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Educação e Diversidade Cultural LUCIANA LAMBLET PEREIRA 1ª Edição Brasília/DF - 2020 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Marjorie Gonçalves Andersen Trindade, CRB-1/2704 P436e Pereira, Luciana Lamblet Educação e diversidade cultural / Luciana Lamblet Pereira. – Brasília : Alumnus, 2020. 98 p. Recurso online: e-book Modo de acesso: world wide web ISBN 978-65-89227-09-0 1. Educação. 2. Multiculturalismo. 3. Sociologia educacional. 4. Antropologia educacional. I. e-book. II. Título. CDU 37.014.3 Autores Luciana Lamblet Pereira Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático....................................................................................................................................... 4 Introdução ............................................................................................................................................................................. 6 Capítulo 1 “Que faço com a minha cara de índia?” – Cultura, etnocentrismo, alteridade e questão indígena no Brasil contemporâneo ........................................................................................................................................... 9 Capítulo 2 “Unir o útil ao agradável: estudo e brinco” – Processo de socialização e ambiente escolar ...........28 Capítulo 3 “Imagino Irene entrando no céu”: novas epistemologias e o desafio da prática multiculturalista ....................................................................................................................40 Capítulo 4 “Até eu entender minha negritude”: racismo, branquitude e ambiente escolar .................................51 Capítulo 5 “Mas a escola tem que fazer de conta que isso não existe?”: a escola e a questão de gênero ......70 Capítulo 6 “A educação é assegurada como um direito público subjetivo”: Direitos Humanos e Educação ....87 Referências ..........................................................................................................................................................................97 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORgAnIzAçãO DO LIvRO DIDátICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução O poeta negro Aimé Cesaire disse que “as duas maneiras de perder-se são: por segregação, sendo enquadrado na particularidade, ou por diluição no universal”. A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta. (CARNEIRO, 2011) Eu não tenho minha aldeia Eu não tenho minha aldeia Minha aldeia é minha casa espiritual Deixada pelos meus pais e avós A maior herança indígena Essa casa espiritual É onde vivo desde tenra idade Ela me ensinou os verdadeiros valores Da espiritualidade Do amor Da solidariedade E do verdadeiro significado Da tolerância Mas eu não tenho minha aldeia E a sociedade intolerante me cobra Algo físico que não tenho Não porque queira Mas porque de minha família foi tirada 7 Sem dó, nem piedade Eu não tenho minha aldeia Mas tenho essa casa iluminada Deixada como herança Pelas mulheres guerreiras Verdadeiras mulheres indígenas Sem medo e que não calam sua voz Eu não tenho minha aldeia Mas tenho o fogo interno Da ancestralidade que queima Que não deixa mentir Que mostra o caminho Porque a força interior É mais forte que a fortaleza dos preconceitos Ah! Já tenho minha aldeia Minha aldeia é Meu Coração ardente É a casa de meus antepassados E do topo dela eu vejo o mundo Com o olhar mais solidário que nunca Onde eu possa jorrar Milhares de luzes Que brotarão mentes Despossuídas de racismo e preconceito (POTIGUARA, 2018, pp. 151-152) Prezada aluna, prezado aluno, Seja muito bem-vindo à disciplina Educação e Diversidade! 8 Neste espaço, discutiremos questões fundamentais para a prática docente contemporânea: cultura, etnocentrismo, alteridade, socialização, questão indígena, racismo, multiculturalismo, questões de gênero e Direitos Humanos. São questões latentes em nossa sociedade. E, como você sabe, a escola não está apartada das relações sociais, ela faz parte das dinâmicas que operam o cotidiano da cidade, do estado e do país. Neste sentido, se você deseja ser um educador responsável, consciente do seu papel na construção de um ambiente escolar acolhedor, plural e respeitoso, você precisa tomar conhecimento das discussões que rondam a sociedade. Um professor não deve ficar alheio ao seu contexto. Como ensinar sem conhecer a realidade dos educandos, sua linguagem, sua visão de mundo? Temos consciência da dificuldade que possuímos diante do que nos é diferente, daquilo que se distancia de nós, das nossas vivências e experiências. Nós vamos conversar sobre esse desafio, mas também vamos apontar saídas e, acima de tudo, ressaltar a necessidade de o professor encarar de frente e se preparar para lidar da melhor forma possível com os conflitos advindos da convivência com o que não é espelho. Te convidamos a se deixar levar por essas outras vozes, por muito tempo caladas, oprimidas e violentadas. A abrir a escuta e tentar construir pontes e não muros. Será um exercício de empatia, por vezes dolorosa, mas muito enriquecedora e compensadora, pois, como veremos, a diversidade é um ato humano e humanizador. Vamos lá? Objetivos » Compreender os conceitos de cultura, etnocentrismo, socialização e alteridade, bem como sua utilização para a construção de uma prática docente democrática e diversa. »Discutir a teoria e a prática multiculturalista e seus desafios no ambiente escolar. » Reconhecer as lutas, as opressões e as resistências dos grupos sociais subalternizados, tais como os indígenas, os negros e negras, as mulheres e os LGBTs +, compreendendo que esses conflitos estão em sala de aula e docente deve estar preparado para lidar com eles. » Relacionar a educação com os Direitos Humanos, a Constituição de 1988 e a ideia de dignidade da pessoa humana. 9 Figura 1. Fonte: http://www.portalmorada.com.br/noticias/geral/72794/araraquara-recebe-feira-de-cultura-indigena. Acesso em: 16/9/2019. Figura 2. Fonte: https://www.lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2018-11-pt-br/a-cultura-branca-e-real. Acesso em: 16/9/2019. 1 CAPÍTULO “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO http://www.portalmorada.com.br/noticias/geral/72794/araraquara-recebe-feira-de-cultura-indigena https://www.lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2018-11-pt-br/a-cultura-branca-e-real 10 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO Você já se questionou porque falamos de “cultura indígena”, mas não dizemos “cultura branca”? Experimente fazer uma pesquisa na internet num site de busca. Escreva cultura indígena e veja o que aparece para você. Depois escreve cultura branca e observe o resultado. O meu resultado está nas imagens expostas acima. Parece que para a cultura branca ocidental, basta dizer “cultura”. Já as demais precisam de um complemento, um adjetivo. Isso porque tendemos a normatizar e normalizar a primeira. O que foge a ela é estranho, exótico, “diferente”. O que ou quem determina o que é e o que não é cultura? Existem pessoas sem cultura? A cultura pode ser mensurada? Podemos afirmar que alguém tem muita ou pouca cultura? É fato que nós usamos frequentemente a palavra cultura e de forma deliberada, mas cultura é um conceito amplo e complexo, como veremos neste primeiro capítulo. É também um conceito fundamental para compreendermos as relações sociais, a sua dinâmica, as disputas entre elas, a formação de preconceitos e estereótipos, bem como diversos aspectos do ambiente educacional. A escola é um espaço repleto de cultura, não só porque discute um conhecimento sistematizado através de livros, aulas, palestras e debates, mas porque é um local de encontros, de múltiplas relações, de escolhas, de comportamentos e de percepções de mundo e de vida. Neste capítulo inicial, trabalharemos com o conceito de cultura: o que é e como ela impacta nosso cotidiano. Como que, a partir dela, podemos nos posicionar de forma etnocêntrica e preconceituosa ou com alteridade, dependendo da nossa posição diante do “outro”. Também discutiremos a questão indígena no Brasil, abordando as opressões sofridas, mas também as suas múltiplas formas de resistências. Traremos a fala de mulheres indígenas que lutam pela manutenção de sua cultura, suas tradições e sua cosmovisão. Todas essas temáticas serão abordadas pensando na nossa atuação enquanto educadores. Como a cultura, o etnocentrismo, os estereótipos, o preconceito, a alteridade e a cultura indígena impactam na sala de aula? E qual o nosso lugar enquanto docentes diante dessas questões? Objetivos do Capítulo » Discutir o conceito de cultura e seus impactos nos mais diversos aspectos da vida e das relações sociais. 