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1 A Revolução Industrial: notas sobre o debate historiográfico Cláudia Rodrigues [Doutora em História pela UFF. Professora Adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO] Analisar questões historiográficas acerca da Revolução Industrial implica a escolha dentre vários recortes analíticos possíveis, haja vista a multiplicidade de questões presentes nos muitos trabalhos já realizados sobre o tema. De início, pode-se perguntar de que revolução se trata: se a chamada “primeira revolução industrial” – da “era da máquina à vapor” tida como o estudo do processo inglês, da segunda metade do século XVIII; se o processo de industrialização dos demais países da Europa como extensão do fenômeno inglês; ou se se trata da chamada “segunda revolução”, de fins do século XIX – da era da eletricidade e do motor à explosão. No caso de se tratar da primeira opção, muitas questões podem ser analisadas, tais como: o papel da revolução inglesa do século XVII no desencadeamento da Revolução Industrial; se houve fatores determinantes no surgimento da industrialização na Inglaterra ou se tratou-se de um conjunto de fatores; se a Revolução Industrial inglesa representou continuidades ou rupturas, no já conhecido debate evolução X revolução no que diz respeito às inovações tecnológicas; os debates sobre a o papel da expansão dos mercados no desenvolvimento industrial (se o que predominou foi a expansão do mercado externo ou a do mercado interno); as diferentes teses sobre os marcos cronológicos do processo de transformação; havendo ainda as questões sobre se a revolução foi uma transformação técnica, de mercado, das relações sociais de produção ou se foi a combinação de todas estas transformações; sem falar nas análises que procuram relacionar a Revolução Industrial à questão da modernidade e a forma pela qual esta modernidade é compreendida; dentre outros temas possíveis. A minha opção para o desenvolvimento da questão a análise da Revolução Industrial inglesa entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do XIX. A justificativa é ser esta chamada “primeira revolução industrial” o ponto de partida para uma série de 2 transformações sócioeconômicas que demarcaram a configuração da sociedade capitalista a partir de então. Dentre estas mudanças, proponho-me a analisar três de fundamental importância para a compreensão da grande transformação que o processo de industrialização representou sobre a sociedade contemporânea: 1. A relação entre Revolução Industrial e o capitalismo; 2. A relação entre industrialização e a formação do proletariado. 3. O papel das transformações das técnicas na Revolução Industrial. No que diz respeito à relação entre Revolução Industrial e Capitalismo, há uma recorrência em parte da historiografia de associar o Capitalismo a um tipo de economia e de sociedade que, em sua forma desenvolvida, surgiu a partir da Revolução Industrial do século XVIII, na Inglaterra, como afirma, por exemplo, TOM BOTTOMORE (Dicionário do Pensamento Social do século XX). Esta referência a “forma desenvolvida” do Capitalismo ou ao chamado “capitalismo industrial” remete à tese de que, na verdade, teria existido uma primeira fase do Capitalismo, na Europa Ocidental, entre os séculos XV e XVIII, caracterizado como fase mercantil, cujos atores sociais seriam os comerciantes, como também afirma BOTTOMORE. Esta concepção está baseada na idéia de muitos historiadores, tal como PIERRE DEYON (O Mercantilismo), de que esta “fase inicial” do Capitalismo representou a época do “Capitalismo Comercial”. Concepção esta que recebeu uma de suas primeiras críticas com o trabalho de HORÁCIO CIAFARDINI (“Capital, comércio e capitalismo: a propósito do chamado ‘capitalismo comercial’”) para quem é uma redundância falar em “Capitalismo Comercial”, já que não há capitalismo que não seja mercantil. Para ele, a mera existência de um determinado incremento do intercâmbio não define a natureza capitalista ou seus efeitos. O que define o Capitalismo, ao seu ver, é a transformação do trabalho, ou seja, a proletarização dos produtores diretos, através da mais-valia. Com efeito, na Época Moderna, o acentuado crescimento comercial não se fez acompanhar de transformações