Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
SEGURANÇA INTERNACIONAL AULA 3 Profª Caroline Cordeiro Viana e Silva 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, avançaremos em nossa discussão sobre segurança internacional, desta vez não apenas com elementos teóricos mas também com temas práticos. Até este momento, vimos as teorias de segurança internacional. Todas as teorias se baseiam nas experiências práticas de nossa sociedade e é importante que tenhamos em mente que, apesar de o conteúdo ser teórico, ele não está descolado de nossa realidade. Nesta aula veremos mais uma corrente teórica e, em seguida, partiremos para a observação prática da realidade. Iniciaremos a aula entendendo o conceito de segurança no pós- colonialismo. Depois disso, avançaremos e refletiremos juntos sobre a guerra. Nosso objetivo será pensar as novas dimensões dos conflitos atuais, a mudança na natureza da guerra, as características da nova guerra e, por fim, o que os analistas internacionais falam sobre a paz e a gestão de conflitos. TEMA 1 – PÓS-COLONIALISMO A corrente teórica de segurança internacional chamada de pós- colonialismo chama atenção para os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, observando as especificidades desses países e a necessidade, neles, da presença de um Estado forte. É considerada uma teoria de abordagem ampla e tem como autor principal Mohammed Ayoob. Ayoob inicia suas publicações em 1984, demonstrando que, no período de Guerra Fria, o conceito de segurança é entendido como uma imunidade estatal para enfrentar as ameaças externas. A teoria pós-colonial também se contrapõe aos argumentos da teoria realista, com as correntes teóricas vistas nas aulas anteriores. Partindo do ponto de que a teoria realista é limitada, o autor se propõe a pensar no terceiro mundo. Ainda vivendo em um período de Guerra Fria e, por isso, utilizando a terminologia terceiro mundo, Ayoob percebe que o conceito de segurança relacionado a ameaças externas representava apenas os países de primeiro e segundo mundos, mas não os países de terceiro mundo: “[...] if not totally absent, so thoroughly diluted as to be hardly recognizable”1 (Ayoob, 2007, p. 319). Com isso, o objetivo de Ayoob (2007) é pensar como e por que o 1 “[...] se não totalmente ausente, tão completamente diluído a ponto de dificilmente ser reconhecido” (Ayoob, 2007, p. 319, tradução nossa). 3 contexto do terceiro mundo era tão radicalmente diferente e quais eram as implicações dessas diferenças para o sistema internacional. Diferentemente dos países desenvolvidos, a sensação de insegurança dos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos emana dos limites de suas fronteiras. Isso não significa que os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos não tenham inseguranças diante de ameaças externas, mas sim que a insegurança desses Estados é uma junção de fontes de ameaças internas e externas. Os Estados desenvolvidos não lidam com tantos problemas de ordem política como os Estados em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Os Estados não desenvolvidos pendulam entre fontes internas e externas de ameaça, como problemas sociais e econômicos. Com isso, esses Estados militarizam problemas políticos e, ao apresentarem estes problemas também como problemas militares, os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento tentam escolher uma arena de confronto com dissidentes domésticos. Essa caracterização do problema de segurança enfrentado pelos Estados do terceiro mundo e suas diferenças em relação ao padrão de problemas de segurança enfrentados pelos Estados desenvolvidos têm sido tratadas em nível doméstico, em cada Estado. Porém, as diferenças são meramente os sintomas de uma divergência muito mais profunda nas respectivas experiências dos Estados desenvolvidos e dos não desenvolvidos. Essas diferenças estão relacionadas a duas grandes variáveis: 1. A história da formação do Estado nos países em desenvolvimento e nos subdesenvolvidos, em contraposição à dos países desenvolvidos; 2. O padrão de recrutamento das elites e o estabelecimento e a manutenção de regimes políticos nos países não desenvolvidos, em comparação ao mesmo processo nos países desenvolvidos. Essas diferenças entre o primeiro e o terceiro mundos determinam as distintas orientações de segurança entre os