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1 Caro aluno Ao elaborar o seu material inovador, completo e moderno, o Hexag considerou como principal diferencial sua exclusiva metodologia em pe- ríodo integral, com aulas e Estudo Orientado (E.O.), e seu plantão de dúvidas personalizado. O material didático é composto por 6 cadernos de aula e 107 livros, totalizando uma coleção com 113 exemplares. O conteúdo dos livros é organizado por aulas temáticas. Cada assunto contém uma rica teoria que contempla, de forma objetiva e transversal, as reais necessidades dos alunos, dispensando qualquer tipo de material alternativo complementar. Para melhorar a aprendizagem, as aulas possuem seções específicas com determinadas finalidades. A seguir, apresentamos cada seção: No decorrer das teorias apresentadas, oferecemos uma cuidadosa seleção de conteúdos multimídia para complementar o repertório do aluno, apresentada em boxes para facilitar a compreensão, com indicação de vídeos, sites, filmes, músicas, livros, etc. Tudo isso é en- contrado em subcategorias que facilitam o aprofundamento nos temas estudados – há obras de arte, poemas, imagens, artigos e até sugestões de aplicativos que facilitam os estudos, com conteúdos essenciais para ampliar as habilidades de análise e reflexão crítica, em uma seleção realizada com finos critérios para apurar ainda mais o conhecimento do nosso aluno. multimídia Um dos grandes problemas do conhecimento acadêmico é o seu distanciamento da realidade cotidiana, o que dificulta a compreensão de determinados conceitos e impede o aprofundamento nos temas para além da superficial memorização de fórmulas ou regras. Para evitar bloqueios na aprendizagem dos conteúdos, foi desenvolvida a seção “Vivenciando“. Como o próprio nome já aponta, há uma preocupação em levar aos nossos alunos a clareza das relações entre aquilo que eles aprendem e aquilo com que eles têm contato em seu dia a dia. vivenciando Sabendo que o Enem tem o objetivo de avaliar o desempenho ao fim da escolaridade básica, organizamos essa seção para que o aluno conheça as diversas habilidades e competências abordadas na prova. Os livros da “Coleção Vestibulares de Medicina” contêm, a cada aula, algumas dessas habilidades. No compilado “Áreas de Conhecimento do Enem” há modelos de exercícios que não são apenas resolvidos, mas também analisados de maneira expositiva e descritos passo a passo à luz das habilidades estudadas no dia. Esse recurso constrói para o estudante um roteiro para ajudá-lo a apurar as questões na prática, a identificá-las na prova e a resolvê- -las com tranquilidade. áreas de conhecimento do Enem Cada pessoa tem sua própria forma de aprendizado. Por isso, cria- mos para os nossos alunos o máximo de recursos para orientá-los em suas trajetórias. Um deles é o ”Diagrama de Ideias”, para aque- les que aprendem visualmente os conteúdos e processos por meio de esquemas cognitivos, mapas mentais e fluxogramas. Além disso, esse compilado é um resumo de todo o conteúdo da aula. Por meio dele, pode-se fazer uma rápida consulta aos principais conteúdos ensinados no dia, o que facilita a organiza- ção dos estudos e até a resolução dos exercícios. diagrama de ideias Atento às constantes mudanças dos grandes vestibulares, é ela- borada, a cada aula e sempre que possível, uma seção que trata de interdisciplinaridade. As questões dos vestibulares atuais não exigem mais dos candidatos apenas o puro conhecimento dos conteúdos de cada área, de cada disciplina. Atualmente há muitas perguntas interdisciplinares que abrangem conteúdos de diferentes áreas em uma mesma questão, como Bio- logia e Química, História e Geografia, Biologia e Matemática, entre outras. Nesse espaço, o aluno inicia o contato com essa realidade por meio de explicações que relacionam a aula do dia com aulas de outras disciplinas e conteúdos de outros livros, sempre utilizan- do temas da atualidade. Assim, o aluno consegue entender que cada disciplina não existe de forma isolada, mas faz parte de uma grande engrenagem no mundo em que ele vive. conexão entre disciplinas Herlan Fellini De forma simples, resumida e dinâmica, essa seção foi desenvol- vida para sinalizar os assuntos mais abordados no Enem e nos principais vestibulares voltados para o curso de Medicina em todo o território nacional. incidência do tema nas principais provas Todo o desenvolvimento dos conteúdos teóricos de cada coleção tem como principal objetivo apoiar o aluno na resolução das ques- tões propostas. Os textos dos livros são de fácil compreensão, com- pletos e organizados. Além disso, contam com imagens ilustrativas que complementam as explicações dadas em sala de aula. Qua- dros, mapas e organogramas, em cores nítidas, também são usados e compõem um conjunto abrangente de informações para o aluno que vai se dedicar à rotina intensa de estudos. teoria Essa seção foi desenvolvida com foco nas disciplinas que fazem parte das Ciências da Natureza e da Matemática. Nos compilados, deparamos-nos com modelos de exercícios resolvidos e comenta- dos, fazendo com que aquilo que pareça abstrato e de difícil com- preensão torne-se mais acessível e de bom entendimento aos olhos do aluno. Por meio dessas resoluções, é possível rever, a qualquer momento, as explicações dadas em sala de aula. aplicação do conteúdo 2 © Hexag Sistema de Ensino, 2018 Direitos desta edição: Hexag Sistema de Ensino, São Paulo, 2020 Todos os direitos reservados. Autor Lucas Limberti Diretor-geral Herlan Fellini Diretor editorial Pedro Tadeu Vader Batista Coordenador-geral Raphael de Souza Motta Responsabilidade editorial, programação visual, revisão e pesquisa iconográfica Hexag Sistema de Ensino Editoração eletrônica Arthur Tahan Miguel Torres Matheus Franco da Silveira Raphael de Souza Motta Raphael Campos Silva Projeto gráfico e capa Raphael Campos Silva Imagens Freepik (https://www.freepik.com) Shutterstock (https://www.shutterstock.com) ISBN: 978-65-88825-11-2 Todas as citações de textos contidas neste livro didático estão de acordo com a legislação, tendo por fim único e exclusivo o ensino. Caso exista algum texto a respeito do qual seja necessária a inclusão de informação adicional, ficamos à dis- posição para o contato pertinente. Do mesmo modo, fizemos todos os esforços para identificar e localizar os titulares dos direitos sobre as imagens publicadas e estamos à disposição para suprir eventual omissão de crédito em futuras edições. O material de publicidade e propaganda reproduzido nesta obra é usado apenas para fins didáticos, não repre- sentando qualquer tipo de recomendação de produtos ou empresas por parte do(s) autor(es) e da editora. 2020 Todos os direitos reservados para Hexag Sistema de Ensino. Rua Luís Góis, 853 – Mirandópolis – São Paulo – SP CEP: 04043-300 Telefone: (11) 3259-5005 www.hexag.com.br contato@hexag.com.br 3 SUMÁRIO ENTRE ASPAS ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS Obra 7: Campo geral – Guimarães Rosa 4 Obra 8: Mayombe – Pepetela 14 Obra 9: Nove noites – Bernardo Carvalho 25 Obra 10: Sonetos – Luís de Camões 31 Obra 11: Sermões de Quarta-feira de Cinza – Padre Antonio Vieira 45 Obra 12: O espelho – Machado de Assis 52 Obra 13: O Ateneu – Raul Pompeia 63 4 CAMPO GERAL GUIMARÃES ROSA OBRA 7 1. GUIMARÃES ROSA Guimarães Rosa nasceu em 1908, em Cordisburgo, no Es- tado de Minas Gerais. Ele é, sem dúvida, um dos maiores escritores da Literatura Brasileira. Formado em Medicina, cursou a Faculdade de Minas Gerais, formando-se em 1930. Datam dessa fase seus primeiros contos, publicados na revista O Cruzeiro. Atuou como diplomata e começou a publicar suas obras apenas após os 38 anos. No ano de 1932, época da Revolução Constitucionalista, retornou a Belo Horizonte para servir como médico voluntário da For- ça Pública. Posteriormente, atuou como oficial médico no 9º Batalhão de Infantaria, em Barbacena. Suas obras são ambientadas no sertão brasileiro, ao mes- mo tempo em que atravessam a fronteira do universal sobo princípio “O sertão é o mundo”. Seus textos destacam- -se pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência da oralidade, das gírias e marcas populares e regionais. Os neologismos, ou seja, a invenção de inúme- ros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras próprias dos nichos de fala do sertão, invenções e intervenções semân- ticas e sintáticas fizeram de sua literatura um fenômeno inédito e particular. Dominava diversos idiomas, era um poliglota; logo, no ano de 1934, foi para o Rio de Janeiro (RJ), onde prestou con- curso para o Itamarati, sendo admitido em convocação por ter alcançado o segundo lugar. Passou a ser cônsul-adjunto na cidade de Hamburgo, na Alemanha, em 1938. Durante a Segunda Guerra Mundial, Guimarães Rosa rompeu com a aliança com a Alemanha e foi preso em Baden-Baden, em 1942. Seguiu para Bogotá, conseguindo a liberdade no final do mesmo ano. Assumiu o cargo de secretário da Embaixada Brasileira. Entre 1946 e 1951, residiu em Paris, onde con- solidou sua carreira diplomática e passou a escrever com maior assiduidade. Faleceu em novembro de 1967, na cidade do Rio de Ja- neiro (RJ), logo após assumir a cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras por apenas três dias, já que atrasou a cerimônia de posse por quatro anos – tinha motivos místi- cos e maus pressentimentos para não assumir. Foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura por três vezes. 