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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR FACULDADE DE DIREITO MARIANA STROBEL ROSSITER TRANSEXUALIDADE E O REGISTRO CIVIL Salvador 2015 MARIANA STROBEL ROSSITER TRANSEXUALIDADE E O REGISTRO CIVIL Salvador 2015 Artigo Científico apresentado ao Curso de Direito da Universidade Católica do Salvador, como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof.ª M. a Reginalda Paranhos de Brito. À minha família, pоr sua capacidade dе acreditar еm mіm е investir еm mim. Aos meus amigos, pela compreensão. À minha ilustre orientadora Reginalda, pela paciência e sabedoria. 3 TRANSEXUALIDADE E O REGISTRO CIVIL Mariana Strobel Rossiter* RESUMO: O presente artigo tem como tema a transexualidade e os efeitos desta no registro civil, abordando a possibilidade de alteração do registro antes da Cirurgia de alteração do sexo. Para tal, oferece uma breve visão acerca dos possíveis critérios para a designação de gênero e uma breve distinção entre orientação sexual e identidade de gênero. PALAVRAS-CHAVE: Transexualidade. Alteração do registro civil. Cirurgia de transgenitalização. Dignidade da pessoa humana. ABSTRACT: This article talks about transexuality and its effects on the civil registry, as well as the possibility of it being changed before the transgenitalization surgery. To do so, offers a sheer vision about the plausible criteria for the designation of gender and also a short distinction between sexual orientation and gender identity. KEYWORDS: Transexuality. Modification in Civil Registry. Transgenitalization surgery. Human Dignity. 1 INTRODUÇÃO Inúmeras são as discussões acerca da temática da transexualidade, em vários círculos da sociedade. A discussão muitas vezes acalorada acaba por relevar o ponto mais importante da questão, que deve ser o bem-estar do transexual. Em muitas situações, as pessoas envolvidas no debate optam por impor a sua ideologia sem se lembrar que o transexual é um indivíduo e que este sofre com a privação dos seus direitos, além de sofrer com as situações vexatórias que acontecem ao apresentar um documento com um nome que não representa a sua identidade de gênero e, às vezes, a sua aparência externa. O Direito deve acompanhar as mudanças da sociedade e deve agir como ente interessado na busca pela igualdade e bem-estar dos membros da mesma. Deve tratar de modo igual os iguais, e os desiguais na medida da sua desigualdade, para garantir a justiça e o equilíbrio social. Deste modo, o Direito não pode se eximir * Graduanda em Direito na UCSAL, turno vespertino, campus da Federação. E-mail: <nanarossiter@hotmail.com>. 4 de evoluir, pois os problemas atinentes à sociedade evoluem também, devendo o primeiro adaptar-se e renovar-se para dirimir os conflitos. Entretanto, a transexualidade não é algo novo. O que é novo é a possibilidade de mudar de nome e de alterar a aparência física por meio de cirurgia e tratamento hormonal. Neste sentido, o sentimento de pertencer ao outro sexo presente no transexual é tão antigo quanto a sexualidade humana (GREEN, 1969). O tema em questão envolve o Direito, a Medicina e a Psicologia, pois afeta o ser humano transexual na área civil, médica e psicológica, sem prejuízo de afetar outras áreas não citadas. Negar reconhecimento a essa situação ou se mostrar inerte ao sofrimento do transexual é cruel e desumano, contrariando o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Princípio este que é basilar ao nosso ordenamento jurídico, sendo representado pelo artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988. Acerca das dificuldades sofridas pelo indivíduo não redesignado, Venosa (2003, p. 223) observa que este “vive em situação de incerteza, angústia e conflitos o que lhe dificulta, senão impede de exercer as atividades inerentes aos seres humanos”. Por um lado, apresenta-se a visão, de modo geral, mais conservadora de alguns núcleos da sociedade. Tal visão tem sido muitas vezes arraigada pelo entendimento religioso, o qual compreende que o ser humano nasce do jeito que Deus quer que este nasça. Isto é, aquele indivíduo que nasce com a genitália masculina é homem, e aquele que nasce com genitália feminina é mulher, sendo o gênero neste caso atrelado ao viés morfológico. De outro lado, tem-se a perspectiva da comunidade