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Fortaleza - CE 2016 História dos jogos OlímpicOs Airton de Farias Editora Albanisa Lúcia Dummar Pontes Administrativo Veridiana Silva Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica Suzana Paz Assessora de Comunicação Mariana Dummar Pontes Ilustrações Mario Sanders Revisão Vessillo Monte (Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem prévio consentimento da editora) tExto EstAbElEcido conformE o novo Acordo ortográfico dA línguA portuguEsA Copyright ©2016 by Editora Armazém da Cultura Todos os direitos desta edição reservados a Editora Armazém da Cultura Rua Jorge da Rocha, 154 – Aldeota Fortaleza – Ceará – Brasil CEP: 60150.080 Fone/Fax: (85) 3224.9780 Skype: armazem.da.cultura Site: www.armazemcultura.com.br E-mail: armazemdacultura@armazemcultura.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) APreSentAção CAPítuLo 1 oS JogoS oLíMPiCoS DA AntiguiDADe 1.1 A importância das práticas físicas para os gregos ......................................................11 1.2 origens dos Jogos olímpicos..................15 1.3 As modalidades .........................................18 1.4 A glória de vencer ....................................22 1.5 Mulheres e os Jogos olímpicos 1.6 A proibição dos jogos .............................. 25 CAPítuLo 2 o nASCiMento DoS JogoS oLíMPiCoS MoDernoS 2.1 o contexto ..................................................31 2.2 o Senhor dos Anéis .................................34 2.3 Amadorismo e fair-play ..........................37 2.4 Verão e inverno ........................................39 2.5 os pioneiros (Atenas, 1896; Paris, 1900) ....41 2. 6 os “jogos antropológicos” (St. Louis, 1904) .......................................................46 CAPítuLo 3 JogoS De guerrA 3.1 olimpíadas e i guerra (Londres, 1908; estocolmo, 1912) ....................................51 3.2 Carruagem de fogo (Antuérpia, 1920) ...... 56 3.3 A despedida de Coubertin (Paris, 1924) ....61 3.4 Poder feminino (Amsterdã, 1928) ..............65 CAPítuLo 4 JogoS De MeDo 4.1 A olimpíada da grande Depressão (Los Angeles, 1932) ................................... 71 4.2 os Jogos de Hitler (Berlim, 1936) ..........74 4.3 o Brasil olímpico ......................................80 4.4 o estado se aproxima dos esportes .....84 4.5 Coi versus FiFA .........................................87 CAPítuLo 5 JogoS De guerrA FriA 5.1 A fase de conflitos (1948-1964) ...............91 5.2 A inglaterra triunfa (Londres, 1948) .....92 5. 3 guerra Fria, Jogos quentes (Helsinque, 1952) .................................................. 95 5.4 Sangue na água (Melbourne, 1956) ......99 5.5 África: pés nus e dourados (roma, 1960) .................................................. 103 sumáriO CAPítuLo 6 JogoS reBeLDeS 6.1 um novo Japão (tóquio, 1964) ..............111 6.2 Saltos de ouro ...........................................115 6.3 Além da guerra Fria ................................120 6.4 Caixa de ressonância do mundo (México, 1968) ......................................120 CAPítuLo 7 JogoS De terror 7.1 Jogos mortais (Munique, 1972) ...............131 7.2 Conta salgada (Montreal, 1976) .............137 7.3 os Jogos Vermelhos (Moscou, 1980) ....142 CAPítuLo 8 JogoS e DitADurA 8.1 o showbiz olímpico (Los Angeles, 1984) .. 151 8.2 Ditadura Militar e esportes ...................157 8.3 o difícil sonho olímpico brasileiro ......163 CAPítuLo 9 JogoS ProFiSSionAiS 9.1 esporte S.A. ................................................171 9.2 o senhor das cifras ..................................175 9.3 o último euA x urSS (Seul, 1988) ........181 CAPítuLo 10 JogoS DA noVA orDeM 10.1 Muitos sonhos (Barcelona, 1992) .........191 10.2 não tão perfeito (Atlanta, 1996) .........197 10.3 A aborígini de ouro (Sidney, 2000) ....201 10.4 “os Jogos voltam para casa” (Atenas, 2004) .......................................................205 CAPítuLo 11 JogoS DA ContrAorDeM 11.1 Dragão olímpico (Pequim, 2008) .........211 11.2 Cidade “tri olímpica” (Londres, 2012) ..216 11.3 o País do vôlei ..........................................220 11.4 idas e vindas .............................................224 11.5 rio de Janeiro, 2016 .................................229 reFerÊnCiAS ApresentAçãO Não bastasse a monumental Uma História das Copas do Mundo com que o historiador Airton de Farias nos brindou às vésperas do tor- neio no Brasil, em 2014, eis que, agora, os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro são precedidos por outra obra do mesmo valor e do mesmo autor. Digna de três medalhas de ouro, para Farias, para o ilustrador Mario Sanders e para a Editora Armazém da Cultura, esta brava casa cearense que não teme obstáculos. A maratona histórica aqui descrita não se confunde com a história da humanidade. É a própria história, da Grécia Antiga aos dias de hoje, de Atenas à Barra da Tijuca. Da bem intencionada e milenar observação do poeta romano Juve- nal, “mente sã em corpo são”, hoje politicamente incorreta, aos Jogos Paraolímpicos. De Hércules a Usain Bolt! Alguém dirá, e estará certo, que o ideal olímpico do velho francês criador dos Jogos Olímpicos Modernos, o Barão de Coubertin, historia- dor, como Farias, “O importante não é vencer, é competir. Com digni- dade” – jamais foi posta em prática – além de a frase não ser dele, como você verá aqui e ele mesmo nunca omitiu. É claro que a imensa maioria dos atletas que participa de uma Olim- píada sabe que não subirá ao pódio, muito menos receberá a medalha dourada ouvindo o hino de seu país e vendo subir a sua bandeira. Mas o simples fato de estar nos Jogos é uma vitória inestimável. Vitória que tantas vezes transcendeu a conquista meramente esportiva. De certa forma, o atleta é o gladiador moderno e as Olimpíadas fo- ram por muitos anos palcos de disputas políticas, antes e depois da Se- gunda Grande Guerra. Ora porque um maluco sanguinário queria provar a superioridade ariana, e deu com os burros n'água, ora porque os Estados Unidos e antiga União Soviética lutavam para demonstrar que seus regimes eco- nômicos eram os melhores. Por Juca Kfouri Se havia alternância no quadro de medalhas, mesmo à custa de expe- dientes desonestos como o doping, a sentença sobre qual sistema preva- leceria não se deu nas pistas, nas quadras ou nas piscinas, mas na queda de um muro infame, o de Berlim, em novembro de 1989. Por acaso, ou não, na mesma cidade que sediara os Jogos de 1936, quando o atleta negro estadunidense, Jessie Owens, calou Adolf Hitler e seus acólitos arianos. Seja como for, e está muito bem documentado nesta História dos Jogos Olímpicos, a Guerra Fria feriu mortalmente duas edições das Olimpíadas, a de Moscou, em 1980, e a de Los Angeles, quatro anos depois, com boico- tes, primeiramente de dezenas de países liderados pelos Estados Unidos, e depois, como represália, dos países da órbita da Soviética. Os Jogos Olímpicos, no entanto, sobreviveram. Se conseguiram ultrapassar a fronteira do amadorismo para o profis- sionalismo, não seriam as questões ideológicas que os sepultariam. E chegaram, quem diria, ao Rio de Janeiro. País sem nenhuma tradição olímpica, embora capaz de produzir, qua- se por geração espontânea, alguns heróis olímpicos de valor indiscutível, o Brasil, no curto intervalo de dois anos, receberá o mundo novamente. Não deveria, mas receberá. Farias não discute, Farias conta e conta bem,como poucos seriam capazes de contar, uma história. Este prefaciador, contudo, embora reconheça que o livro está à altura da festa que vamos fazer e viver, precisa dizer que antes de receber a maior festa do esporte mundial, deveríamos olhar para o esporte como fator de saúde pública, prioridade em relação a ganhar ou não medalhas olímpicas. Porque, a partir do momento em que fizermos as escolhas certas, seja no Esporte, seja na Educação,não só seremos capazes de tirar qualidade da quantidade para fazer campeões, como teremos um país saudável e educado, que produzirá mais autores de obras como a que você tem em mãos. De minha parte, modesto ex-jogador de basquete que sonhou em disputar uma Olimpíada porque sonhar nunca foi proibido, fica o orgu- lho por apresentar este novo livro de Airton de Farias, cuja capacidade de trabalho, de pesquisa e de envolver o leitor é admirável. Na Grécia antiga, região fragmentada em várias pólis e cercada por não poucos inimigos, surgiram os Jogos Olímpicos. Havia um objetivo definido nos Jogos: o de preparar fisicamente cidadãos para a guerra. Somavam-se a isso a paixão por competições e o profundo sentimento religioso dos gregos, que tinham nos Jogos um festival religioso. As disputas não deixavam de denotar a unidade cultural da Hélade e suas contradições sociais: eram Jogos para cidadãos, ho- mens livres, deles não podendo participar mulher, escravo ou estrangeiro. As Olimpíadas foram sofrendo mudanças em sua estrutura ao longo dos séculos, sendo alvo dos enfrentamentos entre Esparta e Atenas, Império Macedônico e Império Romano. Sob o domínio dos césares e com a expansão do cristianismo, os jogos pagãos foram proibidos. 