1.1. Contexto A obra Manuelzão e Miguilim foi publicada no ano de 1964, curiosamente um ano depois de Guimarães Rosa ter sido escolhido, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras. Todavia, ele tinha maus pressentimentos em relação a sua presença neste espaço e, segundo consta, carregava cer- to medo de se emocionar demais. Ele acabou tomando posse apenas depois de quatro anos. O mágico de tudo isso, aliás, fator fundamental em sua biografia e obra, é que, infelizmen- te, veio a falecer três dias depois da posse como “imortal”. Alguns autores parecem adquirir, mesmo que em processo de automitificação, uma espécie de áurea extra-humana. O 5 contexto de sua produção é a terceira fase do Modernismo, que se inicia a partir do ano de 1945. Uma fase madura desta escola literária, que contou com o processo de universaliza- ção do regionalismo, bem como o mergulho intimista nos personagens. Em Guimarães Rosa, fica claro esse estilo, que busca o mundo místico, mágico, simbólico, sincrético e uni- versalizante do ser do sertão. O autor Guimarães Rosa foi um dos principais representantes do Regionalismo brasileiro, especificidade da segunda gera- ção modernista que, nas mãos do autor, continua viva na da terceira fase do Modernismo. Com uma linguagem erudita e popular ao mesmo tempo, o escritor conseguiu inovar a literatura. Destaca-se por seus neologismos, ou seja, sua ha- bilidade de criar, inventar palavras, que eram reflexo de sua intensa pesquisa na fala popular. Ele seguia pelo sertão do norte de Minas Gerais, montado em seu cavalo, observando aquilo que mais lhe agradava – o homem e sua linguagem. Uma espécie de materialização humana daquilo que seria a trajetória ficcional do herói, uma espécie de Quixote pelos moinhos de vento na Espanha ou um Che Guevara com sua moto pelas “veredas” da América latina. Guimarães trocava seu conhecimento como médico para ajudar ao próximo, ao miserável necessitado de tudo em seu caminho. Em troca, não cobrava financeiramente nada, apenas tomava nota em sua caderneta das histórias do povo, suas crendices e essên- cias fundamentais. Dessa experiência surgem muitas de suas histórias maravilhosas, tão viscerais como sua experiência empírica no sertão brasileiro. 1.2. Aspectos históricos Após a Segunda Guerra Mundial (1945), Getúlio Vargas foi deposto e o Brasil voltou a respirar democracia. Uma Constituição (1946) estabeleceu novo pacto social. Houve liberdade de organização partidária, eleições diretas e se- cretas, mas a euforia democrática durou pouco: os ventos da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética atin- giram o Brasil. Voltaram as perseguições e a censura. Em 1951, Vargas voltou ao poder, via eleições diretas, e seu polêmico governo durou até 1954, ano em que se sui- cidou, propiciando um período de instabilidade política, até que Juscelino Kubitschek (1902-1976) assumiu o poder, no ano seguinte, e implantou uma política desenvolvimentista com crescimento industrial e urbano. Juscelino introduziu a indústria automobilística e impulsio- nou as indústrias de base. Marco-síntese da esperança e da modernização, instalou-se a capital do país em Brasília (1960), cidade projetada por Oscar Niemeyer e Lúcio Cos- ta. Com Brasília, tivemos uma das maiores realizações do Modernismo na arquitetura e no urbanismo. As imagens otimistas do futuro já eram mostradas pela televisão. Nas linhas arquitetônicas de Brasília, aparecia a perspectiva do futuro. Cresciam, entretanto, as tensões sociais: setores populares reivindicavam os benefícios da industrialização. Se, de um lado, o Brasil ingressou numa era desenvolvi- mentista, por outro, a urbanização trouxe consigo a subvi- da das favelas e a intensa imigração de nordestinos para o “sul maravilha”, em busca de oportunidades melhores de vida. O problema social é evidente, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas os sonhos de grandeza sobrepujam a situação: em 1960, mesmo ano da inauguração de Brasília, Jânio Quadros (1917-1992) foi eleito presidente com seis milhões de votos. 1.3. Características da obra ficcional de Guimarães Rosa Manejo da palavra e deslocamento da sintaxe: apresenta uma alteração profunda no manejo da palavra, que consiste, sobretudo, de um incomum deslocamento da sintaxe; no emprego de um vocabulário ora arcaico, ora neológico: na ousadia mórfica, que recria a linguagem. Reinvenção do sertão: questionando a linguagem da ficção e reunindo elementos linguísticos da própria realidade sertaneja, reinventa o sertão, chamando a atenção – em todas as obras, mas, principalmente, em 6 Grande sertão: veredas – para o fato de que “o ser- tão é o mundo”. Transforma, assim, esse território num espaço-metáfora, em que tudo pode acontecer. Transcendência do regionalismo: os elementos fol- clóricos pitorescos e meramente documentais, lugares- -comuns da maioria das obras regionalistas, ganhariam novos significados com Guimarães Rosa: o escritor lida com eles de uma forma inusitada, situando-se entre a realidade e a fantasia, localizando lugares e persona- gens em um plano mítico. Inserção de momentos de “epifania”: são histó- rias, historietas, eventos que “revelam” da personagem aspectos antes não percebidos. Temática universalizante: ao transformar o sertão no mundo, Guimarães Rosa torna-o universal, fazendo caber dentro dele todos os temas. Ao mesmo tempo, “o sertão é dentro da gente”, ou seja, é a interpretação que cada um de nós tem do mundo. 2. CAMPO GERAL “Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo...” Manuelzão e Miguilim, obra composta pelas novelas Cam- po geral e Uma estória de amor, revela toda a genialidade de Guimarães Rosa na construção de enredos e no trabalho com a linguagem. De fato, os dois textos, denominados por ele “poemas”, combinam com maestria a oralidade do in- terior com temas filosóficos universais, como o crescimento. A Fuvest 2021 escolheu Campo geral para sua lista de obras, que narra a história da família e da vida de Miguilim, no interior do sertão mineiro (Mutum). O menino experi- menta diversas situações típicas da infância, os medos, as brincadeiras. Porém, é uma experiência específica que vai se tornar decisiva para o seu amadurecimento: a morte de Dito, seu irmão mais novo. Miguilim é levado para trabalhar com o pai, pouco tempo depois do trágico acontecimento. Miguilim adoece e chega mesmo a acreditar que vai mor- rer pouco tempo depois do acontecido,entretanto, a di- mensão trágica do enredo se acirra e intensifica o lugar problemático que a reflexão psicológica se estabelece. Uma tragédia com outro familiar interrompe a efusividade que essas reflexões ganham no enredo. O pai de Miguilim, Bernardo, mata um vaqueiro e, em seguida, se suicida. Em função disso, o tio Terez se casa com a mãe do menino. Com o restabelecimento de Miguilim, surge um novo per- sonagem: o médico. Doutor Lourenço desempenha um papel fundamental em sua formação, pois descobre sua miopia e lhe fornece seu primeiro óculos. A novela (nome dado ao gênero que Campo geral ocupa) tem fim quando Miguilim larga a casa em que viveu toda a vida e vai estu- dar na cidade. 2.1. Temas e principais conflitos Em Campo geral o protagonista não é o narrador, toda- via, os fatos são apresentados de acordo com sua visão de mundo. A intenção do escritor Guimarães Rosa era criar um universo ficcional a partir da percepção de um menino em seu processo de crescimento. Além disso, trata-se também de uma história de aprendizagem, uma vez que se percebe o processo de amadurecimento do garoto Miguilim. A dura vida no sertão, o cotidiano familiar, as amizades e a necessidade de encarar os desafios que a condição hu- mana se constitui se estabelecem como elementos centrais em Campo geral. Os temas fundamentais são a infância, o amor e a amizade, a violência e a fé. Miguilim, como criança que era, é revelado como uma criatura em que a hipocrisia e a maldade ainda não tomaram conta, não se constituíram em suas raízes profundas. Dito é sábio, e Miguilim, seu irmão, é o aprendiz. Nes- ta chave analítica convém pensar que a morte prematura 7 de Dito pode ser vista como um pressuposto de caráter existencial fundamental para levar Miguilim a crescer e se tornar independente e mais maduro. A visão de mundo de Miguilim é especial, não só por sua miopia, que o faz enxergar e compreender com a imagina- ção e com a poesia, mas também pela sua visão infantil que fornece horizontes ilógicos, plenos e primitivos. Ele é capaz de enxergar coisas que os adultos não veem. A miopia de Miguilim carrega um interessante jogo de du- plicidade, uma vez que lhe permite ver as coisas, mesmo que diminutas, sob a égide do inédito, do lugar mito poé- tico peculiar daqueles que não portam o comportamento e olhar padronizado e homogeneizado pelos princípios da sociedade em geral. O personagem Miguilim não via o mundo e a vida da mes- ma maneira que os adultos. Ele, no mínimo, questionava as ações cruéis dos adultos. Segundo Guimarães Rosa, “gostava de brincar de pensar” (p. 22); “tinha nojo das pessoas grandes” (p. 48); “não tinha vontade de crescer, de ser pessoa grande, a conversa das pessoas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas” (p. 52) e não compreen- dia a crueldade do mundo – tanto dos homens quanto dos animais “por que era que um bicho ou uma pessoa não pagavam sempre amor-com-amor, de amizade de outro?” (p. 91). Em Campo geral, é um olhar assustado e ingênuo, admi- rado e espantado, que observa as paisagens do sertão. Se Miguilim vincula-se em seu íntimo à natureza, logo busca captar com seus olhos (pequeninos) a sua imagem, bem como a do mundo e da paisagem que ele e admira sempre muito curioso. Os olhos de Miguilim são o meio fundamen- tal de sua religação com o mundo. Como de costume, esta é, sob a lógica roseana, a sua “travessia”. A força simbólica no processo de aprendizagem da criança e de sua perspectiva de visão infantil encaminha a dimen- são narrativa da “viagem” nessa obra, no contato virgem de Miguilim com o mundo e as paisagens do sertão. O inédito e a percepção do inesperado em Campo geral di- tam os percursos a serem seguidos pelos olhos igualmente virgens de seu leitor, como se fosse um viajante em suas inéditas incursões pelo mundo. A construção arquitetônica de Guimarães Rosa é investida a fim de perpetuar um pers- pectivismo narrativo híbrido e cativante, já que em Campo geral o narrador veste máscaras servindo como um media- dor de seus personagens. 