conjuntos de Estados. É importante perceber que a variável tempo é a proposição dominante na estruturação do conceito pós-colonialista. Países desenvolvidos colhem resultados de anos em processo de desenvolvimento e atingiram estruturas estatais legítimas, coesas e fortes. Em contrapartida, as estruturas estatais dos países não desenvolvidos ainda não atingiram a mesma força e legitimidade. A 4 maioria dos Estados em desenvolvimento e subdesenvolvidos é apenas participante recente no sistema moderno de Estados, que é de origem europeia, em suas características definidoras: “Until a few decades ago they were mere ‘objects’ rather than ‘subjects’ in international relations”2 (Ayoob, 2007, p. 321). A estruturação do sistema internacional é resultado dessa variável tempo: Even after the conclusion of the decolonization process, because of the enormous time gap between the development of modern state structures in the Third World and the development of the same structures in Europe, their capacity to act effectively in a system which is defined primarily by its state-centric character is low. The economic gulf between the developed Western and developing Southern states, with limited and partial exceptions, adds to the latters’ ineffectiveness as participants in the system3 (Ayoob, 2007, p. 321). Esse lapso temporal entre colonizadores e colônias, mesmo depois da independência, geram no sistema internacional dois tipos de atores: atores primários – Estados europeus, América do Norte e Oceania; e atores secundários – os recém-independentes, o terceiro mundo, os países em desenvolvimento e os subdesenvolvidos. Outro agravante está no processo de independência: as fronteiras dos países subdesenvolvidos e até mesmo dos em desenvolvimento foram desenhadas pelos colonizadores. Muitas vezes, por conveniência administrativa; outras, por algum tipo de compensação oferecida a concorrentes coloniais. Como resultado desse processo, essas estruturas ainda não desenvolveram a capacidade de assegurar uma identidade de população em seus Estados e também de seus regimes políticos. Portanto, a desarmonia interna e a falta de identificação constituem uma ameaça forte às estruturas de Estado dos países não desenvolvidos. O problema é acentuado quando se analisa o nível de consenso sobre as questões sociais e as políticas fundamentais, nas sociedades desses Estados (Ayoob, 2007, p. 321). É possível identificar na corrente pós-colonialista mais um grande avanço no conceito de segurança. O pós-colonialismo contribui para isso ao fornecer 2 “Até algumas décadas atrás, eram meros ‘objetos’ em vez de ‘sujeitos’, nas relações internacionais” (Ayoob, 2007, p. 321, tradução nossa). 3 “Mesmo após a conclusão do processo de descolonização, devido ao enorme intervalo de tempo entre o desenvolvimento das estruturas estatais modernas no terceiro mundo e o desenvolvimento das mesmas estruturas na Europa, sua capacidade de atuar efetivamente em um sistema que é definido principalmente por seu caráter centrado no Estado é baixo. O fosso econômico entre os Estados ocidentais desenvolvidos e o Sul em desenvolvimento, com exceções limitadas e parciais, contribui para a ineficácia dos últimos como participantes do sistema” (Ayoob, 2007, p. 321, tradução nossa). 5 uma nova variável para a análise da segurança internacional: a variável tempo, ao pensar na distância entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, que pouco se afastaram da colonização e de seus resultados, tendo em perspectiva os atoresdo cenário internacional. Ponderando especificamente sobre os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, é importante notar que desenvolvimento econômico desigual, com diferenças econômicas, em uma população, grandes, crescentes e flagrantes em termos de riqueza e renda, tensões comunitárias e étnicas são fatores que contribuem para a falta de consenso social sobre as questões fundamentais e sobre o caráter não representativo da maioria dos regimes nos países não desenvolvidos, o que se reflete, também, nas constantes ameaças internas a sua segurança e à segurança das estruturas estatais. Para Ayoob (2007), esses inúmeros fatores iluminam a grande disparidade entre o que é considerado segurança nos países desenvolvidos e o que é considerado segurança nos países em desenvolvimento: “The dimensions of