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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA DISCIPLINA DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA I Suélen Andrade Desde que se deu a divisão do trabalho na humanidade, pode-se pensar que os papeis de gênero foram divididos de maneira que se moldou uma hierarquia entre os gêneros. Segundo Federici (tradução Rossi, 2018)1, através do Materialismo de Marx, pode-se pensar o gênero através de classes, nas quais homens e mulheres estão em lados opostos assim como proletariado e burguesia. Esta é uma das vertentes do feminismo que nos dá margem para ver a disparidade entre os sexos e o gênero com outros olhos. Tendo em vista que entre proletariado e burguesia há aquele grupo que sofre as consequências do grupo que detém mais poder e privilégios, com homens e mulheres não fora diferente, pois criou-se uma hierarquia que limitou as mulheres a ocuparem certos espaços, em sua maioria os públicos, e as subjugou, e ainda subjuga, como diria Simone de Beauvoir “o segundo sexo”, ou seja, o que vem depois, o que é uma disforia, o que não é prioridade. Tendo em vista que essas divisões, práticas e costumes que separam o que é ser homem do que é ser e mulher, passaram por transformações ao longo do espaço-tempo, E.P. Thompson, em sua obra sobre contexto popular no século XVIII “Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional", analisa a venda de esposas como um evento aceitável para a época. É o exemplo deste autor que usaremos como base para este escrito. Cultura popular é um termo que pode querer dizer várias coisas. Por um lado, nomear a cultura autônoma, independente e inventiva, que brota das próprias pessoas comuns, como o autor coloca acontecer por algumas vezes no século XVIII. Por outro, pode significar a cultura comercial produzida “desde cima”, e fornecida às pessoas como consumidores, como em geral acontece no século XX. Para o autor, não há como falar de cultura popular sem pegá-la por partes, como tradições, rituais, sistemas de valores e etc. Neste caso, o autor pega o sistema de vendas de esposas como um exemplo. Esse ritual prescrevia que a esposa deveria ser levada ou conduzida por um cabresto feito de corda ou palha, até um determinado 1 Uma Crítica Feminista de Marx. Disponível em: https://feminismoclasse.medium.com/uma-cr%C3%ADtica-feminista-de-marx-parte-i-2-d667a90cd96f lugar de mercado pelo seu marido, e lá deveria ser colocada à venda em algo que se parecia com um leilão aberto. Todo esse processo era assistido e aceito social e tradicionalmente. Usando lentes dos dias atuais, podemos classificar como atos bárbaros, como vender qualquer objeto no calçadão de Pelotas, por exemplo, mas na época era nada mais que uma tradição da“cultura popular”. Apesar do cenário do filme a ser analisado, a prática de venda de esposas não ser mais comum, o poder e o domínio do homem sob a mulher ainda é muito forte, logo, os costumes mudaram através da moral, mas os papeis fortemente hierarquizados ainda continuam os mesmos. O filme As Sufragistas dirigido por Sarah Gavron e roteirizado por Abi Morgan, lançado no ano de 2015, relata a história do sufrágio feminino na Inglaterra no início do século XX. Apesar de ser um filme que relata as experiências vividas pelas mulheres há décadas atrás, pode-se pensar na sua contribuição para o cenário político, social e econômico que vivemos atualmente, não somente no Brasil mas no mundo inteiro. “Neste sentido, considera-se a especificidade da linguagem cinematográfica, entendendo-a também como um discurso sobre o passado, que nunca se confunde com ele.”2 A protagonista do filme, Maud Watts (Carey Mulligan), é uma mulher, mãe e operária que trabalha em uma lavanderia de seu patrão Mr. Taylor (Geoff Bell), desde os seus sete anos de idade. Filha também de uma lavadeira e que nunca conheceu seu pai, Maud cresce vendo a exploração de sua mãe e ainda a própria morte dela, tendo em vista que veio a óbito enquanto trabalhava. Após este evento Maud começa a trabalhar meio período até os 12 anos e após em período integral. Sobre esse contexto, pode-se pensar nas péssimas condições trabalhistas que eram dadas às mulheres neste período, desde a exploração