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Análise Literária do Poema “Tecendo a manhã” de João Cabral de Melo Neto Universidade Federal do Amazonas – UFAM - Faculdade de Letras - FLet. Curso: Letras – Língua e Literatura Francesa – Disciplina: Literatura Brasileira III Professor: Fernando Shelbe - Aluno: Cláudio Araújo Marques TECENDO A MANHÃ 1. Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. Publicado no livro: A educação pela pedra (1966). Estátua do poeta João Cabral de Melo Neto em Recife - Pernambuco. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira "Tecendo a manhã." - Análise Literária do poema de João Cabral de Melo Neto. Integrante da geração de quarenta e cinco, um importante corte na concepção literária nacional, João Cabral de Melo Neto caracterizou-se pela busca da construção consciente do verso. João Cabral de Melo Neto inaugurou um novo modo de fazer poesia em nossa literatura. A essência de sua atividade poética mostra a tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade, que se apresentam como um desafio para a inteligência do poeta. Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e volta-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, jamais apelando para o sentimentalismo. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva, sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto. Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica". Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito. A Educação pela Pedra, 1966; indica a depuração atingida pela poética de João Cabral de Melo Neto. A abordagem da realidade exige um contínuo processo de educação: os poemas devem ser trabalhados de forma rigorosa e sistemática para obterem a consistência e a resistência de uma pedra. Nesse processo, não cabem metáforas: o poeta deve buscar a simetria entre a estrutura da linguagem e da realidade representada. A coletânea reúne 48 poemas marcados pelo didatismo do poema 'A Educação pela Pedra', seu núcleo temático. Para análise: Tecendo a Manhã. João Cabral de Melo Neto "Um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro: de outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzam os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão". Este poema faz parte de um conjunto de meta poemas lançado em mil novecentos e sessenta e seis que consolidaria a abordagem lógica da preciosa poesia de Cabral. O poema apresenta uma construção em metro irregular, os versos não seguem um padrão referente ao número de sílabas poéticas, apesar da divisão em estrofes caracterizar o tratamento das divisões comuns em forma fixa. Quanto ao ritmo, este elemento recebe um tratamento rico, complexo e incomum. O poeta utiliza desde a situação das silabas tônicas e pausas, sem buscar a regularidade padrão na realização dos poemas em forma fixa, realiza reiteradamente das homofonias para através da coincidência sonora e proximidade dos radicais, buscando um padrão sonoro coincidente e harmônico. Este tratamento estabeleceu uma relação original com os elementos de versificação e acrescentou valores importantes a obra deste poeta. Os esquemas de rimas seguem um padrão de sonoridade ao fim de cada verso, na primeira estrofe o substantivo “galo” nos versos pares, alterna-se num metro irregular ausente de coincidência sonora; na segunda estrofe os três primeiros versos terminam com palavras de sonoridade semelhante, a proximidade delas no verso treze chega a realizar uma rima preciosa, pouco comum neste modelo de versificação. Registremos a tensão poética por uma característica comum em Cabral, ainda no verso treze a utilização de um neologismo “entretendendo” que somado a ocorrência descrita anteriormente, estabelece a tensão que encerra as rimas consoantes da segunda estrofe. Os três primeiros versos da segunda estrofe com a flexão verbal no gerúndio realizam a nasalização do inicio de quase todos os versos da segunda estrofe a exceção do último verso. As aliterações dão apoio consistente à realização do ritmo, merece destaque /m/; /t/; /d/;/n/ e /g/. As assonâncias mais marcantes são /a/; /o/ e /ã/, apoiando as pausas necessárias dentro dos versos. Outro dado pertinente é a repetição de palavras, cujo efeito é estabelecer a relação entre substantivo e verbo, merecem destaque: galo, grito, todos, toldos, manhã e as derivações de tecer. Algumas ocorrências merecem atenção especial dentro de leitura criteriosa, os versos três e cinco apresentam a elisão do verbo lançar com as suas devidas flexões, este recurso evita o eco no verso seguinte sem obstruir a reiteração pela repetição que é uma das características marcantes neste poema, talvez uma forma de esquivar-se da anadiplose. Outra ocorrência que merece atenção é no penúltimo verso o vocábulo “tecido” na função de substantivo, retorna no ultimo verso como verbo, em outra reiteração dentro da mesma restrição do vocabulário. Analisando o tratamento estilístico podemos situar o poema como uma alegoria sobre a identidade coletiva através de uma realização, mas esta seria uma leitura mais abrangente que subordinaria o texto a uma única apreciação limitando a exposição de elementos empregados na construção desta figura maior. Anotemos então isoladamente as figuras mais evidentes: "Um galo sozinho não tece a manhã: (v.1) - Prosopopéia. De um que apanhe esse grito que ele (v.3) – Metáfora - Elipse. que apanhe o grito que um galo antes(v.5) – Metáfora – Elipse. os fios de sol de seus gritos de galo (v.8) – Eufemismo. para que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. (v.9 e 10) – Prolepse e Silepse. E se encorpando em tela, entre todos, (v.11) se erguendo tenda, onde entrem todos, (v.12) se entretendendo para todos, no toldo (v.13) – Polissíndeto. se entretendendo para todos, no toldo (v.13) – Paranomasia – Neologismo. (a manhã) que plana livre de armação. (v.14) - Anáfora. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo (v.15) - Anáfora – Metáfora. que, tecido, se eleva por si: luz balão". (v.16) – Metáfora. Não devemos deixar de considerar a abordagem metalingüística deste poema, e aproximar o canto do galo “tecendo a manhã” com o canto do poeta sendo tecido, verso a verso, fio a fio no poema. Esta abordagemtorna-se consistente logo após o neologismo “entretendendo” que funde entreter com entendendo abrindo a dimensão semântica do texto para a metalinguagem. Podemos notar na divisão de estrofes dois movimentos bem assinalados, na primeira estrofe os galos convocam a manhã que se apresenta no verso dez e domina a segunda estrofe de forma leve (aérea), quando convocada no verso dezesseis: “que, tecido, se eleva por si: luz balão.” Diante dos elementos expostos podemos considerar o eu - lírico transitando por duas dimensões de tempo, presente e futuro, e duas situações: individual e coletiva. Nestas oposições um único canto não será capaz de trazer a luz e anular a escuridão, torna-se necessário que o galo convoque todos os galos e que eles possam desta forma invocar a manhã, que pela alocação do artigo definido transforma-se em amanhã, numa clara projeção de futuro. Não devemos permitir que nos escape a paráfrase do provérbio popular: “uma andorinha só não faz verão”; as flexões verbais que partem do presente, passa pelo gerúndio e particípio e retoma o presente no último verso, cobrindo um dos aspectos cruciais na elaboração de texto, a relação. Convém ressaltar quanto a este aspecto que o poema é impecável, fica bastante evidente a repetição, a progressão, a não contradição e a relação no texto elaborado. Para concluir, gostaria de caracterizar estas anotações como leitura, uma forma de identificar e valorizar um texto que demanda interesse e é incessantemente cogitado para debates acerca dos diversos movimentos literários contemporâneos.
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