mais estruturais da produção, que continuavam pré-capitalistas, posto que baseadas no artesanato, na servidão ou na escravidão. Segundo esta tese de CIAFARDINI, tão redundante quanto o termo “Capitalismo comercial” é o de “Capitalismo Industrial”, na 3 medida em que seria somente com a industrialização (entendida como a proletarização da força de trabalho) que se teria o Capitalismo. Neste ponto, contudo, creio que a utilização termo é viável na medida em que se pretende diferenciar, por exemplo, o capitalismo industrial do monopolista,; ou seja, enquanto momentos distintos do processo do desenvolvimento capitalista. O que, ao meu ver, é bem diferente da questão em torno do termo “capitalismo comercial”, cuja crítica de CIAFARDINI é totalmente pertinente. E é ainda sobre esta questão que me deterei um pouco mais. Sem ter a intenção de historicizar a produção sobre este conceito de “capitalismo comercial”, bem como os intensos debates que em torno dele já se desenvolveu, opto por analisar uma das formas pelas quais ele vem sendo discutido atualmente, qual seja a de ELLEN WOOD, cujo trabalho A Origem do Capitalismo, propõe novos caminhos de análise do que se convencionou chamar período da transição; ou seja, da origem do Capitalismo. E esta sua análise nos permite refletir sobre a relação entre Capitalismo e industrialização na medida em que ela propõe novas formas de se compreender a questão. Seu ponto de partida é justamente a crítica que faz àquela concepção de “capitalismo comercial”, ainda que sem utilizar este termo. Usando a expressão “modelo mercantil” para se referir às análises que se inserem no quadro das explicações das origens do Capitalismo via “capitalismo mercantil/comercial”, ELLEN WOOD afirma que o grande equívoco destas análises é presumir que o Capitalismo sempre existiu, ao sugerirem que ele surgiu quando o mercado foi libertado das restrições associadas ao feudalismo e quando se expandiram as oportunidades de comércio juntamente com o desenvolvimento das cidades, principalmente na Baixa Idade Média. Tem-se, assim, segundo ELLEN WOOD, um dos pressupostos mais comumente ligados ao “modelo mercantil”, que é a associação do capitalismo com as cidades, na suposição de que, desde o começo, as cidades foram um locus do capitalismo embrionário. Segundo esta tese, as cidades que se desenvolveram na Europa, na Baixa Idade Média, com uma autonomia singular e sem precedentes, seriam dedicadas ao comércio e dominadas por uma classe autônoma de habitantes de burgos (ou burgueses), que viria a se libertar de uma vez por todas dos grilhões das antigas restrições feudais. Esta libertação da economia urbana, da atividade comercial e da racionalidade mercantil, acompanhada pelos inevitáveis aperfeiçoamentos das técnicas de produção que decorreriam da emancipação do comércio, aparentemente bastariam para se explicar 4 a ascensão do capitalismo moderno (pp.22-23). Relacionado a este pressuposto está a associação do burguês como um agente do progresso e, por conseguinte, a associação de burguês com comerciante e, posteriormente, com capitalista. Deste modo, e segundo este “modelo mercantil”, o capitalismo teria surgido quando os grilhões do feudalismo foram retirados; pressupondo-se que já estaria presente nos interstícios do feudalismo, simplesmente à espera de ser libertado. Com efeito, as explicações para a sua origem restringir-se-íam à explicação da eliminação dos obstáculos e do rompimento dos grilhões, e não a criação de uma lógica econômica inteiramente nova; presumindo-se assim, que o sistema de comércio europeu se transformouem capitalismo por um simples processo de crescimento; ou seja, que o comércio ou a produção para o comércio transformou-se em capitalismo através da mera expansão (pp.41-42 e 49). Uma das primeiras proposições de ELLEN WOOD, no sentido de desconstruir este “modelo” foi desvincular capitalista de burguês e capitalismo de cidade/comércio urbano. A segunda proposição foi apresentar a diferenciação entre o mercado como oportunidade e o mercado como imperativo. Para ela, no “modelo mercantil”, o mercado aparece como oportunidade de comprar e vender, a ser aproveitada onde e sempre que possível. O equívoco desta concepção – que é devedora da tese de