11 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 » Perceber a cultura enquanto uma construção sócio-histórica, desnaturalizando hábitos, costumes e visões de mundo. » Entender o ser humano numa relação dialética com os aspectos culturais, seja como produto, seja como produtor de cultura. » Compreender os conceitos de etnocentrismo, estereótipo e alteridade nas dinâmicas de encontro de diferentes culturas. » Discutir a questão indígena no Brasil contemporâneo a partir das lutas de resistência pela manutenção das tradições, da cosmovisão e do bem viver dos povos nativos. “A diferença se torna condição humana”: cultura, etnocentrismo e alteridade Provavelmente você já utilizou essa palavra: cultura. Já ouviu expressões tais como: “fulano é muito culto”, “ciclano não tem cultura”. É, sem dúvida, um vocábulo recorrente, pertence ao nosso cotidiano. Mas, quando olhamos atentamente para “a cultura” com olhar acadêmico e crítico, percebemos a sua complexidade e profundidade. Vamos começar a refletir sobre ela? Roque Laraia (2001) sugere, a partir dos estudos de Ruth Benedict, que compreendamos a cultura tal como uma lente através da qual o ser humano vê o mundo. Portanto, culturas diferentes utilizam lentes diferentes e, assim, enxergam hábitos, costumes, valores e crenças de forma diferente. Neste sentido: O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura. (LARAIA, 2001, p. 36) Assim, desde os aspectos mais simples até os mais complexos no nosso cotidiano estão permeados por cultura. A forma como nos vestimos, o que comemos, nossas artes, hábitos de consumo, religiosidades, como caminhamos, do que rimos e até mesmo do que choramos. Laraia (2001) nos apresenta uma parábola que ilustra bem como a cultura opera nas situações mais cotidianas. Conta o autor que uma jovem da Bulgária resolveu oferecer um jantar para uns amigos do seu marido, dentre eles um rapaz de origem asiática. Quando todos terminaram seus pratos, a anfitriã perguntou se gostariam de repetir, pois em sua cultura búlgara deixar que convidados saiam famintos de uma casa é um ato de profundo desrespeito, portanto, sempre deve-se perguntar se desejam mais comida. O jovem asiático aceitou, comeu também um terceiro prato e quando estava no quarto caiu desmaiado. Na cultura do rapaz é um tremendo insulto recusar comida quando lhe é oferecida por uma anfitriã. 12 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO A questão é que, como vemos o mundo a partir da nossa cultura, tendemos a considerar nossos hábitos e costumes como natural, como o normal, a regra, o correto. Ou seja, naturalizamos aquilo que foi construído historicamente a partir das relações sociais. Isto pode nos levar a uma visão etnocêntrica: aquela que entende que a sua própria sociedade é o centro da humanidade e sua única expressão. Tal concepção tende a colocar seus valores e crenças como superiores, e pode se traduzir em ideias racistas, intolerantes e preconceituosas. O etnocentrismo muitas vezes é base que visa justificar e legitimar ações violentas, opressões e dominações de uma cultura sobre a outra. Propomos uma dinâmica que você pode fazer com amigos, familiares ou na sala de aula. Inclusive, pode neste momento “testar” com você mesmo. Rapidamente, sem pensar muito, peça aos amigos/familiares/alunos que digam as imagens e palavras que passam em suas mentes quando pensamos “África”. Agora confira com eles se o resultado foi algo parecido com as imagens abaixo: Figura 3. Fonte: <https://oglobo.globo.com/mundo/efeitos-de-guerras-na-africa-mataram-milhoes-de-criancas-em-20- anos-23025829>. Acesso em: 16/9/2019. Figura 4. Fonte: <https://viagens.sapo.pt/viajar/viajar-mundo/artigos/50-fotos-para-acreditar-que-africa-e-um-continente- especial>. Acesso em: 16/9/2019. Mesmo sem conhecer você ou as pessoas com quem você conversou, provavelmente as imagens se assemelham às que escolhemos aqui, correto? Talvez algumas leves alterações, podendo passar por ideias de crianças negras dançando músicas de sua região. De forma geral, as pessoas https://oglobo.globo.com/mundo/efeitos-de-guerras-na-africa-mataram-milhoes-de-criancas-em-20-anos-23025829https://oglobo.globo.com/mundo/efeitos-de-guerras-na-africa-mataram-milhoes-de-criancas-em-20-anos-23025829 https://viagens.sapo.pt/viajar/viajar-mundo/artigos/50-fotos-para-acreditar-que-africa-e-um-continente-especial https://viagens.sapo.pt/viajar/viajar-mundo/artigos/50-fotos-para-acreditar-que-africa-e-um-continente-especial 13 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 associam o continente africano a fome, doenças, pobreza e animais selvagens. Algo como um grande safari rodeado por problemas sociais. Uma questão a ser levantada é: por que, ao propormos essa dinâmica, as pessoas aceitam passivamente o termo África? Você observará que não perguntaram: “mas qual parte ou país da África?” Isso porque tendemos a falar de um continente tão grande e diverso como se fosse uma única realidade. Temos imagens construídas e pré-concebidas de culturas e dinâmicas muito complexas. Isto não ocorre somente com a África. Experimente a mesma dinâmica falando “Oriente Médio” e observe se as imagens criadas se assemelham às que apresentamos abaixo: Figura 5. Fonte: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/oriente-medio.htm>. Acesso em: 16/9/2019. Figura 6. Fonte: <https://segredosdomundo.r7.com/burca/>. Acesso em: 16/9/2019. https://brasilescola.uol.com.br/geografia/oriente-medio.htm https://segredosdomundo.r7.com/burca/ 14 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO Figura 7. Fonte: <https://jeonline.com.br/coluna/567/estado-islamico-ei-a-ignorancia-o-fanatismoa-farsa-e-a-maldade-em-nome- da-fe>. Acesso em: 16/9/2019. Guerra, burca e terrorismo vão aparecer no imaginário das pessoas. Denominamos isso de estereótipos: quando reduzimos toda uma cultura, suas relações sociais, complexidades e dinâmicas a alguns dos seus aspectos, por vezes reais ou por vezes até mesmo imaginários. Estereotipamos povos e culturas quando marcamos, adjetivamos e definimos os sujeitos e suas subjetividades a partir de pequenos recortes ou ideias pré-determinadas. São exemplos de estereótipos: quando olhamos um japonês e já imaginamos que ele seja fera na tecnologia e nas ciências exatas; quando viajamos para o exterior e nos perguntam coisas sobre futebol, praia e samba, pressupondo que todo brasileiro goste ou ocupe esses espaços; quando afirmamos que francês “não toma banho” e os ingleses são muito “frios”, dentre muitos outros exemplos. Os estereótipos devem ser evitados por dois motivos: 1. reduz a nossa capacidade de compreensão do outro, limitando nossa visão acerca da diversidade e da complexidade de outras culturas; 2. nos deixa a um passo do preconceito. Quando olhamos de forma estereotipada, reduzindo e diminuindo a cultura do outro, perdemos de vista a sua riqueza e dimensão e nos aproximamos do julgamento, da recusa, do estranhamento e, consequentemente, do preconceito. Outra característica da cultura é que ela opera de forma distinta até entre os sujeitos de uma mesma sociedade. Há diferenças etárias, de gênero e de estratos sociais. A forma como uma pessoa abastada vivencia, usufrui e consome cultura é diferente da forma como uma pessoa empobrecida, mesmo que ambas morem na mesma cidade e, por vezes, convivam em espaços semelhantes. A maneira como crianças, adolescentes, adultos e idosos vivenciam, traduzem e ressignificam a cultura é distinta, mesmo sendo componentes de uma mesma família. No Brasil, conhecido como o “país do futebol”, meninos e meninas vivenciam o esporte de forma diferente. https://jeonline.com.br/coluna/567/estado-islamico-ei-a-ignorancia-o-fanatismoa-farsa-e-a-maldade-em-nome-da-fe https://jeonline.com.br/coluna/567/estado-islamico-ei-a-ignorancia-o-fanatismoa-farsa-e-a-maldade-em-nome-da-fe 15 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 Uma terceira característica da cultura é que ela possui uma lógica própria. Isto é um desafio quando nos propomos a conhecer uma cultura diferente da nossa. Precisamos fazer o exercício nada simples de retirar as nossas lentes e colocar as lentes do outro. Isso porque “a coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence.” (LARAIA, 2001, p. 45). Portanto, ideias como “avanço”, “retrocesso” ou “evolução” só cabem quando olhamos para a lógica cultural interna. Não devemos utilizar tais termos entre culturas diferentes, pois possuem dinâmicas e histórias distintas. A quarta característica da cultura é sua dinamicidade. Ela está em movimento, não está estática. Isto porque as sociedades se modificam internamente, alterando relações e percepções e também porque recebem influências externas, seja na forma de troca, assimilação ou imposição. Perceba, você ouve as mesmas músicas que seus avós ouviam? Veste os mesmos tipos de roupa? Nos comunicamos da mesma forma que as pessoas no Brasil da década de 1930? Nossas bisavós falavam “deletar”? Temos a mesma dinâmica de vida que os sujeitos que aqui viviam no século XVIII? Não achamos cafona o que muitas vezes foi moda e objeto de desejo? Quantas vezes olhamos para fotos antigas e damos gargalhadas com nossos penteados, que na época achávamos o máximo? Nossas crianças brincam como brincávamos? Sendo, portanto, a cultura algo tão impregnado na nossa forma de viver e olhar o mundo, como fazer diante do “outro”? Como encarar modos de vida diferentes dos nossos sem que sejamos preconceituosos? Hans-Georg Flickinger (2018) propõe três etapas da experiência intercultural: o exótico, o estranho e a alteridade. Para o autor, a educação deve trabalhar para o desenvolvimento desta última. Mas vamos discutir cada etapa. O exótico se dá especialmente quando não há uma ponte ligando as culturas em questão. Ou seja, há um profundo distanciamento e até mesmo um desinteresse por conhecer melhor o outro e sua visão de mundo. É quase mera curiosidade. Isso pode acontecer, por exemplo, quando assistimos a um vídeo em que pessoas de culturas muito diferentes da nossa dançam num ritmo que nos é desconhecido e com passos estranhos à nossa cultura. Podemos admirar ou até mesmo rir, mas esse contato – que não é contato – não passou de exotismo. Alguns países anunciam turismo no Brasil através de imagens de animais selvagens e passistas generosamente enfeitadas com adereços carnavalescos. Essa é uma imagem exótica do país. Não gera aproximações, pontes, intercâmbios. Ao contrário, é geralmente carregada de estereótipos. O estranhamento requer alguma convivência. Podemos exemplificar com o caso de estrangeiros que vêm morar no Brasil ou brasileiros que vão morar em outros países. É comum determinado desconforto: não é nosso lugar de pertencimento, a língua é diferente (mesmo sendo a língua portuguesa, há sotaques, expressões diferenciadas que marcam você como o “outro”), a gastronomia se diferencia, as dinâmicas de relacionamento são distintas, os códigos que não dominamos. 