da força do trabalho a qual podemos observar, assim como todas as outras mulheres recebendo um salário menor que o dos homens por fazer um trabalho que, parafraseando a protagonista, era mais perigoso, além de trabalharem por mais tempo. Além destes aspectos, Maud ainda cresceu sofrendo e presenciando abusos sexuais que provinham de seu patrão para com as mulheres que trabalhavam na lavanderia. Este era um cenário aceito socialmente no qual o abuso sexual era banalisado tendo em vista a estrutura social e patriarcal do século. Durante várias cenas do filme estes abusos são explícitos e mostram a sexualização da mulher em ambientes de trabalho e o quanto estava vulnerável, tanto sendo mulher, quanto operária nas mãos de seus patrões. 2 O FILME AS SUFRAGISTAS E AS TRANSFORMAÇÕES NOS MODOS DE VIDA PELA MILITÂNCIA POLÍTICA: DESLOCAMENTOS SUBJETIVOS, SACRIFÍCIO DO CORPO E AFINIDADES FEMINISTAS. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/50698 Maud além de ser mulher e operária, ainda tinha uma dupla jornada, pois era mãe e esposa. Seu marido (Ben Whishaw), também trabalha na lavanderia com entregas, sendo este o cargo reservado para homens. O filme mostra o cansaço que esta dupla jornada a submetia, tendo que trabalhar várias horas por um salário injusto, se responsabilizar pela educação do filho (Adam Michael Dodd), e tarefas domésticas, além de servir ao marido sempre que ele desejasse. Sobre estes impasses, é possível refletir a desvalorização da dupla jornada que a Revolução Industrial submeteu aquelas mulheres e que até hoje são submetidas, muitas vezes ainda recebendo salários menores que os homens para desenvolver a mesma função. Essas mulheres ainda se responsabilizam por todas as tarefas domésticas que deveriam ser compartilhadas, como se isso fosse natural do ser mulher. É somente quando Violet Miller (Anne-Marie Duff), tenta trazer Maude para dentro do movimento sufragista, que ela começa a perceber todas as injustiças que a rodeiam. Em certo momento chega até a revelar não saber o motivo de reivindicar o voto feminino, mas alega que é pela esperança de uma vida diferente. Em outra cena, Maud se questiona e também questiona ao seu marido sobre como seria a vida de sua filha se tivessem uma, obtendo a resposta de que a vida da criança seria igual a dela. Esta é uma passagem muito importante da obra, pois nos mostra a preocupação de Maud com as próximas gerações, dando a entender que a personagem aos poucos se permitiu questionar sobre a natureza das condições de vida para a mulher. No decorrer do filme, observa-se um afastamento de Maud em relação ao seu marido, não por vontade dela, mas sim dele, que não aceita a mulher participar do sufrágio. Isso acontece também pela pressão que ele recebe da sociedade em não cumprir o seu papel enquanto homem e controlar a rebeldia de sua mulher. Maud acaba sendo presa algumas vezes por estar em meio à manifestantes sufragistas, o que a encoraja cada vez mais a seguir se envolvendo com elas. É perceptível na obra cinematográfica que Maud recebeu muito apoio das outras mulheres que a trataram com solidariedade, criando uma rede de apoio entre as mulheres. Para a época todas essas mulheres eram vistas como rebeldes, pois não era considerado seu papel que uma mulher se rebelasse, principalmente contra a lei. Em muitas passagens no filme A lei é colocada em questão, pois as mulheres não aceitaram cumprir leis que as subjugavam sem nem ao menos participar da sua criação. Eram leis feitas por homens, para beneficiar homens, e para controlar mulheres e colocá-las em lugares aos quais eles lhe ditavam. A própria polícia era preparada para controlar as aglomerações de mulheres enquanto reivindicavamseus direitos, proibindo-as de se encontrarem. Ao se juntar ao movimento sufragista, Maud começou a ser tratada diferente por seu patrão, perdeu o seu filho que foi entregue para a adoção pelo próprio pai, foi expulsa de casa e demitida, tudo isso sendo consequência da sua participação no movimento sufragista. Ninguém queria saber de uma mulher rebelde que saía às ruas quebrando janelas e vitrines e incendiando caixas de correio e casas de ministros, simplesmente não era aceitável uma conduta feminina que não fosse obediente