2.2. Foco narrativo Campo geral possui o foco narrativo em terceira pessoa, com um narrador que não participa ativamente dos acon- tecimentos narrados, ou seja, uma caracterização estética em que o mesmo passa a ser apenas uma testemunha daquilo que narra, não só observando os fatos, mas tam- bém fazendo um mergulho na geografia íntima dos seus personagens revelando sua interioridade. Em Campo geral, vemos a habilidade de Rosa para recriar o mundo captado pela perspectiva de uma criança. Com Miguilim, menino de oito anos que protagoniza esta novela, não é diferente. Contudo, a visão de mundo repleta de sensibilidade que vinca a personalidade da criança transforma o conjunto de situações que ela experimenta num redemoinho sem precedentes de sensações. Toda a narrativa é filtrada uni- camente pelo ponto de vista de Miguilim e, por essa razão, o mundo infantil é organizado a partir das vivências de um menino sensível, delicado, inteligente, empenhado em compreender as pessoas e as coisas. “Não gosto de falar de infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodan- do a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recor- dando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia. Gosta- va de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento com a segurança de poder fe- char-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.” As outras personagens – mãe, pai, irmãos, tio, avó e todos que vivem e passam pelo Mutum – aparecem misturadas às emoções e às reflexões do personagem central. Sua narrativa é profundamente lírica, que traduz a habi- lidade de Guimarães Rosa para recriar o mundo captado pela perspectiva de uma criança. Se a infância aparece com frequência nos textos roseanos, sempre ligada à magia de um mundo em que a sensibilidade, a emoção e o poder das palavras compõem um universo próximo ao dos poetas e dos loucos, é em Miguilim, nome com que passou a ser co- nhecida a novela, que essa temática encontra um de seus momentos mais brilhantes e comoventes. É uma espécie de biografia de infância, que alguns críticos afirmam ter muito de autobiográfico. Apesar de a novela ser escrita em terceira pessoa por um narrador onisciente, a história é narrada pelo ponto de vista do protagonista Miguilim e seu núcleo familiar, que, se de um lado, procura manter-se como observador dos acontecimentos, por ou- 8 tro, aproxima-se e destaca a figura do menino Miguilim, em uma postura de empatia tão marcante que, por vezes, o discurso de ambos termina por se confundir. No processo criador e narrativo de Guimarães Rosa, predo- mina a oralidade. Desta maneira, a composição da história se concretiza lenta e coerentemente, como se nascesse a partir das vivências de um menino sensível, delicado, inteli- gente, empenhado em compreender as pessoas e as coisas. “Agora era o dia derradeiro. Hoje, ele devia de morrer ou não morrer. Nem ia levantar da cama. De manhã, ele já chuviscara um chorozinho, o travesseiro estava molhado. Morria, ninguém não sentia que não tinha mais o Miguilim. Morria, como arteirice de menino mau?” 2.2.1. Discurso O discurso adotado por Guimarães Rosa é o indireto livre, em que o narrado e o fluxo da consciência se misturam; logo, realidade e fantasia caminham juntas revelando um universo infantil repleto de magia e lirismo. O que, segundo os princípios roseanos de escrita, vai adquirindo no decor- rer da história uma dimensão mítica e poética do sertão. 2.2.2. Narrativasinteriorizadas: fluxo da consciência Uma das marcas mais flagrantes da ficção experimental é a interiorização do narrar – o chamado fluxo da consciência. Geralmente, as narrativas são centradas em momentos de vivência interior dos personagens. Acontecimentos exterio- res provocaram a interiorização. 2.2.3. Linguagem A linguagem, em Guimarães Rosa, é sempre um destaque à parte que deve ser levado em consideração com a maior atenção por qualquer vestibulando que queira enfrentar com seriedade as questões relativas a este aspecto. As nar- rativas têm por característica a forte presença da oralidade, desenvolvida, porém, em um universo que também dialoga com a alta cultura, a fusão entre elementos da linguagem popular e regionalista com a norma culta, arcaísmos, rit- mos e neologismos, que garantem a grande beleza e plas- ticidade. O manejo e o malabarismo com as palavras fazem de Guimarães Rosa um dos escritores de Língua Portugue- sa que mais bem trabalhou o idioma na ficção. Ele realizou uma verdadeira alquimia verbal ao fundir na palavra sua experiência pessoal à experiência coletiva. Alguns pontos importantes, especificamente na obra Campo geral: O mundo onírico sob a óptica de uma criança de oito anos, a recriação do universo infantil Humanização de seres da natureza Exploração da intensidade dos diminutivos Intensidade emotiva Evocação do cotidiano Experiência com o sagrado (doença, medo da morte) Prosa poética (junção de poesia com prosa): ritmos, so- noridades atravessam a narrativa Renovação da tendência regionalista assumindo de ex- periência estética universal Fusão entre o real e o mágico, numa tentativa de jus- tificar a existência humana, apresentando o homem dividido entre bem × mal, sagrado × profano, aproxi- mando-o do estilo Barroco. Neologismos: popular; erudito; arcaísmos; aliterações e as- sonâncias; onomatopeias; rimas internas; metáforas, aná- foras e metonímias; musicalidade; melopeia; repetições binárias ou ternárias; prosopopeias; antíteses e paradoxos; trocadilhos; provérbios; excesso de pontuação; aglutina- ção de palavras; derivação imprópria; estrangeirismo. 2.3. Tempo A temporalidade psicológica é mais importante que a cro- nológica. Há um predomínio do tempo psicológico, com o narrador captando o fluxo agitado dos pensamentos do menino Miguilim. Há um tempo que não passa, mas não há a preocupação de datá-lo com precisão. Mais importan- te que o tempo é o espaço e as pessoas, com seus senti- mentos e relações problemáticas. A marcação do tempo na narrativa é imprecisa, é possível calcular cerca de dois anos, considerando-se alguns regis- tros do ciclo da natureza que aparecem na narrativa como é o caso das chuvas, por exemplo. Mas o que predomina é o tempo psicológico, o caleidoscópio dos pensamentos de Miguilim que vão sendo anotados numa espécie de diário da infância, todavia se ressignificando a cada nova expe- riência e enfrentamento de mundo e de seus problemas. 9 2.4. Espaço CARTAZ DO FILME “MUTUM” INSPIRADO NA OBRA CAMPO GERAL, DE GUIMARÃES ROSA “É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...” O sertão de Minas Gerais é o espaço primordial da pro- dução roseana, especificamente a cidade de Mutum, um lugar cercado por um relevo relativamente alto, o que o torna “isolado” do resto do mundo. “Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do- -Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutum. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, ter- ra preta, pé de serra.” O topônimo Mutum se deve à abundância do pássaro que carrega esse nome na região, na época da fundação da ci- dade. Mutum é a designação comum às aves galiformes da família dos cracídeos, florestais, dos gêneros Crax e Mitu, sendo várias espécies dessas aves ameaçadas de extinção. Tais animais possuem uma plumagem geralmente negra, com topete com penas encrespadas ou lisas e bico com cores vivas. O território onde ocorrem as ações pode ser compreendi- do como um espaço primitivo, marginal e isolado de tudo. Um lugar onde a ingenuidade e os questionamentos da infância se confundem com o meio natural (é assim que Miguilim vive o seu lugar). 2.5. Personagens O universo de Miguilim passa diretamente pelo convívio com a família e aqueles mais próximos: Dito, Tomezinho, Chica e Drelina; a avó Izidra; o tio Terez; Rosa e Mãitina, ajudantes de sua mãe no serviço da casa; os vaqueiros vi- zinhos; o papagaio, Pinto-de-Ouro; o gato; os cachorros; os malvados Liovaldo (irmão da cidade) e Patori. Esses são o universo do garoto, instrumentos de sua travessia pelas veredas do Mutum e pela vida. Miguilim: tem o cabelo preto como o da mãe, pare- ce-se mais com ela. Dotado de grande sensibilidade, Miguilim demonstra ter alma de poeta. Parte de sua dificuldade revela-se mais tarde como causada por uma irritação visual. Menino de oito anos, inteligen- te e sensível, o personagem se desenvolve ao longo da narrativa. É levado por um médico para estudar na cidade. O fato de Miguelim ser míope faz com que não se identifique com o mundo da realidade, mas com o mundo do mito, do fantástico. Dito: era ruivo, parecia mais com o pai, era o mais novo, mas sabia ser responsável. Morreu de tétano. Um dos irmãos de Miguilim, é seu maior companheiro. Criança inteligente, Dito está sempre atento ao que se passa no mundo dos adultos. Sua morte deixa Miguilim abalado. Quando Dito, o irmão mais querido de Miguilim, mor- re, é ele o que mais demora a se recuperar da tristeza. Enquanto todos já parecem ter retomado suas vidas práticas, Miguilim não consegue superar a morte do ir- mãozinho. Sua morte, devido ao tétano em decorrência de um ferimento no pé, é a mais triste experiência vivida por Miguilim. É dele a fórmula da sabedoria que orienta Miguilim ao final da história: “a gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!”. 