16 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO Quando nos deparamos com o diferente, nos estranhamos. É comum isto ocorrer. Também pode haver o medo e a desconfiança, pois geralmente tememos o que não nos é familiar, o que desconhecemos, o que não é reconhecido como espaço e símbolo de segurança e conforto. O problema é que muitas vezes esse estranhamento não é superado, tornando-se, assim, suscetível a se transformar em julgamento, preconceito e sentimento de superioridade. Como superar o estranhamento seguindo um outro caminho? A resposta está no exercício da alteridade. A alteridade está na nossa capacidade de se aproximar do outro, conhecendo-o, mas acima de tudo reconhecendo-o em sua humanidade e especificidades. A alteridade requer proximidade, e não afastamento. Requer que nos abramospara o diferente e que nos encontremos de fato com ele. Nas palavras de Flickinger: A percepção do outro como alter de mim mesmo – eis o sentido originário do termo latino – aborda pelo menos três aspectos: tenho aí o outro na medida em que ele vem ao meu encontro como outro de mim mesmo; esse seu vir ao meu encontro obriga-me a tomar posição frente a ele; e esta reação me leva a responder suas perguntas, a aceitar, portanto, uma determinada responsabilidade em relação a ele. Esta, aliás, é a relação propriamente dita de alteridade. (FLICKINGER, 2018, p. 139) Perceba que o autor utiliza a palavra responsabilidade. Uma relação de alteridade é baseada no respeito, no reconhecimento e valorização do outro, entendendo-se também como um outro diante do diferente. Para ter alteridade é necessário trocar as lentes dos óculos, um dos movimentos mais difíceis e complexos das relações sociais, porque requer um certo afastamento de quem nós somos, do que acreditamos, do que nos constitui e, especialmente, do que já nos habituamos ao ponto de achar “natural”. Não é fácil uma relação com alteridade, olhando o outro de frente, nem o vendo por cima e tão pouco lhe dando as costas. Por isso, autores como Hans-Georg Flickinger e Mauricio Farinon (2018) apontam para a educação como instrumento fundamental na construção da alteridade nos sujeitos: Não é incomum que a inclusão caminhe de mãos dadas com a exclusão; não é incomum que o diverso gere o sentimento de adverso; não é incomum que o diferente desencadeie o movimento de indiferença. Inclusão e exclusão, diverso e adverso, diferente e indiferente são as tensões que os processos educativos devem colocar em sua agenda, uma vez conscientes dos desafios que envolvem a formação para além da instrumentalização ou de repasse de conteúdos. Assim, ansiamos por mais educação! No caminho de possíveis soluções ou minimizações dessas tensões, a alteridade é posta como o qualificativo ético fundamental para que a diversidade e a pluralidade não sejam reduzidas somente à percepção 17 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 do múltiplo. Com a alteridade ocorre um compromisso com o humano que se constitui enquanto abertura, enquanto um-para-o-outro, ou enquanto um- com-o-outro. Com ela, a diferença se torna condição humana, fazendo surgir a esperança de que a violência seja superada (...) Os debates que envolvem o ser humano se tornam problemáticos quando não consideram a alteridade em sua efetiva influência na construção da diversidade. O problema surge no instante em que não reconhecemos as diversas formas de ser, de pensar, de agir, as diversas manifestações do humano, em sua significativa riqueza, e passamos a tomar decisões e a agir conduzidos cegamente pelo senso de totalidade e universalidade elevado como critérios absolutos. Nesse instante nos tornamos insensíveis à multiplicidade e suas características particulares, ansiando por administrar o real, a vida, a partir de leis gerais e padronizadoras. Não estamos diante da negação do mundo comum, porém o desafio está em percebemos na alteridade a condição para o humano, não esquecendo o alerta grego clássico provindo de Aristóteles, a partir do qual o bem é algo que deve articular o individual e o coletivo, de donde deriva a concepção política e ética em tal filósofo. Emerge a necessidade de refletirmos sobre a presença do outro e os desafios da intersubjetividade que envolvem as questões humanas, em seus âmbitos educacionais e pedagógicos. (...) São tais aspectos que justificam essa proposta investigativa e nos lançam ao desafio de constituirmos ações pedagógicas orientadas pela tolerância respeitosa e vigilante, pela aceitação dos modos de pensar e de ser, sem abstrair de valores comuns. A alteridade nos põe contundentemente diante da dimensão ética das ações, pois é abertura à presença que nos contradiz, que nos põe limites, que nos questiona em nossas convicções e nos projeta para o desafio do novo. Ou seja, a experiência de alteridade evidencia a condição humana enquanto temporalidade e, nisso, tem lugar a educação. (FARINON, 2018, pp. 130-133) Observe que Farinon reconhece o estranhamento, a exclusão e as tensões advindas do encontro de culturas diferentes, e aponta para a educação como instrumento fundamental do comportamento ético da alteridade. Segundo o autor, precisamos ultrapassar a visão de que pluralidade e diversidade são apenas a percepção de que existem diferentes modos de viver. Mas, para isso, é necessário que o sujeito se comprometa com a humanidade, exercendo a alteridade. O espaço educacional é um local de aprendizagem e abertura para o diverso, para o questionamento das certezas tão enraizadas e naturalizadas em nós. É o lugar da escuta e da fala do outro para o também outro. Percebendo a alteridade como uma condição humana, a escola não poderia deixar de se comprometer com essa prática, produzindo conhecimentos que proporcionem o reconhecimento e a valorização da diversidade. 18 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO “Basta de afogar as minhas crenças e torar minha raiz”: a questão indígena No entanto, quando começa a falar dos índios locais, Gândavo parece bem mais cuidadoso em seus elogios. Começa dizendo: “Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda essa terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não ache povoações de índios armados contra todas as nações humanas e, assim, como são muitos, permitiu Deus que fossem contrários uns aos outros, e que houvessem entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente”. E continua mais à frente: “a língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – scilicet, não se acha nela ne F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem nem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente”. Povos sem F, L, R – sem fé, nem lei, nem rei –, eis a representação desses “naturais”, caracterizados a partir da noção da “falta”. Seus costumes também causavam estranhamento: “andam nus sem cobertura alguma, assim machos e fêmeas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu”. Se por um lado, a natureza era edenizada, os “naturais” não passavam no crivo do viajante. Gândavo também lamenta o fato de serem “muito belicosos”. Explica como tratam os prisioneiros, menciona as cordas que os amarram e como o atam pela cinta. Descreve ainda como os matam e os comem – “isto mais por vingança e por ódio que por se fartarem. (...) Como se vê, ao descrever os indígenas brasileiros como “atrevidos, sem crença na alma, vingativos, desonestos e dados á sensualidade”, Gândavo estabelecia uma distinção fundamental entre a terra e seus homens: e edenização de um lado, o inferno de outro. O modelo era evidentemente etnocêntrico, e o que não correspondia ao que se conhecia era logo traduzido como ausência ou carência, e não como um costume diverso e variado. (SCHWARCZ, 2012, pp.14-15) A citação acima é um ótimo exemplo das tensões geradas quando culturas tão distintas se encontram. Há claramente uma estranheza em relação ao outro, avançando rapidamente para um julgamento. Gândavo não tirou suas lentes, não fez o menor trabalho de colocar a lente dos indígenas e avaliou os povos nativos a partir do seu referencial de mundo. Comparando as relações sociais entre a sua cultura e a que ele encontrou além-mar, o autor do relato enxergou os povos daqui a partir do signo da falta. Como vimos anteriormente, esta é uma postura etnocêntrica, ou seja, uma postura que toma os nossos valores e visões de mundocomo