11 1.1 A ImpORtâncIA dAS pRátIcAS fíSIcAS pARA OS gRegOS É neceSSáRIO certa prudência ao se afirmar que os Jogos Olímpicos, tal como os entendemos hoje, têm suas origens na Antiguidade Clássica. Deve-se evitar anacronismos e uma concepção de história linear e evolutiva, de que as atuais Olimpíadas são a continuação e um “aperfeiçoamento” das que havia na civilização greco-romana. Pode-se até dizer que os Jogos de nossa época se inspiraram nas Olimpíadas helê- nicas, entretanto, estudando-se o tema em detalhe ficam evi- dentes as diferenças de sentidos daquilo que era praticado na Grécia Antiga, antes de Cristo. Inicialmente conhecidos como Festival Olímpico, os jogos eram, em sua origem, um evento religioso, embora, depois, esse princípio tenha também sido desvirtuado, como veremos adiante. Tradicionalmente, afir- ma-se que sua primeira edição teria se dado em 776 a.C., passando a acontecer de quatro em qua- tro anos em Olímpia, numa homenagem a Zeus. Controlados pela cidade-estado de Élis ou Éli- de, distante cinco quilômetros de Olímpia (hoje, Amaliada), os Jogos Olímpicos faziam parte dos quatro grandes festivais religiosos celebrados na Grécia Antiga. Tais festivais, chamado de Jogos Pan-Helênicos, contavam também com os jogos Píticos (em Delfos, homenageando o deus Apo- lo), os jogos Ístmicos (em Coríntio, festejando-se Os Jogos Olímpicos da Antiguidade capítulo 1 “Tradicionalmente, afirma-se que sua primeira edição teria se dado em 776 a.C., passando a acontecer de quatro em quatro anos, em Olímpia, numa homenagem a Zeus.” 12 Poseidon) e jogos Nemeus (em Nêmea, dedicados a Hércules). Afora os Jogos Pan-Helênicos, havia outras celebra- ções: os Jogos Heranos (dedicados à deusa Hera, esposa de Zeus, com a par- ticipação apenas de mulheres), os Jogos Fúnebres (tidos como os mais antigos e, possivelmente, precursores dos Jo- gos Olímpicos, dedicados aos mortos, como descreve Homero na Ilíada) e as Panateias (evento realizado em honra a Pala Atena). As origens dessas e outras competições se perderam no tempo e nas versões. Fala-se que, nos primór- dios, os jogos eram parte de rituais em consagração de deusas da fertilidade ou em agradecimento às divindades por proteção ou, ainda, que fizessem par- te de cerimoniais fúnebres ou mesmo puro entretenimento. Eram manifes- tações esporádicas, apenas depois ga- nhando periodicidade definida e um enorme prestígio e importância sociais. Existiam várias razões para os gregos darem tanta atenção às práticas atléti- cas. A Grécia antiga (que ocupava um território bem maior que o país atual) tinha seu centro situado na península Balcânica, área de grande importância estratégica e comercial e, portanto, sus- cetível de sofrer ataques de povos con- quistadores. Os helenos, por sua vez, apesar da unidade sociocultural, não apresentavam uma unidade política, estando divididos em várias cidades- -estados ou pólis. Não eram poucas as rivalidades, os choques de interesses e as disputas por territórios entre as pe- quenas cidades, gerando conflitos san- guinários. A Grécia era uma civilização magistral, sem dúvidas, mas estava es- truturada com base na escravidão – em geral, aqueles derrotados e capturados nas batalhas tornavam-se escravos do vencedor. Era uma sociedade dirigida por uma aristocracia hereditária, que apresentava uma organização de poder na qual se exaltavam a virtude militar e a força física. Era dever cívico do ci- dadão lutar por sua cidade. Percebe-se que a guerra ou a possibilidade dela fazia parte do cotidiano grego, sendo necessário, pois, cidadãos/soldados em boas condições físicas e capazes de de- fender seus territórios contra qualquer ameaça externa. Assim, as atividades físicas relacio- navam-se intimamente com as atitudes que a pólis esperava de um cidadão. Es- tavam também vinculadas a todo um conjunto de valores que regiam a socie- dade grega, envolvendo preocupações higiênicas e médicas, estéticas e éticas a um só tempo. Não surpreende que a preocupação com o corpo fizesse parte da Paideia, a educação integral dos gre- gos, sendo um dos pilares, ao lado da música e da poesia. O desenvolvimento do intelecto e do físico era importante ferramenta educativa, pois levaria o ho- mem a melhor explorar seu potencial na relação corpo/alma e em relação à natureza. Acreditavam que era impor- tante a purificação do espírito, não sen- do possível a perfeição sem a estética do corpo. Apenas o homem educado fisi- 13 camente era verdadeiramente civilizado e, portanto, belo e bom. Dessa forma, o ideal de beleza e perfeição, tão exaltado pelos gregos, passava pelo culto ao cor- po. Também consideravam o exercício físico como meio de conservar a saúde ou de recuperá-la. Não se pode esquecer também o es- pírito de competição, um traço impor- tante da cultura grega. Essa paixão por disputas e pelos concursos estava não apenas no atletismo, mas também no campo da literatura, da arte, da política, etc. Assim, não foi por acaso que os gre- gos inventaram os enfrentamentos com- petitivos do estádio para satisfazer seu gosto de luta e de rivalidade. Em rigor, não conheciam a palavra esporte. Para alguns teóricos, como Pierre Bourdieu, esporte é uma construção da contem- poraneidade, de nossa época. Se o termo esporte era desconhecido pela Antiguida- de, o mesmo não se pode afirmar para o seu conteúdo. Os gregos antigos, assim como os romanos, certamente vivencia- ram o conteúdo que nós teorizamos como esporte. Os historiadores da Antiguidade ao trabalhar com as práticas esportivas gregas se esforçam em discutir as especifi- cidades entre dois termos que frequente- mente aparecem associados ao campo da disputa atlética, a saber: athlètes (da raiz de aethlosou athlos, a guerra) e agonistès (deriva da palavra agôn, luta, disputa). O primeiro termo diz respeito ‘àqueles que exercem um esporte’, já o segundo, faz alusão ‘àqueles que participam dos concursos” (LESSA, 2008: 4) . O caso mais conhecido dessa exalta- ção do físico, na Grécia, é o de Esparta, pólis situada no Peloponesos, sempre lembrada por seu militarismo extrema- do. “A educação espartana desenvolvia uma ampla gama de jogos gímnicos e, ao mesmo tempo, devia manter e observar a mais severa disciplina. Os espartanos deviam mostrar-se indiferentes ao frio, à fome, à sede e a todo tipo de fadiga. A prática de exercícios físicos tinha uma importância extraordinária, tanto que a história indica como sendo os espartanos os primeiros vencedores de muitos jogos competitivos e também como criadores de alguns deles como, por exemplo, o pugi- lato e o pancrácio (competição que com- preendia a luta e o pugilato)” (CHIÉS, 2006:103).Praticados dentro do gimnásio, um dos principais prédios da pólis, a ginás- tica e outros esportes eram ensinados conforme os preceitos da Paideia. As atividades físicas em Atenas eram res- tritas aos cidadãos, os homens livres, filhos de pais atenienses, os únicos com direitos a possuir terras e partici- par do sistema democrático da cidade. Os estrangeiros (metecos), pessoas de outras pólis autorizadas a morar em Atenas, pagando impostos e servindo no exército, mas sem direitos políticos, poderiam praticar esporte, mas em outros ginásios. Os únicos excluídos eram os escravos (derrotados em guer- ra ou filhos de escravos) e as mulheres. Frequentar o gimnásio fazia parte do cotidiano dos gregos, sendo mesmo um 14 FIG 1 Os gregos exaltavam o físico e a competição, como se percebe nos desenhos feitos em seus jarros. local de encontros e sociabilidades – ali os homens se exercitavam, se banhavam e tomavam massagens. Em geral, as pólis tinham um gimnásio equipado em seu centro. O objetivo era cuidar do cor- po masculino. Comportavam termas, vestiários e até áreas onde os atletas se banhavam e eram untados com óleo de oliva. Havia espaços para luta livre, mus- culação e arremesso de dardo e disco. As atividades do ginásio se baseavam nas eventuais exigências das batalhas. Por exemplo, o arremesso de disco fortalecia o braço que segurava o escudo. O dardo era uma variante do arremesso de lan- ças. A luta livre era um preparativo para os embates corpo a corpo, comuns nas batalhas de então. Foram dessas ativida- des praticadas nos ginásios que surgiram as modalidades dos Jogos Olímpicos. Chegou a haver nos Jogos uma corri- da chamada hoplitodromia, na qual os atletas competiam em trajes de solda- do (com capacete e portando um pesa- do escudo). Os jogos Olímpicos da antiguidade tinham um caráter elitista e aristocráti- co. A participação exigia uma longa e árdua preparação e, salvo a situação em que encontrasse um patrono abastado ou um treinador que acreditasse em seu futuro promissor, um jovem que não pertencesse a uma família rica jamais conseguiria competir. 15 1.2 ORIgenS dOS JOgOS OlímpIcOS Há váRIAS versões sobre como surgi- ram os Jogos Olímpicos, origens essas, não raro, envolvidas na rica mitologia grega. Uma delas credita os Jogos a Hér- cules. No quinto de seus doze trabalhos, Hércules deveria limpar os estábulos de Augias, rei da cidade de Élis – os estábu- los, onde viviam três mil bois, não eram limpos há 30 anos, exalando um odor tão insuportável que causava a infertili- dade dos solos da região. O herói grego desviou um rio para limpar os estábu- los, mas o rei não deu o trabalho como executado, pois a limpeza teria sido fei- ta pelo rio, e não por Hércules. Furio- so, Hércules vingou-se armando uma emboscada e matando os sobrinhos de Augias, dirigindo-se a seguir para con- quistar Élis. Em agradecimento a Zeus pelo triunfo, realizou um ritual em Olímpia, dando origem, então aos Jogos. Na mitologia grega, Hércu- les era um semideus, filho de uma mortal com Zeus. Seu nascimento provocou a ira de Hera, esposa de Zeus. Este era conhecido por se- duzir mulheres mortais, o que provocava ciúmes em Hera. Quando Hércules ainda era um bebê, Hera mandou duas serpen- tes para matá-lo. O semideus, mos- trando toda sua força excepcional, estrangulou as cobras. A esposa de Zeus continuaria perseguindo Hér- cules. Em certa ocasião, Hércules acabou tento um surto de loucura provocado por Hera, matando sua própria mulher e filhos. Ao recobrar a razão, abalado, Hércules procurou o famoso Oráculo de Delfos na in- tenção de achar uma maneira de re- cuperar a honra perdida com aquela tragédia. O Oráculo determinou que Hércules servisse a Euristeus, rei da cidade de Micenas. Euristeus, então, mandou que ele realizasse façanhas perigosas, proezas que não podiam ser feitas por pessoas comuns – o que ficou conhecido como “Os 12 Traba- lhos de Hércules”. Hércules cumpriu as tarefas e ao