOUGALL, 2000: 11) Logo, cabe refletir em que medida o adoecimento psicossomático se encontra inserido no grupo mais extenso de quadros psicopatológicos denominados comumente de casos-limite também nomeados de patologias narcísico-identitárias, 33 ou se trata de um fenômeno próprio, com uma particularidade própria e etiologia distinta dos quadros descritos. Sabemos que assim como os casos-limite, os pacientes psicossomáticos têm despertado interesse dos psicanalistas contemporâneos. Não apenas por uma desconexão entre o afeto e o adoecimento, mas, sobretudo, por uma provável pobreza simbólica, expressa pela dificuldade associativa e uma maneira de estar no mundo extremamente funcional. Em análise, esses pacientes têm dificuldades em correlacionar seus sintomas com os afetos subjacentes, sua narrativa é árida, predominando a angústia automática como excitação não manejável. Este autor defende a ideia de uma estrutura mental específica nesses casos: a Estrutura Psicossomática, definida pela presença de transtorno de manifestação somática que se apresenta como uma perturbação predominante. A Estrutura Psicossomática está inserida no corpo das psicopatologias narcísicas cujas estruturas nosográficas contêm na sua identidade nuclear alterações do narcisismo, tal como na depressão e nas personalidades narcísicas. O autor observa, contudo, que a depressão psicossomática é bem distinta da depressão mentalizada da melancolia. A primeira está no registro da depressão essencial, tal como entende Pierre Marty, de forma que há um estado de indiferença, uma dificuldade de sustentar vínculos afetivos e, em termos econômicos, aponta para a descatexização da representação. Outra característica marcante nos pacientes psicossomáticos, como já mencionamos, é a prevalência do pensamento operatório, cuja relação com o outro é regulada em função da satisfação das próprias necessidades que, ao não serem satisfeitas, geram hostilidade. Os casos-limite, por sua vez, chamam atenção por uma precariedade simbólica e pela utilização de defesas arcaicas, além de intensas oscilações afetivas que indicam a presença de angústias básicas. 4.1 Experiências precoces: o papel do corpo na constituição de defesas precoces Retomando a noção de apoio/desvio freudiana, lembramos que obebê tem no seio sua primeira fonte de satisfação. No encontro primordial com o outro – que neste momento ainda não pode ser reconhecido em sua alteridade – a amamentação associa-se não apenas ao fato de saciar a fome, mas também de obter prazer por 34 meio do contato da mucosa da boca com o seio. A partir deste encontro, como vimos, opera-se um desvio do instintivo para o pulsional. Os primeiros cuidados corporais propiciam esse desvio, funcionando como possibilidade de integração e formação de uma imagem corporal. Logo, a pulsão se apoia, primeiramente, na satisfação das necessidades vitais, para logo se desviar das funções biológicas e buscar o prazer. O objetivo principal da pulsão passa a ser reviver essa primeira experiência de satisfação para sempre perdida. O prazer no contato do bebê com o outro adulto é essencial para o estabelecimento de um corpo fantasiado, integrado, representado psiquicamente. O psicanalista francês, Christophe Dejours prefere chamar esse processo de subversão libidinal, já que entende que a noção de apoio de Freud (1905) trata de uma emancipação da ordem fisiológica. O autor argumenta que há um jogo entre a mãe e seu bebê durante os cuidados cotidianos. Esse jogo mobilizaria vários órgãos. Na amamentação, por exemplo, estão incluídos a boca, a língua, o estômago, o intestino, o ânus... Trata-se de uma brincadeira na qual ocorre uma subversão da função original, geradora de intenso prazer. Para que ela ocorra é necessária a presença de um outro que também queira jogar. Como esclarece: “Devagarinho, a criança pode solicitar à sua mãe brincar com diferentes partes de seu corpo, brincadeiras durante as quais, não somente ela brinca, mas também adquire o controle com relação as exigências de autoconservação, a urgência de satisfazer suas necessidades. Devagarinho, todo corpo vai sendo colonizado, até que se constitua o que se chama de segundo corpo, ao qual damos o nome de corpo erógeno. [...] O segundo corpo é o corpo que habitamos; não é mais o corpo fisiológico, é um corpo que foi arrancado ao corpo biológico, mas é um corpo que nos faz verdadeiramente humanos” (DEJOURS,1998:44) Para Dejours, a origem da vida psíquica se encontra no corpo erógeno. Ele é primordial e, de fato, o fracasso na subversão libidinal acaba se traduzindo num desenvolvimento psíquico que não se completa. Mas a colonização subversiva do corpo fisiológico tem, sempre, um caráter inacabado, pois há algo a ser conquistado, num processo constante que não cessa de se impor ao sujeito. O autor sustenta que a sexualidade psíquica e a economia erótica estão sempre sob ameaça, de se “desapoiar”, levando a um movimento que o autor denomina de contraevolutivo. Por outro lado, a conquista do corpo erótico é resultado do diálogo entre o corpo e suas funções que se apoiam nos primeiros cuidados. 