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O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Cesar Sabino Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA. Orientadora: Prof.a Dr.a Mirian Goldenberg. Doutora em Antropologia Social. Museu Nacional. Rio de Janeiro 2004 2 Sabino, César O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Rio de Janeiro:UFRJ/PPGSA, 2004. 366p.il. Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA 1.Esteróides anabolizantes. 2. Drogas. 3. Fisiculturismo. 4. Corpo. 5. Construção de Identidade. 6. Antropologia. 7. Tese Dout – (UFRJ/PPGSA) I Título 3 Agradecimentos Uma tese de doutorado nunca é uma produção individual, sua elaboração envolve a participação direta ou indireta de muitas pessoas. O exemplo de profissionalismo, atenção e dedicação tive a sorte de encontrar aqui no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na pessoa da minha orientadora Mirian Goldenberg. Não tenho palavras para agradecer sua grande paciência, valiosa orientação e também o grande e constante incentivo que nos momentos mais difíceis sempre me proporcionou, não me deixando esmorecer no meio do caminho. Também, gostaria de agradecer à Professora Madel Therezinha Luz pela oportunidade de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre Racionalidades Médicas no Instituto de Medicina Social da UERJ e de suas exemplares aulas na mesma instituição. Durante este rico período de aprendizado desenvolvi não apenas meu interesse pelas estudos sobre corpo, gênero e saúde, mas também o interesse pelas Ciências Sociais. Com ela comecei a desenvolver o gosto e o respeito pelo ofício de pesquisador e professor nos idos de 1994. Para com as professoras Madel Luz e Mirian Goldenberg tenho uma imensa e inefável dívida. A elas minha incomensurável gratidão, respeito e admiração. Agradeço muito, também, aos professores Marco Antônio Gonçalves e Elsje Maria Lagrou as sugestões fundamentais, o atencioso carinho, as aulas repletas de questionamentos antropológicos, nas quais a tecitura do pensamento se fazia sempre presente, e as revistas importadas sobre cultura física do início do século XX trazidas da Europa – que me foram gentil e generosamente presenteadas. Documentos fundamentais na elaboração de parte dessa tese. Ao professor Luis Fernando Dias Duarte gostaria de agradecer os conselhos e as pacientes sugestões sobre textos e temas importantes por ele 4 indicados e que também foram fundamentais para a elaboração desse trabalho. Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) pela acolhida em suas instalações e às funcionárias da secretaria, e amigas, Denise e Cláudia pela atenção e o carinho sempre dispensados. À CAPES agradeço a bolsa concedida, sem a qual a dedicação ao trabalho de pesquisa não poderia ter sido realizado com o aproveitamento devido. Aos meus amigos Marcelo Peloggio, Washington Dener, Marcus Siani, Andréa Osório, Sônia Beatriz e Marcelo Silva Ramos agradeço a vivacidade do pensamento (não apenas crítico, mas criador), o companheirismo e a paciência que só amigos de verdade possuem. A eles também agradeço as indicações bibliográficas, as sugestões e as críticas que foram muito úteis para a elaboração deste trabalho. À Cláudia Bomfim da Fonseca não tenho palavras para agradecer sua dedicação, a inestimável ajuda com a informática, as fotografias tiradas durante o trabalho de campo, as sugestões temáticas, o companheirismo, a paciência, e a compreensão. Á ela minha admiração, meu amor e meu carinho. Agradeço a minha mãe Irani Sabino, meus amigos e familiares, que suportaram minha inconstância (e aparente distância) durante a elaboração desta tese, mesmo sem entender o porquê dela, ou mesmo sua finalidade. Agradeço, também, a atenção de todos os amigos das academias que freqüentei durante o trabalho de campo: os professores Gustavo Lopes e Ricardo Barguine, Rafael Pacheco, Wolney Teixeira, Renata Bérenger, Márcia Novak, Tatiana Amaral, Nina Aielo, Luca Paes Leme, Rafaello, Fabrício, Luís, Rafael e tantos outros que aturaram o olhar intrometido e as perguntas freqüentes de um pesquisador. 5 ABSTRACT The aim of this thesis is to comprehend the word vision and the social organization of bodybuilders at the Rio de Janeiro’s Gyms. It intends to understand the sense of the drugs use (steroids), remedy use, diets use, and health marketing to makes the bodybuilder person through the passage rituals. It enphazise, also, the transit among the steroids and other drugs like marijuana and cocaine at the gyms, exploring the interfaces of drugs consumerism and a new health ideology with anomic violence. Resumo O Objetivo desta tese é compreender a visão de mundo e a organização social dos fisiculturistas das academias do Rio de Janeiro. Procura entender o sentido do uso de drogas (esteróides anabolizantes), remédios, dietas e o mercado da saúde. Itens que participam na construção da pessoa do fisiculturista por intermédio de rituais de passagem. Enfatiza, também, nestas instituições, a relação entre o uso de esteróides e drogas como maconha e cocaína, explorando a ligação do consumo destas com a nova idologia da saúde e a prática da violência anômica. 