terminá-las, obteve a imortalidade (BULFINCH, 2002). Uma outra versão mitológica conta que os jogos teriam sido criados por Pélope, avô de Hércules. Pélope era uma figura mística na Grécia, tanto que seu nome foi atribuído à Península do Pelopone- so (Pélope e Nesos, a “Ilha de Pélope”). Pélope havia se apaixonado pela filha de Enómao, rei de Pisa, que, entretanto, não aprovava a relação: um oráculo afirmava que o monarca seria morto pelas mãos do próprio genro. Não obstante, para sa- tisfazer o desejo dos muitos pretenden- tes à mão da filha, Enómao concordou em realizar uma prova de corrida de carros, com a promessa de que o ganha- dor se casaria com a moça. Na verdade, 16 desejava assassinar os pretendentes,a fim de que não fosse concretizada a profecia. Durante a corrida, Enómao foi eliminando um a um os concorren- tes a golpes de lanças, até sobrar apenas Pélope. Este, porém, teria subornado o cocheiro real para afrouxar as rédeas do carro de Enómao (outra versão diz que foram adulterados os pinos da roda). Assim, as rédeas se soltaram, causando a morte de Enómao. Como forma de agradecimento pela vitória obtida, Pélo- pe organizou os jogos. Olímpia, localizada na região de Éli- da, no extremo noroeste do Pelopone- so, era um santuário sagrado, em meio ao bosque de Áltis, diante do Monte Cronos, entre as confluências dos rios Alfeu e Cladeu. Segundo a mitologia, fora neste lugar que Zeus derrotara seu pai, Cronos, daí o nomedo monte. Há registros de pequenos jogos já nos séculos XII e XI a.C., em culto à Gea (Terra), exaltando a natureza e a ferti- lidade, algo importante numa região montanhosa e de poucos solos férteis como a Grécia. Os cultos e jogos seriam retomado no final do século IX a.C., em honra de Zeus, por designação do famoso Oráculo de Delfos. Uma peste assolara a Grécia e profetizou-se que apenas uma cerimônia em homena- gem a Zeus resolveria o problema. Os gregos eram muito supersticiosos e o Oráculo de Delfos constituía-se a gran- de referência para governantes e sacer- dotes, com isso, Olímpia foi declarada solo sagrado. Inclusive, os jogos só fo- ram chamados de “Olímpicos” depois de serem associados a Zeus – no caso, uma referência mitológica ao local do trono dessa divindade, uma montanha com três mil metros de altura, situada na região da baía de Salônica. A crença de que os vencedores das competições olímpicas eram sancionados pelos deu- ses seria uma das características dos Jo- gos da antiguidade. Havia, pois, uma ligação íntima en- tre esportes e religião entre os gregos. Os jogos colocariam os homens em contato com as divindades. Os atletas compareciam aos jogos para competir e adorar os deuses – não por acaso, as Olimpíadas aconteciam num santuá- rio sagrado como Olímpia. Ali, em 440 a.C., seria construído, pelo famoso es- cultor Fídias, uma gigantesca estátua de ouro e marfim em homenagem a Zeus, com cerca de 12 metros de altura e que seria, posteriormente, considerada uma das “Sete Maravilhas” do mundo antigo. Os Jogos Olímpicos eram abertos por uma grande cerimônia, quando os olimpiônicos (participantes dos jogos) chegavam a Olímpia, vindos de Élis, ao fim de dois dias de caminhada e um trajeto de 58 quilômetros.Era feito um sacrifício ritual no altar de Zeus, de- vendo os competidores realizarem um juramento solene diante da estátua do deus, em cujo pedestal estava gravado inscrições e versos elegíacos destina- dos aos perjuros e a todos os que ou- sassem transgredir a lei. Além de ora- ções e sacrifícios de animais, o culto ao 17 deus supremo do Olimpo apresentava, como ápice, acender-se uma pira em sua homenagem. O fogo era sagrado e estava comumente associado à religião grega – todo templo possuía uma tocha acesa em seu interior. Tendo a chama o significado de um elemento dinâmico de uma vida ereta, às vezes deformada pelo vento, embora sempre retornando à sua posição inicial, representa todas as lutas paramanter sua unidade, em constante desafio com os outros elementos desen- cadeados, luta para expandir calor e luz e reencontrar em paz seu destino e as- censão (MACHADO, 2006: 87). Aque- le que acenderia a chama deveria ser especial, eleito pelos deuses. Os sacer- dotes escolhiam dentre os presentes os mais ágeis e fortes, e estes participavam de uma corrida. O vencedor recebia da mão de um dos sacerdotes de Élis a “tocha sagrada”, acesa com o calor pro- duzido pela luz do sol incidindo sobre uma lente côncava, e tinha a honra de atear fogo à pira, a qual não se apaga- ria até o ritual seguinte, representando a eterna juventude. Conforme a tradição, afirma-se que a cerimônia e os jogos em homenagem a Zeus passaram a ocorrer com perio- dicidade definida, de quatro em quatro anos, a partir de 776 a.C. – estudiosos, entretanto, afirmam a possibilidade de que as disputas já existissem antes, com origens que se perderam no tempo. O intervalo estabelecido entre os jogos te- ria sido indicação também do Oráculo de Delfos, bem como o dia de sua re- alização: (...) no dia da Lua cheia após o solstício de verão. A escolha desse dia devia-se ao fato de esse ser o momento em que o Sol, atingindo o ponto mais elevado de sua carreira no hemisfério Norte, resplandecendo em todo o brilho, mostrava-se vitorioso aos seus inimigos mais temíveis (RUBIO, 2001: 132). Há polêmica entre os historiadores sobre qual período no calendário atual os jo- gos aconteciam – versões apontam en- tre meados do mês de julho e início de setembro. Nas 13 primeiras edições, o evento consistia em apenas uma corrida do stadion (um estádio, 192.28 metros), não passando de lenda a afirmação de que Maratona foi o primeiro esporte olímpico1. Corebo (em grego, Kóroibos, latim, Coroebus), da polis de Élis, tra- dicionalmente é tido como o primeiro vencedor olímpico, ao deixar para trás seis adversários. A partir daquela data, seriam contadas 293º edições dos Jogos de Olímpia na Antiguidade, em 1169 anos, 12 séculos aproximadamente, até serem abolidos pelo imperador roma- no Teodósio, em 393 da Era Cristã. No calendário grego, contavam-se os anos pelas olimpíadas, o que dá uma ideia da importância atribuída a elas. 1. Segundo uma versão tradicional, a corrida de Maratona teria começado em 490 a.C., quando das Guerras Médicas, entre gregos e persas. Um mensageiro, chamado Fidípides, teria percorrido 42 quilômetros entre o campo de Maratona e Atenas para levar a notícia da vitória grega. Ao concluir o duro percurso, o soldado anunciou: “vencemos a batalha (“vitória”, nike em grego)” tendo, em seguida, morrido de exaustão. 18 1.3 AS mOdAlIdAdeS A prINcípIO, a participação nos Fes- tivais Olímpicos estava restrita aos ha- bitantes de Pisa e de Élis, cidades-es- tados da região de Élida, onde ficava Olímpia. Mais tarde, as demais cidades da região do Peloponeso, entre as quais Esparta, começaram a enviar seus atle- tas para Élida – o primeiro espartano sagrou-se vencedor em 720 a.C. De- pois, o restante da Grécia continental pôde participar e, a partir do século V a.C., foi franqueada a participação de qualquer cidadão que falasse grego (mulheres, escravos e estrangeiros, es- tes últimos tidos como “bárbaros” pe- los helenos, estavam excluídos). Inicialmente, o festival durava ape- nas um dia, com uma só disputa, a pro- va do estádio. Novas categorias foram incluídas ao longo dos mais de mil anos dos jogos, sendo ampliadas a quanti- dades de dias de disputa. Por volta dos séculos VI a.C ou V a.C, os jogos já du- ravam cinco dias, com 18 modalidades. No primeiro, aconteciam as ceri- mônias de abertura; no segundo, as provas eliminatórias de corrida a pé: a prova do estádio, o diaulos (prova de dois estádios) e o daulichos (a corrida de longa distância, de cerca de 4700 metros). Um dos grandes nomes des- sa modalidade, e considerado um dos maiores atletas do mundo antigo, foi Leônidas de Rodes, que conquistou vá- rias vitórias consecutivas, de 164 a 152 a.C.. Cerca de 40 mil pessoas pode- riam se acomodar nas arquibancadas (encostas ao redor das pistas) para as- sistir às competições. Havia uma grita- ria intensa dos presentes, que torciam por suas cidades e atletas favoritos. Possivelmente acontecia uma ou outra briga no calor da torcida. Mercadores e artesãos atendiam as necessidades dos visitantes de Olímpica. Entretanto, re- latos dão conta de que, durante os jo- gos, a fome, a falta de água, a precarie- dade das acomodações e o excesso de público provocavam relativa desordem no santuário. No terceiro dia acontecia o penta- tlo, série de cinco provas (lançamento de disco, lançamento de dardo, sal- to em distância, corrida do estádio e luta grega). Não se sabe como eram pontuadas as provas para que fosse conhecido o vencedor. Plutarco (50- 124 d.C), cronista da vida grega, clas- sificava o pentatlon como o exercício mais artístico de todos. Antes das competições e mesmo durante os treinamentos, era normal que atletas tivessem os corpos unta- dos com óleos perfumados ou azeite. O óleo perfumado objetivava anular algum odor desagradável dos atletas, salientar a musculatura e dar brilho ao corpo. Não havia uniformes; os con- correntes ficavam nus, ou apenas com alguns acessórios, como as tiras de couro usadas nas mãos dos pugilistas. Não se sabe exatamente o porquê da nudez – há quem afirme que era asso- ciada à valorização do corpo perfeito pela cultura grega, de ver o físico em forma como uma “obra de arte”, es- 19 Em fases mais remotas da História grega, não se co- nhecia a equitação. A cor- rida de cavalos criada pelos antigos persas, nas festas dedicadas ao deus Sol (Mi- tra), teria sido introduzi- da na Grécia por Hércules, conforme a mitologia. Os gregos não conheciam a sela, os es- tribos, nem o freio, como demonstra um dos baixos-relevos do friso do Parthenon. Com o passar do tempo, a equitação tornou-se valorizada pe- las elites de Atenas, passando a fazer parte de toda boa