médica, que apresenta um pensamento um pouco mais progressista, mas que, ao mesmo tempo, ainda categoriza a Transexualidade como Transtorno. E, em um lado ainda mais progressivo, estão as pessoas que lutam pelos direitos constitucionais dos transexuais, os quais, muitas vezes, são vistos de maneira distorcida. Diante dessas diferentes perspectivas, a pergunta que surge é a seguinte: então, afinal, qual o critério para a caracterização do sexo? 2 SEXO E GÊNERO A priori, é importante conceituar em linhas gerais o que é sexo e o que é gênero, pois, apesar de serem usados comumente como sinônimos, na verdade não são. Sexo é, em verdade, uma representação de cunho físico, material e palpável. É, 5 portanto, relacionado ao próprio formato da genitália, bem como ao conjunto de órgãos específicos reprodutores e hormônios produzidos, isto é, aspectos anatômicos, morfológicos e fisiológicos. Por outro lado, afirma Henrietta Moore (2000), gênero é tido como uma construção social e se correlaciona com o papel social, cultural e histórico dos dois “sexos”. A noção de gênero é entendida aqui como relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos (SCOTT, 1995). De acordo com Ceccarelli (2010), a distinção entre os conceitos de sexo e gênero foi proposta por Robert Stoller. Utilizando como base conceitos freudianos, o psicanalista norte-americano fez estudos acerca das crianças chamadas de intersexo, que eram educadas de acordo com o sexo que lhe era designado ao nascimento. A conclusão do estudo traçado por Stoller foi que o gênero se sobrepunha ao sexo, uma vez que as crianças eram informadas que possuíam genitália incomum e mesmo assim insistiam em agir de acordo com o gênero que lhes foi conferido ao nascer (LIMA, 2011). Sobre o assunto, Jesus (2012, p. 6) discorre: Mulheres de países nórdicos têm características que, para nossa cultura, são tidas como masculinas. Ser masculino no Brasil é diferente do que é ser masculino no Japão ou mesmo na Argentina. Há culturas para as quais não é o órgão genital que define o sexo. Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de gênero. Logo, o conceito básico para entendermos homens e mulheres é o de gênero. Mas afinal, o que significa ser mulher no Brasil? E o que significa ser homem? Essas noções de masculino e feminino são taxativas e tendem a delimitar o conceito. No Brasil, país que é patriarcal, “ser homem” é sinônimo de força e de controle, enquanto “ser mulher” é, por muitas vezes, sinônimo de fraqueza. Afinal, quem nunca ouviu alguma frase que se assemelha a “você faz tal coisa como uma mocinha”, ou “seja homem e termina logo com isso”. Essas frases demonstram as ideias subentendidas com relação ao gênero por uma parcela da população. Ideias que atribuem fragilidade à mulher e força ao homem. Os entendimentos que se desdobram a partir dos conceitos de gênero masculino e feminino são mutáveis. Eles dependem de colocação em tempo e espaço, bem como de inserção em um contexto específico, porque são conceitos que variam com o posicionamento da sociedade, com a organização política, a 6 religiosidade do povo, etc. Por outro lado, os conceitos de sexo masculino e sexo feminino são muito maisconstantes e rígidos, pois se baseiam em representações de cunho físico, como a genitália, independendo do comportamento pessoal de quem o carrega. 3 MODOS DE IDENTIFICAÇÃO SEXUAL Acerca do tema, pode-se citar variados modos que podem ser utilizados para a identificação do sexo. A saber: morfológico, cromossômico, legal, psíquico, hormonal, gonádico, entre outros. De acordo com o critério genético (cromossômico), o sexo é definido pelos cromossomos localizados no núcleo das células. Nesse sentido, Magalhães (2010, p. 154) afirma que, “do ponto de vista da genética, o homem é definido por um cromossomo X e outro Y. A mulher, por um par de cromossomos X”. Ainda sobre o sexo cromossômico, vejamos a perspectiva da Procuradora de Justiça Maria Ignez Franco Santos que aparece no texto da Apelação Cível nº 70022504849: Na atual fase do conhecimento científico, a identificação do sexo do ser humano é irreversível e ocorre no momento da concepção, dependendo do número dos cromossomos em cada célula. Sabe-se que todo ser humano recebe um cromossomo X, da mãe. Quem herde um cromossomo X do pai, é mulher (XX), quem herde um Y, é homem (XY) [...]. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS, 2009, p. 10) Com relação ao sexo legal, entende-se que ele é definido pelas relações sociais do indivíduo e pela sua vida civil. Para tanto, determina-se o sexo legal pela certidão de nascimento e o registro civil. O sexo morfológico é aquele que leva em consideração a aparência física da genitália do indivíduo. Para ser caracterizado como homem, o indivíduo precisa ter pênis, testículo, saco escrotal, etc. Enquanto que, para se caracterizado como mulher, toma-se por base a presença de órgãos femininos, como útero, vulva, vagina, ovários, etc. Por último, temos o sexo psíquico. Este é de maior relevância para o entendimento do tema aqui apresentado, pois o indivíduo transexual apresenta uma discrepância entre o sexo externalizado em seu corpo, e o gênero do qual acredita 7 pertencer. Segundo Vieira (1999, p. 117), “O sexo não é mais considerado tão somente como um dado fisiológico (e, portanto, geneticamente determinado) e, por isso, imutável, a partir de contribuição das áreas de conhecimento da psicologia, da biologia, da antropologia, entre outros”. Cardoso (2005), por sua vez, afirma que: O sexo psíquico ou psicossocial diz respeito à reação psicológica do indivíduo frente a determinados estímulos. É aquele em que o indivíduo, realmente, acredita pertencer, sendo resultante do intercâmbio genético, fisiológico e psicológico que se formou dentro de uma determinada atmosfera sociocultural. O sexo psíquico ou psicossocial é o único que leva em consideração o aspecto subjetivo, tendo em vista que a própria conceituação parte do indivíduo conceituado. Os outros critérios são fechados, observam-se por meio de representações físicas sem possibilidade de discricionariedade, são impostos pela natureza e se refletem na sociedade por meio dos signos utilizados. Este entendimento é o que mais se aproxima da noção de gênero. 4 CONCEITO DE TRANSEXUALIDADE No contexto apresentado pela sociedade de modo geral, há apenas a possibilidade do indivíduo se enquadrar em duas categorias: masculino ou feminino. Esta caracterização de sexo se dá tão logo a criança nasce, sendo observada a genitália externa. Entretanto, alguns indivíduos percebem uma incongruência entre o sexo apresentado em seu registro civil e a identificação pessoal sexual. Isto é, sentem como se a sua identidade sexual fosse distinta daquela apresentada nos seus genitais externos. Daí se tem uma noção básica do que é a transexualidade, que pode ser retratada, em linhas restritivas, como a insatisfação entre a representação física e a identidade pessoal. Diniz (2006) conceitua o indivíduo transexual como “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a automutilação ou autoextermínio”. O transexual vive na prisão mais apertada e restrita possível. Vive preso dentro de um casco de pele que não lhe é familiar, que não lhe é íntimo. Vive em estado de tortura constante, constrangido dentro de um invólucro que não lhe agrada. Tamanha é a sua insatisfação consigo mesmo que é bastante comum que o 8 indivíduo venha a se mutilar. Os transexuais tendem a se isolar e se esconder. Alguns tentam o suicídio, pois não veem saída para a situação ou porque tem medo de sofrer represálias se assumirem para os familiares o modo como se sentem. De acordo com um estudo feito pela instituição BMC Public Health do Canadá, a cada 100 transexuais 35 pensaram em suicídio em 2014. Diante desse sofrimento emocional tão intenso, a maioria dos transexuais tem vontade de adequar o seu corpo físico ao gênero ao qual entendem pertencer. Para terem o seu desejo realizado, muitos optam por tratamentos hormonais, cirurgias plásticas, pela cirurgia de transgenitalização, etc. Neste sentido, afirma Klabin (apud LACERDA, 2007, p. 2): O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar- se ao “verdadeiro” sexo, isto é, ao seu sexo psicológico. Segundo Dias (2009, p. 234), o processo de mudança de sexo: É a busca consistente de integração física, emocional, social, espiritual e sexual, conquistada com muito esforço e sacrifícios por pessoas que vivem infelizes e muitas vezes depressivas quanto ao próprio sexo. A cirurgia de transgenitalização não é um fim em si mesmo. Antes da intervenção cirúrgica, é necessária uma série de procedimentos que devem