6 “Nous avions conscience que la connaissance du sport est la clé de la connaissance de la societé ”. Norbert Elias “Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” Nietzsche 7 ÍNDICE Apresentação 10 O Corpo Utópico 13 Capítulo I O Surgimento do Bodybuilding 28 Heróis Fundadores 37 A Gesta de Arnold Schwarzenegger 60 Capítulo II O Surgimento dos Esteróides 67 No Reino de Dionisos 76 Droga Hierarquizante 82 Apolo Rei 87 Entre Apolo e Dionisos 91 Capítulo III Ética e Estética do Esteróide 97 Do Ascetismo ao Hedonismo 110 Drogas Masculinizantes e Individualismo 121 O Complexo de Piegan 124 Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo 127 Capítulo IV Fármacos e Formas. Breves Notas Etnográficas 131 8 A Química da Forma 141 A Farmácia de Adonis 158 A Forma da Dor 169 A Lógica Classificatória Muscular 178 Séries de Repetição: A Divisão do Trabalho Muscular 199 Capítulo V Comendo como Bicho: Publicidade, Mito e Grastro(a)nomia 207 Dieta Forte 211 Publicidade e Forma 224 Mito e Mídia 228 Mitos da Forma 233 Mercadorias Classificatórias 238 Imagens e Palavras 244 Raios e Leões 248 Fábrica e Mecânica de Corpos 250 Capítulo VI Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme 257 Pele de Homem. Pele de Mulher 262 Tatuagem e Lógica da Identidade 271 Magia Capilar ou A Louridade da Loura 276 O Cabelo do Malhador 279 A Loura Virtual 283 9 Capítulo VII Elogio à Barbárie 292 Violência Difusa 295 O Status da Briga 298 Violência Anômica 309 Considerações Finais 325 Referências Bibliográficas 329 Anexos 343 10 Apresentação Este trabalho tem como objetivo compreender a construção social do corpo nas academias cariocas de musculação e fisiculturismo, buscando aprofundar questões levantadas durante a elaboração da dissertação de mestrado “Os Marombeiros. Construção de Corpo e Gênero em Academias de Musculação”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS)no ano de 2000. A dissertação, uma etnografia que buscou focalizar o cotidiano das academias de musculação da Zona Norte do Rio de Janeiro (Tijuca, Andaraí, Grajaú e Vila Isabel), destacou as relações de gênero e o uso de esteróides anabolizantes relacionado à construção da forma física nestas instituições. A análise de tais questões, embora ainda ligadas ao estudo sobre a hierarquia estética do grupo e o uso de drogas, deteve-se no subgrupo específico dos fisiculturistas (e não nos freqüentadores das academias de musculação, em geral, como havia sido desenvolvido anteriormente), focalizando e aprofundando aspectos tais como o simbolismo relacionado à alimentação do grupo, o uso de suplementos alimentares, o trânsito do uso de esteróides (denominados drogas apolíneas na dissertação de mestrado) para o consumo de drogas como a maconha e a cocaína (estas, por sua vez, denominadas drogas dionisíacas), as perspectivas míticas suscitadas pela propaganda e pelo marketing direcionado à manutenção da saúde e boa forma, o sistema simbólico expresso pelas tatuagens, o simbolismo ligado à coloração capilar e o elogio à violência. A pesquisa da tese de doutorado ampliou o espectro de academias incluindo instituições do bairro de Copacabana. O direcionamento da pesquisa para tais academias ocorreu devido ao fato de neste bairro localizar-se o maior número de academias freqüentadas por fisiculturistas, homens e mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, atualmente. Entendendo-se por fisiculturistas, não apenas os freqüentadores de academias de musculação e fitness, em geral, mas indivíduos que se destacam do resto dos freqüentadores por dedicar grande parte do seu tempo desenvolvendo massa muscular muito acima da média, além de participarem, mas não 11 necessariamente, de campeonatos ou competições de bodybuilding. Sendo tal grupo o maior representante de aficcionados pelo desenvolvimento muscular, tendo a forma física como, se não a maior, a principal preocupação de suas vidas, determinadas dimensões existentes de maneira não muito significativa em outras academias (nas quais participam em número reduzido) puderam ser melhor analisadas e pesquisadas nestas instituições de Copacabana nas quais representam contingente significativo. Esta tese de doutorado é o resultado de 54 meses de pesquisa (trabalho de campo) em 10 academias de musculação e 2 de fisiculturismo da Zona Norte e Zona Sul cariocas: 4 academias no bairro de Vila Isabel; 3 academias no bairro da Tijuca; 2 no bairro do Grajaú; 2 em Copacabana e 1 no Andaraí. As duas academias de Copacabana pesquisadas são exclusivamente freqüentadas por fisiculturistas. No entanto, também foram pesquisados os grupos de fisiculturistas que freqüentam as academias de musculação da Zona Norte. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200 homens e 110 mulheres) com idade entre 16 e 55 anos. Porém, apenas duas entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo todos os outros relatos e conversas escritos em cadernos e diários de campo, imediatamente após o pesquisador deixar os locais de pesquisa. Foi priorizada a abordagem baseada na observação participante. Os comportamentos e as falas descritas são os dos fisiculturistas, e simpatizantes do fisiculturismo, em seu mundo cotidiano ou “habitat natural”, como escreveu Wacquant (2001) em seu livro sobre os boxeurs. A tese está organizada em sete capítulos. É apresentada uma breve etnografia ressaltando determinadas características consideradas fundamentais para a construção do modelo de academia descrito no relato. Esta pequena etnografia ressalta a importância, relatada pelos próprios usuários, do uso dos esteróides anabolizantes e outras drogas para a construção da identidade do grupo relacionada às suas aspirações e visão de mundo, considerando-se seu histórico e a dimensão simbólica do seu uso. Inicialmente é apresentado um breve histórico do fisiculturismo, seu surgimento, a consolidação do campo, seus ícones e sua projeção 12 internacional, destacando a função de um mito de referência para os bodybuilders: a gesta do “herói” Schwarzenegger. A história do fisiculturismo no Brasil não foi abordada, pois não encontrei nada de significativo sobre ela. Fato que já sugere a realização de outra pesquisa abordando apenas este aspecto. Logo após é considerada a dimensão simbólica do uso de esteróides tratado como um novo tipo de uso de novas drogas. Uso relacionado ao processo de medicamentalização de parcela significativa da cultura atual. Cultura que tende, como sugeriu Sfez (1995), a elaborar uma utopia da saúde. Também é realizado um breve histórico do surgimento dos esteróides introduz a questão do uso do discurso científico pelo mercado da forma física e dos suplementos alimentares. Em outro capítulo destaca-se o papel da publicidade relacionada à construção e manutenção dos mitos corporais modernos e sua relação com as práticas alimentares dos freqüentadores assíduos das academias de fisiculturismo. A pesquisa enfatiza o papel simbólico da alimentação e sua relação com a manutenção da forma pelos fisiculturistas, o aspecto sagrado/profano da comida, a demonização da gordura, as classificações alimentares, a consubstancialidade animal (ligada ao uso, por parte dos pesquisados, de vitaminas e drogas para animais por causa da crença de que tal compartilhar confere aquisição de propriedades animalescas consideradas virtudes pelo grupo). Também focalizam-se os significados das dietas e sua relação com o uso dos esteróides - o elixir-mor dos bodybuilders - , o papel da publicidade sobre a comida, os suplementos alimentares e a forma física e sua função classificatória cotidiana ligada à fabricação dos mitos fisiculturistas. Neste ponto, a pesquisa (pautada sobre a análise de propagandas publicitárias) foi influenciada pelo trabalho de Rocha (1995). No capítulo seguinte é relatada também, de forma breve, a experiência pessoal do pesquisador no campo, sua relação com o seu próprio corpo e com as estruturas dos dois campos de inserção profissional: o campo da academia e o insurgente campo do fisiculturismo carioca. É destacado o papel da lógica classificatória das competições e dos exercícios e a relação que estes, e sua lógica, têm com a ordenação da realidade cotidiana do grupo. Nesse âmbito, o 13 simbolismo relacionado a crenças em mau-olhados, superstições e azar marcam sua presença de reencantamento de um mundo onde o ascetismo apresenta-se constantemente. O significado, por exemplo, dos números ímpares na lógica classificatória do grupo é bastante sugestivo. O capítulo posterior dá continuidade a essa análise simbólica focalizando, porém, a hierarquia inscrita não apenas nos músculos, mas na pele dos fisiculturistas por intermédio de suas tatuagens. É ressaltado de que forma tais desenhos e inscrições possuem uma gramática própria traduzindo relações de violência simbólica específicas do grupo, demarcando papéis sociais relacionados ao gênero e à classe social. A seguir, é focalizada a função simbólica do cabelo, a importância do cabelo louro e dos pêlos alourados situados em determinadas regiões do corpo feminino e sua relação com a hierarquia estética das academias. Também é destacado o sentido positivo para os homens da ausência de pêlos, enquanto que para as mulheres a presença de tais itens pode, ao contrário, ter o mesmo sentido positivo. Por fim, o aspecto da violência simbólica traduzida em práticas físicas surge no último capítulo da tese com a análise do cultivo e da exaltação do estilo rústico, por vezes antiintelectual e violento, por parte