educação de um jovem. Dessa forma, entre as classes mais altas, as corridas equinas adqui- riram maior predileção, ao contrário da luta, do pentatlon e demais provas que não necessitassem de meios es- peciais (cavalos, carros) e que foram, progressivamente, relegadas a cama- das sociais mais baixas. Nas corridas de cavalos, as distân- cias variavam. Os cavaleiros monta- vam geralmente nus e sem sela, e as provas eram programadas de acordo com a idade dos mesmos. As corridas de bigas inauguraram um novo espa- ço de competições, o hipódromo, em 680 a.C., data da 25ª edição dos jogos. O carro era uma caixa de madeira baixa sobre duas rodas, muito leve e frágil, puxada por cavalos. Cabia ao proprietário do cavalo ou do carro os louros da vitória – os proprietários não arriscariam suas vidas nas corri- das, pois eram comum acontecerem mortes de participantes, geralmente garotos, cuja vida era tão valorizada. Diversos personagens históricos pro- tagonizaram embates nessa modali- dade. O político Alcibíades, amigo e entusiasta do filósofo Sócrates, parti- cipou da corrida de 416 a.C. com nada menos que sete bigas. Segundo o his- toriador Tucídides, conquistou o pri- meiro, o segundo e o quarto lugares. Em 67 d.c., já sob domínio romano, os gregos assistiram ao imperador Nero ser coroado vencedor mesmo sem ter cruzado a linha de chegada com seu carro puxado por dez cavalos! pecialmente o masculino musculoso (são, por exemplo, raras as estátuas gregas de nu feminino, em compa- ração às de nu masculino). Também não se pode esquecer que o fato de os homens competirem nus se liga ao próprio machismo helênico, já que o bissexualismo e a homossexualidade eram aceitos sem restrições pela so- ciedade. A própria palavra “ginástica” traz o termo “nudismo” em seu radical grego gymnos – nos ginásios, os gregos treinavam nus. No terceiro dia também ocorriam as competições equestres (introduzi- das somente a partir da 25° Olimpía- da,em 680 a.C.). Estas incluíam pro- vas montadas e competições de carros – bigas, quando eram puxados por dois cavalos, e quadrigas, por quatro. 20 As competições de luta era atrações de destaque dos jogos antigos. No quarto dia, tinham-se as compe- tições de luta (palé, espécie de anteces- sora do que hoje é chamado luta greco- -romana ou luta olímpica), pugilato e pancrácio. Nas três modalidades, não havia limites de tempo – os atletas lu- tavam até a exaustão ou a derrota do adversário. Na luta grega e pugilato, eram proibidos golpes contra a genitá- lia, mordidas ou ataques visando dire- tamente os olhos do oponente. Apesar disso, era comum os atletas fraturarem dedos, braços, pernas ou perderem a vida. Não havia divisão dos lutadores por peso ou idade, sendo possível que adversário enfrentasse um contendor bem mais alto e pesado do que ele. O maior lutador da antiguidade foi Milon, da cidade de Crotona, cujos feitos eram cantados por toda a Grécia – ganhou por seis vezes os Jogos Olímpicos. Há sobre ele uma lenda segundo a qual era tão forte que chegou a carregar um boi sobre as costas, correndo com o animal uns 120 passos, matando-o posterior- mente com um golpe das próprias mãos. Na luta greco-romana, desenrolada em uma cova de areia chamada skamma (a mesma em que era realizada a com- petição de salto em distancia), os atletas se banhavam em óleo, mas depois utili- zavam um pó para garantir uma melhor aderência. No pugilato, os competido- res usavam tiras de couro nas mãos, o que poderia causar graves ferimentos (o alvo principal era o rosto do adversário). 21 O pancrácio era a prova considerada mais violenta e mortífera, em que tudo era permitido, à exceção de golpes nos olhos, aranhões e mordidas, apesar dos espartanos admitirem tais “golpes”. O estrangulamento era permitido. Na prática, constituía-se uma espécie de vale-tudo. O nome vem da palavra gre- ga pankratòs, que significa “com toda a força”. O combate se encerrava somente quando um dos competidores se ren- dia, levantando o indicador da mão direita para o alto. Não havia limite de tempo: Callia, de Atenas, em 472 a.C., foi declarado vencedor depois de um combate que durou um dia inteiro. No quinto dia, realizavam-se as ce- rimônias de encerramento. Um cortejo, composto pelos juízes, os vencedores das provas, as autoridades de Élis e de Olímpia e as delegações das cidades dirigia-se ao templo de Zeus. A seguir, vinham estátuas dos deuses carregadas ao som de flautas e cânticos. Um arauto anunciava o nome, a pólis e o desem- penho dos vencedores diante da está- tua de Zeus. Os juízes entregavam uma coroa de ramos entrançados da oliveira silvestre. Realizava-se uma hecatombe, sacrifício de 100 bois, degolados, em oferecimento a Zeus. Um banquete era ofertado às autoridades, aos vencedores e às personalidades. Os olimpiônicos ofereciam sacrifícios também a Zeus. A partir do dia seguinte, as delegações e os visitantes começavam a ir embora. Durante os Jogos Olímpicos, era de- cretada a “Trégua Sagrada” (Ekhekhei- ria). Aponta-se como origem desta um tratado firmado entre três reis em 884 a.C. — Ífito, de Elis; Cleóstenes, de Pisa; e Licurgo, de Esparta —, que depois se ampliou para todo o mundo helênico. A Trégua Sagrada acontecia não apenas pelo ideal de paz em si, mas para que os jogos ocorressem sem a interferência de guerras ou disputas políticas. A princípio, essa trégua era de um mês antes e um mês depois dos jogos. Posteriormente, esse período foi aumentado para três meses e depois dez meses, antes e após as disputas. Essa alteração se deu em virtude do crescimento da influência dos jogos em territórios cada vez mais amplos da Grécia, de modo que houvesse tempo para que todos, atletas e públicos, dos locais mais próximos aos mais lon- gínquos, pudesse, com tranquilidade e segurança, chegar em Olímpia para assistir às celebrações. Nesse período, os soldados não podiam pegar em ar- mas ou participar de batalhas, mesmo contra invasores, isso para que os atle- tas e o público pudessem se dirigir à Olímpia sem riscos. Nenhum exército podia pisar o solo de Olímpia. Consi- derava-se um sacrilégio contra Zeus não respeitar a trégua. Em 420 a.C., por exemplo, nos 90º jogos olímpicos, não foi permitida a participação de Es- parta. Esta teria invadido Lêpreon du- rante a trégua, se recusando, a seguir, a pagar uma multa e a pedir desculpas publicamente. Houve um clima tenso durante as disputas, mas os espartanos 22 acataram a decisão dos organizado- res. Vale observar, porém, que muitas vezes as tréguas eram usadas para os guerreiros visitarem os territórios ini- migos e conhecer suas defesas e estra- tégias para as guerras em curso. Pelo que sabe-se, no século V a.C, du- rante o intervalo dos Jogos e festividades, cantores, dançarinos, poetas, filósofos realizavam apresentações para visitantes. Havia mesmo locais para competições de canto, música, poesia e, talvez, pintura, o que não era estranho, em virtude do espí- rito de competição dos gregos. Os Jogos eram importantes igual- mente por facilitar o encontro de auto- ridades das pólis, pois cada cidade en- viava seus representantes oficiais para assistir e marcar presença. Assim, ao em vez de de obrigados a viajar para cada cidade, podiam todos se encontrar em Olímpia durante os jogos. Os gover- nantes e representantes das cidades-es- tados se reuniam para tratar de questões sobre guerra, política, comércio, paz, alianças militares, etc. (...) Essas compe- tições foram responsáveis pela criação de um sentimento de unidade pan-helênica e serviriam como palco para resolução de muitos entraves políticos. A escolha deles como referência para esses assuntos mostra sua relevância para os povos da antiguidade (MACHADO, 2006: 24). 1.4 A glóRIA de venceR pARA evItAR eventuais protestos du- rante as provas dos Jogos Olímpicos, os atletas faziam juramento se comprome- tendo a aceitar as decisões dos helanó- dicas, espécies de árbitros. Estes fiscali- zavam todas as provas a fim de evitar trapaças e fraudes e também eram in- cumbidos de manter a ordem e a paz durante o evento, evitando que brigas e confusões acontecessem em Olímpia. Os helanódicas eram escolhidos atra- vés de sorteio entre as famílias nobres da Élis. A trapaça era algo mal visto, considerando-se uma desonra não só para o indivíduo, mas igualmente para a pólis que ele representava. Há vários relatos de fraudes e subornos nos Jogos. Ao ser declarado o vencedor, a plateia atirava flores e folhas frescas, e mesmo oferecia ao ganhador maçãs e romãs, frutos tidos como símbolos de fertili- dade. Relatos dão conta de que até os 6º jogos, o prêmio pela vitória era uma maçã. Por recomendação do Oráculo de Delfos, o prêmio teria passado a ser uma coroa com ramos de oliveira (o kótinos). Esta possuía valor especial para os gre- gos – a oliveira era uma árvore símbolo da vitória e teria sido trazida para o vale do rio Alfeu por Hércules, como forma de proteger o Monte Cronos do sol e calor da região, conforme a mitologia. Numa outra versão, afirma-se que a oli- veira silvestre exerceu grande influência nas crenças, usos e costumes dos gregos, pois se acreditava que a árvore possuía uma alma e mesmo um significado sagra- dos, além de ser considerada como árvore da civilização, da vitória e da paz (COR- NELSEN, 2006: 200). As coroas, prepa- 23 radas antecipadamente, eram guardadas no Heraion, o templo de Hera, um pos- sível sinal da manutenção dos valores de fertilidade e fecundidade que tinham dado origem aos jogos. Os vencedores portavam à cabeça, braços e pernas fitas de lã vermelhas (usadas para indicar que um objeto era sagrado), ganhavam o direito de ter uma estátua erguida em sua homenagem em Olímpia e o nome registrado numa pla- ca, afora o privilégio de participar do banquete do último dia. Acreditava-se que tinham o apreço dos deuses. Não por acaso, os gregoscriam que os atletas ven- cedores tinham