the security problem, and of the concept of security itself, in the Third World are, therefore, very different from those applied to, and common in the literature of, the developed West”4 (Ayoob, 2007, p. 323). Porém, o distanciamento entre as sensações de segurança não aparece apenas em sua construção temporal. O conflito de visões fica claro no cenário internacional, em que os Estados desenvolvidos definem uma agenda internacional de segurança com o propósito de pensar na estabilidade e segurança internacional como um todo. Isso tem graves efeitos negativos sobre os Estados não desenvolvidos, tanto no que diz respeito aos temas internos, como nas causas de sua insegurança. Os temas da agenda internacional de segurança costumam ter pouco, ou até mesmo nenhum, vínculo com os temas de segurança dos Estados não desenvolvidos. Com isso, as ameaças internas se agravam e rapidamente passam para o cenário internacional, levantando a possibilidade de intervenção dos países desenvolvidos. Ayoob segue desenvolvendo sua pesquisa e em 1996 publica um capítulo de livro em que apresentará novos pontos relevantes para o pensamento pós- 4 “As dimensões do problema de segurança e do conceito de segurança em si, no terceiro mundo, são, portanto, muito diferentes daquelas aplicadas e comuns na literatura do Ocidente desenvolvido” (Ayoob, 2007, p. 323, tradução nossa). 6 colonial. O autor passa a pensar na norma internacional, na maneira como o direito internacional pensa os direitos humanos e como essa norma representa a forma de lidar com a segurança dos países desenvolvidos, mas não reflete os problemas de segurança enfrentados nos países não desenvolvidos. A comunidade internacional pensou os direitos humanos com ênfase nos direitos civis e políticos, enquanto que a história dos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos demonstra que os direitos salvaguardados devem ser aqueles para os seres humanos, independentemente de nacionalidade ou particularidade de Estado. Na década de 1960, é possível perceber um ponto de mudança na ótica dessa regra: a Convenção Internacional dos Direitos Humanos reconhece indivíduos e grupos de indivíduos independentes de seus vínculos estatais; porém, a aplicabilidade da regra nos países de terceiro mundo segue enfrentando dificuldades. O conceito de direitos humanos depende da existência e do bom funcionamento dos Estados industrializados, representativos e responsivos, o que nem sempre se encontra nos países não desenvolvidos. A comunidade internacional pressiona os Estados pós-coloniais a adaptarem a sua realidade à mesma vivida pelos países desenvolvidos e é isso que acontece com os direitos humanos e também com outras manifestações estatais, como a lógica econômica liberal. Todos esses aspectos assinalados por Ayoob (2007) representam um avanço no conceito de segurança ao demonstrarem que não é possível seguir o mesmo padrão em todos os Estados: torna-se necessário sempre considerar as variáveis internas e as diferentes ameaças que advêm de cada uma dessas variáveis. TEMA 2 – NOVAS DIMENSÕES DO CONFLITO Para entendermos a mudança nas dimensões dos conflitos contemporâneos, é importante termos em mente que a configuração atual dos conflitos é reflexo da evolução histórica da sociedade. Essa evolução histórica tem um importante momento, que foi a Guerra Fria. A Guerra Fria é um importante marco para as relações internacionais e isso ocorre por ela ter sido o conflito que mais polarizou o mundo, uma guerra de ideologias que mostrou, entre várias capacidades, a potência bélica dos dois polos envolvidos. Após meio século de bipolaridade, o fim da Guerra Fria 7 suprimiu o polo socialista do sistema internacional. Além disso, foi possível observar que, nesse sistema internacional, não mais viveríamos o legado de duas potências e os Estados Unidos da América (EUA) demonstravam sua força militar e hegemonia estratégica global. Assim, conforme disse Villa (2019): “[...] o fim da Guerra Fria não se limitou apenas a modificar a distribuição de poder, mas alterar a própria natureza do poder e do conflito”. Na história da sociedade ocidental contemporânea tivemos sempre o poder alinhado à força militar. Isso advém do curso histórico da sociedade, com as experiências da I Guerra Mundial, II Guerra Mundial e Guerra Fria. Porém, o fim da Guerra Fria demonstra