destas pessoas que cultivam os músculos e o consumo da forma. O corpo utópico Atravessamos uma época na qual o culto à forma corporal ganhou amplitude inédita. Não é mais novidade: músculosdefinidos e inflados, tatuagens, piercings, implantes de silicone, botox, bronzeado artificial, cirurgias plásticas, estão constantemente presentes no cotidiano das grandes cidades e na mídia atual. Uma espécie de cultura do corpo – nos dois sentidos: da forma física e sistema subjetivo – vem se consolidando, ao menos em parte, nas sociedades complexas hodiernas, articulando padrões estéticos perseguidos por um crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu corpo. Estes, ao buscarem a construção de um corpo mais adequado aos ideais estéticos hegemônicos ligados à adoração física vigentes nestas sociedades, acabam 14 por construir também uma ética singular diretamente radicada na estética. Corpo como axis mundi. Este processo tem conduzido indivíduos e grupos de determinados extratos sociais a buscarem uma perfeição física – obviamente inalcançável - radicada na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, métodos milagrosos e consumismo de produtos da indústria químico- farmacêutica como esteróides e suplementos alimentares, além de vitaminas e “fortificantes” dos mais variados tipos (Luz, 1997; Del Priore, 2000; Pope, Phillips & Olivardia, 2000; Nascimento, 2003). A preocupação não apenas com a aparência, mas com a forma física, - com o entalhe muscular lapidado a ferro, suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias-, apesar de ser poduzida coletivamente, torna-se carregada de investimento individual. Homens e mulheres famosos anunciam na imprensa e nos programas de televisão, as transformações corporais que decidiram realizar lançando mão de recursos tais como personal trainners, nutricionistas, cirurgiões plásticos e outros profissionais do rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde – entendida aqui como “boa forma física”. De acordo com tal ideal, cada indivíduo é considerado responsável (e culpado) pela sua juventude, beleza e saúde: só é feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um deve buscar em si as imperfeições que podem - e devem - ser corrigidas (Goldenberg, 2002; Luz, 2000). Neste âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado que o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma pode significar, neste fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, disciplina e talento para vencer, galgando os patamares da hierarquia social. A saúde torna-se um mandamento com efeito normalizador e adquire características de uma utopia, entendida, segundo Sfez (1995), como projeto que supera, por sua natureza praticamente religiosa – dado seu caráter universalista -, a ideologia. Esta, embora pretenda universalidade é reconhecida pelos teóricos enquanto discurso particular, ou seja, discurso originário de uma parcela específica da sociedade, sendo portanto discurso parcial. No caso das práticas corporais ligadas primordialmente ao paradigma estético esta utopia está atravessada por representações de beleza ancoradas nos valores individualistas da cultura contemporânea. Assim, 15 “é a estética, mais que a racionalidade médica e seus modelos (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério sociocultural maior de enquadramento dos sujeitos para determinar se realmente são ‘saudáveis’, ou se precisam exercer alguma ‘atividade de saúde’, através do estabelecimento de padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do corpo que ao modelo doença/prevenção” (Luz, 2003: 5. Grifos da autora). Tais imperativos relacionados a estratégias sociais impelem um crescente número de indivíduos a lutarem contra sua genética e o processo inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma espécie de obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude. Tal obsessão pode ser percebida pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos lançados a cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas inovadoras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos implantes de silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, do consumo de substâncias químicas de tipos variados para diminuir a porcentagem de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em forma de cremes para atenuar as marcas de expressão. Este poder normalizador, padrão de atuação coletiva que leva inconscientemente milhões de pessoas a desejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético, paradoxalmente vai de encontro ao ideal de liberdade individual inerente à representação do individualismo da cultura ocidental1 (Luz, 1988; 2000; Dumont,1985). 