35 Por meio do brincar com o corpo uma troca prazerosa entre o bebê e o adulto poderá ocorrer. Nesse processo, o funcionamento psíquico materno, convocado nesse cuidar, trará para a relação, não apenas sua história precoce, mas também sua sexualidade, marcando de maneira singular o diálogo que se instaura entre ela e seu filho. Um diálogo fantasmático, fundamental para a economia psíquica do bebê. Assim, os afetos que perpassam o corpo, através dos encontros, rupturas e lutos vividos, vão marcar a economia erótica ao longo de toda a vida. No que tange à clínica psicossomática, o autor sugere que a desintricação da pulsão de sua função seria capaz de facilitar a somatização, pois que as perturbações do funcionamento psíquico alteram a economia erótica. Assim, no caso dos pacientes psicossomáticos, parece não ter havido uma completa representação corporal. Como argumenta D’Alvia, a relação destes pacientes com seu próprio corpo vem marcada por exigências externas e uma tendência a ignorar os sinais interceptivos. As sensações corporais, não tendo contenção psíquica, tomam a via da descarga corporal direta. Aprofundando esta discussão, Joyce McDougall (2000) amplia a noção de pensamento operatório, propondo uma visão bastante particular sobre o adoecimento psicossomático. Integrando sua experiência clínica tanto no seio da escola inglesa quanto francesa de psicanálise, a autora opõe a neurose e a psicose de uma parte e os pacientes psicossomáticos de outra, e avança dando sua contribuição à discussão. Discutindo sobre o papel das somatizações na economia libidinal, McDougall (op.cit) afirma que certas formas de funcionamento mental são adquiridas nos primeiros meses de vida e podem predispor mais às manifestações psicossomáticas, do que às soluções neuróticas, por exemplo. São quadros nos quais prevalece o pensamento operatório com maneiras “desafetadas” de pensar e relacionar-se. A autora sustenta que inicialmente o infans é “alexímico”, na medida em que “as mensagens enviadas pelo corpo ao psiquismo, ou inversamente, eram inscritas sem representação de palavras” (: 26-27). O conceito de aleximia, na obra da autora, diz respeito à dificuldade que o sujeito encontra de entrar em contato, bem como expressar suas emoções. Além disso, há uma dificuldade patente de distinguir os afetos entre si. Nesse contexto, o pensamento operatório e a alexitimia são entendidos pela autora em sua dimensão defensiva, remetendo a um período precoce, anterior à aquisição da linguagem verbal. Como a autora defende, há nos quadros 36 psicossomáticos uma outra forma de lidar com o conflito. Seja nas organizações neuróticas e ou psicótica, a dimensão do conflito está colocada em termos psíquicos, podendo envolver a vida interior ou a realidade externa. Trata-se de um drama, cuja cena é imaginária. Nos quadros psicossomáticos há, pelo contrário, um teatro do corpo. Ela comenta que primeiramente entendia que os estados psicossomáticos eram consequência de uma reação do corpo a uma ameaça psicológica como se esta fosse fisiológica, perspectiva esta que leva em conta uma separação nítida entre o psiquismo e o corpo. McDougall acredita que uma parte significativa de pacientes que expõe sua problemática psicossomática não tem consciência de sua dor mental, chegando a negar a relação entre o a dor física e seu sofrimento psicológico. Para ela, devemos nos manter atentos às solicitações de liberação de sintomas psicológicos, pois se trata de um paradoxo, já que “esses sintomas constituem tentativas infantis de cura de si mesmo e foram inventados como solução para a dor mental insuportável [...] os sintomas desta natureza constituem técnicas de sobrevivência psíquica”. Essas defesas, constituídas num período extremamente precoce, visam criar um espaço de separação entre o indivíduo e a mãe que, por dificuldades internas, não consegue entrar