Adam Smith de que o “homem econômico” tinha uma propensão natural para comerciar, permutar e trocar é a não identificação de que a característica distintiva dominante do mercado capitalista não é a oportunidade nem a escolha, mas, ao contrário, a compulsão. O que ela observa em dois sentidos. Primeiramente, que a vida material e a reprodução social no capitalismo são universalmente mediadas pelo mercado, de forma que de um lado ou de outro todos os indivíduos têm que entrar nas relações de mercado para obter acesso aos meios de subsistência. Em segundo lugar, que os ditames do mercado capitalista – seus imperativos de competição, acumulação, maximização dos lucros e crescente produtividade do trabalho – regem não apenas todas as transações econômicas, mas as relações sociais em geral. Esta argumentação de WOOD é devedora da tese de KARL POLANYI. Tal afirmação de ELLEN WOOD tem como base a tese de KARL POLANYI – em A Grande Transformação – de que é preciso distinguir as sociedades com mercados, como as que existiram em toda a história escrita, das “sociedades de mercado”. Nas primeiras, 5 as relações e práticas econômicas estavam inseridas ou imersas em relações não econômicas (de parentesco, comunais, religiosas e políticas) e os mercados se mantinham como um aspecto subalterno da vida econômica, funcionando de acordo com uma lógica muito distinta da do mercado capitalista moderno. Já nas “sociedades de mercado”, a própria sociedade torna-se um apêndice do mercado; em vez de uma economia inserida nas relações sociais, as relações sociais é que se inserem na economia. Para ELLEN WOOD, é esta noção de mercado capitalista, como forma social específica, que se perde quando a transição das sociedades “pré-capitalistas” para as sociedades capitalistas é apresentada como uma extensão ou maturação mais ou menos natural de formas sociais já existentes, como uma transformação mais quantitativa do que qualitativa (pp.16-17). E nesse sentido, é possível dizer que suas afirmações vão ao encontro das de CIAFARDINI acima mencionadas. Deste modo, WOOD descarta as idéias de que o simples desenvolvimento do comércio seja a origem do capitalismo. Longe, porém, de associar esta origem ao processo de industrialização, ELLEN WOOD vai afirmar que o capitalismo, com todos os seus impulsos sumamente específicos de acumulação e maximização do lucro, não nasceu na cidade, mas no campo, num lugar muito específico (a Inglaterra) e em época muito recente da história da humanidade (a Época Moderna). Não implicou uma simples extensão ou expansão do escambo ou da troca, mas de uma transformação completa das relações e práticas humanas. Esta sua tese terá desdobramentos importantes para a compreensão da natureza da Revolução Industrial. Por isso, creio que é necessário nos determos um pouco mais na forma como ela a desenvolve. Segundo WOOD, em todas as sociedades pré-capitalistas, os produtores tinham acesso direto aos meios de sua reprodução, particularmente a terra, e quando seu trabalho excedente era apropriado por exploradores, isto era feito através do que Marx chamou de meios “extra-econômicos” (ou seja, através da coerção direta, exercida por grandes proprietários ou Estados que empregavam sua força superior, seu acesso privilegiado ao poder militar, jurídico e político). Essa era a diferença básica entre todas as sociedades pré- capitalistas e o capitalismo. Diferença que, para ela, nada tem a ver com o fato de a produção ser urbana ou rural, mas sim com as relações particulares de propriedade entre produtores e 6 apropriadores, seja na indústria ou na agricultura. Somente no capitalismo é que o modo de apropriação dominante baseia-se na desapropriação dos produtores diretos legalmente livres, cujo trabalho excedente é apropriado por meios puramente “econômicos”. Neste modo de produção, esta relação singular entre produtores e apropriadores é mediada pelo “mercado”, que age não apenas como um simples mecanismo de troca ou distribuição, mas como o determinante e regulador principal da reprodução social. Esse sistema singular de dependência do mercado acarreta requisitos e compulsões sistêmicos específicos, que não são compartilhados por nenhum outro modo de produção anterior: os imperativos da competição, da