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HistoriadaLeitura,dasPraticasdeLeituraedaEscrita,segundoRogerCHARTIER

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A HISTÓRIA DA LEITURA, DAS PRÁTICAS DE LEITURA E DA 
ESCRITA, SEGUNDO ROGER CHARTIER 
 
CLAUDIA DA SILVA FERREIRA1 (Mestranda do PPGHIS - UFES) 
 DANIELA SIMIQUELI DURANTE 2 (Mestranda do PPGHIS - UFES) 
 DINORÁH LOPES RUBIM ALMEIDA3 (Mestranda do PPGHIS - UFES) 
OSÉIAS SOARES FERREIRA4 (Mestrando do PPGHIS - UFES) 
 
 
Resumo: Roger Chartier é um professor e historiador francês contemporâneo, que projeta 
seus estudos na história do livro, da edição e da leitura. Uma das contribuições decisivas deste 
intelectual consiste na construção de conceitos, entre os quais, os de práticas e representações 
no contexto da Nova História Cultural, sem contar a grande contribuição de Chartier para o 
conceito de “apropriação”. A História Cultural é importante para identificar como diferentes 
lugares e momentos constroem diferentes realidades sociais, o que é refletido nas práticas de 
leitura e representações e de como tal realidade é dada a ler. Portanto, os processos 
estabelecidos a partir da História Cultural envolvem a relação que se estabelece entre a 
história dos livros, a história dos textos e a história da leitura, permitindo a Chartier uma fértil 
reflexão a respeito da natureza da História como discurso acerca da realidade e ainda de como 
o historiador exerce o seu ofício para compreender tal realidade. Neste trabalho, procuraremos 
analisar a obra “Leituras e Leitores na França do Antigo Regime” e a forma de como esse 
estudioso analisa a França antiga a partir das práticas de leitura desse período histórico. 
Palavras-chave: Práticas de Leitura; representações; apropriação. 
 
1Mestranda do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas – UFES (2012); 
Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Área de atuação: História, no Instituto Federal 
de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), Campus de Piúma/ES. E-mail: 
csferreira@ifes.edu.br 
 
2Mestranda do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas – UFES (2012); 
E-mail: durantedan28@yahoo.com.br 
 
3Mestranda do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas – UFES (2012); 
Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Área de atuação: História, no Instituto Federal 
de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), Campus de Alegre/ES. E-mail: 
dinorahrubim@yahoo.com.br 
 
4Mestrando do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas – UFES (2012); 
Professor da Educação Básica da rede estadual do estado de Minas Gerais e da Rede Particular na 
cidade de Manhumirim /MG. E-mail: oseiasagri@yahoo.com.br 
 
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Abstract: Chartier is a professor and contemporary French historian, who designs his studies 
in the history of book publishing and reading. One of the crucial contributions of Roger 
Chartier is on the development of notions of "practices and representations" in the context of a 
New Cultural History, not to mention the great contribution of Chartier to the concept of 
"ownership". The cultural history is important to identify how different places and different 
times construct social realities, which is reflected in reading practices and representations and 
how this reality is given to be read. Therefore, the processes established from the Cultural 
History involve the relationship established between the history books, the history of the texts 
and the history of reading, allowing Chartier a fruitful discussion about the nature of history 
as a discourse about reality and yet how the historian has to understand their craft such a 
reality. In this work, we will try to analyze the book "Readings and Readers in France of the 
Old Regime," and how it analyzes scholar from French ancient reading practices of that 
historical period. 
Keywords: Reading Practice; representations; appropriation. 
 