em contato com aquilo que o bebê comunica em termos sensório- afetivos. Os cuidados maternos iniciais funcionam como tela protetora contra estímulos transbordantes. As perturbações na relação mãe-bebê podem levar a rupturas nos fenômenos transicionais, fundamentais para a internalização da função maternante. Quando, por alguma razão inconsciente, a mãe não consegue escutar as necessidades do bebê, “este é freado em sua tentativa de construir lentamente dentro de si mesmo a representação de um ambiente maternante que cuida e alivia”. O holding materno inicialmente deve funcionar como um continente, tornando propícia a atividade de pensar, viável quando o continente se transforma em conteúdo (ZORNIG, 2009: 35), sustentação fundamental para que o sujeito possa futuramente cuidar de si. Sem a internalização dessa função há, para McDougall (op. cit), um risco de explosões somáticas. Os acontecimentos traumáticos precoces, assim, acabam por desorganizar o psiquismo, determinando a presença de um vazio psíquico, tendo como consequência as alterações nos processos de pensamento, na atividade fantasmáticae dos afetos. 37 Nestes quadros, as relações parentais acontecem quase que de maneira exclusiva com o filho, visando realimentar as exigências de satisfação grandiosas, segundo a perfeição de ideais narcisistas. Há uma “super presença sobre adaptadora”, atuando de modo extremamente exigente e controlador e com visível déficit na decodificação das necessidades tanto físicas como emocionais da criança. Observamos ainda com D’Alvia que, nestes casos, há uma contradição entre um excesso de cuidado manifesto e uma intolerância e hostilidade latente. São pais que têm dificuldades de discriminar seus filhos como sujeitos separados, de forma que há falhas na diferenciação e na distância do objeto, visíveis através da pouca capacidade para investir em objetos discriminados. Eles “necessitam imperiosamente que seus filhos respondam com uma excessiva adaptação ao meio e cumpram à perfeição o que deles se espera”. Neste tipo de conformação familiar há pouco espaço para a dor mental, gerando na criança uma pobreza tanto nos registros corporais como afetivos, com a presença de “déficits estruturais na imagem corporal que se traduzem em alterações nos canais expressivos de descarga. 4.2 Stress e aspectos psicossociais nas doenças crônicas de pele A sociedade atual possui padrões de estética e beleza bem delimitados, e a maioria das pessoas esforça-se, de certo modo, para alcançá-los. No caso dos pacientes com problemas dermatológicos, o sentimento de inadequação e o estigma vivenciado são evidentes diante de tais exigências externas de “normalidade” estética. A sensação de discriminação quanto à aparência física acompanha o portador constantemente, provocando grande insatisfação consigo mesmo. O processo de adaptação à doença de pele pode tornar-se, dessa maneira, um foco causador de stress, assim como também pode ser consequência do enfrentamento de fatores estressantes. Montagu (1988), um dos principais pensadores sobre o assunto, afirmou que, num primeiro momento, é possível refletir por que colocar o foco de atenção na pele e por que ainda existem tão poucos estudos em relação a ela quando comparados ao câncer, por exemplo. Na realidade a pele pode, muitas vezes, passar despercebida. Durante muitos anos, esse órgão não teve a atenção merecida, e só a partir da década de 1940 o assunto passou a ser estudado com mais profundidade. No entanto a pele está mais evidente no dia-a-dia do que na maioria das vezes é possível perceber. 38 De acordo com o mesmo autor, a pele é um órgão de comunicação e percepção visível. Ela é o maior órgão de percepção no momento do nascimento, tornando-se o meio para o contato físico e para a transmissão de sensações físicas e emoções. As ligações existentes com o sistema nervoso tornam a pele altamente sensível às emoções, independente da consciência. A pele expressa os sentimentos, mesmo quando não se está ciente deles, e ajuda a aprender e conhecer mais sobre o ambiente. É possível identificar a pele como um sistema nervoso externo que se mantém em conexão com o sistema nervoso interno (SNC), uma vez que o sistema nervoso é uma parte escondida da pele e ambos são formados pela ectoderme, que envolve todo o corpo embriônico. O processo de desenvolvimento da identidade passa também pelo reconhecimento do externo, e a pele, nesse ponto, desempenha um papel fundamental, pois uma das suas funções é representar