acumulação e da maximização do lucro, significando que o capitalismo pode e deve se expandir constantemente, de maneiras e em graus que não se parecem com os de nenhuma outra formação social. (pp.76-79) Dentro desta perspectiva, ELLEN WOOD afirma que o comércio internacional da Europa até pouco depois do século XVII, ainda estava livre dos imperativos de mercado. De modo que era um comércio de transporte, no qual os mercadores compravam produtos num local para vendê-los com lucro em outro. Não havendo, ainda, um mercado único e unificado, em que as pessoas auferissem lucro por produzirem por um custo mais eficiente, em concorrência direta com outras pessoas no mesmo mercado. Este comércio ainda tendia a ser de mercadorias de luxo, destinadas a famílias mais prósperas ou atendendo às necessidades e aos padrões de consumo das classes dominantes. Não havia ainda um mercado de massa para produtos de consumo baratos e cotidianos. Assim, a vocação principal do grande mercador era a circulação e não a produção à maneira capitalista, com a criação de valor e a apropriação da mais-valia. Além disso, estes princípios não-capitalistas de comércio coexistiam com formas de exploração não-capitalistas. A Inglaterra foi o locus onde se deu o processo de transformação desta estrutura, desde o início da Época Moderna, tendo como base uma agricultura que se singularizava de diversas maneiras. A raiz desta singularidade estava na distinção da classe dominante inglesa em relação às demais européias. Por um lado, fazia parte de um Estado cada vez mais centralizado, que a servia como instrumento de ordem e protetor da propriedade, mas sem deter poderes “extra-econômicos” autônomos como a dos demais reinos europeus. Por outro lado, havia o que se poderia chamar de uma troca entre a centralização do poder estatal e o controle da terra pela aristocracia, através da concentração das propriedades. De modo que 7 o que faltava aos grandes proprietários ingleses em termos de poderes “extra-econômicos”, era mais do que compensado por seus crescentes poderes econômicos. Estes dois fatores tiveram conseqüências significativas: 1. A concentração da propriedade inglesa da terra significou que uma imensa extensão dela não era trabalhada por proprietários camponeses, mas por arrendatários, mesmo antes das ondas de desapropriação dos séculos XVI e XVII, convencionalmente associadas com os “cercamentos”; 2. Os poderes extra-econômicos relativamente reduzidos dos grandes proprietários significavam que eles dependiam menos de sua capacidade de arrancar uma renda maior de seus arrendatários, através de meios coercitivos diretos, do que da produtividade destes. Sendo completamente diferentes dos aristocratas rentistas, cuja riqueza dependeu da extorsão do excedente dos camponeses por meio da simples coação e que ampliavam seu poder de extorsão do excedente não pelo aumento da produtividade dos produtoresdiretos, mas aprimorando seus próprios meios coercitivos – militares, jurídicos e políticos (pp.82- 82); 3. Os arrendatários ficavam cada vez mais sujeitos não só às pressões diretas dos grandes proprietários, mas a imperativos de mercado que os obrigavam a aumentar a produtividade. Sendo obrigados a competir não só no mercado de consumidores, mas também num mercado de acesso à terra. Quando a segurança do arrendamento dependia da capacidade de pagar o aluguel vigente, a produção não competitiva podia significar a perda direta da terra. Para fazer frente aos pagamentos monetários, numa situação em que outros arrendatários potenciais competiam pelos mesmos arrendamentos, os arrendatários eram obrigados a produzir por um custo eficiente, sob pena de serem desapropriados. O efeito deste sistema de relações de propriedade foi que muitos produtores agrícolas tornaram-se dependentes do mercado para obter acesso à própria terra e aos meios de produção. (pp.83-84) As forças competitivas de mercado foram, pois, um fator fundamental na expropriação dos produtores diretos, segundo ELLEN WOOD. Mas essas forças econômicas foram auxiliadas, sem dúvida, 8 pela intervenção coercitiva direta para expulsar os ocupantes da terra ou extinguir seus direitos consuetudinários, através dos cercamentos. O resultado foi a famosa tríade proposta