centro, como referencial, como norma, natural e, portanto, correto. Assim, o que difere é estranho, pior, inferior e carente. Enquanto os 19 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 europeus se encantavam com as belezas naturais encontradas no Brasil, comparando-as ao Éden bíblico, desprezavam, inferiorizavam e subjugavam os povos nativos. Durante o processo de escravidão indígena, muitos pais e famílias realizavam o suicídio em massa contra essa forma de opressão. Despencavam dos penhascos. Isso era um ato de resistência. Então, percebemos que muitas famílias sofreram a separação, e é a esse enfoque que nos reportamos. Entre as causas da separação das famílias estão a violência aos territórios imemoriais dos povos indígenas e a migração compulsória. Isso provocou insegurança familiar, distúrbios, medo e pânico, causando loucura, violências interpessoais, suicídios, alcoolismo, timidez e a baixa autoestima diante do mundo. Tudo isso motivado pelo racismo contra povos indígenas e em prol da colonização europeia. E mais: a destruição dos cemitérios sagrados dos povos indígenas, que representam uma forte referência cultural, fez com que famílias perdessem definitivamente o elo com seus ancestrais, causando a desintegração cultural e espiritual. (POTIGUARA, 2018, p. 20) O importante enquanto docentes é pensarmos o quanto dessa visão etnocêntrica em relação aos indígenas nós herdamos, ressignificamos e reproduzimos. Basta ver as famosas comemorações do “Dia do Índio”. A própria nomenclatura já desconsidera questões muito importantes. “Índio” é o nome dado pelo colonizador aos povos que aqui habitavam, assim como “tribo”. Eles são de aldeias, são indígenas, etnias, povos nativos. Assim, no plural. Quando reduzimos dezenas de povos, culturas e crenças ao singular (índio), reduzimos suas histórias, tradições e desrespeitamos suas diferenças e especificidades. Quantas vezes nós nos “fantasiamos” de “índio”? Colocamos penas na cabeça, pintamos com guache nossas bochechas e emitimos sons que os próprios indígenas desconhecem. As penas e as pinturas em seus corpos possuem significados muito importantes para as etnias. Os adereços comunicam, expressam suas origens, simbolizam, levam mensagens. E nós as desconhecemos completamente, vulgarizamos as suas expressões e as reduzimos ao exótico. Um exemplo disto são os memes na internet que subalternizam a cultura indígena, trazem ideias estereotipadas e reafirmam preconceitos: Figura 8. Fonte: <https://conversadeportugues.com.br/2012/04/sala-de-aula-pra-mim-fazer/>. Acesso em: 16/9/2019. https://conversadeportugues.com.br/2012/04/sala-de-aula-pra-mim-fazer/ 20 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO Figura 8. Fonte: <https://pt.memedroid.com/memes/detail/1909466>. Acesso em: 16/9/2019. Provocação Figura 9. Fonte: <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/rock-in-rio/a-alicia-keys-politizou-rock-in-rio-diz-india-que-discursou-durante- show-da-cantora-21836221.html>. Acesso em: 16/9/2019. No que a cosmovisão indígena pode nos ajudar enquanto educadores? Podemos e devemos aprender muitas coisas com os povos indígenas, suas tradições, suas relações com o meio ambiente e também com os seus olhares acerca da educação. É importante que se faça cumprir a lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da História e cultura indígenas em todas as unidades escolares do Ensino Básico. Abaixo, você encontrará trechos do ensaio “Educação indígena: esperança de cura para tempos de enfermidade”, de Sonia Guajajara (2018, pp. 171-173), no qual a autora ressalta a importância do olhar indígena sobre a educação. [...] enquanto o Brasil não assumir sua dívida histórica para com os povos originários, trabalhando ativamente para repará-la, construiremos um falso futuro, mascarando nossas memórias e oprimindo os corpos presentes. [...] Essa representação social dos povos indígenas é permeada por um discurso colonial que lhe destina um espaço subalterno, periférico e marginal. O resultado é uma visão hegemônica estereotipada e distorcida: povos indígenas são atrasados, primitivos, preguiçosos, entraves ao desenvolvimento social e econômico do país. E o que índios são e podem ser de fato? Advogados, médicos, enfermeiros, cineastas, músicos, políticos, guardiães da floresta, mulheres, homens, líderes, gente comum... São e podem ser, enfim, tudo o que cabe na diversidade da sociedade brasileira. Afrontar a ideia do índio incivilizado, incapaz de acompanhar as tendências e mudanças do mundo, é fundamental, [...] Ora, para além da capacidade de lidar com os desafios da modernidade, nós, povos indígenas, somos detentores de vários e preciosos conhecimentos tradicionais. [...] https://pt.memedroid.com/memes/detail/1909466 https://extra.globo.com/tv-e-lazer/rock-in-rio/a-alicia-keys-politizou-rock-in-rio-diz-india-que-discursou-durante-show-da-cantora-21836221.html https://extra.globo.com/tv-e-lazer/rock-in-rio/a-alicia-keys-politizou-rock-in-rio-diz-india-que-discursou-durante-show-da-cantora-21836221.html 21 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 O contato entre indígenas e não indígenas tem se intensificado. Segundo Eliane Potiguara (2018), o aumento do desmatamento, a diminuição da biodiversidade, o assoreamento dos rios, a poluição ambiental e o avanço do agronegócio e do extrativismo sob as terras indígenas levaram enfermidades, fome e empobrecimento às populações originárias. Muitos migraram compulsoriamente para as cidades. Além disso, a autora afirma que as invasões também levaram a loucura, o alcoolismo, o suicídio e a violência interpessoal às aldeias, afetando profundamente a autoestima dos povos. A forma como a sociedade impõe a cultura não indígena causa impactos não só econômicos, mas também culturais, morais e existenciais. É uma forma de racismo. Ainda não superamos a visão do “branco civilizado” e do “índio primitivo e bárbaro”. Olhamos com superioridade e enxergamos ali o “atraso”. Somos a modernidade, eles o arcaico: [...] Impor culturas dominantes é uma forma de racismo. O paternalismo oficioso e governamental e o paternalismo eclesiástico também são formas de racismo, por melhores que sejam as intenções. Há de se respeitar a espiritualidade e as tradições de ritos dos povos indígenas. (POTIGUARA, 2018, p. 42) Justamente para não repetir os erros do passado, a interculturalidade não pode ser pensada e praticada numa via de mão única. Há os que bebem e se alimentam dos conhecimentos das aldeias. E também deve haver espaço para que nossos corpos transitem e experienciem vivências para além do chão da aldeia. Pois quando nos abrimos para a experiência intercultural, somos capazes de aprender com as diferentes dinâmicas culturais e de expandir as fronteiras de nossos próprios universos. Considerar a possibilidade de uma educação diferenciada, nutrida nos conhecimentos tradicionais, é o ponto de partida para a prática da descolonização do pensamento. [...] Enquanto a sociedade brasileira não reaprender a contar a história do Brasil com a contribuição de nossos saberes e mentes, continuaremos colonizados e aprisionados. É justamente na escola, o espaço das construções simbólicas sobre as alteridades, que essa transformação precisa começar a acontecer. [...] A educação indígena tem muito a ensinar: o respeito aos diferentes espaços e tempos, a ênfase na territorialidade, o fazer democrático e plural. Dar relevância a esse outro jeito de ensinar e aprender é um caminho de cura, um remédio para tempos de doença social. Que a escola comece a considerar o espaço do território como um lugar onde também se aprende – o ritual, a língua, a matemática, a física, a química, o escrever e inscrever o outro –, mas sem perdera conexão com aquilo que se é e com aquilo que se vive. A escola precisa fazer sentido em relação ao que já somos no mundo, sem nos desconstruir colonizando as nossas mentes. Se nós, povos indígenas, até hoje estamos vivos e com nossas identidades, é porque aprendemos a usar a escola a nosso favor. A educação é para nós, para nos curar, e não para nos dominar. 