1. Introdução 
Roger Chartier nasceu em Lyon, na França, em 1945 e é um historiador vinculado à atual 
historiografia da Escola de Annales. Ele estuda a história da cultura e dos livros e 
a trajetória da leitura e da escrita como práticas sociais. Trata-se de uma reflexão teórica 
inovadora que abriu novas possibilidades para os estudos em história cultural e estimula a 
permanente renovação nas maneiras de ler e fazer a história. 
Desde jovem tem-se dedicado a projetos coletivos de pesquisas visando novas abordagens e 
objetos de história. Sua trajetória intelectual abrange várias linhas de pesquisa: a primeira 
refere-se à história das instituições de ensino e das sociabilidades intelectuais; a segunda 
perpassa o conjunto de sua obra e é constituída pela história do livro e das práticas de escrita e 
de leitura; já a terceira linha de pesquisa consistiria na análise e no debate entre política, 
cultura e cultura popular. Outra linha ainda pode ser derivada de suas reflexões sobre o ofício 
de historiador, expressas em suas publicações e em suas atividades como divulgador de uma 
nova história. 
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Chartier formou-se professor e historiador simultaneamente pela Escola Normal Superior 
de Saint Cloud e na Universidade de Sorbonne. Atuando como Diretor e professor da Escola 
de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, Chartier especializou-se em história das 
práticas culturais e história da leitura, além de possuir obras publicadas em vários países do 
mundo. Foi professor em várias universidades, como Princeton, Montreal, Yale, Cornell, 
John Hopkins, Chicago, Pensilvânia, Berkeley. Dedica-se ao estudo das práticas culturais do 
Antigo Regime, que engloba do século XVI ao XVIII e constitui o tema pesquisado pelo 
grupo. 
 
2. “Leitura e Leitores na França do Antigo Regime” 
A Obra “Leituras e Leitores na França do Antigo Regime” é um trabalho de pesquisa de 
Chartier que abrange o período francês entre o fim do reinado de Francisco I (1515-1527) e a 
proclamação da Assembléia Nacional de 1789, por ocasião da Revolução Francesa. Portanto, 
é uma obra que reúne leituras e práticas de leitura do Antigo Regime materializado pela figura 
de um rei absoluto, do clero e da nobreza que gozavam de todos os privilégios e isenções 
fiscais. Abaixo, estaria o Terceiro Estado, composto pela burguesia - “sans-cullotes” -, pelos 
camponeses, artesãos e a plebe miserável, privados de qualquer participação política e 
sobrecarregados com os impostos. Nessa época, a França reunia cerca de vinte milhões de 
habitantes, sendo a nação mais povoada da Europa. 
É nesse contexto histórico que Chartier busca fazer uma leitura das cartas e livros, mostrando 
assim as representações sociais daquele tempo. A obra analisa esse universo do Antigo 
Regime em oito ensaios e busca caracterizar a cultura popular desse período histórico. Para 
tanto, Chartier buscou dar preferências em seus estudos ao inventário dos materiais comuns a 
toda uma sociedade: aos rituais festivos, aos códigos de civilidade, aos impressos de grande 
circulação e à diversidade das práticas que deles se utilizavam. A obra busca analisar as 
palavras dos textos, o escrito dos gestos, o impresso e a fala, traçando uma trajetória que 
objetiva restituir em sua complexidade as formas da expressão ou da comunicação cultural. 
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Portanto, os ensaios buscam reconstituir práticas sociais e culturais. Os quatro primeiros 
analisam relações entre textos e comportamentos sendo que os últimos ensaios voltam sua 
atenção para as práticas de leitura. 
 