por ROBERT BRENNER, composta por latifundiários, arrendatários capitalistas e trabalhadores assalariados. E com o crescimento do trabalho assalariado, as pressões para aumentar a produtividade da mão-de- obra também se intensificaram. (p. 86) Um aspecto fundamental que, para ELLEN WOOD, resume bem a ideologia do que chama de capitalismo agrário em ascensão na Inglaterra foi o conceito de “melhoramento”, ao qual estavam diretamente relacionados a produtividade e o lucro. Muito mais do que significar apenas melhores métodos e técnicas de cultivo, o “melhoramento” significava novas formas e concepções da propriedade: propriedades maiores e mais concentradas. O que implicou a eliminação de antigos costumes e práticas que, aos olhos dos grandes proprietários, interferiam no uso mais produtivo da terra, a exemplo das terras comunais, nas quais os membros das comunidades camponesas podiam ter o direito de pastagem ou o direito de apanhar lenha. Além de outros direitos de uso das terras particulares, como o de colher as sobras da lavoura em períodos específicos do ano. Daí a crescente pressão, entre os séculos XVI e XVIII, pela eliminação dos direitos consuetudinários que interferiam na acumulação capitalista, através dos cercamentos. (p.90) Ainda que não estabelecida por ELLEN WOOD, sua análise sobre esta especificidade do campo inglês pode, ao meu ver, ser correlacionada com a de ALAN MACFARLANE em seu trabalho, A Cultura do Capitalismo. Em que pese sua orientação weberiana, diferentemente da marxista de WOOD, MACFARLANE afirma que a origem do capitalismo deve ser buscada no campo inglês, onde não existia um campesinato típico1, posto que o sistema de parentesco da população rural, suas leis sobre propriedade, sua estrutura social básica e sua ideologia estiveram bem mais próximos de um sistema individualista, diferentemente da situação do campesinato de outras regiões da Europa. Segundo ele, já desde o século XIII, é possível identificar na Inglaterra a existência de uma “nação comerciante” com uma estrutura de mercado altamente desenvolvida, com cidades florescentes e um real interesse de seus habitantes pelo lucro. Uma 1 Segundo ele, as diferentes características que costumam ser associadas ao campesinato são: a ausência do direito individual de propriedade, a restrição à penetração extensiva da moeda e dos mercados ao nível da aldeia, a baixa mobilidade geográfica, a ligação simbólica com a terra, uma certa estrutura de unidade domiciliar, dentre outras. (p.258) 9 nação onde terra e trabalho eram vistos como mercadorias; onde a lei e a vida davam ênfase à propriedade; onde a maioria dos serviços já vinham sendo prestados há muito tempo em troca de uma remuneração; e onde as propriedades rurais eram cultivadas com o olho no lucro. Nesta sociedade, também já desde o século XIII, a economia, a propriedade, a produção e o consumo não se baseavam no sistema de parentesco, como tradicionalmente o era nas demais estruturas camponesas. (p. 187) A propriedade já se encontrava altamente individualizada, onde a terra podia ser comprada e vendida sem o envolvimento de ninguém acima do marido ou da mulher, sendo na verdade tratada como uma mercadoria qualquer, pertencendo a indivíduos, e não à unidade domiciliar. O que era possibilitado pelo sistema de herança que se baseava na primogenitura, levando os filhos mais novos ou menos dotados a migrarem para outras paróquias. Na medida em que a propriedade era detida por indivíduos, os filhos deixavam o lar paterno numa idade prematura e a unidade básica de produção, consumo e propriedade não residia na família. (p.38-45) Tendo por base esta constatação, MACFARLANE contesta que o capitalismo tenha surgido na Inglaterra somente no século XVIII, com base na equivocada tese de que a Inglaterra teria assistido à passagem do campesinato clássico para uma sociedade individualista e capitalista, através de uma grande transformação ou revolução ocorrida entre os séculos XVI e XVIII. (pp.254-255). Para ele, o campesinato não desapareceu no século XVI, mas já desde o XIII devido as especificidades do campesinato inglês. Ao meu ver a tese de ALAN MACFARLANE pode ser correlacionada com a de ELLEN WOOD, especificamente no que tange à estreita vinculação da