um jogo de poder estratégico-militar, um jogo de poder econômico e um terceiro jogo de poder de relações transnacionais, de natureza múltipla e não necessariamente estatal. Ao longo da Guerra Fria, as áreas de maior preocupação nos planos militares dos EUA eram aquelas de confronto entre os EUA e o bloco soviético, Centro e Sudeste da Europa e Extremo Oriente. Porém, desde o fim da Guerra Fria, essas áreas perderam o significado estratégico para os EUA (com exceção da Coreia do Norte) e outras áreas ganharam atenção da política de defesa americana, como: Golfo Pérsico, bacia do Mar Cáspio e mar da China Meridional. Essa mudança de estratégia dos EUA tem ênfase na proteção de suplementos vitais, especialmente petróleo e gás natural. Enquanto, na Guerra Fria, a prioridade era manter e montar linhas e alianças ideológicas, o fim da Guerra Fria representou o início da competição por acesso a esses suplementos vitais e econômicos. A possibilidade de interrupção de fornecimento desses suprimentos naturais acarretaria graves consequências econômicas aos países importadores e isso faz com que essas fontes de recursos sejam uma preocupação nacional significativa. Além disso, com o consumo global de energia subindo cerca de 2% ao ano, a competição pelo acesso a grandes reservas de energia só aumentará, nos próximos anos (Klare, 2001). Michael Klare (2001) chama atenção para essa mudança na postura dos EUA e também das outras maiores potências mundiais. Em seu texto, Klare (2001) constata que o fim da Guerra Fria possibilita que todas as potências mundiais reavaliem seus esforços estratégicos. Essa reavaliação transfere o foco dos países globalizados para os recursos naturais estratégicos para as suas economias e isso inclui petróleo, gás natural e também água potável e recursos minerais. 8 Em outras partes do mundo, surgiram conflitos localizados para o controle de madeira e minerais valiosos. Normalmente, esses conflitos envolvem uma luta entre elites ou tribos concorrentes sobre a renda derivada das exportações de mercadorias. Em Angola e Serra Leoa, por exemplo, grupos rivais estão lutando pelo controle de lucrativos campos de diamantes; na República Democrática do Congo (DRC), o conflito diz respeito tanto ao cobre quanto aos diamantes; e em partes do sudeste da Ásia, vários grupos estão brigando por estandes valiosos de madeira. O recente derramamento de sangue em Bornéu surgiu de confrontos entre os dayak, indígenas, que há muito ocupavam as extensas florestas de Bornéu, e os colonos de Java e Madura, levados pelo governo indonésio para colher toda essa madeira. Embora não sejam uma ameaça diretaà segurança das grandes potências, esses conflitos podem levar ao envio de forças de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU) – como em Serra Leoa – que, assim, impõem demandas significativas à capacidade mundial de gerenciar a violência étnica e regional (Klare, 2001). Todos esses fenômenos – aumento da competição pelo acesso às principais fontes de petróleo e gás, atrito crescente pela alocação de água compartilhada e guerras internas por mercadorias de exportação valiosas – produziram uma nova geografia do conflito, uma cartografia reconfigurada na qual os recursos fluem, ao invés de divisões políticas e ideológicas. TEMA 3 – MUDANÇA NA NATUREZA DA GUERRA No tema anterior vimos que a Guerra Fria, desde o seu início até o seu fim, gerou mudanças nas percepções mundiais de segurança. Percebemos que o repertório de ameaças no sistema internacional se tornou mais complexo e difuso. Isso representa novas dimensões do conflito, mas essas novas dimensões mudam a natureza da guerra? Sim. Conforme mencionamos, com o fim da Guerra Fria começam a aparecer rivalidades priorizadas por recursos naturais que são ativos econômicos. A existência desses conflitos, sobretudo no sul da Ásia, na ex-Iuguslávia, na África, a partir dos anos de 1980, dificilmente poderiam ser explicados com as teorias clássicas de segurança internacional. Diante do processo de globalização, os conflitos não se limitam a um só país ou mesmo a uma só região ou motivo. A nova natureza da guerra dificulta a distinção entre nacional e internacional. 