qualidades semidivinas. Os jogos Olímpicos tinham grande aceitação por toda a Grécia. Para os atle- tas, era uma glória vencer – também para sua família e pólis. De início, os indiví- duos competiam quase exclusivamente por sua própria transcendência. Para o grego, a dignidade e o valor de uma com- petição não residiam no resultado. O fato determinante era o brilho e o ardor que penetrava nos corpos e espíritos durante o jogo das possibilidades, dominando o ins- tante supremo (RUBIO: 2002: 134). Depois, sobremaneira, a partir do século V a.C., o atleta passou a com- petir também como representante de sua pólis, o que transformou os Jogos numa grande competição entre as ci- dades-estados, destacadamente, entre as arquirrivais Esparta e Atenas. Nesse contexto, os Jogos ganharam uma im- portância política, além da religiosa. Ali, mostravam-se poderio das pólis e a eficiência que seus cidadãos teriam nas batalhas, intimidando os rivais. Não por acaso, os jogos passaram a ser vistos e disputados com tanto ar- dor. As cidades-estados começaram a apoiar e a pressionar os atletas por vi- tórias intesivamente. Os competidores passaram a treinar e a se especializar em uma modalidade para aumentar as chances de triunfo, contrariando o ideal inicial do atleta integral. Principalmente a partir do século V a. C., atletas passaram a ser profissio- nalizados, remunerados, e quando as pólis não conseguiam formar nenhum campeão, atraíam um do forasteiro com vantagens materiais. O cretense Sota- des, que venceu a corrida de daulichos (4.700 metros) nos 99º Jogos Olímpi- cos (384 a.C.), aceitou correr pela ci- dade de Éfeso quatro anos mais tarde. Os cretenses o puniram e o exilaram. Diante do desenvolvimento do profis- sionalismo, as escolas de esporte e os ginásios multiplicaram-se nas cidades. Os pedótribas (professores de educação física) recrutavam garotos a partir dos 12 anos. Esses treinadores particulares, às vezes ex-atletas, eram cada vez mais bem remunerados. Havia acusações de subornos. Assim, em 388 a.C., durante a 98ª Olimpíada, constatou-se o primei- ro caso de corrupção: o boxeador Eupo- los subornou três adversários, entre os quais o detentor do título. Os organiza- dores dos jogos impuseram uma multa aos quatro homens e, com a quantia ob- tida, mandaram erigir seis estátuas de 24 Zeus, em bronze. Em 332 a.C., um atle- ta ateniense, Calipo, também subornou seus adversários. Como a delegação de Atenas se recusou a pagar a multa, foi excluída dos jogos. O segundo lugar não resultava em qualquer mérito – não havia nenhuma premiação para este ou reconhecimen- to. A glória era dos vencedores, que ficavam famosos, recebendo benesses e privilégios para si e família, a exem- plo de ter toda a alimentação paga por sua pólis pelo resto da vida, quanti- dades enorme de óleo de oliva (valio- síssimo), assentos na primeira fila do teatro, a dispensa de pagar impostos e garantindo uma pensão vitalícia. Tudo financiado pela cidade-estado, como si- nal de respeito e gratidão. O conhecido legislador ateniense, Sólon, aprovou lei na qual concedia a cada atleta atenien- se vitorioso nas Olimpíadas uma pen- são vitalícia de cinco dracmas. Além de serem homenageados com estátuas e pinturas, os ganhadores eram exaltados pelos poetas com versos, sendo compa- rados aos heróis e, algumas vezes, até mesmo a semideuses. Ganhar os jogos era também uma forma de ascender, da maneira mais rápida, socialmente – os atletas se tornavam homens ricos. En- tretanto, quanto mais ganhassem as dis- putas, maior a pressão sobre os atletas, que tinham uma reputação a conservar. A Deusa Niké era a personifi- cação que os Gregos fizeram para a vitória, ou para as conquistas. Ela era conferida pelos deuses Zeus e Atena, onde estas divindades são frequentemente vistas com pequenas Nikés em suas mãos.Não há mitos ligados a sua ori- gem, mas ela é uma deusa antiga, nas- cida antes do Olimpo. Lurker, em seu Dicionário Simbólico refere que esta deusa condecorava os vencedores com coroa de louros, ramos de pal- meira e venda, que eram interpreta- dos como símbolos de vitória e fama na Grécia antiga. No período romano, a Niké grega teve seu nome mudado para Vitória, que não precisa ser vista agora como um ser alado. Este autor argumenta que as várias imagens da Niké são representadas de diferentes maneiras: como escrevendo sobre um escudo, ou de pé sobre o globo. Estas imagens são transpostas na arte cris- tã, também em imagens de anjos. (...) A imagem da deusa Niké é uti- lizada na atualidade para relacionar sucesso esportivo e glória. Exemplos disto são as imagens nas modernas medalhas olímpicas. Segundo Gre- ensfelder, a imagem da deusa Niké esta presente desde as medalhas que foram entregues na primei- ra Olimpíada, realizada em Atenas no ano de 1896. A partir dos Jogos Olímpicos de Amsterdã, em 1928, teve início uma padronização dos 25 desenhos das medalhas, nas quais uma das faces mostra a Niké seguran- do uma coroa de louros e uma palma, com o Coliseu ao fundo. Esta face da medalha continua sendo utilizada até hoje (...). O nome Niké, segundo Katz (1997), inspirou o nome da empresa de materiais esportivos Nike, tão po- pular na cultura esportiva mundial (MIRANDA, 2002: 418 - 423). 1.5 mulHeReS e OS JOgOS OlímpIcOS EM OlíMpIA ocorriam, igualmente, os jogos Heranos, nome derivado do culto à deusa Hera, mulher de Zeus, venerada como protetora das esposas e da família. Os jogos Heranos eram res- tritos ao gênero feminino. Embora não fizessem parte do grupo dos grades jogos pan-helênicos, contavam com o mesmo tipo de honraria dos Jogos Olímpicos, acontecendo um mês antes ou depois dos masculinos (CABRAL, 2004). Consistia apenas de uma mo- dalidade, uma corrida adaptada de um stadion, diminuída em um sexto do ta- manho original. As mulheres corriam de cabelos soltos, com uma túnica co- locada um pouco acima da cintura e o ombro direito nu até a altura do seio. Para as vencedoras, entregavam-se as coroas de oliveiras e uma parte da car- ne da vaca sacrificada à Hera. Quanto à presença das mulheres nos Jogos Olímpicos, havia uma situação contraditória. As mulheres não podiam participar das disputas, sequer entrar nos estádios e até mesmo em Áltis du- rante os jogos. Tal proibição, entretanto, não se aplicava às virgens, que poderiam assistir às árduas competições olímpi- cas. Não deixava de ser curioso: eram, em geral, meninas que iam à Olímpia (na Grécia, as moças casavam por volta dos 16 anos), enquanto as mães e espo- sas dos competidores estavam impedi- das. A contradição aparentemente se liga ao antigo aspecto dos jogos como ritual religioso de fertilidade. Somente- as virgens eram consideradas suficien- temente puras para estarem presentes. As casadas sofriam ameaças de pena de morte, o que porém, nunca foi posto em prática. Tradicionalmente se diz que apenas uma mulher casada teria sido flagrada assistindo aos jogos. No ano de 404 a.C., durante a 94ª Olimpíada, Kalli- patira entrou no estádio disfarçada de treinador e não conteve a alegria ao ver o filho, Psirodos, vencer o pugilato na categoria infantil. Ao adentrar à arena, deixou roupa cair revelando-se a todos os presentes. Por ser mãe, irmã e esposa de vencedores olímpicos foi poupada. Tal episódio teria servido de motivo para, daí em diante, os treinadores tam- bém se apresentarem despidos. Entretanto, há alguns registros de mulheres vencedoras nos Jogos Olím- 26 picos, no caso, as proprietárias de ca- valos (nos jogos, considerava-se ven- cedor os donos dos animais, não o cavaleiro). Foi o caso da princesa Ky- niska, em 392 a.C.Os cavalos dessa es- partana, famosa em seu tempo em toda a Hélade, venceram a prova de quadri- gas das 96ª e 97ª Olimpíadas (396 e 392 a.C.). Muitos estudiosos da história da participação feminina no esporte não acreditam que a vitória de Kyniska nosJogos represente alguma evolução nes- se aspecto. Na verdade sugere-se que a sua participação foi impulsionada por seu irmão, Agesilaus, por motivos es- tritamente políticos, havendo ainda, a supremacia dos interesses dos homens nesses eventos. Agesilaus buscava com- provar através do sucesso de sua irmã que a prova de corrida de cavalos podia ser vencida apenas por uma questão de saúde e não, prioritariamente, pela ex- celência das características masculinas (CHIES, 2006:11). Igualmente nas provas de corrida com cavalos, destacou-se Bélistiche, da Macedônia (amante do imperador egípcio Tolomeo Filadelfo), vencedora na prova de quadrigas de potros da 128ª Olimpíada (268 a.C.) e na de biga de potros da 129ª Olimpíada, modalidade equestre introduzida, então, nos Jogos. A atuação da mulher na sociedade grega restringia-se às aplicações da vida doméstica, o que envolvia, fun- damentalmente, a geração de filhos, futuros cidadãos. Em total submissão aos homens, não gozavam de direitos políticos. Verdade que em Esparta a mulher apresentava maior liberdade e respaldo social. As jovens de Esparta eram treinadas, na maioria das vezes, junto aos homens, fato que provoca- va zombarias por parte das mulheres atenienses. Os espartanos acreditavam que a prática das atividades físicas tor- naria as mulheres mais capazes e com plenas condições de cuidarem dos as- suntos da família quando da ausência dos maridos em casos de guerra, ou mesmo, de prepararem os corpos fe- mininos para a fertilidade, para gera- rem filhos fortes e saudáveis, os futu- ros guerreiros da pólis. Não obstante, havia outras mulhe- res em Olímpia e imediações duran- te os Jogos. Tinham-se escravas que cuidavam do preparo das refeições, da faxi- na, da arrumação (ha- via igualmente escravos encarregados de tarefas semelhantes). Haviam cantoras, dançarinas e poetisas contratadas ou levadas nas delegações ou por particulares. Al- guns dos visitantes con- duziam suas esposas ou amantes para lhes fazer companhia durante o evento. Possivelmente, havia prostitutas que se estabeleciam em Olím- pia e cercanias durante a celebração dos jogos. 