terra ao mercado, demonstrando que efetivamente, esta era uma das características que conferiam especificidade à sociedade inglesa, possibilitando-nos a compreensão dos fatores que tornaram possível as transformações no sentido da origem do capitalismo e da Revolução Industrial. Este processo criou uma agricultura altamente produtiva, capaz de sustentar uma grande população não dedicada à produção agrícola, como também criou uma massa crescente de não- proprietários, que viria a constituir uma grande força de trabalho assalariada e um mercado interno para bens de consumo baratos. E, segundo ELLEN WOOD, foram estes os antecedentes da formação do capitalismo industrial inglês. (p.86) 10 Por trás desta tese e dos desdobramentos que ELLEN WOOD dela fará em seu trabalho, é possível discutir algumas das recorrentes afirmações sobre a Revolução Industrial. O que passo a fazer neste momento. Para ELLEN WOOD, o imperativo do mercado surgiu na Inglaterra antes da industrialização; tendo sido, inclusive, uma pré- condição da própria industrialização. Para ela, a Revolução Industrial foi mais um resultado de transformações que se operaram na sociedade inglesa por conta do desenvolvimento da estrutura capitalista do que origem desta estrutura. E esta estrutura capitalista estaria mais ligada ao campo. O diferencial desta sua análise está no fato de ser o contrário do que até então vem sendo recorrentemente afirmado a respeito da Revolução Industrial, de que ela foi o ponto de partida da sociedade de mercado, a origem do proletariado de massa e o resultado das transformações tecnológicas, como se verifica nas análises de T.S.ASHTON (A Revolução Industrial), de W.O.HENDERSON (A Revolução Industrial), PAUL MANTOUX (A Revolução Industrial no século XVIII), TOM KEMP (A Revolução Industrial na Europa no século XIX), dentre outros. De que forma ELLEN WOOD desenvolve estas hipóteses? Segundo ela, o imperativo do mercado surgiu na Inglaterra antes da industrialização, ligado às transformações agrárias, como analisado anteriormente. De modo que este imperativo se impôs aos produtores diretos antes da proletarização em massa da força de trabalho, tendo sido um fator decisivo nacriação deste proletariado, na medida em que as forças de mercado criaram uma maioria de não- proprietários. Estas suas afirmações são opostas às de KARL POLANYI de que a Revolução Industrial teria dado origem a uma sociedade de mercado e que as técnicas e o uso de máquinas foram condição fundamental para o desenvolvimento desta sociedade de mercado. Segundo POLANYI, a invenção de máquinas complexas tornou necessário converter a “substância natural e humana da sociedade em mercadoria”. Dado que as máquinas complexas são dispendiosas, elas só compensam na medida que produzem grandes quantidades de mercadorias. E para atingir a escala de produção necessária, a produção tem que ser ininterrupta, o que equivale a dizer que, para o comerciante, “todos os fatores implicados devem estar à venda”. Para ele, um mercado de trabalho competitivo só foi estabelecido na Inglaterra após 1834, com a extinção das leis que protegiam o trabalhador, a exemplo da Lei Speenhamland; não se 11 podendo dizer que o capitalismo industrial como sistema social tenha existido antes desta data (p.89). Assim, para POLANYI, o último e mais desastroso passo da criação das condições necessárias da produção mecânica complexa foi a transformação do trabalho num “fator” da produção mercantil. Para POLANYI, a Revolução Industrial foi o começo de uma revolução “extrema e radical”, que transformou profundamente a sociedade, ao converter a humanidade e a natureza em mercadorias. E esta transformação foi o esforço do progresso tecnológico, em cujo cerne estava um “aperfeiçoamento quase milagroso dos instrumentos de produção”, de modo que o proletariado surge em decorrência das transformações técnicas. Ou seja, as forças produtivas acabam por determinar as transformações das relações de produção. Diferente deste pressuposto é o defendido por ELLEN WOOD, para quem não foram as transformações técnicas, mas antes a das relações sociais que PRECEDERAM a industrialização. Segundo ela, a transformação das relações de propriedade e a mudança na forma de exploração criaram uma