9 Segundo Mary Kaldor (2012), toda sociedade tem sua própria forma característica de guerra. O que tendemos a perceber como guerra, o que os formuladores de políticas e líderes militares definem como guerra é, de fato, um fenômeno específico que se formou na Europa, em algum lugar, entre os séculos XV e XVIII, embora tenha passado por várias fases diferentes, desde então. Foi um fenômeno intimamente ligado à evolução do Estado moderno. Kaldor organiza a natureza das guerras antigas para poder ilustrar a nova natureza da guerra. As guerras tradicionais eram um fenômeno estatal, público, podendo ser organizadas conforme o Quadro 1. Quadro 1 – Evolução da guerra tradicional Séculos XVII e XVIII Século XIX Início do século XX Final do século XX Tipo de política Estado absolutista Estado-Nação coalizões de Estados, Estados multinacionais e impérios blocos Objetivos da guerra razões de Estado; conflitos dinásticos; consolidação de fronteiras conflitos nacionais conflitos nacionais e ideológicos conflitos ideológicos Tipo de exército mercenário e profissional profissional, com recrutamento exército de massa elite científico- militar/exército profissional Técnica militar uso de armas de fogo, manobras defensivas, cercos ferrovias e telégrafos, mobilização rápida poder de fogo maciço; blindados e aeronaves armas nucleares Economia de guerra regularização de taxas e empréstimos expansão da administração e burocracia economia mobilizada complexo industrial-militar Fonte: Adaptado de Kaldor, 2012, tradução nossa. Cada uma dessas fases descritas no Quadro 1 foi caracterizada por um modo diferente de guerra, envolvendo diferentes tipos de forças militares, diferentes estratégias e técnicas, diferentes relações e meios de guerra. Mas, apesar dessas diferenças, a guerra era reconhecidamente o mesmo fenômeno: uma construção do Estado moderno territorializado, racional, ordenado hierarquicamente e com fronteiras definidas. À medida que o Estado moderno, centralizado e territorializado dá lugar a novos tipos de políticas, emergentes de 10 novos processos globais, a guerra, como a concebemos, está se tornando, atualmente, um anacronismo. Samuel Huntington (1999), em sua obra O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial, aborda essa nova natureza da guerra. Segundo o autor, após a Guerra Fria os conflitos internacionais passam a ter como ponto- chave a cultura. Huntington (1999) alega que povos pertencentes a diferentes identidades culturais entrariam em conflito, de modo que a política contemporânea de segurança terá como foco principal a preservação e o fortalecimento da integridade cultural. O trabalho de Huntington (1999) foi bastante criticado, mas muito debatido na área de segurança internacional. O ponto principal do debate foi a cultura: internacionalistas acreditam que o problema não é termos culturas diferentes, mas sim a desigualdade que divide o mundo entre países desenvolvidos e não desenvolvidos. Sempre teremos países marginalizados, em que a globalização não atingiu a mesma intensidade que em outros países do mundo. O ponto em comum entre todos os analistas é a mudança na natureza da guerra. As diferentes interconexões de nossa sociedade contemporânea dificultam a distinção entre o nacional e o internacional e os conflitos não se restringem a um só país ou mesmo a uma só região. Com isso, o elemento central dos estudos de segurança – o Estado – deve ser repensado. Para Kaldor (2012), podemos definir as novas guerras como um novo tipo de conflito violento, em que as partes envolvidas geralmente não têm objetivos geopolíticos ou ideológicos. Esses novos conflitos tendem a envolver uma identidade particular; envolvem exércitos, forças policiais, gangues, milícias e forças paramilitares, organizados de forma descentralizada e utilizando métodos não tradicionais. Os métodos variam: pode ser expulsão de populações, assassinatos em massa, intimidação política, intimidação econômica e psicológica e outras quaisquer formas de gerar medo e terror entre civis. TEMA 4 – CARACTERÍSTICAS DA NOVA GUERRA Para entender o presente e o passado recente, é preciso compreender o impacto da globalização na política de sobrevivência dos Estados. As políticas têm novos atributos na contemporaneidade. Antes de tudo, esses atributos são de ordem horizontal e vertical, transnacional e nacional. A principal implicação da globalização é que a soberania territorial não é mais viável. O esforço para 11 recuperar o poder em um domínio espacial em particular