1 -Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, modernidade e Ocidente, consideramos, da mesma forma que Duarte (1999:22), viável a utilização do ponto de vista comparado da hipótese de que participamos de um sistema de significação específico a que se pode chamar, tentativamente, de “cultura ocidental moderna”, que implica uma certa maneira de perceber e compreender os fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender fenômenos das outras culturas. 16 Este processo gerontofóbico e somatófilo no caso da sociedade brasileira pode apresentar características peculiares ressaltadas por diversos sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuilding 2amador, as brasileiras e brasileiros articulam recursos técnicos universais para otimizar partes específicas do corpo valorizadas pela sua cultura. Partes tais como nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e peitos nos casos masculinos, são “trabalhados” por exercícios com pesos para alcançar forma e volume adequados ao padrão estético vigente (Da Matta, 1996). De acordo com Malysse (1999; 2002), a atual expansão das técnicas de construção do corpo no Brasil – ao menos no Rio de Janeiro onde o autor realizou trabalho de campo – tendem a reiterar as profundas hieraquias sociais disfarçadas pela cordialidade das interações nas quais o contato corporal se realiza sem significar, contudo, proximidade social, de fato. Diz o autor: “no contexto do culto carioca ao corpo, este é o portador de valores de distinção social. No Rio, não é apenas a beleza em si que constitui o valor fundamental da distinção social, mas também a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua aparência...essa relação de espelho com o corpo confirma de maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca (...). Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente. Nesse contexto, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em direção ao corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada e 2 - O Bodybuilding ou fisiculturismo pode ser sumariamente definido como uso de exercícios progressivos de força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver uma musculatura específica. Este desenvolvimento é conseguido através de exercícios contínuos realizados com pesos acoplados a barras – que podem ser curtas ou longas – e/ou em máquinas projetadas para tal. O uso de tais pesos é controlado em conformidade com o objetivo estético do executante. Em geral, a quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo. Relacionado a tal prática existe todo um saber sobre nutrição, fisiologia e uso de remédios e substâncias diversas que circula nas academias de musculação. Este saber geralmente tem por base os conhecimentos científicos ligados à ciência médica ou biomedicina. Contudo, grande parte do conhecimento articulado pelos fisiculturistas e personal trainers é prático, ou seja, apreendidoe produzido no cotidiano de tais instituições por intermédio da experimentação intuitiva ou por simples imitação. Assim, uma substância (remédio, 17 esteticamente orientada por imagens-norma ou por uma iconologia desse culto corpo.” (2002:131). Tocar-se em quantidade maior do que outros povos em espaços públicos e privados não equivale à proximidade social efetiva, como uma análise apressada poderia concluir. Paradoxalmente, o contato físico com o outro, neste caso, pode significar distanciamento hierárquico e instrumentalização egoísta da alteridade. Neste processo, o problema das representações sociais relacionadas à estética do corpo brasileiro aparecem ligadas à concepção de que este corpo encarnaria uma beleza inigualável, tida como produto nacional (inclusive “para exportação” como diz o senso comum) que não estaria associada diretamente às questões de reivindicação étnico- política3. Este aspecto alude a uma percepção falsa de democratização, radicada mais em um movimento estetizante, e acima de tudo mercadológico, que de fato político (Fry, 2001; 2002). Não havendo no Brasil vínculo direto entre práticas cosméticas e contestação às formas de opressão sexual ou racial, a questão da beleza surgiria enquanto produto final da miscigenação -, valorizada, neste caso. Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da mulher brasileira, com sua “cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas pernas grossas e seu andar malemolente” são produto da “mistura de raças”, tal mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida) um item indicativo da “democracia racial” brasileira, cultura supostamente capaz de sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente diferenciador: “não há beleza maior do que a da mulher brasileira”, diz o senso comum nacional. Esta ode à “beleza miscigenada” da brasileira (Freyre, 1986), - clichê suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum fisiculturista percebe ter funcionado no seu aprimoramento estético é repassado para todos aqueles que desejam alcançar tal aprimoramento. 