10 Nhô Bero (Bernardo Caz): pai de Miguilim, homem rude que parece ter implicância com o menino, apesar de gostar dele e não saber se expressar com facilida- de em relação a isso. Era um homem duro e difícil de lidar, por vezes autoritário. Nhô Berno tem a típica vi- são utilitária, racional, prática e lógica de quem precisa trabalhar sistematicamente na roça para garantir o sus- tento da família. O pai ocupa a posição de autoridade e procura acionar nos filhos a lógica do corpo como instrumento para o serviço na fazenda. Tio Terês: tio e amigo de Miguilim. Foi expulso de casa por Vó Izidra, por causa da relação adúltera com Nhanina. Com a morte de Bernardo, casa-se com a mulher do irmão. Tomezinho (Tomé de Jesus Casseim Caz): ruivo como o pai, menino de quatro anos, tinha mania de esconder tudo o que encontrava. Nhanina: mãe de Miguilim, era muito bonita, não gos- tava de viver num lugar tão remoto como era Mutum, sentia muita tristeza em ter que viver ali. Não dava mui- ta importância para a fidelidade conjugal, pois traiu o marido com o próprio irmão e, depois, com Luisaltino. Nhanina sonhava em sair do Mutum, queria ver além daqueles morros que cercavam o lugar, aproximando- -se do desejo de Miguilim de querer ver mais coisas. Vovó Izidra: se zangava com todos, não gostava que batessem em Miguilim. Vestia-se sempre de preto. Per- sonagem que carrega o mistério e o peso da religiosi- dade rigorosa. Sua sabedoria ajuda Miguilim a trans- por, vez ou outra, o medo do desconhecido e da morte. Rosa: empregada, dirige as mais belas palavras sobre Dito a Miguilim, consolando-o. É quem ensina o Papa- co-o-Paco a falar. Chica: irmã de Miguilim, tinha os cabelos pretos como a mãe. Liovaldo: irmão mais velho de Miguilim, mas não mo- rava com a família no Mutum. Mora na cidade, longe da família desde há muito; vem visitar a família com o tio com quem vive; é oposto do Dito, é maldosoe provocador; leva uma surra de Miguilim. Mãitina: empregada da casa, preta velha, gostava de cachaça e cultuava rituais pagãos africanos. Diziam que tinha sido escrava fugida, falava uma língua com- plicada; às vezes, bebia e exorbitava. Também carrega uma carga de misticismo mais “primitivo”; o ritual do “enterro” do Dito, que ela inventa, ajuda Miguilim a superar a dor da morte. Drelina: é o apelido da irmã mais velha de Miguilim. Seu nome era Maria Adrelina Cessim Caz. Era bonita e tinha cabelos compridos. Patori: é o menino mal, filho de Deográcias, desperta a antipatia de Miguilim. Grivo: é um menino muito pobre que é defendido por Miguilim quando é agredido ou humilhado por Liovaldo. Luisaltino: é o último empregado contratado por Nhô Bero e por ele assassinado por ciúme, pois se tornou amante de Nhanina. Sócio arranjado pelo pai após a expulsão do Tio Terêz do Mutum, era amigo deste. Torna-se amigo-confidente da mãe. Acaba assassinado por Bernardo. Saluz: é um vaqueiro de Nhô Bero. Casado com Siar- linda, que sabe contar histórias. Jé: empregado que foge com a Maria Pretinha (Empregada). 2.6. Enredo A narrativa de Campo geral tem início quando Miguilim é levado por Tio Terez (tio por parte de pai) para ser crismado. O menino tem oito anos e jamais saiu do Mutum, com ex- ceção de algumas pequenas mudanças que fez quando era muito mais novo e que não tinha lembrança. Ele escuta um comentário de um desconhecido, dizendo que o Mutum era um local muito bonito. A lembrança mais nítida desta viagem será de um comentário ouvido sobre a beleza de Mutum. Profundamente impressionado com esta referên- cia, Miguilim não vê a hora de contar a Nhanina (sua mãe), que estava sempre triste de viver ali. Ele vai procurar a mãe aflito quando chega em casa e seu pai lhe dá um castigo: não o acompanha juntamente com os irmãos na pescaria de domingo. Todavia, ao ficar em casa aprende a fazer arapuca para capturar passarinho com seu Tio Terez. O cotidiano e rotina da casa leva em consideração sua re- lação com seus os brinquedos bem como com seus irmãos, assim descritos por ordem de idade: Drelina, Dito, Chica, Tomezinho. Há também outro irmão, único que não mora com a família, que é mais velho que Miguilim, o Liovaldo. A mãe e as empregadas, Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, estão sempre cozinhando e convivendo com os afazeres do cotidiano na cozinha. Na vizinhança, vivem os cachorros da família, inclusive havia uma cadela – a Pingo-de-Ouro –, em que Miguilim era muito próximo e apegado. Para a tristeza do garoto, ela foi doada aos tropeiros de pernoite no Mutum por seu pai. A revelação de que Nhanina e Tio Terez tinham um caso surte grande confusão. O pai bate na mãe, Miguilim tenta interrompê-lo e termina sendo castigado. Vovó Izidra, sua tia-avó, xinga Tio Terez de Caim e toma a iniciativa de ex- pulsá-lo de casa. Nesta mesma noite, acontece uma gran- de tempestade e, no meio disso tudo, impulsionados pela intempérie, Dito e Miguilim conversarem sobre a vida, mas, 11 sobretudo, sobre o medo da morte. Vovó Izidra começa a rezar para acalmar os medos de todos. Seo Deográcias foi com Patori (seu filho) visitá-los no dia seguinte. Queria, na verdade, pegar emprestado alguns mantimentos e cobrar um dinheiro, mas aproveita para aconselhar sobre a saúde, já que era entendido de remé- dios, de Miguilim, que a todos parecia debilitada. Miguilim começa a ficar “encanado” aos poucos, imagi- nando que ia morrer, fato que o leva a fazer uma promessa a Deus: se caso ele não morresse nos próximos dias, não morreria nunca mais. Ao mesmo tempo em que se compro- mete a rezar uma novena. Os dias vão se passando, e ele não começa a tal novena, mas começa a revisitar vários momentos e se recorda da habilidade que Dito tinha em se comportar de modo que não desagrade o Pai, da curiosidade que Patori lhe desper- tou sobre sexo, do aconchego que sentia em criança de ficar nos braços de Mãitina. No derradeiro dia, nem da cama ele quer sair, foi preciso até Seo Aristeu – que além de ser entendido de remédios, também era considerado um curandeiro na região –, vir vê- -lo. Miguilim não acreditava em outra coisa que não fosse a chegada da morte. Tinha medo de estar tísico, contudo, Seo Aristeu explicou logo que essa doença não dava por aquelas passagens no sertão de Minas Gerais. Chega o novo parceiro de trabalho de Nhô Bero, o Luisal- tino, e como ele a notícia de que Patori matou um homem e está foragido. Patori morre de fome e Nhô Bero aban- dona tudo para prestar solidariedade a Seo Deográcias (desesperado com a perda do filho). Porém, o que agradou a Miguilim foi que Luisaltino traz consigo um papagaio, o Papaco-o-Paco. Depois de ter ido espiar uma coruja numa manhã, Dito in- felizmente pisa num caco de pote e corta o pé. A doença do tétano ataca o menino e ele morre em poucos dias. Miguilim fica completamente triste e se desespera com esse sofrimen- to que parece não findar mais. Mãitina tem uma ideia que o ajuda a enfrentar a dor: juntou roupas e brinquedos de Dito e alguns guardados seus e enterrou tudo no quintal, mar- cando depois o lugar com pedrinhas lavadas do rio. Nhô Bero resolve colocá-lo para trabalhar, pensando em ocupar seus dias e assim tirá-lo dessa tristeza. Miguilim não acha ruim trabalhar, porém, não consegue enxergar alegria em nada. Para complicar, dias depois chegam Tio Osmundo e o irmão Liovaldo. Miguilim iria levar comida na roça onde o pai trabalhava, es- tava tomada a decisão. Ele, claro, fica muito contente de po- der ser e se sentir útil. Quando foi cumprir a tarefa pela pri- meira vez, Tio Terez aparece no caminho e pede ao sobrinho o favor de entregar um bilhete a Nhanina. Aquele bilhete de papel no bolso deixa Miguilim muito confuso em relação ao que seria certo de se fazer, o coloca em um grande embate interior. Sem explicar o motivo, pede opinião para todos so- bre o que é certo ou errado. E é com Dito que Miguilim vai se orientar, como sempre, anseando por explicações que o irmão, mesmo menor, parece sempre conhecer. Miguilim diz a verdade e devolve o bilhete, e o Tio se dá conta que estava errado e que tinha colocado o sobrinho em uma situação difícil, logo, acaba pedindo desculpa. Ainda um pouco mexido com tudo aquilo, Miguilim acaba deixando que os macacos roubem a comida do tabuleiro. O pai se diverte com a história, dando a sensação em Mi- guilim de ser amado. O Tio não vai muito com a cara de Miguilim, e Liovaldo co- meça a provocá-lo até que este comete pequenas malda- des com Grivo e Miguilim, que se irrita e termina partindo para a briga. Nhô Bero fica muito bravo e dá uma surra no menino. Miguilim sente ódio do pai e pensa em matá-lo quando crescer. Pensando em acalmar a situação, Nhanina manda Miguilim se hospedar na casa do vaqueiro Saluz por três dias. No retorno, Miguilim não pede a bênção ao pai, que então se vinga, libertando os passarinhos de Mi- guilim e quebrando suas gaiolas. Miguilim fica muito triste e com raiva, acaba quebrando os próprios brinquedos. Miguilim se alegra pela primeira vez com a possibilidade de um dia partir, quando o Tio e o irmão vão embora. Em meio a sua convalescença, uma tragédia acontece, o Nhô Bero descobre que Luisaltino o traía com sua mulher. Com muita raiva, acaba matando o ajudante e, em seguida, se suicida. Seo Aristeu tenta alegrar Miguilim e Nhanina revela sua von- tade de casar-se com Tio Terez. Ainda abalado, o garoto co- meça a ver doença em tudo, e com todos os acontecimentos, avista a chegada de dois homens a cavalo. Um dos homens bota reparo no jeito de Miguilim, na verdade em seu olhar. O grupo se dirige à casa e Miguilim é examinado até que o homem, doutor José Lourenço (do Curvelo), determina um diagnóstico: “é vista curta”. Tira os óculos do seu próprio rosto e coloca no menino, que se encanta, pela primeira vez, ao ver tudo que se revelou a sua frente. Descobre então que o garoto era míope ao lhe emprestarseus óculos. O Doutor se ofereceu para levar o menino para a cidade e colocá-lo para estudar, e Miguilim prontamente aceita. Pede, no en- tanto, que lhe empreste novamente os óculos para olhar Mutum, e convence-se de que o local é realmente bonito. O doutor se oferece para levar Miguilim para a cidade em que providenciaria os óculos e poria Miguilim para estudar. Miguilim aceita o convite e se prepara para ir embora na ma- nhã seguinte. Mas, antes de partir, pede de novo os óculos. Quer levar consigo uma imagem nítida da família e do Mu- tum, pois a memória deveria ser daquele novo mundo que se abriu, agora ele via e, segundo ele, era realmente bonito. 