apenas enfraquecerá ainda mais a capacidade de influenciar eventos (Kaldor, 2012). As novas guerras são guerras globalizadas. Elas envolvem a fragmentação e a descentralização dos Estados. A participação nas guerras é baixa em relação à população, tanto por falta de pagamento quanto por falta de legitimidade das partes em guerra. Como a produção doméstica é muito pequena, o esforço de guerra depende fortemente da predação local e do apoio externo. As batalhas são raras; a maior parte da violência é dirigida contra civis e a cooperação entre facções em guerra é comum. Tipicamente, as novas guerras são caracterizadas por uma multiplicidade de tipos de unidades de combate, públicas e privadas, estatais e não estatais ou algum tipo de mistura. Podemos identificar cinco tipos principais: 1. forças armadas regulares ou seus remanescentes; 2. grupos paramilitares; 3. unidades de autodefesa; 4. mercenários estrangeiros; 5. tropas estrangeiras regulares. As forças armadas regulares estão em decadência, particularmente em áreas de conflito. Cortes nos gastos militares, prestígio em declínio, escassez de equipamentos, de peças de reposição, combustível e munição e treinamento inadequado contribuem para uma diminuição de sua atuação. As unidades de combate mais comuns são grupos paramilitares, ou seja, grupos autônomos de homens armados, geralmente centrados em um líder individual. Os grupos paramilitares são frequentemente compostos por soldados – até mesmo unidades inteiras são compostas por soldados baixados, da reserva ou desertores; e também por voluntários, jovens frequentemente desempregados em busca de um meio de vida, uma causaou uma aventura. Eles raramente usam uniformes, o que os torna difíceis de serem distinguidos dos não combatentes, embora usem roupas ou sinais distintivos. As unidades de autodefesa são compostas por voluntários que tentam defender suas localidades. Tais unidades são muito difíceis de se sustentarem, principalmente por causa de recursos inadequados. Onde não são derrotados, muitas vezes acabam cooperando com outros grupos armados e sendo sugados para o conflito. 12 Mercenários estrangeiros incluem indivíduos contratados por unidades de combate particulares e outros grupos de mercenários. Um fenômeno crescente são as empresas de segurança privada, que frequentemente recrutam soldados aposentados da Grã-Bretanha ou dos EUA, contratados pelos governos e por empresas multinacionais e geralmente interconectados. A categoria final é de tropas estrangeiras regulares, geralmente operando sob a égide de organizações internacionais, principalmente a ONU, mas também a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em geral, essas tropas não estão diretamente envolvidas na guerra, embora sua presença seja muito significativa. Esses vários grupos operam de forma autônoma e em cooperação. O que parecem ser exércitos são, na verdade, coalizões horizontais de unidades separatistas das forças armadas regulares, milícias locais ou unidades de autodefesa, quadrilhas criminosas, grupos de fanáticos e apoiadores que negociaram parcerias, projetos comuns ou divisões de trabalho. Por causa do custo, de sua logística e infraestrutura e de habilidades inadequadas, esses grupos raramente usam armas pesadas, embora, onde estas sejam usadas, possa-se muito bem fazer uma diferença considerável. TEMA 5 – PAZ E GESTÃO DE CONFLITOS Para entendermos o que Rafael Villa (2019) chama de paz e gestão de conflitos é necessário primeiro compreendermos o conceito de conflito que é utilizado pelo autor e também por nós. Villa (2019) cita, ao longo do seu texto, dois conceitos de conflito – aqui trabalharemos com três conceitos. São eles: 1. conflito armado interestatal: conflito armado entre dois ou mais Estados; 2. conflito armado intraestatal: conflito entre um governo e um grupo não governamental que lhe é opositor. 