necessidade histórica única de aumentar a produtividade do trabalho, através do revolucionamento das forças produtivas. Com efeito, a dinâmica específica do capitalismo já estava instaurada na agricultura inglesa antes da proletarização da força de trabalho e o fator crucial foi a dependência dos produtores e também dos apropriadores em relação ao mercado, além dos novos imperativos sociais criados por essa dependência. Deste modo, foi o “capitalismo agrário” a raiz do desenvolvimento econômico britânico posterior: 1. Sem um setor agrícola produtivo, capaz de sustentar uma grande força de trabalho não-agrícola, seria improvável que o primeiro capitalismo industrial do mundo viesse a emergir; 2. Sem o capitalismo agrário da Inglaterra, não haveria uma massa de despossuídos, obrigados a vender sua força de trabalho por um salário; 3. Sem essa força de trabalho não-agrária de despossuídos, não haveria um mercado de consumo de massa para os bens cotidianos baratos – como alimentos e produtos têxteis – que impulsionaram o processo de industrialização da Inglaterra; mercado de consumo esse que nada tinha em comum com o mercado de artigos de luxo do comércio precedente. (pp.109-110). 12 Segundo ELLEN WOOD, o capitalismo agrário, no mínimo, possibilitou a industrialização. E, para ela, o simples dizer isso já é dizer muito. E as condições de possibilidade criadas pelo capitalismo agrário – as transformações das relações de propriedade, do tamanho e da natureza do mercado interno, da composição da população e da natureza e extensão do comércio e do imperialismo britânico – foram mais substanciais e tiveram maior alcance do que qualquer avanço puramente tecnológico exigido pela industrialização. E para ela, isto tem fundamento porque os avanços puramente tecnológicos não foram responsáveis pela chamada revolução agrícola que lançou as bases da industrialização e também porque as mudanças tecnológicas que constituíram a primeira Revolução Industrial foram modestas, como já afirmou ERIC HOBSBAWN, em A Era das Revoluções. (ELLEN WOOD, p.110). Como afirma HOBSBAWN, qualquer que tenha sido a razão do avanço britânico, ele não se deveu à superioridade tecnológica e científica, visto que os franceses estavam à frente dos ingleses, tanto em termos de inventos como das ciências. HOBSBAWN também diz que foram poucos os refinamentos técnicos necessários para se fazer a Revolução Industrial, tendo sido as invenções técnicas dos ingleses bastante modestas, não indo além dos limites dos artesãos em suas oficinas (pp.46-47). Se para POLANYI, a „sociedade de mercado‟ foi uma resposta a certos avanços tecnológicos numa sociedade mercantil, a conclusão a que se pode chegar a partir análise de ELLEN WOOD, é que uma dinâmica capitalista, enraizada numa nova forma de relações sociais de propriedade, precedeu a industrialização. Com efeito, um certo tipo de sociedade de mercado – uma sociedade em que os produtores dependiam do mercado para ter acesso aos meios de subsistência, ao trabalho e à auto-reprodução, e estavam sujeitos aos imperativos do mercado – foi não o RESULTADO da industrialização, mas sua causa primária, na medida em que somente uma transformação das relações sociais de propriedade que obrigou as pessoas a produzirem competitivamente (e não apenas a comprarem barato e venderem caro), uma transformação que fez com que o acesso aos meios de auto-reprodução passassem a depender do mercado, seria capaz de explicar a drástica revolução das forças produtivas que foi singularmente característica do capitalismo moderno”. (p.111) Ao afirmar que a transformação das relações sociais de produção precedeu a industrialização, ELLEN WOOD nada mais faz do que corroborar a tese de EDWARD THOMPSON (A formação da classe operária inglesa e Costumes em comum...), para quem as análises do chamado “Capitalismo industrial” devem ser deslocadas 13 dos fatores puramente tecnológicos para as relações de produção e de exploração de classe. Em A formação da classe operária inglesa, THOMPSON argumenta que as afirmações de que a industrialização explica a transformação das relações sociais de produção ou o surgimento do operariado nada mais são que o resultado da reprodução por parte dos analistas da associação que os observadores