12 APLICANDO PARA APRENDER 1. (Ufrgs) Assinale com V (verdadeiro) ou F (falso) as se- guintes afirmações sobre sentimentos de personagens de Campo geral, da obra Manuelzão e Miguilim, de Gui- marães Rosa. ( ) Miguilim odiava seu Pai, pela violência das surras e castigos que ele lhe impunha: mandar embora a cadela, ou soltar os passarinhos que estavam nas gaiolas. ( ) As rezas da avó e os feitiços de Mãitina enfim sur- tiram efeito: Miguilim passou a se sentir culpado pela morte do irmão. ( ) Miguilim detestava o Mutum, mas, com a ajuda dos óculos do doutor, acabou finalmente descobrindo que se tratava de um lugar bonito. ( ) Dito sentiu inveja de Miguilim porque Papaco-o-Pa- co era capaz de dizer “ – Miguilim, Miguilim, me dá um beijim”, mas não conseguia pronunciar “Dito”. A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é a) F – V – F – F. b) F – V – F – V. c) V – V – F – V. d) V – F – V – V. e) V – F – V – F. 2. (UFG) Diversos motivos narrativos compõem a trama de Campo geral, texto da obra Manuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa. Qual o motivo narrativo principal para a composição do enredo desse conto? a) As desavenças entre Mãitina e a avó de Miguilim. b) A instabilidade sentimental da mãe de Miguilim. c) A observação do mundo pela ótica de Miguilim. d) A rivalidade entre Tio Terez e o pai de Miguilim. e) A solidariedade entre os irmãos de Miguilim. 3. (Unicamp) Mas, a mal, vinha vesprando a hora, o fim do prazo, Miguilim não achava pé em pensamento onde se firmar, os dias não cabiam dentro do tempo. Tudo era tarde! De siso, devia de rezar, urgente, montão de rezas. (João Guimarães Rosa, Campo geral. In: Manulezão e Miguilim. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.) a) O trecho acima refere-se a uma espécie de acordo que Miguilim propôs a Deus. Que acordo era esse? b) Sabendo-se que o acordo se relaciona às perdas sofridas por Miguilim, cite as duas que mais profun- damente o marcaram. c) Se “vesprando” deriva de “véspera”, que se asso- cia a Vésper (Estrela da Tarde), como se deve interpre- tar “vinha vesprando a hora”? 4. (Fuvest) Olhava mais era para Mãe. Drelina era bo- nita, a Chica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: – “Tio Terêz, o senhor parece com Pai...” Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: – “Não sei, quando eu tiro esses óculos, tão fortes, até meus olhos se enchem d'água...” Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um soluçozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. SEMPRE ALEGRE, MIGUILIM... SEMPRE ALEGRE, MI- GUILIM... Nem sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava. (IN: MANUELZÃO E MIGUILIM. JOÃO GUIMARÃES ROSA) Neste trecho de Campo geral, de Guimarães Rosa, as ex- pressões em maiúsculo retomam, ao final da narrativa, a) os versos sertanejos cantados pelo vaqueiro Salúz, em seu desejo de consolar Miguilim. b) a mensagem inicial de Tio Terêz, unindo, assim, o princípio e o fim da história. c) as lições de conformidade e alegria de Mãitina a Miguilim, enraizados no catolicismo popular. d) a derradeira lição da sabedoria do Dito, reforçada depois por seu Aristeu. e) o ensinamento do Grivo, cuja pobreza extrema era, no entanto, fonte de doçura e alegria. 5. (Fuvest) O fragmento a seguir é da novela Campo ge- ral (Miguilim), de João Guimarães Rosa. E o Dito mesmo gostava, pedia: “Conta mais, conta mais...” Miguilim contava, sem carecer de esforço, es- tórias compridas, que ninguém nunca tinha sabido, não esbarrava de contar, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o entendimento maior. a) As qualidades aqui atribuídas ao Miguilim conta- dor de histórias aproximam-no ou distanciam-no do modo de narrar que celebrizou Guimarães Rosa? Jus- tifique sua resposta. b) O desfecho da novela estaria a sugerir que Miguilim encontrará limitações para desenvolver suas qualidades de contador de histórias? Justifique sua resposta. 6. (PUC-Camp) Guimarães Rosa promove em sua ficção uma integração entre o real e o simbólico, o material e o abstrato, a experiência e a imaginação, negando-se a demarcar um limite nítido entre esses planos. É o que se pode ver traduzido na seguinte passagem de Campo geral (ou Miguilim): a) “Miguilim queria ficar sempre perto, mas o Dito mandava ele fosse saber todas as coisas que estavam acontecendo.” b) “Porque o que Miguilim queria era assim como um sinal de DITO MORTO ainda no DITO VIVO, ou do DITO VIVO mesmo no DITO MORTO.” c) “O Patori esquipou no mundo, de si devia de estar vagando, campos. Seo Deográcias pedindo, a todos, para cercarem sem brutalidade.” d) “O Dito às vezes estava zarolho, sentindo grita- va alto com dor de cabeça, sempre explicava que a febre ele era mais forte, depois ele falava coisas variando (...)” e) “Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado – QUE O MUTUM ERA LUGAR BONITO...” 13 7. (Fuvest) Considere atentamente as seguintes afirma- ções sobre a novela Campo geral (Miguilim), de Guima- rães Rosa: I. A sabedoria precoce do pequeno Dito é decisiva para o aprendizado de Miguilim, seja nas experiências ime- diatas do cotidiano, seja na investigação do valor e do sentido profundos dessas experiências. II. Por meio da personagem Miguilim, o autor nos mos- tra que a vida rústica do sertanejo é pobre como expe- riência – o que pode ser compensado pela imaginação poética de quem sabe desligar-se daquela vida. III. No momento final da narrativa, é em sentido literal e sim- bólico que um novo mundo se revela para Miguilim – mundo que também se abre para uma vida de novas experiências. A leitura atenta da novela permite concluir que apenas: a) as afirmações I e III são corretas. b) as afirmações I e II são corretas. c) as afirmações II e III são corretas. d) a afirmação II é correta. e) a afirmação III é correta. GABARITO 1. D 2. C 3. a) Seo Deográcias, espécie de curandeiro que peram- bulava pelo Mutum, diagnosticara que Miguilim, fra- co, abatido, corria risco de vida, de contrair tuberculo- se. Primeiramente, o menino recorre à negra Mãitina, mas desiste ao encontrar bêbada a velha mandin- gueira. Volta-se para Deus e faz uma espécie de trato: se tivesse de morrer, que fosse no prazo de três dias, dilatado mais tarde, para dez dias, para permitir uma “novena” de rezas. Se não morresse que, por vontade de Deus, ficasse curado. b) As duas perdas que mais profundamente marca- ram a “travessia” de Miguilin do mundo mágico da infância para o mundo adulto foram as experiências com a morte: a do pai, que se suicidou, e a do irmão mais querido, o Dito, vitimado pelo tétano. A supe- ração dessas duas perdas foram instantes dolorosa- mente decisivos no amadurecimento da criança no embate com fatos da vida. c) O neologismo “vesprando” sugere tanto a noção mais imediata de aproximação temporal, de “fazer-se véspera”, como também nos remete à ideia de “anoi- tecer” e, metaforicamente, “de morrer”, associada à “noite” que a estrela Vésper prenuncia. 4. D 5. a) Aproximam-no, pois Guimarães Rosa transfigura a re- alidade pela linguagem ligando o regional ao universal. b) Sim, porque no mundo adulto ele perderia a es- pontaneidade intuitiva do mundo infantil. 6. B 7. A 14MAYOMBE PEPETELA OBRA 8 1. PEPETELA Um dos maiores nomes da literatura angolana, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepe- tela, nasceu no dia 29 de outubro de 1941, em Angola, na região litorânea de Benguela. Sua família tinha raízes finca- das entre os colonos deste país da África, porém, seus pais já eram angolanos de nascimento. Pepetela realizou seus primeiros estudos, em sua terra natal, onde permaneceu até 1956. Logo depois, partiu para Luban- go, onde teve a possibilidade de completar seus estudos, no Liceu Diogo Cão, seguindo, posteriormente, para Lisboa, com o objetivo de cursar o Instituto Superior Técnico. Na capital portuguesa, integrou a Casa dos Estudantes do Império, principiando sua trajetória política e literária. Entre outras atividades, tornou-se um dos criadores do Centro de Estudos Angolanos, o qual integra a representatividade do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola). Em 1960, o futuro escritor entrou na Faculdade de En- genharia, mas, logo em seguida, optou por Letras, para, depois de um ano, decidir-se pela carreira política, ingres- sando, em 1963, no MPLA. Esta escolha subverteria com- pletamente seu futuro, pois as experiências conquistadas no testemunho direto da história angolana inspirariam sua obra e sua própria trajetória existencial. Durante algum tempo, Pepetela foi obrigado a buscar abri- go na França e na Argélia, mas, após a tão desejada liberta- ção de Angola, o romancista retornou, em 1975, para seu país, assumindo o cargo de vice-ministro da Educação, sob a liderança do presidente Agostinho Neto. Ele acabou se licenciando em Sociologia na Universidade de Argel, o que lhe permitiu, após a deserção do caminho político, optar pela docência na Faculdade de Arquitetura de Luanda. A partir de então, passou a ministrar aulas e, ao mesmo tempo, a desenvolver sua carreira literária, a qual somente ganhou impulso depois da independência. Boa parte de sua obra só foi lançada depois de seu retorno do exílio. Entre seus livros mais importantes estão Muana puó (1978), As aventuras de Ngunga (1976), Mayombe (1980), A geração da utopia (1992), Parábola do cágado velho (1996) e A gloriosa família (1997). O conteúdo deles gira especialmente em torno da história de seu país, tanto a mais distante quanto a recente trajetória social e política. Pepetela atingiu o auge de sua carreira literária em 1997, quando conquistou o Prêmio Camões, um dos mais reno- mados e desejados pelos escritores que professam a lín- gua portuguesa, pela totalidade de sua produção. Antes disso, porém, já recebera o Prêmio Nacional de Literatura de Angola pela obra Mayombe. Este reconhecimento o consagrou como um nome significativo da literatura con- temporânea do idioma português. O autor africano permanece até hoje em Lisboa. Em seu currículo, constam também lideranças importantes na esfe- ra cultural, principalmente na União dos Escritores Angola- nos e na Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. 