3. Ensaios sobre a análise de relações entre textos e comportamentos 
Chartier inicia sua obra analisando as distintas festas na França do Antigo Regime e explica 
claramente sua opção pelo tema. Segundo ele, a festa é “o lugar de um conflito em que se 
confrontam, ao vivo, lógicas culturais contraditórias: por isso, ela autoriza uma apreensão das 
culturas popular e erudita nos seus cruzamentos” (CHARTIER, p.23). Nas festas se observam 
a resistência popular às normasquando da remodelagem segundo os moldes culturais 
dominantes. Como afirmar Chartier “a festa é quase sempre um misto que visa conciliar os 
contrários.” (Ibid. p.24). 
Em seu trabalho, o autor destaca a forte influência moralista da Igreja Católica na qual se 
observa a censura eclesiástica através de algumas estratégias como a interdição (a mais 
radical), o controle religioso à dança e a triagem (separação do núcleo lícito da festa e as 
práticas supersticiosas). 
Há também a apropriação municipal que busca controlar seu funcionamento, seus itinerários, 
sua programação. A festa, antes organizada pelas confrarias ou abadias jocosas torna-se um 
instrumento político. 
Chartier coloca em seu estudo, primeiramente, os remanejamentos operados sobre as festas 
pelos poderes, antes de tentar dar uma descrição ilusória de uma festa supostamente virgem de 
qualquer contaminação disciplinatória. Ele cita festas de iniciativas populares, porém, ao 
analisar o final do século XVIII, conclui a dominação da elite ao afirmar que “O século XVIII 
já nada mais vê nos fogos de artifício a não ser o artifício dos fogos”. A festa popular é 
sinônimo de espontaneidade, enquanto a festa oficial é a institucionalização. Portanto, a festa 
é constantemente remodelada, tem papel como arma pastoral e como instituição cívica. 
Outro tema abordado com sutileza e perspicácia por Chartier é a distinção e divulgação da 
civilidade e seus livros. Para este intelectual, estudar a civilidade é entrar no coração de uma 
sociedade. No caso, a francesa entre os séculos XVI e XVIII. Ele realiza uma abordagem e 
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uma análise de códigos de conduta de alguns renomados escritores do período estudado. 
Chartier esclarece que a civilidade tem noções distintas do ponto de vista a ser analisado, mas 
que em sua obra busca analisar a civilidade como honestidade, conveniência e polidez. Ele faz 
uma alusão ao Tratado de Erasmo, publicado em 1530, que foi um código de condutas éticas 
de imenso sucesso editorial. Segundo Chartier, as regras de civilidade erasmianas são 
universais: comportamento como índice seguro das qualidades da alma e do espírito. 
Ele cita um Best-seller de Antoine de Courtin, com quinze edições entre 1671 e 1730: o livro 
“Novo Tratado de Civilidade que se pratica na França entre as pessoas honradas”. A intenção 
da obra é a instrução dos jovens, reatando com a tradição erasmiana. 
Quanto à civilidade barroca ou às tensões entre o parecer e o ser, Chartier cita a civilidade de 
Corneille que, segundo seu pensamento, não indica forçadamente a verdade dos sentimentos, 
pois a polidez pode ser muitas vezes uma aparência ou uma máscara que disfarça e engana, ou 
seja, ao contrário do que pensa Antoine de Courtin, civilidade é um código de maneiras 
convenientes aos grandes; ela pode ser uma contingência que longe de revelar o indivíduo 
inteiro, dissimula ou transveste a realidade íntima do sentimento. Portanto, a civilidade como 
aparência enganadora, nada mais é do que uma polidez de convenção que recobre a maldade. 
Chartier também analisa a Civilidade Cristã do século XVIII, criada pelo Estatuto Cristão de 
Jean-Baptiste de La Salle (1703). Analisa ainda o valor positivo da civilidade como uma 
virtude da sociedade, porém não deixa de criticar a civilidade depreciada, interessada, 
dissimuladora e hipócrita. Em seu estudo sobre a noção de civilidade ao longo do Antigo 
Regime, Chartier também exalta a Civilidade reformulada por Chevalier de Jaucourt, 
Toussaint, Montesquieu e Rousseau. 
Por fim, Chartier defende o equilíbrio entre a civilidade e a polidez que seria englobada numa 
Civilidade Republicana, baseada na liberdade, ou seja, deve-se encontrar em todo o homem, a 
polidez, que é a sua expressão, e isso varia segundo os lugares e as épocas. Essa visão é 
reformulada por Pierre-Louis Lacretelle que afirma: “Ensinar a civilidade, portanto, não é 
inculcar maneiras arbitrárias, que cada um descobrirá pelo uso, mas inscrever no coração da 
criança, sentimentos de humanidade”. 
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A nova noção de civilidade republicana é deísta, igualitária e moral, livre e natural. A 
civilidade é entendida como um código de boas maneiras necessárias à sociedade, mas para 
muitos, abandonando a ambição ética e cívica dos anos revolucionários, a identificação da 
civilidade serve à conveniência burguesa. 
Apesar das várias tentativas para reformulá-la ou fundamentá-la de maneira diferente, por 
exemplo, no fim do Antigo Regime ou durante a Revolução, a noção perde pouco a pouco o 
estatuto ético e cristão do seu início para significar apenas a aprendizagem e o respeito das 
maneiras convenientes na vida das relações. A civilidade privilegia a acepção disciplinante 
(regras elementares de um dever-ser em sociedade). 
 