ser acompanhados por uma equipe multidisciplinar, tendo em vista que a cirurgia é irreversível e delicada. Os procedimentos devem demorar no mínimo dois anos para só assim a cirurgia de retificação de sexo ser feita. A cirurgia no caso de pessoas que querem adequar o seu corpo ao gênero feminino é menos complicada, se contraposta às cirurgias de adequação para o gênero masculino. Na cirurgia que parte do masculino para o feminino, há a retirada do pênis e há a construção de um canal vaginal. Por outro lado, nas cirurgias em que o corpo masculino é almejado, o processo é gradual e não imediato. Além da técnica empregada na cirurgia ser experimental, são necessárias cerca de 5 cirurgias retificadoras, pois, além da retirada dos órgãos femininos (útero, ovários, etc.), ainda há a construção de um pênis com a pele do antebraço, para depois ser implantado. Ademais, ainda há a retirada das mamas e a colocação de próteses que se assemelham aos testículos. 9 Deste modo, podemos caracterizar, de modo resumido, o transexual como o indivíduo insatisfeito com o sexo que lhe foi atribuído baseado nas suas características físicas/morfológicas/biológicas. 5 BREVE DISTINÇÃO ENTRE IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL Apesar de serem conceitos completamente distintos, grande parte da população leiga ainda confunde orientação sexual e identidade de gênero, pois as pessoas associam a atração pelo mesmo sexo com vontade de se tornar outro sexo. Sobre o assunto, Jesus (2012) escreve: [A transexualidade] Não tem nada a ver com orientação sexual, como geralmente se pensa, não é uma escolha nem é um capricho. Ela é identificada ao longo de toda a História e no mundo inteiro. (JESUS, 2012, p. 7) Uma pessoa transexual pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual, dependendo do gênero que adota e do gênero com relação ao qual se atrai afetivo-sexualmente, portanto, mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais, tal como seus parceiros, homens transexuais que se atraem por mulheres também; já mulheres transexuais que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e vice versa. (JESUS, 2012, p. 8)A transexualidade, desse modo, se correlaciona exclusivamente com o conceito de identidade de gênero, isto é, com a insatisfação com o corpo físico e a crença de que este não representa a real identidade do transexual. Este é o entendimento de Lima (2011), que entende que a identidade de gênero pode ser distinta do sexo ao nascimento, podendo uma pessoa nascer do sexo feminino, mas se identificar com o sexo masculino. Acerca da identidade de gênero, esta pode ser definida como uma construção social de resultados mutáveis, dependendo do espaço e do tempo em que os conceitos estiverem inseridos. Por outro lado, a orientação sexual de alguém mostra por quais gêneros esta pessoa se sente atraída. A título de complementação, é sabido que a terminologia mais adequada é “orientação sexual”, e não “opção sexual”, pois a última implica uma escolha consciente. 10 6 TRANSEXUALIDADE E O DIREITO À DIGNIDADE O Direito não pode permanecer estático frente às complicações que acontecem na sociedade. Ele, como meio de dirimir conflitos, deve estar sempre em metamorfose para acompanhar as mudanças na sociedade. É sabido que os transexuais sofrem preconceito e passam por situações vexatórias ao apresentar um nome que não condiz com a sua identidade de gênero e, em alguns casos, com a sua própria imagem exterior modificada. Esse tipo de situação contraria o Princípio da Dignidade Humana, que é princípio basilar da Constituição Federal de 1988, pois expõe o indivíduo a um cenário vexatório e cruel, até mesmo nas ocorrências mais mundanas como abrir uma conta em banco ou assinar um contrato telefônico. De acordo com Sarlet (2007), no livro Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, este princípio seria intrínseco a cada ser humano, onde todos teriam direito à mesma consideração e respeito por parte da entidade estatal e da sociedade. Deste modo, esse princípio seria um conjunto de direitos e deveres que protegem o ser humano contra atos degradantes e/ou vexatórios, garantindo uma vivência saudável. Diante desses possíveis acontecimentos degradantes, o Direito não pode ficar estático. Entretanto, os avanços ainda não foram capazes de sanar