22 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO Eliane Potiguara nos demonstra que a forma violenta de opressão e dominação fez com que os povos indígenas acabassem, ao longo do processo, adotando formas de pensar e agir dos brancos. Um exemplo disso é a relação de gênero: Povos indígenas exerciam relações de gênero no passado de forma justa, quando as mulheres Guarani, por exemplo, eram ouvidas nas assembleias indígenas. Há mais de vinte anos tenho dito, em todas as assembleias, conferências, palestras por Sugestão de estudo Figura 10. Fonte: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-261394/>. Acesso em: 16/9/2019. O premiado filme Ex-Pajé (2018) é um excelente documentário que aborda a complexa relação entre os indígenas Paiter Suruí, em Rondônia, e o avanço econômico e religioso dos não indígenas em seu território. A partir da história de Perpera Suruí – o pajé que se converteu ao cristianismo e passou a se denominar ex-pajé –, Luiz Bolognese, antropólogo e diretor, nos apresenta ao cotidiano dos aldeados, à luta pela preservação da biodiversidade, às tensões religiosas e aos rituais e tradições dos nativos. Acompanhamos as diversas formas de resistência da população indígena, desde a perseguição aos brancos que desmatam às denúncias nas redes sociais, à manutenção da sua cultura e à luta pelo direito de existir dignamente enquanto indígena. Figura 11. Fonte: <https://www.acritica.com/channels/entretenimento/news/medo-do-escuro-filme-ex-paje-estreia-em-manaus-nesta-semana-no- cine-casarao>. http://www.adorocinema.com/filmes/filme-261394/ https://www.acritica.com/channels/entretenimento/news/medo-do-escuro-filme-ex-paje-estreia-em-manaus-nesta-semana-no-cine-casarao https://www.acritica.com/channels/entretenimento/news/medo-do-escuro-filme-ex-paje-estreia-em-manaus-nesta-semana-no-cine-casarao 23 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 onde passo, que as mulheres indígenas tinham o seu papel político extremamente determinado e forte. A palavra final, em uma assembleia indígena, no século XVII, era a da mulher. Os homens, desesperados pelo processo de colonização e racismo, ao verem suas mulheres estupradas pelo europeu, decidiram pelo suicídio coletivo com a palavra final da mulher. Os povos que permaneceram vivos introduziram-se pelas matas e, temerosos, colocaram as mulheres, crianças e velhos na “retaguarda cultural”. Passaram-se séculos e, até hoje, esse temor indígena sobrevive no universo masculino, pois o neocolonialismo existiu, assim como existem a nova ordem mundial e a globalização. De certa forma, o homem, obrigatoriamente, assumiu um papel machista para a defesa de sua família (...). (POTIGUARA, 2018, p. 100) Potiguara, assim, afirma a preservação da cultura enquanto forma de resistência: Amílcar Cabral, poeta, escritor negro, na luta revolucionária na Guiné-Bissau (África), na década de 1970, afirmava que “a cultura deve ser utilizada como instrumento da libertação nacional”. Complementando o raciocínio, podemos dizer que a libertação do povo indígena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade e pela cosmovisão das mulheres. O papel da mulher na luta pela identidade é natural, espontâneo e indispensável. [...] Seu poder é o conhecimento passado através dos séculos e que está reprimido pela história. A mulher, intuitivamente, protege os seios e o ventre contra seu dominador e busca forças nos antepassados e nos espíritos da natureza para a sobrevivência da família. Todos esses aspectos foram mais preservados do que no homem. (POTIGUARA, 2018, pp. 44-45) Um segundo movimento de intensificação do contato entre povos nativos e os “brancos” se deu a partir de lideranças indígenas que, frente às disputas territoriais e ambientais, se viram compelidos a compreender e conhecer melhor a sociedade não indígena. Muitos frequentaram escolas, aprenderam os códigos sociais, econômicos e políticos, entraram em universidades, se tornaram advogados, jornalistas, médicos e, principalmente, construíram o movimento indígena. O movimento indígena é diverso, mas muito bem organizado. Produz jornais, organiza e participa de congressos nacionais e internacionais, elabora cursos de capacitação, projetos de desenvolvimento comunitário, feiras de artesanato e elege lideranças para serem representados nas instâncias institucionais de poder. Que tal terminarmos o capítulo conhecendo um pouco da poesia indígena? Ela tem sido largamente utilizada como instrumento de voz e luta das causas dos povos nativos. Elas trazem suas dores, tradições e cosmovisão. Vale a pena conferir! 24 CAPÍTULO 1 • “QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO Oração pela libertação dos povos indígenas Parem de podar as minhas folhas e tirar a minha enxada Basta de afogar as minhas crenças e torar minha raiz. Cessem de arrancar os meus pulmões e sufocar minha razão Chega de matar minhas cantigas e calar a minha voz. Não se seca a raiz de quem tem sementes Espalhadas pela terra pra brotar. Não se apaga dos avós – rica memória Veia ancestral: rituais pra se lembrar Não se aparam largas asas Que o céu é liberdade E a fé é encontrá-la. Rogai por nós, meu Pai-Xamã Pra que o espírito ruim da mata Não provoque a fraqueza, a miséria e a morte. Rogai por nós – terra nossa mãe Pra que essas roupas rotas E esses homens maus Se acabem ao toque dos maracás. Afastai-nos das desgraças, da cachaça e da discórdia, Ajudai a unidade entre as nações Alumiai homens, mulheres e crianças, Apagai entre os fortes a inveja e a ingratidão. Dai-nos luz, fé, a vida nas pajelanças, Evitai, ó Tupã, a violência e a matança. Num lugar sagrado junto ao igarapé. Nas noites de lua cheia, ó MARÇAL, chamai Os espíritos das rochas pra dançarmos Toré. Trazei-nos nas festas da mandioca e pajés Uma resistência de vida 25 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 Após bebermos nossa chicha com fé. Rogai por nós, ave-dos-céus Pra que venham onças, caititus, seriemas e capivaras Cingir rios Juruena, São Francisco ou Paraná. Cingir até os mares do Atlântico Porque pacíficos somos, no entanto. Mostrai nosso caminho feito boto Alumiai pro futuro nossa estrela. Ajudai a tocar as flautas mágicas Pra vos cantar uma cantiga de oferenda Ou dançar num ritual Iamaká. Rogai por nós, Ave-Xamã No Nordeste, no Sul toda manhã. No Amazonas, agreste ou no coração da cunhã. Rogai por nós, araras, pintados ou tatus, Vinde em nosso encontro Meu Deus, NHENDIRU! Fazei feliz nossa mintã Que de barrigas índias vão renascer. Dai-nos cada dia de esperança Porque só pedimos terra e paz Pras nossas pobres – essas ricas crianças. (POTIGUARA, 2018, pp. 31-32) Brasil Que faço com a minha cara de índia? E meus cabelos E minhas rugas E minha história E meus segredos? Que faço com a minha cara de índia? E meus espíritos 26 E minha força E meu Tupã E meus círculos? Que faço com a minha cara de índia? E meu Toré E meu sagrado E meus “cabocos” E minha Terra? Que faço com a minha cara de índia? E meu sangue e minha consciência E minha luta E nossos filhos? Brasil, o que faço com a minha cara de índia? Não sou violência Ou estupro Eu sou história Eu sou cunhã Barriga brasileira Ventre sagrado Povo brasileiro Ventre que gerou O povo brasileiro Hoje está só...A barriga da mãe fecunda E os cânticos que outrora cantavam Hoje são gritos de guerra Contra o massacre imundo (POTIGUARA, 2018, pp. 29-30) 27 QUE FAçO COM A MInHA CARA DE ÍnDIA?” – CULtURA, EtnOCEntRISMO, ALtERIDADE E QUEStãO InDÍgEnA nO BRASIL COntEMPORÂnEO • CAPÍTULO 1 Sintetizando Vimos até agora: A cultura pode ser entendida tal como uma lente através da qual enxergamos o mundo. Somos, ao mesmo tempo, de forma dinâmica, produtos e produtores de cultura. O contato com o outro pode gerar certo estranhamento e produzir estereótipos, preconceitos e etnocentrismo. A educação é um excelente instrumento para desenvolver a ética da alteridade, colocando-a como condição humana. Ainda carregamos muitos preconceitos em relação aos indígenas, subalternizando seus saberes, tradições e modos de vida. O movimento indígena segue resistindo em defesa da sua cosmovisão, da preservação da biodiversidade e do direito de existir a partir de sua cultura. 28 Introdução ao Capítulo Figura 13 Fonte: <https://twitter.com/tirinhass/status/651150832885325824>. O que nos faz ser, agir e pensar de determinada forma e não de outra? Até que ponto as nossas escolhas, verdades e crenças são frutos das nossas experiências individuais ou das relações sociais que vivenciamos ao longo da nossa trajetória? O quanto de nós é social? O quanto de nós é indivíduo? Você possui redes sociais? Responde constantemente aos seus chamados? Ou, como o personagem da tirinha acima, evita socializar? Há a possibilidade de um sujeito não socializar? Neste segundo capítulo, vamos refletir sobre o papel da sociedade na constituição da subjetividade e o papel do sujeito na construção social. Discutiremos como essa dinâmica ocorre simultaneamente, em que a sociedade forja o indivíduo e é forjada por ele. Também abordaremos as múltiplas formas de socialização e suas características, como elas impactam em nossas vidas, escolhas e modos de pensar, agir e sentir. A partir disso, se constrói a nossa identidade, que, assim como a socialização, não é estática, pois é um constante processo, um devir. A forma como enxergamos o mundo e nos enxergamos em relação a ele tem sua maleabilidade e isto é muito enriquecedor. 