1.1. Contexto 15 Antes mesmo da independência de Angola, em 1975, já ha- via nascido a literatura angolana. Porém, em torno de 1950, nascera o projeto de uma ficção que garantisse ao homem africano o estatuto de soberania, e, então, foi gerado o mo- vimento Novos Intelectuais de Angola. Essa literatura quase sempre traz muito realismo em suas imagens do preconceito, da dor causada pelos castigos corporais, do sofrimento pela morte dos entes queridos e da exclusão social. A palavra literária desempenhou em Angola um importan- te papel na superação do estatuto de colônia. Presente nas campanhas libertadoras, foi responsável por ecoar o grito de liberdade de uma nação por muito tempo silenciado, mas nunca esquecido. O angolano vive, por algum tempo, entre duas realidades – a sociedade colonial europeia e a sociedade africana; os seus escritos são, por isso, os resul- tados dessa tensão existente entre os dois mundos – um com escritos na nascente da realidade dialética e o outro com traços de ruptura. 2. MAYOMBE Mayombe diz respeito a um exílio comunitário e, ao mes- mo tempo, singular, onde cada um vive o seu e também vive o do outro, tendo uma permuta de experiências mora- das e uma aquisição de conduta e caráter para a formação de tais indivíduos. Esse livro, em geral, gira em torno de Sem Medo, o comandante da Guerrilha, e é nele que se foca o real exílio geográfico e, principalmente, o sentimen- tal. Sendo esse exílio geográfico algo que pode derrubar a vida de uma pessoa, Sem Medo trabalha para contornar tal dificuldade. 2.1. Temas e principais conflitos Durante a guerrilha na Guerra de Independência de Ango- la, a vida é relatada por Pepetela sob os pontos de vista de vários combatentes, expondo aspectos psicológicos que carregam o conflito adiante. Faz um registro histórico da formação do país, mas também, uma crítica ao movimento revolucionário, revelando: casos de machismo; questões de racismo; corrupção; etnia; revolução; independência; socialismo; língua portuguesa; espaço geográfico; e exploração da colônia. 2.2. Foco narrativo e linguagem Estilo: linguagem fluida, leve e correta. Narrador: em primeira pessoa, por meio dos persona- gens que fazem relatos de suas experiências pessoais; e em terceira pessoa, em que o próprio autor, através de suas experiências, expõe as mazelas e os desafios de pertencer a um grupo guerrilheiro. 2.3. Espaço Mayombe é uma floresta tropical situada na região norte da Província de Cabinda, fronteiriça ao Congo Brazzavil- le e à República Democrática do Congo. Apresenta uma densa vegetação com árvores frondosas e de grande valor econômico. No livro de Pepetela, serve de pano de fundo para os guerrilheiros que lá encontram seu sustento, quan- do a comida demora a chegar em seus abrigos – entre os guerrilheiros e a floresta, existe uma interação simbiótica. Mayombe constitui uma espécie de extensão da luta repre- sentada pela libertação de Angola, em oposição a outros espaços ocupados pelos portugueses (os tugas). 2.4. Personagens ESTRUTURA DO GRUPO GUERRILHEIRO DE MAYOMBE: OS GUERRILHEIROS SÃO CONHECIDOS PELOS SEUS CODINOMES (OU SUAS FUNÇÕES). Teoria: a primeira personagem desse processo polifôni- co, nascido na Gabela, é filho de mãe negra e pai bran- co. O fato de ser mestiço o incomoda e, por isso, vê na guerrilha um modo de expurgar esse “pecado original”. 16 Milagre: é a segunda personagem a se apresentar. Ele pertence a uma determinada tribo, com hábitos e tradi- ções distintas dos demais. Mesmo participando do movi- mento, ainda não rompeu com os traços de sua origem. Mundo Novo: no processo polifônico, é o terceiro a ter voz na narrativa. Indispõe-se com Comandante, não chegando a entender perfeitamente o pensamento e o modo de agir de Sem Medo, a quem chama de “peque- no-burguês com traços anarquistas”. Como marxista-le- ninista, se diz não egoísta e acredita que só as massas constroem a História, sem diferenças de cor ou origem. Muatiânvua: é outro personagem a tomar a voz na narrativa. Filho de um mineiro, que morreu tubercu- loso logo após seu nascimento, caracteriza-se por ser destribalizado, acredita em uma revolução por e para Angola inserida em um contexto mais amplo, a Áfri- ca. Sente-se marginalizado, “posto de lado”. Exerceu várias atividades – marinheiro, contrabandista, ladrão –, antes de ingressar na guerrilha. Para ele, todas as imagens se resumem no brilho do diamante, maior riqueza mineral do país. André: comandante administrativo de Dolisie. É relap- so e desvirtuado. Comete deslizes de todas as ordens, o que põe em dúvida não só sua integridade moral, como seu papel de líder. Rivaliza com Sem Medo, não percebendo as intenções do comandante da base de Mayombe, mas acreditando que ele faz de tudo para assumir o seu lugar. Seduz Ondina, noiva do Comis- sário, e é pego em flagrante. É punido com a perda do cargo que desempenhava e removido para outro lugar, masacredita que tudo não passou de um golpe. Ondina: é professora em Dolisie. Noiva do Comissário, não tem com ele uma afinidade sexual, entregando-se a André e, depois, ao Comandante. No entanto, ama o Comissário e divide esse amor com o Comandante. Ela desiste de ter uma vida ao lado do Comissário e ter- mina tudo antes de ser transferida para outro reduto. Entrega-se ao Comandante nutrindo por ele um misto de amor, desejo e proteção. Representa a mulher que transforma o meio e as pessoas com quem convive. Lutamos: único do grupo originário da região de Ca- binda, precisa provar a todos os companheiros que não é traidor. Ele e Sem Medo guerreiam juntos há mais de dez anos. Destemido e corajoso como o Comandante. Comissário: tem 25 anos e é dez anos mais novo que o Comandante. Escreve a última interferência em primeira pessoa, no epílogo. Acredita que guerra popu- lar “não se mede em número de inimigos mortos. Ela se mede pelo apoio popular que tem”. Vai crescendo no seio do movimento, passando por uma “dolorosa metamorfose”. Quando da morte de Sem Medo, reco- nhece que Este é Ogum, o Prometeu africano. Sem Medo: a imagem desse guerrilheiro é construída a partir das referências feitas a ele nos escritos em terceira e primeira pessoas. Ele não assume a primeira pessoa no livro. Sem Medo faz parte da tribo kikongo, é o mais dou- trinado e politizado do grupo e responsável por passar sua ideologia aos demais. Abandonou o curso de Econo- mia, em 1964, para ingressar na guerrilha. É responsá- vel por fazer as reflexões sobre o Partido, a ideologia, os indivíduos comandados e as ações a serem executadas. Lúcido e pragmático, age orientando, ensinando e ex- pondo seus ideais revolucionários. No entanto, seu prag- matismo exige luta armada e seu ideal é uma sociedade igualitária, de facção marxista, em que o homem não explorará o homem. Sem Medo acredita que a revolução é percurso para atingir um fim, não importando os meios para a obtenção dos resultados. 2.5. Resumo da obra 2.5.1. Capítulo 1 – A Missão Mayombe, uma selva densa, é explorada por 14 membros do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que luta contra o colonialismo português. Eles têm como objetivo atacar exploradores de madeira da região. Filho de uma mulher negra com um comerciante português, Teoria, o professor, é um mestiço. Ele traz este dilema em si, um mundo que divide negros e brancos, ele busca a aceitação dos que não são como ele. Ao atravessar o rio Lombe, o professor escorrega numa pedra e machuca seu joelho. O Comando sugere que Teoria aguarde o grupo cumprir a missão enquanto se recupera, mas o professor se diz for- te e pronto para seguir em frente. O Comissário continua sendo contra, porém, o Comandante entende que Teoria 17 tem uma motivação especial para não ceder, e o Chefe de Operações concorda com ele. Para poder sentir-se reconhecido como parte do grupo, já que Teoria não é um grande guerrilheiro, ele insiste em par- ticipar das operações. Discutindo os planos para o ataque, o Comandante e o Comissário divergem na estratégia. Sem Medo defende que o assunto seja decidido pelo Comando, mas o Comissário alega que o Chefe de Operações sempre concordava com a proposta do Comandante, sendo inútil a discussão. Sem Medo sugere que o camarada agia assim por desejar tomar o posto do Comissário, mesmo sendo eles oriundos de uma mesma tribo. O Comissário não con- corda que ainda haja tribalismo entre os guerrilheiros. O ideal da formação política é que os camaradas não se re- conheçam como parte de uma ou outra tribo. Lutamos reclamou sobre uma proposta do Verdade, que pretendia fuzilar todos os trabalhadores da extração de madeira. Muatiânvua disse que Lutamos só tinha aquela postura porque os trabalhadores eram da mesma tribo que a sua, dos cabindas, e que qualquer angolano que não esti- vesse com os guerrilheiros deveria ser considerado inimigo. O Comissário Político, entretanto, determinou que nenhum homem do povo deveria ser fuzilado, e o Comandante co- mentou que Muatiânvua estava brincando, com sua postu- ra extremista – o que era verdade. Ao seguir pela selva, o grupo ouviu o ruído de uma ser- ra. Todos pararam, com exceção de