27 1.6 A pROIbIçãO dOS JOgOS OS JOgOS Olímpicos acompanharam os percalços políticos da Grécia anti- ga. Após viver seu apogeu na primeira metade do século V a.C., depois de der- rotar os persas nas Guerras Médicas, a Hélade entrou em decadência, en- fraquecida pelas guerras entre as pólis (cujo exemplo maior foi a Guerra do Peloponeso, devastador conflito envol- vendo Esparta e Atenas). As olimpía- das entraram igualmente em decadên- cia com a luta entre as duas principais cidades-estados, o que culminou com a expulsão de Esparta dos jogos em 420 a.C. Olímpia se tornou alvo das guerras entre as cidades gregas, a ponto de, em 365 a.C., os habitantes de Élis chegarem a interromper a cronologia tradicional nos 104º Jogos Olímpicos. Em 338 a.C., a Grécia acabou con- quistada por Felipe da Macedônia, que, por sinal, era um admirador dos jogos. Felipe governaria pouco, pois seria mor- to dois anos depois. O trono da Mace- dônia passou, então, para um dos mais importantes conquistadores do mundo antigo, Alexandre, o Grande. Este le- vou as fronteiras do pequeno reino até a Ásia, dominando um território jamais visto até ali, e possibilitando a interação da cultura grega com culturas orientais – ocasionando o fênomeno denomina- do pelos historiadores de helenismo. Com isso, as pólis perderam sua auto- nomia, passando a fazer parte de um 28 império gigantesco. Agora, os gregos, em vez de cidadãos, eram súditos de um poder universal. Os exércitos passaram a ser composto de mercenários e não mais por soldados-cidadãos como na época da autonomia das pólis. A reli- giosidade também foi mudando, sem mais tanta ênfase no corpo. Com isso, a formação guerreira e as crenças religio- sas nas olimpíadas foram se alterando, se diluindo. O espetáculo em si dos jo- gos se tornou mais predominante que a religiosidade. Não por acaso, neste mo- mento helenístico (séculos IV a II a.C.), o profissionalismo dos atletas tornou-se quase que a regra, não mais a exceção. Alexandre, entretanto, morreria pre- cocemente em 323 a.C., tendo o impé- rio macedônico se fragmentado nas disputas posteriores entre seus generais. A parte ocidental, na qual estava a Grécia, acabaria conquistada por outra grande potência da antiguidade, Roma, em 146 a.C. Com isso, os roma- nos passaram a participar dos Jogos. No século I d.C., até im- peradores como Tibério e Nero estiveram entre os competido- res. Os romanos, ao saquearem cidades e santuários gregos, le- varam de Olímpia centenas de estátuas de atletas e deuses. Com o domínio romano so- bre os gregos, os Jogos Olímpicos foram perdendo cada vez mais a identidade. Em vez da religiosidade, en- fatizava-se a diversão, o entretenimento, bem de acordo com a política do panis et circenses2 romana. O profissionalismo entre os atletas e a violência (daí o gran- de interesse pelo pugilato) aumentaram. Na verdade, os romanos não davam tanta atenção às olimpíadas – os jogos de gladiadores eram o grande espetácu- lo no “mundo romano” –, salvo alguns imperadores. Na época do Imperador Nero, no lugar de cidadãos livres, escra- vos passaram a competir por suas vidas contra animais selvagens. Tornaram-se mais comuns os casos de fraudes. Não raro, aconteciam mortes ou lesões graves dos participantes. FIG 3 Com o domínio romano, os Jogos se tornaram ainda mais violentos. 2. Panem et circenses, Política de Pão e Circo, é uma expressão famosa na historiografia para designar a postura dos governos romanos em oferecer divertimentos (destacadamente os conhecidos combates de gladiadores) e alimentos em troca de apoio da população. 29 A decadência do Império Romano, a partir do século III da Era Cristã, com a crise do escravismo (sustentáculo da- quela sociedade) e a expansão do cris- tianismo dariam o golpe fatal nos jogos olímpicos. Além de verem as Olimpía- das como uma abominável festividade pagã, os cristãos condenavam sua essên- cia, pois acreditavam que o importante era a alma, não o corpo, tão exaltado nos jogos, conforme a tradição helênica. Durante o domínio do imperador Teodósio, em 380, com o Edito de Tes- salônica, o cristianismo foi adotado como religião oficial do Império Roma- no. Logo depois, em 393, por sugestão de Ambrósio, Bispo de Milão, o mesmo imperador Teodósio aboliu os jogos, em um esforço para acabar com to- das as celebrações pagãs. Apesar disso, houve resistência da população, sendo os jogos realizados extraoficialmente ainda por alguns anos (não se sabe exa- tamente quando as olimpíadas acaba- ram). Em 408, o imperador bizantino, Teodósio II, determinou a destruição dos templos de adoração de outros deuses. Com a proibição dos jogos, as pessoas deixaram de ir para Olímpia e o santuário foi abandonado às intem- péries. Os gregos se converteram igual- mente ao cristianismo, e deixaram de adorar seus antigos deuses. Isso contri- buiu também para o encerramento das Olimpíadas e dos outros jogos. Sabe- -se que no século V uma inundação do rio Alfeu alagou parte de Olímpia e ainda, no mesmo século, um incên- dio danificou a Estátua de Zeus e a estrutura de seu templo. Os restos da estátua acabaram sendo levados para Bizâncio (Constantinopla, capital do Império Bizantino, atual cidade turca de Istambul), onde houve uma tentati- va fracassada de reorganizar os jogos. Em Bizâncio, a estátua de Zeus foi mais uma vez incendiada. Sofrendo ataques de povos “bárbaros”, como visigodos e vândalos, por volta de 550, um terre- moto destruiu Olímpia. Aluviões co- meçaram a cobrir a área e Olímpia só seria descoberta pelos arqueólogos no século XIX. Era o fim dos Jogos Olím- picos da Antiguidade.■ Os chamadOs Jogos Olímpicos modernos surgem num momento de cresci- mento dos nacionalismos e das tensões entre as grandes potências europeias do século XIX.A preocupação com o corpo passou a fazer parte dos interesses dos Estados, fosse nas escolas, ou nos embates esportivos. Não por acaso, a primeira metade do século seria marcada com duas guerras mundiais. O esporte também era visto como forma de disciplinar os trabalhadores, mergulhados na Revolução Industrial. Um nobre nacionalista francês, barão de Coubertin, seria o grande ar- ticulador da criação das Olimpíadas e, conforme sua concepção de mundo, delas não poderiam participar pobres, mulheres e profissionais. As primeiras edições dos Jogos foram caracterizadas pelas desconfianças dos participantes e falta de melhor estrutura. Muitas vezes, passavam despercebidas ante outros eventos. Chegaram mesmo a servir de experiências cientificistas. A partir dos Jogos de 1908, em Londres, as disputas se estabilizaram, ganhando um padrão. 31 capítulo 2 “ O importante nessas olímpiadas é menos ganhá-las do que participar nelas. O importante na vida não é o triunfo, mas o combate” Pierre de Coubertin, em discurso no Banquete Olímpico. 2.1 O CONtEXtO Em 1829, após sete anos de sangrenta guerra, a Grécia, cristã- -ortodoxa, conseguiu se tornar independente do Império Turco- -Otomano, decadente potência islâmica senhora de amplos terri- tórios no norte da África, sudeste da Europa e Oriente Médio. A guerra de independência da Grécia atraiu simpatia de boa parte da sociedade europeia, a qual via no conflito a luta pela liberdade da pátria tida como “berço da civilização ocidental”. Mesmo livre, a Grécia continuou a ter no Império Turco uma ameaça cons- tante. Na intenção de ampliar os laços com o Ocidente e forta- lecer a identidade nacional, associando-a à antiga civilização helênica, o governo grego permitia e apoiava a visita de inúmeros arqueólogos ao país para pesquisas, estudos e escavações. Assim, foram feitas inúmeras descobertas, entre as quais, as do antigo santuário de Olímpia, em 1852. Tal desco- berta permitiu desvendar vários acontecimentos relacionados aos Jogos Olímpicos da Antiguidade. Aumentou ainda mais na intelectualidade euro- peia a fascinação pela cultura helênica. Não foi coin- cidência o fato de os governantes gregos começarem a propor a “reativação” dos Jogos Olímpicos nesse período. Apesar de terem sido realizadas algumas O nascimento dos Jogos Olímpicos Modernos “A guerra de independência da Grécia atraiu simpatia de boa parte da sociedade europeia, a qual via no conflito a luta pela liberdade da pátria tida como berço da civilização ocidental” 32 competições apenas com cidadãos gre- gos, na segunda metade do século XIX, a ideia não foi adiante, por falta de recur- sos financeiros. Em 1894, um professor apaixonado por História, o barão francês, Pierre de Coubertin, igualmente defen- deu a ideia de “retomada” das Olimpía- das. Em 1896, a mesma Grécia realizaria a primeira edição do que ficou conhecido como os Jogos Olímpicos Modernos. Para compreender o “renascimento” das Olimpíadas faz-se necessário enten- der a rica conjuntura histórica europeia dos séculos XVIII e XIX, marcada por mudanças políticas, econômicas e sociais. O capitalismo consolidou-se com a Revo- lução Industrial. As ideias liberais e ilumi- nistas fundamentaram ideologicamente a ascensão da burguesia, como deu-se na Revolução Francesa de 1789. O naciona- lismo se expandiu e verificou-se a forma- ção de Estados nacionais, a exemplo do alemão, unificado por meio de guerras. Cresceram também as disputas entre as nações europeias por mercados e territó- rios coloniais na África e Ásia, o que era feito sob discursos cientificistas e racistas, da superioridade do branco europeu so- bre os africanos ameríndios e asiáticos. A cultura europeia, sobremaneira da França e da Inglaterra, expandiu-se pelo mundo ainda mais – autores chamariam o final do século XIX e início do século XX de belle époque, um período de otimismo e de supremacia mundial do capitalismo europeu. Apesar da prosperidade, havia tensões políticas e os antagonismos entre as potências europeias