e que fugisse do papel de apenas mãe e esposa. Todas as mulheres eram criadas e empacotadas em um contexto social, político e econômico em que eram invisíveis, seus direitos eram negados e sua voz nunca era ouvida. Por muitos momentos Maud também fora coagida e persuadida, pois a viam como fraca, mas acima de tudo como uma mulher que poderia ser chantageada psicologicamente para que entregasse todas as mulheres, o que o filme mostra que não aconteceu, pois quanto mais a personagem perdia a sua vida de antes por lutar por seus direitos, maior era a sua vontade de mudança. O filme também mostra as torturas às quais as mulheres eram submetidas quando estavam em situação de encarceramento, muitas vezes sendo maltratadas, apanhavam e sofriam abusos em relação ao seu corpo aparecendo nuas, machucadas e psicologicamente atormentadas. Ao final do filme acontece o que fora evitado por homens da lei durante todo o processo, que era justamente a morte de uma mulher sufragista. Neste evento, Emily (Natalie Press), que era uma amiga de Maud, se põe à frente do cavalo do Rei em uma corrida. Munida com um misto de coragem, tristeza, exaustão, e um lenço com a bandeira do movimento sufragista, tirando a própria vida. É impossível sair dessa cena sem nenhuma lesão emocional. O filme todo é extremamente pesado e explícito, mostrando algumas condições que eram normais daquela época. Obviamente, não podemos dizer que tudo o que acontece no filme é verdade e nem que aconteceu exatamente daquela maneira, pois a representação do passado não é o passado, embora tente de várias formas nos colocar e nos ambientar em alguns momentos e locais, para que seja possível a reflexão e a crítica dele no presente e no futuro. Sendo assim, que tenhamos uma visão de um contexto político, social e econômico que remetia as mulheres a situações de perda e falta de direitos básicos. Para concluir, o filme nos dá muitas brechas e situações para refletir o contexto no qual vivemos até a contemporaneidade. É possível a reflexão sobre a exclusão da mulher no mercado de trabalho, recebendo cargos inferiores ou às vezes cargos iguais, porém com salários menores. Também podemos pensar na exploração do trabalho infantil e no assédio sexual, bem como nas atribuições naturais que pertencem unicamente ao sexo feminino, ou seja, ser mãe. Em contraste a este aspecto, atualmente existem movimentos de mulheres que lutam para a licença de paternidade, pois muitas vezes o patrão não contrata mulheres por saber que terão de pagá-las direitos, já que a carga sobre a criação e a educação dos filhos sempre é remetida a mulher e nunca ao homem. Este movimento acredita que deixando em igualdade este fator, a inserção de mulheres no mercado de trabalho aumentaria ou pelo menos seria menos cansativa. Também, através de Thompson, podemos observar as mudanças de costumes culturais ao longo do tempo, que podem sofrer rupturas ou continuidades, dependendo das estrutura sociais. Os eventos e exemplos que o filme contempla são de extrema importância para a história das mulheres. Referências: AS SUFRAGISTAS. Direção: Sarah Gavron. Produção: Alison Owen. Roteiro: Abi Morgan. Música: Alexandre Desplat. Intérpretes: Carey Mulligan, Helena Bonham Carter, Brendan Gleeson, Anne-Marie Duff, Ben Whishaw, Meryl Streep. Inglaterra: Universal Pictures, 2015. KALIU, Renan Bernardi; BROECKER, Amanda Fernande Ferreira. O oito de março e a desigualdadedegêneronomercadodetrabalho.Disponível em:< http://www.prt23.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-mt/360-o-8-de-marco-e-a-desigualda de-de-genero-no-mercado-de-trabalho> Acesso em: Acesso em: 18 de dec. 2020. PIAZENTINI VIEIRA, Priscila. O FILME AS SUFRAGISTAS E AS TRANSFORMAÇÕES NOS MODOS DE VIDA PELA MILITÂNCIA POLÍTICA: DESLOCAMENTOS SUBJETIVOS, SACRIFÍCIO DO CORPO E AFINIDADES FEMINISTAS. História: Questões & Debates, [S.l.], v. 65, n. 2, p. 327-344, sep. 2017. ISSN 2447-8261. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/50698>. Acesso em: 18 dec. 2020. SOBRINHO. Pamela. Mulheres e o mercado de trabalho. Disponível em: <http://blogueirasfeministas.com/2013/09/mulheres-e-mercado-de-trabalho/>. Acesso em: 18 dec. 2020.
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