Lutamos, que andava distraído, pensando no que o camarada Verdade havia lhe dito e em como era difícil convencer a população a aliar-se aos guerrilheiros. Por isso, os homens achavam que Lutamos seguia em frente para alertar os trabalhado- res a fugirem, mas, ao ser chamado, o camarada distraído retornou. Foram avistados dois grupos de trabalhado- res: um com machados, apenas, e outro com uma serra, sendo acompanhados por um caminhão, guiado por um português, e um trator. Sem Medo perguntou ao Chefe de Operações qual ação ele sugeria. Sua proposta era seguir até a estrada, onde poderiam armar uma embos- cada contra os militares que passavam por lá. Porém, o Comissário Político queria o ataque imediato aos grupos que haviam encontrado, com a destruição dos veículos e a politização dos trabalhadores. O Comandante juntou as duas ideias: a ação contra os exploradores de madeira e a emboscada na estrada. O Chefe de Operações pediu que o Comandante vigiasse Lutamos, pois desconfiava que ele pretendia traí-los. Divididos em dois grupos, os guerrilheiros colocaram o plano em ação. Raptaram os trabalhadores, garantindo que nin- guém lhes faria mal, mas deixaram escapar o português, que fugiu com o caminhão. Atearam fogo no trator e espalha- ram minas ao seu redor. O Comando se reuniu novamente e decidiu que ficariam com os trabalhadores por um dia, ca- minhando em direção ao Congo, e, depois, os libertariam. Dessa forma, os portugueses achariam que o grupo estava se afastando, porém, eles retornariam e fariam a emboscada na estrada. Essa estratégia faria com que acreditassem que havia mais de um grupo de guerrilheiros na região. Os trabalhadores tinham maior confiança na guerrilha, após descobrirem que Lutamos era da mesma tribo que eles. Mas o chefe de Operações via essa relação com des- confiança, assim como Milagre, que achava o Comandante fraco por acreditar que Lutamos estava apenas distraído, quando avançava em direção a eles. A caminhada seguiu a tarde toda e os trabalhadores não fizeram qualquer ten- tativa de fuga, mesmo tendo oportunidade. O Comissá- rio tentou politizar aqueles homens, explicando que eles extraíam a riqueza de suas terras, com sua própria força, para enriquecer alguém que não vivia ali, que eram os co- lonizadores. Os trabalhadores demonstraram apoio à ação da guerrilha. Em seguida, o Comandante comentou com o Comissário que a sua fala o lembrou do seminário, onde os padres diziam servir a Deus, porém, eram cruéis com os jovens como ele. Foi por isso que ele deixou a ordem religiosa e se entregou a uma vida contrária a tudo o que a Igreja ensinava. No início, ele sofreu por acreditar que era um pecador, mas, após matar Deus, o Inferno e o medo do Inferno, sentiu-se em paz novamente. O Comissário não entendeu a relação que isso teria com seu discurso e Sem Medo alegou que a promessa de liberdade àqueles traba- lhadores fez com que ele pensasse nisso. Na manhã seguinte, todos os pertences dos trabalhadores foram devolvidos, porém, faltava uma nota de cem escudos que havia sido retirada do mecânico. Ekuikui havia ficado com o dinheiro e chorava por não o encontrar. Os trabalha- dores não se importaram com a falta, pois queriam logo retornar, e foram libertados. O Comandante juntou o grupo explicando a emboscada que fariam, lembrando que sofre- riam um pouco por falta de alimento. Os guerrilheiros acei- taram a ação com entusiasmo, já que o alvo seria o exército colonial. Sem Medo ainda quis resolver a questão dos cem escudos, pois os trabalhadores não poderiam ter a impres- são de que a guerrilha era formada por ladrões. Sendo as- sim, pediu que quem tivesse com a nota se manifestasse, mas ninguém se pronunciou. Decidiu que todos deveriam ser revistados,deixando o Chefe de Operações contrariado, pois considerava aquilo uma injustiça. Enquanto Lutamos era revistado, o Comandante saltou no fundo do grupo, segurando o braço de Ingratidão do Tuga, que deixou o dinheiro cair: ele teve suas armas retiradas e seria julgado quando chegassem à base. O Comissário, que deveria ter guardado a nota, se dispôs a retornar ao povoado para devolver o dinheiro ao seu dono. 18 Durante a nova caminhada, o grupo parava para pescar, já que os mantimentos estavam no fim. Sem Medo aprovei- tava estas paradas para filosofar e reparar no comporta- mento de seus companheiros. Chamou Teoria e contou-lhe sobre um caso de sua infância. Um dia, brigou com um menino mais velho e apanhou, fugindo de medo. A par- tir daí, sentiu-se mal por sua covardia, até que concluiu que era necessário ter respeito por si mesmo e enfrentar novamente o garoto. Mais uma vez, ele apanhou muito, tanto que nem sentia mais os golpes, mas ainda assim não cedeu e o garoto desistiu da briga, dizendo que ele havia ganho: tornaram-se amigos desde então. O professor ouviu esta história e perguntou porque o Comandante a conta- va. Sem Medo perguntou se ele costumava sentir medo, e Teoria confirmou. O Comandante quis saber por que ele não demonstrava isso. Teoria contou ser mestiço, que o fazia mostrar-se corajoso para provar aos demais a sua capacidade, pois sozinho ele era um covarde; mas, diante dos companheiros, sentia necessidade de apresentar força. Sem Medo explicou que, às vezes, é necessário contar a alguém sobre o que se sente, para livrar-se da angústia e viver em paz – exceto se a pessoa for um escritor, pois aí tudo vai num papel e está resolvido. Essa necessidade de confissão foi explorada pelas religi- ões, como o cristianismo. Teoria questionou se era possí- vel deixar de entrar em pânico e o Comandante afirmou que o seu principal problema era a questão racial. Quando ele percebesse que demonstrar o medo não o rebaixaria diante dos outros, então ficaria mais tranquilo. O professor perguntou se Sem Medo nunca sentia medo, e ele explicou que, às vezes sim, seu maior medo era temer a morte e perder o respeito por si próprio, pois deveria ser péssimo deixar a vida com a sensação de que toda sua história é destruída em seu último instante. Depois do almoço, conti- nuaram caminhando, enfrentando montanha, chuva e frio. Milagre ainda estava a julgar a ação do Comandante, quan- to aos cem contos, como uma injustiça, pois estava dando vantagem àqueles que eram de tribos próximas à sua e des- merecendo os diferentes. Em sua opinião, o Comissário era outro que apoiava cegamente o Comandante, sempre con- tra o Chefe de Operações. Depois de um simples café, con- tinuaram a caminhada até chegarem próximo à estrada. Foi possível ouvir as explosões das minas ao redor do trator, para a comemoração dos guerrilheiros. O Chefe de Operações fez um reconhecimento para planejar a emboscada, e to- dos foram posicionados. Passaram muito tempo sem avistar qualquer soldado, os guerrilheiros adormeciam em posição e com a arma em punho, sendo acordados por Sem Medo, que passava de um em um, animando-os para o combate. O Comandante não suportava a espera. Sem Medo queria que os soldados surgissem logo para que ele despejasse toda sua angústia com os tiros de sua arma. Quando surgiu o exército, rajadas de metralhadoras e explosões da bazuca dos guer- rilheiros se confundiam com os gemidos dos soldados, que revidavam insanamente contra as árvores. Sem Medo ordenou a retirada, já que não seria possível enfrentarem todos os oponentes, que eram em torno de 70. Num local combinado, tinham somente um compa- nheiro levemente ferido e sentiram falta do Muatiânvua. O Comandante perguntou quem seria voluntário para pro- curá-lo, Lutamos e Ekuikui se ofereceram, mas, desta vez, Teoria não havia se pronunciado, e Sem Medo percebeu aí algum progresso. Depois da saída dos dois, o Comandan- te chamou a atenção dos demais companheiros, dizendo que ninguém mais havia se disposto a resgatar Muatiân- vua, pois ele era destribalizado e isso era desmoralizante. Muatiânvua logo retornou com seus dois companheiros: ele havia ficado mais tempo para contar os 16 corpos que haviam derrubado na estrada. Embrenharam-se na mata, onde ouviram, durante toda a noite, as explosões dos mor- teiros dos soldados, à distância. O Comissário reuniu-se com o Comandante e o Chefe de Operações para decidi- rem o que fazer sobre o dinheiro do trabalhador. Sem Medo queria deixar o assunto para lá, pois era mui- to arriscado aproximar-se da aldeia, e tinha o apoio do Chefe de Operações. Porém, o Comissário insistiu que era necessário causar uma boa impressão à população local, e o Comandante acabou cedendo: o Chefe de Operações lideraria o restante do grupo para a Base, enquanto o Co- missário, Sem Medo e mais quatro homens retornariam à aldeia, pela manhã, para encontrarem o mecânico, quando ele saísse de sua casa. O plano deu certo, encontraram o mecânico, que lhes contou sobre a repercussão positiva dos ataques entre os trabalhadores e recusou a devolução do dinheiro, oferecendo-o ao MPLA. Depois de horas de mar- cha, todo o grupo estava de volta à Base. No dia seguinte, foi dia do julgamento de Ingratidão, que havia roubado o dinheiro do trabalhador. Todos os homens condenaram a atitude do companheiro e, na reunião do comando, Comis- sário concluiu que a única pena, neste caso, era a de fuzi- lamento. O Chefe de Operações o defendeu dizendo que esta pena seria muito dura e o Comandante concordou, já que isso ainda poderia causar a revolta dos demais comba- tentes. O Comissário desafiou o Comandante, dizendo que ele não tinha coragem de condenar um traidor. Ingratidão foi condenado a seis meses de prisão, mas Milagre acredi- tava que era uma injustiça, pois o Comandante o culpava apenas por sua origem. 