3. conflito armado intraestatal internacional: conflito entre um governo e um grupo não governamental opositor, em que existe o apoio de tropas internacionais a um dos lados em conflito. Dessa forma, tropas estrangeiras participam ativamente do conflito. Com o fim da Guerra Fria, se observa o predomínio de conflitos intraestatais. E, junto com isso, as práticas associadas à gestão e resolução de conflitos ganham força. Por gestão de conflitos se entende a limitação, mitigação 13 ou contenção de conflitos violentos. Essa gestão envolve processos com objetivo de resolver a causa originária do conflito. Essa gestão usualmente ocorre de maneira regional: cada vez mais, atores regionais passam a se envolver nessa atividade. Nesse processo, é crucial a desmobilização de ex-combatentes, a reconstrução do tecido social, o estabelecimento de instituições políticas e a criação de formas de desenvolvimento econômico e social. Em conclusão, as práticas mobilizadas para a gestão de um conflito, com o propósito de controlar e conter o uso da força armada, poderão ser convencionadas para resolvê-lo, sendo o cessar-fogo uma forma de paz. NA PRÁTICA O Programa de Dados de Conflitos de Uppsala (Uppsala Conflict Data Program – UCDP) é o principal provedor mundial de dados sobre violência organizada e o mais antigo projeto de coleta de dados sobre guerras civis, com uma história de quase 40 anos. Sua definição de conflito armado tornou-se o padrão global de como os conflitos são sistematicamente definidos e estudados. O UCDP produz dados de alta qualidade, sistematicamente coletados, com cobertura global, comparáveis entre casos e países e com séries temporais longas, atualizadas anualmente. Além disso, o programa é uma fonte única de informação para profissionais e formuladores de políticas (UCDP, [S.d.]). O UCDP também opera e atualiza continuamente seu banco de dados on- line (UCDP Conflict Encyclopedia) sobre conflitos armados e violência organizada, em que informações sobre vários aspectos do conflito armado, como dinâmica e resolução de conflitos, estão disponíveis. Esse banco de dados interativo oferece um sistema baseado na web para visualização, manipulação e download de dados, incluindo conjuntos de dados prontos sobre violência organizada e manutenção da paz, todos gratuitos (UCDP, [S.d.]). Entre no site da UCPD e navegue para descobrir um pouco mais sobre os conflitos armados que estamos vivendo atualmente no mundo: <https://ucdp.uu.se/> (UCDP, [S.d.]). Quantos deles são perto do Brasil? Podemos verificar uma concentração desses eventos em algum continente? Entre no site e confira! 14 FINALIZANDO Nesta aula, fizemos um importante avanço em nossos estudos de segurança internacional. Para além do conceito de segurança, vimos também as alterações nos conflitos mundiais no pós-Guerra Fria. Para passar por todos esses temas, nossa aula foi dividida em cinco grandes tópicos. No primeiro tema da aula, estudamos o pós-colonialismo, com uma corrente teórica que chama atenção para os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, observando as especificidades desses países e a necessidade de eles terem um Estado forte. Na continuidade, fomos para o Tema 2, em que falamos das novas dimensões do conflito. Vimos, juntos, que existe uma nova geografia do conflito, em que os recursos naturais passam a fazer parte dos interesses nacionais, ao invés de divisões políticas e ideologias. Em seguida, abordamos que houve uma mudança na natureza da guerra, em que as diferentes interconexões de nossa sociedade contemporânea dificultam a distinção entre o nacional e o internacional. Nos conflitos, as partes envolvidas geralmente não têm objetivos geopolíticos ou ideológicos. Compreendendo a natureza da nova guerra, vimos as suas características. Conversamos sobre forças armadas regulares, grupos paramilitares, unidades de autodefesa, mercenários estrangeiros e tropas estrangeiras regulares. E, por fim, o último tema de nossa aula foi sobre paz e gestão de conflitos, em que abrangemos os conceitos de conflito interestatal, conflito intraestatal e conflito intraestatal internacional. 15 REFERÊNCIAS AYOOB, M. Security in the Third World: The Worm About to Turn? In: HANSEN, L.; BUZAN, B. (Ed.). International Security: volume 1. 1. ed. Londres: Sage Publications, 2007. p. 317-329. HUNTINGTON, S. O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial. Lisboa: Gradiva, 1999. KALDOR, M. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Cambridge: Polity Press; Stanford: Stanford UP, 2012. KLARE, M. The New Geography of Conflict. Foreign Affairs, v. 80, n. 3, p. 49- 61, 2001. UCDP – Uppsala Conflict Data Program. Uppsala, [S.d.]. Disponível em: <https://ucdp.uu.se/>. Acesso em: 20 nov. 2019. VILLA, R. D. Segurança internacional. Curitiba: InterSaberes, 2019.
Compartilhar