2 CAPÍTULO “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR https://twitter.com/tirinhass/status/651150832885325824 29 “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR • CAPÍTULO 2 Como não poderia deixar de ser, também abordaremos o papel da escola nesse processo de socialização. De forma geral, o ambiente escolar é o nosso primeiro grande espaço de socialização, onde encontramos o diverso, o que não nos é familiar. E nós, professores, somos peças fundamentais nesse movimento. Portanto, é importante compreendermos as dinâmicas da socialização e sua relevância para que sejamos agentes conscientes do nosso papel e possamos contribuir de forma positiva. Vamos socializar? Objetivos do Capítulo » Discutir os impactos da socialização na constituição do sujeito e o sujeito na construção da sociedade. » Compreender as características do processo de socialização e sua dinâmica em constante processo. » Relacionar a socialização com a construção da identidade. » Perceber o papel da escola no processo de socialização. “Élida não gosta de matemática porque a professora xinga todos os alunos”: o que é socialização? A socialização ocorre nas mais diversas etapas da vida e em diferentes contextos. Desde o nosso nascimento até a nossa morte, passamos por interações, vivências, experiências e trocas com outras pessoas e grupos, seja de maneira íntima ou não. Num mesmo momento da vida, podemos ter diversos tipos de interação: na faculdade, na academia, no trabalho, no espaço religioso, na família, no grupo de leitura, no transporte coletivo, nas rodas de conversa com amigos. Neste sentido, podemos afirmar que todas as nossas experiências cotidianas contribuem para a construção do nosso processo de socialização e dos dispositivos que usamos na atuação em sociedade. Pedro Abrantes (2011, p. 122) ressalta três características importantes desse processo: A experiência do indivíduo é apenas uma fração do todo social Isso significa dizer que o indivíduo não é a sociedade. Parece uma afirmação óbvia, mas, cotidianamente, podemos perceber que as pessoas “esquecem” disso e tomam suas experiências individuais como definidoras e explicadoras das dinâmicas sociais. Vamos a alguns exemplos? Um deles é quando uma pessoa negra diz que nunca sofreu racismo e que, portanto, não há racismo no Brasil. Ou então uma pessoa que nunca foi assaltada no Rio de Janeiro chega à conclusão de que a violência na cidade é uma falácia. Ou ainda, quando afirmam 30 CAPÍTULO 2 • “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR que o Sílvio Santos é um exemplo de que quando uma pessoa se esforça, ela chega aonde ela quiser, haja vista o ex-camelô ter se tornado um milionário. Essa experiência depende da capacidade (e disposição) de interpretar e interpelar o social Se você tem irmão/ã ou mais de um(a) filho(a), vai compreender perfeitamente esta característica. Mas se não é o seu caso, você pode fazer a observação com seus amigos também. Num mesmo ambiente familiar, debaixo do mesmo teto, filhos dos mesmos pais podem ser completamente diferentes. Muitas vezes, um determinado acontecimento, uma determinada cena teve um real significado para um, enquanto o outro já nem se lembra. Uma nota baixa pode ser motivo de vergonha para um, enquanto o outro vai simplesmente dar de ombros. Quantas vezes não ouvimos o famoso: “Não sei a quem você puxou!”? Isso porque os sujeitos interpretam e agem na sociedade de maneiras diferentes, uma vez que são subjetividades diferentes. Embora estejamos inseridos em um mesmo contexto social, possuímos individualidade, especificidades e vivências que são únicas e que contribuem para forjar quem somos e como encaramos o mundo. A informação resultante não pode ser armazenada e posteriormente mobilizada, na sua totalidade, o que pressupõe processos (intersubjetivos) de seleção, generalização e analogia Quando contamos uma experiência a alguém, nós a contamos a partir da nossa memória, das nossas lembranças e a partir também do impacto que aquele momento nos causou. Isso quer dizer que o processo de socialização é permeado por afetividade. As relações sociais podem mobilizar em nós sensações boas ou ruins, e isto vai impactar diretamente na forma como olhamos para elas. Pense nos seus anos escolares. O que vem à sua mente? Quais momentos de socialização? Que sentimentos mobilizam? Quais professores foram positivamente ou negativamente marcantes? Por quê? Agora pergunte a algum colega seu de escola. As respostas serão as mesmas? Vocês contarão as mesmas histórias da mesma maneira? Depois reflita em como tais experiências influenciaram as suas escolhas, decisões, modos de agir e pensar. De que forma esses momentos serviram de experiência, de analogia, ou como dizemos popularmente: de lição de vida. 31 “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR • CAPÍTULO 2 Figura 14 Fonte: <http://www.equilibrioemvida.com/2018/03/14-tirinhas-que-mostram-como-vida-de-uma-garota-e-confusa-e- bem-humorada/>. http://www.equilibrioemvida.com/2018/03/14-tirinhas-que-mostram-como-vida-de-uma-garota-e-confusa-e-bem-humorada/ http://www.equilibrioemvida.com/2018/03/14-tirinhas-que-mostram-como-vida-de-uma-garota-e-confusa-e-bem-humorada/ 32 CAPÍTULO 2 • “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR Um ponto fundamental para compreendermos os processos de socialização é não cairmos na armadilha de que o indivíduo é refém da sociedade, ou seja, de que a socialização é uma imposição social sobre o indivíduo que acaba por absorver suas normas, valores e conhecimentos.Ora, se assim fosse, não teríamos transformações históricas, estaríamos ainda vivendo como nossos primitivos ancestrais, não haveria mudança social. Ao contrário, como sabemos, as sociedades estão em constante movimento. Não há sociedade estática. Isto porque o ser humano não é apenas produto do seu meio. Ele é também produtor da sociedade, da cultura, do conhecimento. Diante dessas afirmações, qual a relação entre indivíduo e socialização? Eles estão intrinsicamente ligados, são faces da mesma moeda e ocorrem simultaneamente: enquanto vivenciamos, experimentamos e interagimos, estamos, ao mesmo tempo, construindo nossa subjetividade e fazendo sociedade. Abrantes (2011) ressalta que o contexto sociocultural e histórico de um determinado ambiente pode abrir ou fechar mais para a subjetividade. Por exemplo: uma escola mais punitiva, que imponha grandes níveis de conformidade e que venha a podar as diferenças, tende a impor certas competências e valores e a inibir a construção de diferentes subjetividades críticas e criativas. Já uma escola que estimule a originalidade e a criatividade abre mais espaço para construções subjetivas diversas que podem ir além de determinados padrões coletivos. Podemos concluir que a socialização e a construção do sujeito são uma estrada de mão-dupla, uma relação dialética. Um constrói o outro, um dinamiza o outro. Ou seja, os indivíduos não são meras esponjas que recebem as influências das sociedades na forma de conhecimentos, normas e valores, de forma passiva. Eles refletem, pensam, interpretam, vivenciam, adaptam e experimentam. São ativos nesse processo, participando de reelaboração e ressignificação desses dispositivos sociais. Durante muito tempo, a sociologia pensou a socialização a partir da divisão: socialização primária e socialização secundária. » Socialização primária: se daria no ambiente familiar, das primeiras experiências do indivíduo, sendo introduzida no mundo social. Tal processo seria orientado por relações afetivas e carregado de emoções, pois ocorreria no espaço do lar, incorporado pela criança como a realidade. » Socialização secundária: se daria de forma mais autônoma, institucionalizada e racional, a partir das interações com outros desconhecidos em múltiplos espaços, como as escolas, o trabalho, as associações. Porém, Abrantes propõe uma visão mais complexa e interessante, que mistura e ressignifica esses dois momentos de socialização. Para o autor, não seria possível uma estrita separação entre esses 33 “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR • CAPÍTULO 2 dois momentos. Por mais que o bebê permaneça grande parte do seu tempo em seio familiar, ele não está imune às interações sociais do todo. Isto porque sua família está em constante contato e vivência com o mundo externo à casa, são pessoas socializadas e levam para dentro do lar essas experiências. Além disso, cada vez mais cedo, as crianças entram em contato com dinâmicas sociais que contribuem para a construção de sua subjetividade, tais como parquinhos, creches, festas de aniversários, brinquedos e brincadeiras, internet, televisão. Todos estes elementos estão além da esfera familiar e contribuem para o processo de socialização da criança. Fernanda Müller (2008) nos atenta para não olharmos o processo de socialização do sujeito como meramente físico, emocional, biológico. A autora ressalta a sua característica de processo em constante construção. Assim, Müller afirma que não se trata apenas de uma questão de adaptação e internalização dos dispositivos sociais, suas práticas, valores, comportamentos e conhecimentos, mas de um processo de apropriação e reinvenção em que também as crianças “negociam, compartilham e criam culturas”. Em seu trabalho de campo observando as interações e entrevistando crianças de uma escola em Porto Alegre, Müller aponta que, especialmente para as crianças de origem pobre, a escola passa a estar ligada ao futuro e não ao presente. Passa a ser vista como um instrumento para “ser alguém na vida”, uma esperança frente à realidade presente dos pais. A autora percebeu que os motivos que levam os alunos a gostarem ou não das suas escolas variam e dependem da avaliação que fazem das relações construídas com os adultos e com as outras crianças. De forma geral, as preferências pelas disciplinas A ou B também estão relacionadas aos laços construídos com os professores: Élida não gosta de matemática porque a professora xinga todos os alunos por atos que somente alguns cometeram. Já Leonardo gosta de História e, motivado pelos documentários apresentados nas aulas, quer ser arqueólogo. Waldemir prefere Educação Física e Matemática e fotografou as professoras responsáveis por essas disciplinas. Adriane e Victória mostram interesse pelas aulas de Educação Física, o que de certa forma mostra as suas necessidades de movimento e liberdade no espaço das quadras esportivas, que são consideravelmente maiores que a sala de aula. [...] Jéssica afirma