4. Ensaios sobre as práticas de leitura. 
Como discutido anteriormente, o conceito de civilidade destina-se a disciplinar as condutas, a 
encarnar-se em gestos e dizeres. No início do Antigo Regime francês, tais premissas 
materializavam-se sob a forma de livros e textos. Apesar da maioria da população ser 
analfabeta, neste recorte histórico, a palavra e a imagem permanecem essenciais e o escrito 
impresso já desempenha um papel extremamente importante na circulação dos modelos 
culturais. Apesar da massa iletrada, sua cultura é normatizada pelo livro que também autoriza 
usos próprios, livres e autônomos. 
Chartier busca compreender como o livro penetrou nessas camadas populares. Sua análise 
construiu-se sobre os seguintes objetivos: difusão e efeitos dos livros, confronto da história 
dos objetos e seus usos e confrontamento entre estratégias de editores e táticas de leitores. 
Primeiramente, ele analisa o recorte histórico entre 1530 a 1660. Constitui em um período que 
o livro se emancipa definitivamente do manuscrito e adquire suas formas e normatizações e 
culmina com o surgimento de uma política monárquica de controle e censura que transformou 
toda a economia do impresso. A questão levantada por Chartier consiste em como o livro ou 
os impressos mais humildes circulavam entre as camadas populares neste período. Ele salienta 
que o conceito de leitores populares na baliza histórica proposta refere-se a todos aqueles que 
não pertenciam a nenhuma das três castas: os camponeses, operários e mestres de ofícios, os 
mercadores e os burgueses. 
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Ao analisar a familiaridade que tais classes possuíam com o impresso, Chartier relata as 
dificuldades e afirma que o estudo sistemático tornou-se possível somente em alguns centros 
urbanos, tais como Amiens, Lyon, Paris e Grenoble. Ele constata que o livro não era 
privilégio das classes abastadas através da investigação de diversos inventários de indivíduos 
oriundos das classes populares. Constatou-se que o livro religioso era dominante e não 
deixava espaço para os demais. O Livro das Horas era muito popular neste período por causa 
do seu preço, como também pela diversidade de ilustrações, o que facilitava sua 
disseminação. 
Outro apontamento levantado por Chartier consiste na relação entre livro lido e possuído. Por 
ser um artigo valioso, os inventários investigados pelo autor dificilmente possuíam uma 
extensa gama de livros. 
A relação popular não se limitava à posse de um livro. É importante lembrar que nos séculos 
XVI e XVII a leitura realizada não consistia em uma prática individual. Percebeu-se que nos 
meios urbanos deste período o impresso era manuseado de modo coletivo onde a leitura em 
voz alta era uma prática muito frequente. 
A experiência com o impresso e com as práticas de leitura possuíam lugares sociais 
específicos e privilegiados: a oficina/loja onde haviam livros técnicos consultados pelo mestre 
e seus ajudantes para a realização do ofício, as assembleias religiosas e as confrarias jocosas. 
No campo, essa relação era extremamente reduzida. As audições dos livros eram excepcionais 
e ocorriam, de maneira irregular,sob a forma das vigílias camponesas e da leitura senhorial. 
Chartier também aborda as estratégias utilizadas pelas editoras do período a fim de atingirem 
esses leitores populares. Como a relação com o escrito não é uma relação com os livros, a 
“aculturação tipográfica” da população urbana dá-se por meio de outros suportes, 
considerados mais efêmeros e modestos pelo autor. 
As estratégias editoriais engendram, portanto, de maneira despercebida, não uma 
ampliação progressiva do público do livro, mas a constituição de sistemas de 
apreciação que classificam culturalmente os produtos da imprensa, fragmentando o 
mercado entre clientelas supostamente específicas e desenhando fronteiras culturais 
inéditas (CHARTIER, 2003, P. 129). 
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A associação entre texto e imagem torna-se fundamental e possui arranjos e proporções muito 
diversas, sendo as imagens soltas e os cartazes os gêneros tipográficos mais utilizados para 
esse objetivo. Os livretos baratos também foram fundamentais para a disseminação da cultura 
escrita no período. Eles eram constituídos por textos que não mais pertenciam à cultura das 
elites. Muitos textos medievais serviam de enredo para estes livros em um período no qual as 
leituras eruditas os tinham abandonado. Havia uma distinção muito radical entre dois tipos de 
público (popular e erudito) e os próprios impressores editavam dois tipos de materiais visando 
suas respectivas clientelas, usos e circulações, que não eram os mesmos para todos. 
Chartier utiliza um novo recorte histórico com o intuito de analisar as práticas urbanas do 
impresso. Utilizando novamente a investigação de inventários, o historiador busca conhecer a 
sociedade de leitores que emergia nas cidades francesas entre 1660-1780. Nesses inventários a 
descrição dos livros possuídos é frequentemente incompleta, pois os inventários priorizam as 
obras de valor econômico. Dessa forma propõe uma reflexão sobre a significação do livro 
possuído: 
 