todos os problemas enfrentados pelos transexuais no dia a dia, principalmente aqueles que ainda não foram submetidos à cirurgia. As pequenas conquistas, como a possibilidade de uso do nome social, ainda são insatisfatórias e incompletas. O nome é a reflexão daquilo que somos, seja no nível pessoal ou na esfera civil. O Artigo 16 do Código Civil de 2002 dispõe que todas as pessoas têm direito a um nome, isto é, um prenome e um sobrenome. A priori, de acordo com a antiga redação do Artigo 58 da Lei 6.015/73, o prenome era imutável. Segundo Beltrão (2005, p. 119): O nome possibilita a identificação da pessoa diante da sociedade, nos diversos núcleos possíveis, permitindo a individualização da pessoa evitando a confusão com outras. Assim, os elementos de identificação vão facilitar a localização da pessoa em sua família e perante o Estado, possibilitando a verificação de sua condição pessoal e patrimonial. No que tange ao registro civil, a mudança de prenome é vedada, exceto nos casos em que o indivíduo é exposto constantemente ao ridículo por conta do próprio 11 nome, como acontece muitas vezes com os transexuais. Neste caso, há a possibilidade de se ingressar com uma ação para a retificação do registro. Acerca da possibilidade do transexual retificar o nome e o gênero após a cirurgia, a jurisprudência majoritária tende a deferir o pedido de alteração de prenome e sexo, porém a ausência de legislação específica acerca do tema abre possibilidade para decisões em sentido contrário. Um exemplo de deferimento pode ser observado no texto do Recurso Especial n.º 1008398/SP, julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo e publicado em 18 de novembro de 2009. Silva (2015) nos apresenta um trecho do julgado: TRANSEXUAL SUBMETIDO À CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL – ALTERAÇÃO DO PRENOME E DESIGNATIVO DE SEXO – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. A dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. Afirmá-la significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual. […] No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o artigo 58 da Lei n.º 6.015/73. Em sentido contrário, há o caso do processo nº 1.0000.00.296076-3/001 (1), julgado no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 22 de abril de 2004. O texto da ementa do processo aponta o seguinte: Ementa: civil. Sexo. Estado individual. Imutabilidade. O sexo, como estado individual da pessoa, é informado pelo gênero biológico. A redefinição do sexo, da qual derivam direitos e obrigações, procede do direito e não pode variar de sua origem natural sem legislação própria que a acautele e discipline. Rejeitam- se os embargos infringentes. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA-MG, 2004) A maior divergência se dá nas situações em que o transexual ainda não realizou a cirurgia, ou não terá condições de realizá-la no futuro, tendo em vista o caráter delicado e experimental da operação. Neste caso, se considerado que o critério definidor do gênero é biológico, isto é, que este depende da aparência da genitália, a conclusão lógica proveniente dessa linha de pensamento é a de 12 indeferimento das ações que pleiteiam a retificação do gênero do não operado, tal como ocorreu no caso da Apelação Cível Nº 70064503675: REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE PRENOME E DE SEXO. ALTERAÇÃO DO NOME. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. A ALTERAÇÃO DO SEXO SOMENTE SERÁ POSSÍVEL APÓS A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. [...]4. No entanto, é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é, que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgão genitais tipicamente masculinos. 5. A definição do sexo é ato médico e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Recurso desprovido, por maioria. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS, 2015) Em sentido contrario à utilização do critério biológico, Dias (2009, p.120) afirma que, “Como os fatos acabam se impondo ao Direito, a rigidez do registro identificatório da identidade sexual não pode deixar de curvar-se à pluralidade psicossomática do ser humano”. Acompanhando essa linha com nuance mais humanitária e progressista, cita-se a seguinte decisão, referente à Apelação Cível nº 70011691185, julgada em 15 de setembro de 2005: APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO RELATIVAMENTE AO SEXO. TRANSEXUALISMO. Possibilidade, embora não tenha havido a realização de todas as etapas cirúrgicas, tendo em vista o caso concreto. Recurso provido. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS, 2005) Neste mesmo sentido, é possível citar ainda a Apelação nº 0008539- 56.2004.8.26.0505, julgada no Tribunal de Justiça de São Paulo, em 18 de outubro de 2012: REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DE PRENOME E SEXO DA REQUERENTE EM VIRTUDE DE SUA CONDIÇÃO DE TRANSEXUAL. ADMISSIBILIDADE. Hipótese em que provada, pela perícia multidisciplinar, a desconformidade entre o sexo biológico e o sexo psicológico da requerente. Registro civil que deve, nos casos em que presente prova definitivado transexualismo, dar prevalência ao sexo psicológico, vez que determinante do comportamento social do indivíduo. Aspecto secundário, ademais, da conformação biológica sexual, que torna despicienda a prévia transgenitalização. Observação, contudo, quanto à forma das alterações que devem ser feitas mediante ato de averbação com menção à origem da retificação em sentença judicial. Ressalva que não só garante eventuais direitos de terceiros que mantiveram relacionamento com a requerente antes da mudança, mas também preserva a dignidade da autora, na medida em que os documentos usuais a isso não farão qualquer referência. 13 Decisão de improcedência afastada. Recursos providos, com observação. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA-SP, 2012) Conforme o exposto acima, entende-se que ainda há muita divergência acerca da possibilidade do transexual retificar o gênero no registro civil. Por um lado, há uma corrente biológica, que atrela a genitália ao conceito de sexo, enquanto por outro lado há uma corrente psicológica, que leva em consideração a autodeterminação do indivíduo. 7 CONCLUSÃO Por vivermos em uma sociedade patriarcal e conservadora, em conjunto com a falta de legislação específica sobre o tema e aliada à ausência de conhecimento, transexuais sofrem no processo de aquisição dos seus direitos e são vistos de maneira equivocada por parte da sociedade. O tema aqui proposto é delicado e perpassa por meios que transcendem o contexto jurídico, atingindo aspectos somáticos, psicológicos e sociais, pois o nome é algo muito pessoal e definidor, conforme estudado nos primórdios da faculdade acerca dos direitos da personalidade e do princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, a questão apresentada envolve nuances de psicologia e medicina, ao passo que essencialmente a transexualidade é discutida entre essas duas esferas de conhecimento. Por outro lado, o descontentamento desses indivíduos não pode ser ignorado, mesmo que o tema seja delicado e envolva questões que permeiem os mais diversos âmbitos da sociedade. Negar reconhecimento à possibilidade do transexual ter seu sexo retificado no registro, com ou sem cirurgia, é cruel e viola o princípio mais norteador do nosso ordenamento jurídico, o Princípio da Dignidade Humana. É sentenciar o transexual não operado, que muitas vezes se porta como o gênero com o qual se identifica, à uma vida de constrangimentos nas situações mais simples possíveis, como abrir uma conta em banco. Não é correto, no sentido mais humano da palavra, exigir que o transexual se submeta a uma cirurgia experimental, que pode não lograr êxito, para somente depois disso permitir que o gênero que consta no registro seja alterado. Portanto, considera-se aqui que o gênero se caracteriza pela identidade 14 mental e pessoal do indivíduo e que, deste modo, a cirurgia de transgenitalização não deve ser condição sine qua non para a mudança do prenome e do gênero no registro civil. REFERÊNCIAS BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos de Personalidade: de acordo com o Novo Código. São Paulo: Atlas, 2005. CARDOSO, Renata Pinto. Transexualismo e o direito à redesignação do estado sexual. 2005. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2164/Transexualismo-e-o-direito-a- redesignacao-do-estado-sexual>. Acesso em: 27 set. 2015. CECCARELLI, Paulo Roberto. Psicanálise, sexo e gênero: algumas reflexões. In: RIAL, C.; PEDRO, J.; ARENDE, S. (Orgs.). 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