que a escola “faz a gente [os amigos] se encontrar”, e igualmente Leonardo quando diz que na escola encontra amigos e assim pode “unir o útil ao agradável: estudo e brinco”. [...] O recreio é a categoria espaço-temporal que mais aparece nos relatos das crianças como facilitador do encontro com os amigos. Para todas as crianças o recreio é um dos melhores momentos do dia, senão o melhor, enquanto a sala de aula aparece como o oposto, o lugar e o tempo de ouvir os professores. O espaço é dividido de acordo com os comportamentos esperados das crianças e acabam se 34 CAPÍTULO 2 • “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR transformando em dicotomias, o que Leonardo exemplifica quando afirma que gosta da escola, mas está “enjoado das aulas”. (MÜLLER, 2008, p. 133) Figura 14. Fonte: <http://www.cbvweb.com.br/blog/socializacao-na-infancia-por-que-escola-tem-um-papel- fundamental/>. Acesso em: 16/9/2019. É importante ressaltar que, durante este processo dialético em que o sujeito cria a sociedade e é subjetivado por ela, constrói-se a identidade. A identidade é forjada a partir do outro, das relações e interações com o outro. Eu me entendo enquanto branca porque vivo numa sociedade em que há pessoas de outros grupos étnico-raciais e, assim, vamos construindo nossas identidades: Focar a relação entre socialização e identidade é pertinente: em grande medida, cada indivíduo interioriza disposições, competências e valores, na medida em que as associa a uma identidade específica, resultante de uma negociação entre papéis atribuídos e intenções próprias. Acrescenta-se, assim, uma dimensão de intencionalidade e de reflexividade a um processo que decorre ao longo de toda a vida, [...]. A construção de uma narrativa autobiográfica surge como processo de interpretação e unificação das experiências de socialização, assim como guia para a ação. [...] [...] nem a socialização é apenas construção das identidades, implicando o desenvolvimento de disposições, linguagens, competências; nem as identidades são apenas o produto de sucessivas socializações (incluindo também fatores genéticos e condições materiais). (ABRANTES, 2011, pp. 131-132) Já Müller ressalta que: [...] Internalizar significa o aprendizado e a conformação de normas que transformam as pessoas em membros de suas sociedades. Por outro lado, a construção da identidade engloba não apenas a habilidade de se adaptar ao ambiente, mas também de agir e transformá-lo. É o resultado de um jogo de papéis e da síntese de diferentes significações vividas; não haveria uma http://www.cbvweb.com.br/blog/socializacao-na-infancia-por-que-escola-tem-um-papel-fundamental/ http://www.cbvweb.com.br/blog/socializacao-na-infancia-por-que-escola-tem-um-papel-fundamental/ 35 “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR • CAPÍTULO 2 identidade, porém, processos identitários,que são dinâmicos, múltiplos e em constante transformação. (MÜLLER, 2008, p. 139) Outra característica fundamental do processo de socializar é compreender que ele ocorre dentro de um determinado contexto em que há relações de poder. Assim, os sujeitos constroem e incorporam elementos da estrutura social: “Aliás, os mecanismos de dominação não podem prescindir desta socialização dupla, simultaneamente prática e discursiva, ainda que nem sempre ambos os processos sejam coincidentes, gerando tensões entre crenças e disposições.” (ABRANTES, 2011, p.128) Neste processo de socialização, também não podemos deixar de fora as emoções. Elas serão fundamentais quando olhamos para a maneira como o sujeito seleciona, armazena e toma decisões a partir de dispositivos de vivências e experiências. Abrantes afirma que experiências com grande carga emocional têm maior potencial de socialização. Além disso, emoções positivas podem levar a uma socialização por identificação, enquanto as emoções negativas geralmente produzem socialização por distinção. Saiba mais Rodrigo Ratier (2019, pp. 151-157) foi colunista e editor da conceituada revista Nova Escola. Em agosto de 2017, o autor enviou uma coluna intitulada “Precisamos sentir mais raiva”, na mesma edição cuja reportagem de capa – do mesmo Ratier – era “Como vencer o ódio”. Fortemente questionado e criticado, o editor escreveu um artigo no livro Educação contra barbárie, abordando o tema e defendendo a sua tese. Aqui, vamos reproduzir para você alguns trechos deste artigo. Após a leitura atenta, reflita: Você concorda com o autor? Por quê? Como o professor deve trabalhar a questão da afetividade em sala de aula? Afetividades como a raiva e o ódio devem ser condenadas ou trabalhadas e reelaboradas? Como proceder? De que maneira a forma como o educador trabalha a afetividade em sala de aula pode influenciar no processo de socialização dos discentes? Para ler a coluna na revista, você pode acessar o endereço: <novaescola.org.br/conteudo/8993/precisamos-sentir- mais-raiva>. Figura 15 Fonte: <https://novaescola.org.br/conteudo/8988/edicao-304>. Acesso em: 16/9/2019. https://novaescola.org.br/conteudo/8988/edicao-304 36 CAPÍTULO 2 • “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR Escola e afetos: um elogio da raiva e da revolta [...] Procurei mostrar como nem sempre ele [acesso de raiva] precisa ser associado a uma emoção negativa. Em certos casos, a revolta é absolutamente necessária. Citei Aristóteles, que na Ética a Nicômaco elogia quem “se encoleriza justificadamente com coisas ou pessoas”. Sustentei que a resposta a uma injustiça, mesmo que fora do tom supostamente civilizado, era preferível à submissão. [...] [...] Procurei discutir o que, a meu ver, são dois mitos: o do diálogo como varinha mágica para a concórdia e o da raiva como um sentimento que deve, necessariamente, ser sufocado em vez de problematizado. [...] O foco excessivo na dimensão racional, típica das sociedades ocidentais, varreu para detrás das cortinas a atuação dos sentimentos. No entanto, eles teimam a entrar em cena. Depressão, ansiedade, estresse, atos falhos, explosões de ira, crises de choro. A psicologia oferece provas abundantes do eterno retorno desses atores indesejados ao teatro da vida. No campo da educação, ensaia-se a volta por cima dos sentimentos. Os afetos ressurgem, por assim dizer, repaginados. Atendem, agora, pelo nome de “competências socioemocionais”. Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), trata-se de um conjunto de habilidades que, mobilizadas, auxiliam na resolução de “demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. Empatia, respeito, responsabilidade, flexibilidade, resiliência, determinação, autocuidado. Há menções ao que seriam competências socioemocionais em ao menos seis das dez competências gerais propostas pela BNCC, o que evidencia a centralidade do tema. [...] [...] Há farta pesquisa atestando o vínculo entre sentimentos e aprendizagem. E a escola é lugar de intensa convivência afetiva. As interações despertam nas crianças e nos jovens (e nos adultos que deles se ocupam) sentimentos tão díspares e intensos quanto a alegria, a tristeza, a inveja, o orgulho. Todos com repercussões em questões essenciais como desempenho escolar, evasão e abandono, violência, bullying e indisciplina. [...] um grupo de pesquisadoras da Faculdade de Educação da Unicamp aponta um suposto consenso de que a maneira mais eficaz de observar a personalidade humana seria pela aferição de cinco dimensões, conhecidas como Big Five: abertura a novas experiências, extroversão, amabilidade, conscienciosidade e estabilidade emocional. [...] [...] A noção de Big Five colocaria em polos opostos os aspectos comportamentais e os cognitivos, o que só faria sentido se considerássemos que as competências escolares se reduzem ao domínio técnico. Numerosa bibliografia sustenta o inverso, a ideia de que compreensão e expressão andam em par e que dicotomias do tipo razão/ sensibilidade, cognição/emoção e corpo/mente precisam ser superadas. [...] A influência da cultura e da sociedade, na forma da experiência de determinadas situações sociais que se alteram no tempo – enfim, a perspectiva histórico-cultural do amadurecimento orgânico – é destacada por referências como Henri Wallon e Lev Vygotsky. Contexto, conteúdo e significado das situações vivenciadas conferem um complexo dinamismo à personalidade, [...]. (... ) Professoras e professores trabalham o tema sem referencial específico, ancorados num saber baseado nas experiências imediatas. Um artigo de Luciene Tognetta exemplifica como o juízo professoral tende a compreender os aspectos afetivos. Numa pesquisa de 2011, conduzida pelo Grupo de Estudos de Educação Moral (Gepem) da Unicamp/Unesp, educadores e educadoras responderam a um questionário sobre afetividade no cotidiano escolar. Entre as conclusões, a nada surpreendente revelação de que a maioria considerou mais importante “premiar o comportamento de um aluno” do que “demonstrar indignação por alguma situação de injustiça”. A afetividade, assim, é entendida como sinônimo de carinho e elogio a quem “fizer por merecer”. O aluno modelo é ordenado e dócil. A heteronomia e o respeito às normas por medo e punição passam a ser princípios reguladores das relações escolares. Prêmios aos que obedecem, castigos aos que transgridem. 