levariam à I Guer- ra Mundial (1914-18). Foi no século XIX que efetivamen- te estruturaram-se melhor na Europa os sistemas educacionais nacionais, que, por sua vez, deram atenção à “educação do fí- sico”. Se chocariam, então, dois modelos, o sistema ginástico, do continente, e o do movimento esportivo, da Inglaterra. Gi- nástica e esporte se diferenciavam tanto por seus meios como pelos fins. Semelhante à Grécia antiga, os sis- temas ginásticos modernos teriam sua origem ligada à educação, com tendên- cias funcionalista e racionalista, na me- dida em que buscavam responder a uma demanda advinda da defesa dos Estados nacionais. Países como Alemanha, Fran- ça, Suécia e Dinamarca foram o berço de movimentos ginásticos vinculados a pro- cessos de afirmação da nacionalidade, cuja preocupação maior era a preparação para a guerra e a defesa do Estado (RU- BIO, 2002: 134). Na Prússia, por exemplo, Estado que lideraria a unificação da Alemanha, Friedrich Ludwig Jahn foi mentor de um método de educação nacional, no qual a Educação Física, com a ginástica clássi- ca (turn), tinha um papel fundamental, na medida em que favorecia uma vida ativa e saudável, além de tornar os ho- mens capazes de combater o inimigo e o invasor. “Principalmente em Berlim, mas em vários outros locais da Alemanha, os parques públicos, clubes, fábricas e escolas tinham suas associações de turn (...). Tra- tava-se de uma prática coletiva, profun- damente hierarquizada e buscando ideias estéticos de harmonia e disciplina” (SILVA, 2006: 17). Era uma prática bem mais co- 33 letiva, massiva e menos competitiva que a do esporte. A ginástica se colocava como o instrumento capaz de criar indivíduos fortes, saudáveis e livres de vícios, porque preocupados com a saúde física e moral, e bons soldados, pois a ameaça de guerra estava sempre presente. Na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, grande potencia capitalista do século XIX e começo do século XX, a questão da “educação do físico” foi singu- lar em relação aos países continentais da Europa. A ênfase não foi no campo da gi- nástica, mas do esporte. Não deixava, po- rém, de haver também interesses outros nessas práticas esportivas. Nas escolas e universidades inglesas, onde estudavam os filhos da nobreza e da burguesia em as- censão, havia já toda uma gama de jogos e competições físicas, a exemplo do arco e flecha, esgrima, tiro e caça. Tais práticas eram vistas como maneiras de controlar o tempo livre e os impulsos da juventude, preparando as futuras lideranças do vasto império colonial britânico, propagando valores como virilidade, disciplina, com- panheirismo, honra, boa conduta, hones- tidade e cavalheirismo, dentre outros. Os alunos das public schools se apropriaram e buscaram sistematizar com regras jo- gos populares, como os praticados com bolas (redondas ou ovais), cujas origens remontavam à Idade Média, de grande deleite para a massa, apesar de violentos, perseguidos e depreciados pelas autori- dades. Desses jogos nasceriam o football association e o rugby. Com a padronização de regras uni- versais e a submissão e controle de enti- dades responsáveis pelo seu cumprimen- to e administração das competições entre as equipes, os jogos viraram esportes. Pa- ralelamente, em meio às lutas e conquis- tas dos trabalhadores por jornadas de tra- balho reduzidas e de um tempo maior de descanso e lazer, o esporte também se ex- pandiu entre a massa. Deu-se, então, uma grande proliferação de clubes populares, com destaque para o futebol, a ponto de o historiador inglês Eric Hobsbawm di- zer que a modalidade virou uma espécie de “religião leiga” para os ingleses de ori- gem operária. Os ingleses teriam grande importância na propagação internacional dos esportes. Embaixadores, administra- dores coloniais, missionários, comercian- tes, marinheiros e colonos encarregaram- -se de difundir os esportes ingleses pelo mundo,onde o Império Britânico apre- sentava interesses econômicos ou políti- cos. “Muitas das modalidades esportivas praticadas na contemporaneidade tiveram origem na Inglaterra nos séculos de XVIII e XIX e de lá, juntamente com o imperia- lismo britânico, se propagaram para outros países, principalmente no final do sécu- lo XIX e primeiras décadas do século XX (OLIVEIRA, 2012: 42). Afora isso, havia ainda questões ra- ciais, tratadas à época como verdades cientificas, estimulando a “educação do físico”. A eugenia foi uma corrente de pensamento que dominou os círculos ocidentais de poder no final do século XIX e começo do século XX. Os euge- nistas apropriaram de alguns pontos da teoria defendida por Charles Darwin so- bre o evolucionismo e a seleção natural, 34 enfatizando a necessidade de aperfeiçoar as raças, pois apenas os mais aptos e ca- pazes sobreviveriam, devendo haver o de- saparecimento dos mais fracos – viam os brancos como superiores, racial e intelec- tualmente. Buscava explicar as diferenças sociais, o racismo e a dominação colonial europeia com um discurso pseudocien- tificio. A eugenia tinha muitos seguido- res nos Estados Unidos, na Alemanha (o pensamento nazista tem fundamento eu- genista) e no Brasil. Acreditavam os euge- nistas que a ginástica e o esportes seriam formas de aprimorar a raça. Não se pode esquecer que, na Socie- dade Industrial, o trabalho tornara-se mecânico e desumanizado. Instrumen- tos e máquinas coisificaram o homem. A divisão do trabalho, essencial para a maior produtividade, impõe movimen- tos repetitivos. O trabalhador deixa de ser o dono de seu trabalho para tornar-se apenas uma peça substituível do proces- so produtivo. O tempo de não-trabalho, a despeito dos impressionantes avanços tecnológicos ocorridos, diminuiu. Essa mecanização do homem seria magistra- mente enfocada e criticada por Charles Chaplin no filme Tempos Modernos. O esporte moderno se desenvolveu paralelamente ao processo de industriali- zação herdando dele a racionalização, sis- tematização e a orientação ao resultado. A burguesia industrial inglesa usou habil- mente os princípios educativos do esporte para desenvolver junto à classe proletá- ria valores como disciplina, hierarquia, rendimento. Assim, a regulamentação da prática esportiva dos trabalhadores atendeu aos interesses de doutrinação da burguesia, sob o pretexto da higienização e consequentemente da melhora da saúde (SIGOLI, DE ROSE, 2004: 111). A Revolução Industrial, o uso de má- quinas e a necessidade de “movimentar” o corpo e evitar o sedentarismo e proble- mas de saúde; os interesses em disciplinar os trabalhadores; melhorar a “raça” con- forme os ideais da eugenia; a importân- cia da boa condição física para defesa da pátria e/ou manter as conquistas territo- riais e interesses econômicos e políticos. Foi nessas condições, portanto, que se fo- mentaria o movimento que veio a criar os Jogos Olímpicos da Era Moderna. 2.2 O SENhOR dOS ANéIS Em rigOr, não é correto afirmar que os atuais jogos olímpicos sejam uma continuidade ou um “renascimen- to” de competições atléticas que exis- tiam na Antiguidade. Como vimos no capítulo anterior, os Jogos Olímpicos da Grécia antiga apresentavam carac- terísticas próprias e se desenvolveram em condições históricas específicas (eram festivais religiosos, aconteciam apenas em Olímpia, só envolvia os gre- gos, etc.). “(...) As Olimpíadas Modernas nasceram sem vínculo religioso, idealiza- da por Pierre de Coubertin, seguidor da teoria darwinista, e que teve início na Inglaterra logo após a Revolução Indus- trial, surgindo como um evento laico e sem nenhuma relação com a divindade” (HELAL, 1990, p. 35). Ainda se podem 35 estabelecer outras caracterís- ticas típicas do esporte mo- derno: igualdade (todos são aceitos nos jogos), especia- lização (atletas dedicam-se a uma única atividade esporti- va), racionalização (adoção de regras específicas e o uso de equipamentos tecnológi- cos), burocracia (organização institucional que estabelece e decide as regras e fiscaliza os jogos), quantificação (um mundo de números que é extremamente enfatizado e men- surável no esporte moderno) e busca pela quebra de recordes (a superação do superado). Tais características não eram encontradas nos “esportes primitivos”. O movimento olímpico moderno, inspirado no modelo grego, nasceu com a preocupação de universalizar o espor- te e harmonizar povos, numa conjuntu- ra em que as tensões políticas já aflora- vam na Europa, o que, posteriormente, levaria à I Guerra Mundial (1914-18). (...) O estabelecimento do Movimento Olímpico nos idos de 1894 coincide com a criação e proliferação de um amplo espectro de organizações de cunho inter- nacionalista, cujo principal objetivo era a promoção da paz. Isso porque, embo- ra durante o século XIX tivesse ocorrido um grande desenvolvimento das ciências humanas e da produção de ideias, os conflitos ainda eram resolvidos de forma brutal por meio da guerra. As organiza- ções internacionalistas buscavam a reso- lução de conflitos, tanto de ordem inter- na como externa, pelo uso da razão e das leis, e não pelas armas. Dentro dessa lógica a competição esportiva era uma forma racionalizada de conflito, sem o uso da violência (RUBIO, 2011: 83). O grande exponencial desse movimento, inicialmen- te seria o francês Charles Fre- ddye Pierre, posteriormente conhecido pelo título nobiliárquico de barão de Coubertin. Educador e histo- riador, Coubertin se empenhou na orga- nização dos Jogos Olímpicos, objetivan- do valorizar os aspectos pedagógicos do esporte, com efeitos educativos, morais e sociais sobre indivíduos e sociedades, muito mais do que em exaltar a con- quista de marcas e quebra de recordes. É daí que viria a máxima “importante é competir”, repetida constantemente pelo barão –, embora o mote tenha sido, na verdade, criado em 1908 pelo bispo da Pensilvânia, Ethelbert Talbot, num ser- mão para os atletas norte-americanos que