2.5.2. Capítulo 2 – A Base A Base foi construída em uma clareira aberta no meio da floresta do Mayombe. A comida era pouca, mas havia 19 amêndoas nutritivas que matavam a fome dos guerrilhei- ros. Oito novos combatentes chegaram à Base, todos muito jovens, quase sem formação. Vewê, que significa cágado, devido a sua timidez, era parente do Comandante, mas este deixava claro que não teria qualquer privilégio por isso. Em uma das reuniões do comando, Sem Medo disse que haviam mandado novos homens, porém, não enviaram mais comida. O Comandante não desejava ir ao povoado de Dolisie pedir mantimentos a André, seu primo, pois não tinha com ele um bom relacionamento. Ele não confiava que o Chefe de Operações fizesse a viagem, pois era paren- te de Ingratidão. O Comissário foi o escolhido para cumprir esta tarefa e partiu na manhã seguinte. A maioria dos guerrilheiros estava na sala central da Base, que servia de escola, enquanto outros faziam guarda ou eram treinados pelo Comandante. Mundo Novo, um rapaz que havia estudado na Europa, juntou-se a Lutamos, que fugia das aulas. Este dizia não ter pretensões de ser um oficial, não achando necessário os estudos, e Mundo Novo tentava convencê-lo da importância da educação para a revolução. Lutamos insistia que aqueles que estudavam não o faziam para a revolução, mas apenas por um in- teresse pessoal de crescimento, e Mundo Novo dizia que era preciso acreditar que nem todos os homens pensavam desta maneira. Ouvindo a conversa dos dois, Sem Medo aproximou-se e argumentou que não adiantava idealizar um ser humano perfeito quando a realidade era diferente. Mas também era inútil negar a necessidade de estudar, já que essa é a única maneira de se conseguir pensar com a própria cabeça. Mundo Novo ainda tentava argumentar que grandes ho- mens agiram desinteressadamente pela humanidade, mas o Comandante dizia que nunca conheceu um pessoalmen- te. Para ele, os jovens idealistas tomavam esta crença na generosidade humana como uma fé religiosa que era to- talmente desnecessária. Mundo Novo não acreditava no que Sem Medolhe dizia, pois acreditava que suas ações, baseadas no que o marxismo lhe ensinou, eram totalmente desinteressadas. Em Dolisie, o Comissário não encontrava André, que era o responsável pelo envio de alimentos à Base. Foi à escola onde sua noiva, Ondina, dava aulas. A relação entre eles era complicada: a mulher era mais expe- riente, sexualmente, deixando-o pouco à vontade e tornan- do as relações desprazerosas para ambos. Ela o cobrou de ficarem juntos por mais tempo, mas o Comissário dizia que precisava encontrar logo André. Quando surgiu, André ofereceu ao Comissário 500 francos para que ele bebesse uma cerveja e convidou-o para o al- moço, em que seria servida uma galinha. Esses privilégios pagos com o dinheiro do movimento revoltavam o Comis- sário, que sabia das necessidades que seus companheiros passavam no Mayombe. Depois de comerem, André com- binou de encontrá-lo à noite para enviar o carregamento à selva. O Comissário retornava à escola, quando cruzou com Verdade, ele estava com uma mulher e dizia que não pode- ria partir naquela noite. O Comissário foi inflexível, dizendo que Verdade não poderia ficar, mas sentiu-se culpado, pois ele mesmo planejava permanecer mais dias em Dolisie, também por conta de uma mulher. Ao encontrar com Ondina, fizeram amor mais de uma vez, mas os dois estavam mentindo um ao outro, dizendo esta- rem sentindo prazer. A moça acreditava que, com o tempo, seu noivo iria se descontrair e a relação melhoraria. O Co- missário passou a reclamar do comportamento de André, que não se preocupava com as condições dos guerrilheiros, e Ondina disse não ter a mesma opinião sobre ele. Enfim, o Comissário contou-lhe que partiria na mesma noite, por não ter mais nada o que resolver ali, e Ondina reclamou, pois desejava ficar mais tempo com ele. André havia levado poucos mantimentos, o suficiente para dois dias somente, e sugeriu que o Comissário ficasse na cidade para levar uma quantidade maior nos próximos dias. O Comissário, no en- tanto, não suportava mais ficar distante de sua Base, onde o movimento era realmente levado a sério, e disse que par- tiria imediatamente. Chamado para o jantar, o Comissário ressaltou que havia comido galinha no almoço, portanto, não precisava comer novamente, e ainda iria usar os 500 francos que ganhou para comprar comida para seus com- panheiros, dessa forma, deixava clara sua insatisfação com André. O Comissário soube que Verdade fora autorizado por André para permanecer mais dias em Dolisie. O retorno à Base foi feito com pressa e raiva. Ao saber de todos os ocorridos, Sem Medo riu do Comissário, dizendo que ele havia sido muito severo consigo, pois poderia ter ficado em Dolisie, já que não havia qualquer atividade urgente na Base, além de que, com certeza, ninguém enviaria mais mantimentos, sendo necessária a ida de mais um homem para a cidade. O Chefe de Operações ainda havia caçado uma cabra, e a carne os manteria por mais alguns dias. O Comissário foi tomar banho e o Comandante o acom- panhou. Ele perguntou sobre Ondina e comentou que es- tranhava o relacionamento dos dois, questionando sobre a questão sexual. O Comissário demonstrava que havia algum problema e Sem Medo pensava que a única forma de ele entender Ondina seria deitando-se com ela, mas afastava este pensamento, já que ela não o interessava. Por outro lado, dava dicas de como manter uma mulher conquistada permanentemente, ressaltando que não ha- via uma resposta tão clara, já que a teoria é diferente da prática, assim como ocorre na guerra. Sobre André, o Co- mandante disse que ele próprio iria a Dolisie para resolver a questão e o Comissário sugeriu que ele também procu- rasse Ondina, para talvez ajudá-lo em seu relacionamento. 20 Sem Medo foi deitar-se pensando na moça, que havia se oferecido para ele quando chegou à cidade, mas não lhe interessou justamente pela facilidade com que a teria. O jovem guerrilheiro Vewê veio ao Comandante e sentou- -se na sua cama. O Comandante questionou se o garoto havia perdido o medo ou a vergonha, por fazê-lo sem pedir licença, ou ainda se achava que tinha este direito por ser seu parente. O rapaz negou, dizendo que apenas o fazia, pois entendia que o Comandante tinha o mes- mo direito de sentar-se em sua cama, se o quisesse. Sem Medo admirou a postura de Vewê e o elogiou, porém, percebeu que o jovem olhou para a janela, onde outros guerrilheiros se amontoavam para assistir a cena: tudo não passava de uma aposta que havia sido feita. Enfu- recido, o Comandante expulsou grosseiramente Vewê do local. Assistindo o que se passou, o Comissário exaltou-se com Sem Medo, dizendo que ele não poderia falar da- quela maneira com um combatente. Teoria entrou na ca- bana do chefe de grupo kiluanje, onde estavam Milagre, Pangu-AKitina e Ekuikui, além de outros guerrilheiros. Após assistirem à discussão entre o Comandante e o Co- missário, eles alimentavam uma rusga entre kikongos e ki- bundos, duas tribos das quais os chefes se originaram, res- pectivamente. Percebendo a tensão crescente na conversa, o professor tentava encerrar a discussão, porém, os ânimos se exaltaram cada vez mais, até a chegada do Chefe de Operações, que ouviu os gritos e dispersou o grupo. Teoria ficou contente consigo, pois ele havia vencido seu medo ao se intrometer na discussão, ao invés de evitar o confron- to, como faria normalmente. Novo Mundo também vira a discussão entre os chefes e imaginou que estava surgindo aí um conflito que poderia alterar o equilíbrio de forças na organização: finalmente, o Comissário iria se opor ao Co- mandante junto ao Chefe de Operações, podendo destituir o seu poder. No dia seguinte, André não havia enviado mais mantimentos. Sem Medo chamou Lutamos e Muatiânvua para fazerem uma patrulha. Quando estavam no deserto, em uma mon- tanha que não era coberta por árvores, o Comandante per- guntou aos guerrilheiros o que havia acontecido na base que alterara o ânimo de todos. Eles revelaram que havia desconfiança de que o comando estava se dividindo e que, assim, os companheiros também se dividiam, defendendo a um ou outro. Sem Medo esclareceu que a discussão que ocorrera era normal e que não poderia ser motivo de de- sentendimento entre os combatentes. Voltando à Base, o Comissário chamou o Comandante para acertarem-se so- bre o ocorrido do dia anterior. Sem Medo não achava ne- cessário desenterrar o assunto, mas o Comissário insistiu, defendendo que a discussão aberta fora um erro e deveria ter sido travada em uma reunião do comando. Sem Medo argumentou que, pelo contrário, era interessante que os chefes declarassem suas divergências sem considerar isso um pecado e sem esconder a verdade de suas bases. O Comandante desconfiava da estrutura do movimento, que formava militantes que não aceitavam serem critica- dos: isto, futuramente, poderia resultar em um partido e um governo totalitário. Para Sem Medo, o intelectualismo dos dirigentes os afastam da condição de trabalhadores, portanto, dizer que pode haver um governo do proletaria- do se torna uma mentira. Por isso, ele não se imaginava tornando-se um quadro político numa futura Angola inde- pendente. O Comissário discordava, mas compreendia a posição do Comandante, a quem enxergava como um homem solitá- rio. Retornaram aos problemas da Base, como a rixa entre kikongos e kibundos, que poderia estar sendo alimentada pelo Chefe de Operações, com ambições de poder. Defi- niram que era melhor deixar as coisas fluírem, realizando uma nova operação em breve: quando o povo de Cabinda aderisse ao movimento, o tribalismo perderia espaço. Para isso, precisavam de mais comida e enviariam o Chefe de Operações a Dolisie para conversar com o André. Muati- ânvua, que fora marinheiro e tivera contato com diversos povos da África, não podia tolerar o sentimento tribalista que crescia na Base. 2.5.3. Capítulo 3 – Ondina O ânimo dos guerrilheiros se alterava, inflamando as brigas tribalistas. O Comissário agia
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