37 “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR • CAPÍTULO 2 O olhar sobre um determinado dispositivo de socialização pode se modificar ao longo do tempo e de acordo com as emoções do contexto. Abrantes nos fornece um bom exemplo disto: [...] é sistemático os jovens afirmarem que abandonaram a escola porque “não gostavam de estudar” ou porque “as aulas eram uma seca” e, anos mais tarde, lamentarem amargamente esta decisão. Podemos explicar estes sentimentos de forma estrutural: por um lado, o facto de a escola ter proporcionado emoções negativas – geralmente, associadas a sentimentos de incompreensão, estigmatização, interiorização do fracasso – constitui uma experiência provocada por hiatos entre a realidade escolar e outros quadros de socialização; por outro, o arrependimento é resultado das experiências (emocionais) posteriores no mercado de trabalho, assim como um tipo de racionalidade que se associa geralmente à idade adulta [...]. Mas importa não esquecer que os vínculos afetivos (e inesperados) com profissionais escolares e/ou colegas de outros meios sociais permitem a alguns destes jovens criar outros sentidos para a escola. (ABRANTES, 2011, pp. 133-134) Por fim, podemos definir socialização como: [...] processo de constituição dos indivíduos e das sociedades, através das interações, atividades e práticas sociais, regulado por emoções, relações de poder e projetos identitários-biográficos, numa dialética entre organismos biológicos e contextossocioculturais. Desta forma, os indivíduos vão produzindo a sociedade e sendo produzidos por ela. (ABRANTES, 2011, p. 135) [...] A escola transformadora não suprime a rebeldia e nem a condena de antemão. Ao contrário, busca desvelar suas causas, canalizando o rancor destrutivo para o questionamento das injustiças e propondo ações para sua transformação. A raiva e a rebelião são entendidas como parte do processo para a formação de indivíduos autônomos, capazes de crítica e reflexão. [...] Vivemos num mundo injusto e num país abissalmente desigual. É compreensível e indispensável que alunos e professores sintam raiva, que se indignem. Que a escola esteja a serviço da transformação da indignação em ação, trabalhando a raiva e a revolta como insumo básico nas discussões dos aspectos afetivos no ambiente escolar. Por muitos anos como editor de Nova Escola, colei acima da tela do computador uma frase atribuída ao filósofo iluminista Condorcet: “A verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar”. Deixei o emprego e o computador. Sigo levando comigo essa máxima. 38 CAPÍTULO 2 • “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR Sugestão de estudo Vamos indicar aqui dois excelentes filmes que vão ajudar você a compreender a relação entre escola e processo de socialização. Ambos são documentários nacionais, o que nos ajuda a trazer para a prática o que discutimos aqui na teoria. O primeiro filme se intitula Pro dia nascer feliz (2005), e aborda ambientes escolares muito distintos. Aqui podemos observar como a escola não é uma ilha apartada da sociedade, pois suas relações sociais se dão a partir de sujeitos que trazem para dentro dos muros escolares suas experiências, vivências. Ao mesmo tempo em que a escola também cria novas possibilidades de socialização, o que enriquece a dinâmica? O que os alunos trazem para escola? Como eles significam a escola? E o que eles levam para fora dos muros? Figura 16 Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pro_Dia_Nascer_Feliz_(document%C3%A1rio)>. Ao abordar diferentes contextos, podemos observar como a escola possui distintos significados para os alunos. Você conhecerá a Valéria, uma menina do interior de Pernambuco que ama poesia e por isso é vista por seus pares como uma pessoa estranha, esquisita. Ao escrever seus poemas e redações com maestria, tem seu trabalho desqualificado, pois estaria bom demais para uma pessoa nas condições sociais dela. Você será apresentado ao Deivinson Douglas, que faz rir e emocionar. Morador de uma comunidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, o rapaz de 16 anos apronta várias na escola, deixando professoras e diretora de cabelos em pé. Presenciamos um conselho de classe no qual o destino de Douglas na escola será decidido, momento importante do filme que merece reflexões. As meninas do colégio particular de São Paulo te farão relfletir sobre as desigualdades sociais profundas na nossa sociedade e como isso impacta no cotidiano e escolar e na forma como os discentes encaram o ensino. Enfim, o filme é muito rico e permite a possibilidade de interessantes discussões acerca da relação entre sociedade, indivíduo e ambiente escolar. O segundo filme que gostaríamos de indicar se chama Nunca me sonharam (2017). O título está relacionado à fala de um adolescente que teima em enfrentar o destino que anunciaram para ele. Nunca o sonharam na faculdade e é lá que ele quer estar. O filme não aborda especificamente a questão educacional, mas tal temática atravessa todo o documentário. Isso porque trata-se de um painel sobre os adolescentes no Brasil contemporâneo: o que pensam, o que sonham, como veem o mundo, como se relacionam. Neste sentido, vemos a escola como elemento fundamental na construção dessas percepções. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pro_Dia_Nascer_Feliz_(document%C3%A1rio) 39 “UnIR O ÚtIL AO AgRADávEL: EStUDO E BRInCO” – PROCESSO DE SOCIALIzAçãO E AMBIEntE ESCOLAR • CAPÍTULO 2 É um filme muito bonito e sensível que abre a escuta para os nossos jovens. Eles são os protagonistas e nos convidam a adentrar em seu mundo. Este é um exercício fundamental para um professor. É preciso compreender com quem e para quem estamos nos comunicando. Quem é esse jovem? Quais seus códigos e signos? Como constroem suas subjetividades? São essas perguntas que o filme visa a responder. Figura 17. Fonte: <https://www.videocamp.com/pt/movies/nuncamesonharam>. Acesso em: 16/9/2019. Sintetizando Vimos até agora: O processo de socialização é complexo e implica uma relação dialética e dinâmica entre indivíduo e sociedade. Isso significa dizer que, durante as vivências e experiências nas relações sociais, o sujeito se constitui e constitui a sociedade. A socialização é dinâmica e mutável, influenciando na construção de identidades que também sofrem alterações ao longo das trajetórias pessoais. O processo de socialização implica vários dispositivos: biológicos, psíquicos, contextos sociais, ambiente familiar, espaço, temporalidade, afetividades. A escola possui papel fundamental no processo de socialização, e o professor precisa ter plena consciência do seu papel neste movimento. https://www.videocamp.com/pt/movies/nuncamesonharam 40 Introdução ao Capítulo O conceito de conhecimento não se resume a um simples estudo apolítico da verdade, mas é sim a reprodução de relações de poder raciais e de gênero, que definem não somente o que conta como verdadeiro, bem como em quem acreditar. Algo passível de se tornar conhecimento torna-se então toda epistemologia que reflete os interesses políticos específicos de uma sociedade branca colonial e patriarcal. (KILOMBA, 2016, p. 4) Figura 18 Fonte: <https://tirasarmandinho.tumblr.com/>. Qual crítica a tirinha acima realiza? Quando você estudou a chegada dos portugueses ao Brasil, sob qual perspectiva o processo foi narrado? Quem decide o currículo? Quem decide o conteúdo? Que tipo de conhecimento é priorizado? Em detrimento de qual? O que deixamos de conhecer? O que é silenciado? Neste capítulo, vamos discutir o conceito de multiculturalismo, que carrega em si não só uma perspectiva teórica, mas também prática. Neste sentido, veremos as suas origens a partir do movimento negro dos afro-americanos e suas implicações no ambiente escolar. De que forma o docente pode contribuir para uma sala de aula multicultural? O que o multiculturalismo tem a dizer para as nossas práticas pedagógicas? 3 CAPÍTULO “IMAgInO IREnE EntRAnDO nO CÉU”: nOvAS EPIStEMOLOgIAS E O DESAFIO DA PRátICA MULtICULtURALIStA https://tirasarmandinho.tumblr.com/ 41 “IMAgInO IREnE EntRAnDO nO CÉU”: nOvAS EPIStEMOLOgIAS E O DESAFIO DA PRátICA MULtICULtURALIStA • CAPÍTULO 3 Discutiremos também o conceito de epistemologia e como compreender a sua dinâmica nos ajuda a perceber relações de poder. A quem é autorizado construir o conhecimento? Quais relações de poder estão presentes quando se decide como o conhecimento deve ser produzido? Quem tem legitimidade e quem não tem? Conheceremos intelectuais que visam a quebrar o monopólio do conhecimento a partir de uma epistemologia multicultural, que ouça diferentes vozes, reconheça novos saberes e questione hierarquias de falas. O multiculturalismo é um desafio complexo, difícil de executar, mas que precisa ser compreendido e aplicado se quiser caminhar para uma educação mais diversa e democrática. Aceita o desafio? Objetivos do capítulo » Compreender a proposta teórica e prática do multiculturalismo. » Discutir as disputas de poder que regem as escolhas epistemológicas. » Analisar as possibilidades de uma perspectiva multiculturalista no ambiente escolar no que tange aos conteúdos, aos currículos e à bibliografia. “Mudar a geografia da razão”: multiculturalismo e novas epistemologias Podemos definir identidade de maneira mais perspicaz como experiências vivenciadas localizadas e posicionadas por meio das quais tanto indivíduos como coletivos trabalham
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