contemporâneos à industrialização (1790-1850) faziam entre a indústria do algodão e a nova sociedade industrial e, por conseguinte, entre as novas formas de relação produtiva e social. Segundo THOMPSON, os instrumentos físicos da produção eram vistos por estes contemporâneos como responsáveis pelo surgimento de novas relações sociais industriais e hábitos culturais, a exemplo da própria agitação popular. Para THOMPSON, a extensão e a intensidade desta última, inclusive, teria criado, mais do que qualquer outra coisa, a imagem da industrialização como uma mudança catastrófica. Propondo que não se reproduza o discurso dos contemporâneos, THOMPSON procura deslocar o foco de análise da “industrialização” para a do “capitalismo industrial”. Para ele, o conceito de industrialização é obscurecedor das realidades sociais do “Capitalismo industrial”, ao tratá-las como se pertencessem a um processo supostamente neutro, tecnologicamente determinado. Para ele, as relações de produção e de exploração capitalistas essenciais já existiam antes da industrialização propriamente dita, tendo sido, inclusive, pré-condição desta (Costumes em Comum, p.289). É por isso, por exemplo, que THOMPSON argumenta que a explicação deste processo não deve se restringir ao que acontece ao trabalhador no processo de trabalho da grande indústria ou mesmo na vida econômica em geral. Uma diversidade de fatores sociais, culturais, componentes da vida e das traduções dos trabalhadores deve assumir o primeiro plano da análise.O que vem reforçar um dos elementos centrais de seu pensamento que é a crítica ao determinismo econômico. E é justamente no bojo desta crítica ao determinismo econômico que se pode compreender seus questionamentos à idéia de classe como EFEITO do modo de produção, da forma como foi concebida em O Capital e largamente difundida numa certa literatura marxista (leia-se o marxismo althusseriano ou a tradição stalinista). Recusando, portanto, a noção de classe social como EFEITO ou RESULTADO do modo de produção, THOMPSON vai defender a noção de classe social como resultado da luta de classes. 14 Assim, para THOMPSON, os inúmeros operários existentes no fim do século XVIII não teriam sido produzidos pela industrialização, na medida que estavam engajados em formas pré-industriais de trabalho doméstico ou artesanal. Até porque os operários da indústria não constituíam o núcleo do movimento operário antes da década de 1840. Segundo ele, já em 1700 se encontram as tentativas dos empregadores de controlar o tempo de trabalho e de regulamentação da disciplina como parte da exploração da mão-de-obra dos seus operários, por meio de uma série de regulamentos do trabalho, através da divisão do trabalho, da supervisão do tempo, de multas, sinos e relógios, de incentivos em dinheiro, de pregações e do ensino, etc, a fim de se impor novos hábitos de trabalho, imprimindo uma nova disciplina do tempo (Costumes em Comum, p.??). Segundo THOMPSON, portanto, não seria a industrialização que se teria imposto a capitalistas e trabalhadores enquanto busca da mais-valia relativa, como lei de acumulação de capitais. Pelo contrário, a industrialização teria sido o resultado de um processo histórico. Dentro deste ponto de vista, está o seu pressuposto teórico de que as relações de produção e de exploração são os fatores objetivos críticos na constituição de um modo de produção, sendo elas a fornecerem o impulso para a transformação dos processos de trabalho. De modo que a “sujeição formal” do trabalho ao capital assume um significado e uma primazia especiais, tornando-se pré- condição e a força motivadora da subseqüente transformação da produção, a que se chama geralmente de industrialização. A análise que procurei fazer até aqui vem mostrar a necessidade de se relativizar algumas das teses que comumente são reproduzidas quando se discute o tema da Revolução Industrial; a exemplo da associação direta entre Revolução Industrial inglesa e a origem do capitalismo e/ou a “forma desenvolvida” do capitalismo e dos argumentos de que a industrialização foi o ponto de partida da sociedade de mercado, foi a origem do proletariado de massa e o resultado de transformações tecnológicas. 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