o indivíduo como ser único. O descontentamento pessoal em não cumprir as exigências externas se reflete também em dificuldades nos relacionamentos interpessoais (Mingnorance, Loureiro & Okino, 2002). Para Azambuja (2000), a partir do novo entendimento da doença proposto pela psicossomática e pela psiconeuroimunologia, a pele passa a dizer muito mais do que se está habituado a entender sobre ela, pois se acredita haver outros aspectos, muitas vezes não visíveis, que exercem grande influência. Considerada um órgão de extensão do sistema nervoso e um órgão imunitário, assim como representante da autoimagem do indivíduo, a pele também passa a ser expressão de sua consciência. A intensidade do impacto das doenças de pele depende de algumas variáveis, como a história natural e as implicações da desordem específica de pele. As características demográficas, de personalidade, caráter e valores do paciente, sua situação de vida e as atitudes da sociedade como um todo sobre o significado dos distúrbios de pele são fatores fundamentais a serem analisados. É de conhecimento público que o stress, físico ou emocional, tem repercussões em inúmeras dermatoses, que são também geradoras de stress. O prurido, consequência de diversas dermatoses, sofre ampla variação de intensidade, tendo como forte fator contribuinte o stress. Entre as doenças de pele citadas na literatura que demonstram a influência do stress, também chamadas de psicodermatoses, estão a dermatite atópica, a desidrose, o líquen simples crônico ou neurodermite, a dermatite seborréica, a psoríase, a acne vulgar, a rosácea, a alopécia areata, a 39 hiperidrose, a urticária, o herpes simples e o vitiligo (Amorin-Gaudêncio, Roustan & Sirgo, 2004; Koo, Do & Lee, 2000; Steiner & Perfeito, 2003). O stress envolvido no enfrentamento da doença de pele é uma evidência inequívoca de que os fatores emocionais são determinantes no aparecimento e agravamento da doença. O stress também influencia diretamente no processo inflamatório e proliferativo das células na psoríase. Programas especiais de cuidado ao paciente, que envolvem não só prescrição de medicamentos, mas também atenção às contribuições da sincronia da fisiologia entre mente e corpo, estão começando a ser desenvolvidos. Especial atenção está sendo dada, nesses programas, a uma completa avaliação física e psicológica para melhor elucidar os fatores implícitos, fatores físicos e mentais estressantes. Além disso, destacam-se também o estilo de vida e as práticas dos pacientes, a educação do paciente em grupos de autoajuda e treinamento de relaxamento do stress. O processo de conscientização do indivíduo sobre o que o leva a adoecer no plano físico, psicológico e social pode proporcionar a mudança dos aspectos negativos que contribuem para esse estado de desarmonia. A descoberta dos fatores estressantes que influenciam na doença é fundamental para que ocorram mudanças que também se referem à conscientização de padrões de comportamento prejudiciais à pessoa, tanto físicos como emocionais, e de crenças arraigadas que podem levar, ao longo dos anos, a um desgaste importante da qualidade de vida. Dentre os vários fatores que provocam o aparecimento das dermatoses, o aspecto emocional é citado na bibliografia em geral como um fator importante que influencia tanto o surgimento como o agravamento da lesão. Destaca-se a psoríase, uma das dermatoses crônicas mais pesquisadas, que está classificada no grupo das psicodermatoses, sendo o fator emocional identificado como agravante da doença. Além disso, a estigmatização e o tratamento difícil dessa dermatose contribuem para um alto nível de frustração e baixa autoestima do paciente. 40 BIBLIOGRAFIA Amorin-Gaudêncio, C., Roustan, G., & Sirgo A. (2004). Evaluation of anxiety in chronic dermatoses: Differences between sexes. Interamerican Journal of Psychology,38 (1), 105-114. ARTHUR C. GUYTON M.D. Neurociência Básica ? Anatomia e Fisiologia. Coord. Trad. Charles Alfred Esbérad ... [et al.] 2º Ed.- Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S. A, 1991. Azambuja, R. (2000). Dermatologia integrativa: a pele em novo contexto. Anais Brasileiros de Dermatologia, 75(4), 393-420. AVILA, Antonio. Para Conhecer a psicologia da religiao. Sao Paulo: Loyola, 2007. AZAMBUJA, M. R.F. de.; FERREIRA, M. H. M. Violência sexual contra crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011 BARRETO, Façanha J. E.; SILVA, P. L, Sistema Límbico
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