A fonte, todavia, exige precauções: não sendo absolutamente obrigatório, o 
inventário após falecimento é feito somente por uma parcela da população e a 
descrição dos livros possuídos é frequentemente muito incompleta, atendo-se às 
obras de valor, mas estimando por lotes ou pacotes as de preços ínfimos (...). A 
significação do livro possuído permanece incerta: será que se trata de leitura 
pessoal ou herança conservada, instrumento de trabalho ou objeto jamais aberto, 
companheiro de intimidade ou atributo de aparência social? (CHARTIER: P. 175) 
 
A produção impressa não se reduz à edição do livro. Para os leitores mais humildes, ler é 
poder decifrar todos os materiais impressos, religiosos ou profanos e não apenas ler um livro. 
Entre os séculos XVII e XVIII, o acesso ao livro não se limita à compra e à propriedade 
individuais, pois se multiplicam as instituições que permitem o uso coletivo do livro. 
Compreende-se, portanto, que todos os livros lidos não são livros possuídos. Existiam as 
Leituras Públicas, conhecido como o gabinete do livreiro e a biblioteca pública. Quanto à 
circulação privada do livro, está é grande, seja emprestado, seja tomado de empréstimo, lido 
em comum no salão ou na “sociedade literária”. 
Esse grande especialista da leitura visita, com muita percepção, a chamada Biblioteca Azul, 
uma coleção de livros acessíveis a populares vendidos por ambulantes, com variados temas, 
como os romances de cavalaria, a cultura folclórica e a religião popular. Esse assunto é 
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abordado com muito vigor por Chartier, que enfatiza as tênues fronteiras entre a chamada 
cultura erudita e a popular. Ele destaca a literatura popularizada pela Biblioteca Azul, que 
buscava disseminar a leitura. Não podemos negar que o Antigo Regime foi um sistema de 
governo que foi marcado pelo absolutismo político e a força repressiva e aculturante da Igreja 
Católica, mas foi palco de muitas transformações no que diz respeito ao acesso leitura, devido 
principalmente a uma fórmula editorial conhecida como Biblioteca Azul, inventada no século 
XVII na cidade francesa de Troyes, pelos Oudot e adotada por outros editores dessa região. 
Os livros da Biblioteca Azul eram editados, na maioria das vezes, com capa azul a preços 
baixos e visavam à reedição de textos que teriam receptividade popular. Os gêneros textuais 
publicados eram diversificados com objetivo de atrair os mais variados grupos, destacando os 
guias de devoção e conduta, a Santa Escritura, os cânticos e cantigas de Natal, a literatura 
romanesca e cômica, a vida dos santos, os romances de cavalaria, os contos de fadas e as 
peças satíricas sobre profissões. Grande parte desses textos eram reedições de textos eruditos 
que passavam por uma série de intervenções dos editores para entrar no corpus dos textos 
azuis. Os editores troyenses, para atingir os leitores que desejavam, remodelavam o texto, 
primeiramente aumentando o número de capítulos para que a leitura tivesse intervalos 