participariam da Olimpíada de Lon- dres (o barão, por sinal, sempre atribuiu o crédito da frase ao bispo). A preocupação de Coubertin era va- lorizar a competição leal e sadia, o culto ao corpo e à atividade física, reflexo de sua concepção humanista. Inspirado nos jogos da Grécia helênica e no modelo educativo das escolas públicas britâni- cas, esse aristocrata francês via o esporte como um fator indireto para o equilíbrio entre as qualidades físicas e intelectuais – mens sana in corpore sano (mente sã Barão Pierre de Coubertin, o “pai” dos Jogos Olímpicos modernos 36 em corpo são) –, e assegurar a paz uni- versal (RUBIO, 2002: 137). Não se pode deixar de observar, po- rém, que Coubertin também buscou “renovar” os antigos Jogos Olímpicos na intenção de colaborar com o desen- volvimento da força nacional francesa e sua expansão colonial. O jovem barão era um patriota, bastante preocupado com a situação de seu país. Para ele, a França do final do século XIX estava en- fraquecida pelas disputas políticas inter- nas e derrotas militares – como ocorreu em 1872, na Guerra Franco-Prussiana (conflito que culminou na a formação do Estado alemão), quando os germâni- cos humilharam os franceses, que per- deram parte das províncias de Alsácia e Lorena e tiveram que pagar uma pesada indenização ao vencedor. Coubertin desejava “arrancar os jovens indolentes dos bares e torná-los pessoas de caráter e fisicamente em forma”. O ideal seria um equilíbrio entre treino corporal e formação intelectual. Para concretizar suas ideias, Coubertin criou um Comi- tê de Propagação dos Exercícios Físicos na Educação. O futuro da França esta- va em jogo e os esportes –, e os Jogos Olímpicos –, teriam sua importância na “redenção nacional”. Nascido em Paris, no ano de 1863, Coubertin herdou do pai o título de barão e uma enorme fortuna. Dinâmico, desde cedo se interessou pelo esporte, pratican- do equitação, remo, esgrima, tênis enata- ção durante a adolescência – entretanto, não seria um atleta quando adulto. Estu- dara na Academia de Saint Cyr, o colégio militar de Paris, mas ao em vez de se tor- nar um militar, como desejava o pai e era tradição na família, se tornou um educa- dor, historiador. Um humanista. Encarregado pelo governo da Fran- ça de formular um projeto de educação escolar para o país, Coubertin viajou por várias nações, em busca de novas ideias e modelos a serem usados. Em 1883, Pierre esteve na Inglaterra e ficou entu- siasmado com o lugar de destaque que o esporte ocupava no sistema educacional britânico. Em 1889, partiu para os Esta- dos Unidos, então uma jovem potência capitalista em ascensão – queria conhe- cer o emergente modelo educacional norte-americano. Em quatro meses visi- tou escolas e universidades de Chicago, New York, New Orleans, entre outras cidades. O fascínio pelo esporte e a moti- vação pelo que vira nas viagens estimula- ram-no na ideia de pretender a “restaura- ção” do mais fascinante festival esportivo da História, os Jogos Olímpicos. De volta à França, o barão empe- nhou-se em promover as práticas es- portivas nas escolas. Em 1891, assu- miu a direção da União das Sociedades Francesas de Esportes Atléticos. No ano seguinte, palestrando na Sorbonne, Coubertin concluiu o discurso sobre os exercícios e os tempos modernos com o surpreendente anúncio de sua intenção de restabelecer os Jogos Olímpicos. No objetivo de obter apoio internacional, viajou no ano seguinte novamente aos Estados Unidos e Inglaterra, mas não conseguiu despertar muito entusias- mo. Coubertin não desistiu. Em junho 37 de 1894, num congresso internacional para discutir os princípios do amado- rismo, o barão induziu os representan- tes de 12 países a discutir a renovação dos Jogos Olímpicos. Tão marcante e entusiasmada foi a discussão que aca- bou sendo aprovada por todos a pro- posta de “recriar” os Jogos Olímpicos. Coubertin não se iludiu com a re- ceptividade de seus interlocutores que encobria a falta de compreensão da im- portância do evento sobre o qual esta- vam discutindo, deliberando e recriando. Chegou a escrever em suas memórias ‘a plateia aplaudiu e aprovou a proposta, me desejou sucesso, no entanto ninguém compreendeu nada. Era uma incompre- ensão geral e duraria um longo tempo (RUBIO, 2010: 58). A ideia inicial de Coubertin era re- alizar os jogos na capital francesa em 1900, como parte das comemorações da virada do século. A “reativação” da competição foi calorosamente recebida pela aristocracia grega, pois enquadra- va-se, como vimos, em sua estratégia de firmação da identidade nacional (vinculando-a à antiga civilização helê- nica) e de aproximação com o Ocidente – o príncipe grego, Constantino, com a anuência do rei George I, imediatamen- te endossou o evento. Foi tão bem acei- ta a proposta que a competição acabou sendo antecipada para 1896, com reali- zação na Grécia, como uma deferência aos criadores dos jogos originais e pelo apoio que o governo grego se dispôs a dar (o que, como se verá, não evitou problemas financeiros.) 2.3 AMAdORISMO E FAIRpLAy Os JOgOs Olímpicos, concebidos como disputa entre representações atléticas de Estados nacionais, exigiam a criação de uma instituição que nor- matizasse a participação de atletas e escolhesse as modalidades disputadas, muitas delas, não custa lembrar, recém- -criadas e sem um corpo de regras ain- da claramente consolidado. Assim, em 1894, surgiu o COI – Comitê Olímpico Internacional –, com representantes de vários países. O primeiro presidente seria o poeta grego Dimitrios Bikelas, com Coubertin assumindo a secretaria geral da instituição. Após as Olimpía- das gregas, Coubertin passou a ser seu presidente até 1925. Ainda hoje, o COI controla todo o mundo olímpico. Foi estabelecido, e continua em vi- gor em nossos dias, que os membros do COI seriam indicados pela própria enti- dade, sendo considerados embaixadores dos ideais olímpicos em seus países e não delegados desses países junto ao Comitê. Tal medida, que, se por um lado, era an- tidemocrática, por outro, visava, em tese, garantir a independência da organização e evitar interferências políticas dos gover- nantes. Coubertin pressupunha a “neu- tralidade” do campo esportivo, defenden- do a independência dos Jogos em relação a governos nacionais. O COI historica- mente teria uma estrutura conservado- ra, liderada por um corpo autoelegível, composta esmagadoramente por homens 38 (apenas a partir de 1981 poucas mulhe- res começaram a fazer parte da entidade), ricos ou vindos de famílias tradicionais e poderosas. A entidade se propunha inter- nacional, apolítica e apartidária, apresen- tando como missão a organização dos Jo- gos Olímpicos bem como a normatização das modalidades disputadas. Os Jogos Olímpicos seriam regidos por princípios contidos na Carta Olím- pica, valores que ainda fundamentam o Movimento Olímpico na atualidade. O conceito fundamental nº 2 da Carta define o Olimpismo como uma filosofia de vida que exalta e combina em equi- líbrio as qualidades do corpo, espírito e mente, combinando esporte com cultura e educação. O Olimpismo visa criar um estilo de vida baseado no prazer encon- trado no esforço, no valor educacional do bom exemplo e no respeito aos princípios éticos fundamentais universais (apud RUBIO, 2002: 138). Os ideais mais arduamente defendi- dos pelo olimpismo ao longo do tempo foram o amadorismo e o fairplay. Tais valores, vistos aparentemente hoje como “puros e idealistas”, devem ser entendi- do melhor observando-se a conjuntura histórica da criação dos Jogos. Não eram tão nobres assim – havia um viés classis- ta e de forte preconceito. Vinculavam-se aos interesses de aristocratas e burgue- ses, de afastar os setores sociais menos abastados. Para os grupos dominantes, o esporte era visto como uma prática refinada, um sinal de distinção e de boa condição econômica. Deveria ser reser- vado a quem pudesse praticá-lo inte- gralmente, sem nenhum outro interesse. Não lhes interessava que trabalhadores, pobres e outros estratos sociais distor- cessem esses valores. Os clubes de remo mais fechados da Inglaterra, por exem- plo, não aceitavam em hipótese alguma em suas competições “operários braçais ou assalariados”. Os Jogos Olímpicos seriam dispu- tados apenas por amadores e o espetá- culo do esporte moderno deveria ser patrimônio das classes aristocrata e bur- guesa. O financiamento dos Jogos pelas elites, através do patrocínio de alguns aristocratas e da arrecadação da venda de ingressos, garantiria, acreditavam, a independência política e econômica do evento em relação aos Estados. Barão de Coubertin, sutilmente queria, de fato, manter o esporte ligado a um ideal aris- tocrático, a partir do discurso do ama- dorismo, mas também associar a prática esportiva com à ideologia do liberalismo, por meio do modelo burguês de educa- ção, valorizando a igualdade de oportu- nidades (PRONI, 2004, p. 03). Seria inaceitável que alguém recebes- se dinheiro para praticar uma atividade esportiva – constitur-se-ia na negação do ideal cavalheiresco. O atleta deveria ser detentor de posses o suficiente para dispor de todo o tempo e meios neces- sários ao treino e à prática da modalida- de esportiva, sem depender de nenhum ganho relacionado à atividade. Qualquer pessoa que tivesse trabalhado recebendo remuneração até o momento da compe- tição não poderia participar, enquanto competidor, dos Jogos Olímpicos. Dessa 39 forma, os pobres ficavam excluídos do mundo esportivo olímpico. Os inventores do amadorismo queriam, em primeiro lu- gar, afastar da arena os trabalhadores. O esporte estava reservado a quem pudesse se dedicar a ele em tempo integral e desin- teressadamente, enquanto o comum dos mortais suava para garantir o pão de cada dia. Este era o motivo oculto. Abertamen- te se temia que o dinheiro transformasse a competição
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