menores tornando-se menos densa, favorecendo as pausas e interrupções para um público que 
não estava habituado a leitura. Uma segunda estratégia era a redução e simplificação, tirando 
do texto aquilo que era considerado supérfluo, reduzindo as frases consideradas envelhecidas 
ou difíceis. Outra interferência era a marca da censura religiosa que retirava do texto tudo que 
era considerado ofensivo à fé católica, fazendo uma autocensura dos textos e editando vários 
textos de caráter religioso. Sendo assim, os impressos de Troyes participavam da reforma 
católica. Todas essas intervenções tornavam algumas vezes o texto incoerente devido aos 
cortes abruptos e à simplificação do texto erudito. No período entre 1660 a 1780 ocorreu a 
popularização e ruralização desse estilo editorial liderado pelos Oudot e Garnier. O livro azul 
chegou à população campesina através dos ambulantes que se abasteciam em Troyes. Além 
destes, a venda de livros também era feita por livreiros nas cidades e por comerciantes menos 
consolidados. Outros países também tiveram fenômenos editoriais semelhantes aos livros 
azuis nos séculos XVII e XVIII, os cheapbooks eram vendidos a preços populares na 
Inglaterra e os pliegos de cordel na Espanha. Gradativamente, com a popularização do corpus 
da Biblioteca Azul, ele vai se tornando elemento da cultura popular supersticiosa e rotineira, 
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condenada e denunciada pelas elites da Revolução Francesa. Porém, é incontestável a grande 
contribuição dos livros da Biblioteca Azul para as práticas de leitura na França do Antigo 
Regime, pois submetidos por seus editores a um trabalho de adaptação, os impressos 
impuseram formas “populares” que atravessaram as fronteiras sociais. 
 
5. Considerações Finais 
A minuciosa pesquisa de Roger Chartier sobre as práticas de leitura e escrita na França do 
Antigo Regime nos oferece, primeiramente, um rigor metodológico que devemos empreender 
na condição de pesquisadores. Além disso, ele nos fornece parâmetros consistentes para uma 
história da leitura em outras épocas e períodos. A análise de conceitos como civilidade, 
mercado editorial, modos e espaços de leitura permitem que este historiador analise como se 
processava a circulação das ideias no recorte histórico proposto, além de evidenciar a linha 
tênue existente entre as chamadas cultura popular e erudita. 
 
6. Referências Bibliográficas 
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria 
Manuela Galhardo. 2ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel. 2002. 
 
_____. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. Tradução: Álvaro Lorencini. São 
Paulo, Ed. UNESP, 2003. Original em francês - 1987. 
 
_____. A História ou a leitura do tempo. Tradução: Cristina Antunes. Belo Horizonte: 
Autêntica, 2009. Original em francês - 2007. 
 
CHARTIER, Roger (Org.) Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São 
Paulo: Ed. Liberdade, 1996.

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