3 - O trabalho de Bomfim (2002) sugere como prática comum à cultura nacional a manipulação circunstancial da identidade étnica denominada “etnia virtual”. Este processo ocorre quando indivíduos ou grupos manipulam uma suposta ascendencia minoritária – ciganos (no caso específico do trabalho da autora), negros, etc - com o intuito de construir um papel vantajoso em determinado contexto social. Este esteticismo populista pode ser claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para negros em universidades públicas no Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro -, situação na qual vários indivíduos considerados brancos se declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente, vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. N.o 244. 20/jan/2003. p.p. 36-7). Rezende e Maggie também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno, etc. , tornam-se atribuições que podem variar “de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala.” (2002:15). 18 de guia turístico que esconde o fato de as percepções estéticas serem produto da socialização -, é imagem dominante na representação da identidade nacional (Edmonds, 2002) radicada no senso comum; muitas vezes contrabandeado para os estudos sociológicos. Tal representação que concebe a beleza da brasileira como produto da miscigenação esquece que a grande maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas mundo afora pelo seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada têm de musas mestiças, ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou italianas: Gisele Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana Weickert, Ana Hickmann, etc. E é justamente tal padrão eurocêntrico de beleza feminina que impera na mídia e que domina, se não na morfologia ao menos na etnia, o campo das academias de musculação. Sendo instituições de classe média as academias pesquisadas expressam as idiossincrasias relativas às visões de mundo dos seus freqüentadores. Tais concepções a respeito das relações étnicas estão de acordo com o que foi percebido por John Norvell. O trabalho do autor coloca em xeque as conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas camadas médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca, destacando a ambigüidade presente no discurso deste grupo que usa de eufemismos para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se “claros”, “alvos”, “morenos claros”, e assim por diante, quando confrontados com suas características européias4. Como a representação do Brasil é a de uma nação totalmente miscigenada, não se fala de brancura – ao menos em discursos oficiais e “politicamente corretos” - como característica valorizada; assim os informantes evitam referir-se a si mesmos como “brancos”, mesmo quando descendentes diretos de imigrantes europeus com todas as características inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo, e quando o fazem, é com 4 - Farias (2002) escreve que no Brasil ser bronzeado é símbolo de status. A cor bronzeada, o estar moreno, ou ser moreno, com toda ambigüidade que tal termo possui (e por isso mesmo) é sinônimo de positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, este discurso é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época do verão. Em outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco, ao menos no discurso. 19 incômodo ou constrangimento. Apesar de tal constatação discursiva o trabalho de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a prática difere, algumas vezes, daquilo que é dito: “os cariocas de classe média observam que não partilham os valores culturais que constituem o núcleo da nação...em algum momento começam a falar sobre o passado de imigrantes de sua família...apontam, quase com melancolia, que não gostam particularmente de carnaval, festa tão brasileira e miscigenada de inversão, sexo e entrega. Muitas vezes saem da cidade nessa época, fugindo para locais elegantes de veraneio nas montanhas ou na praia. Confessam que não sabem dançar samba. Só as mulatas do morro sabem realmente sambar. Falam sobre o povão, as massas racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria, sua irreverência. Um advogado de classe média alta me disse: ‘Assim como você é gringo aqui, eu também’. Apontou para rua e explicou: ‘Meu nome não é da Silva. No uso gíria o tempo todo. Não sambo. Não tenho sangue negro.’ Este último ponto, relativo à ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora se descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista, essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles preferem fazer referências a parentes imigrantes específicos, e não a parentes negros, mulatos ou indígenas. Reconhecem que sua família de fato não é tão misturada quanto a norma brasileira, embora haja muito provavelmente um parente indígena ou negro ‘em algum lugar do passado’. Às vezes admitem que haveria tensão na família se eles ou seus filhos tivessem uma relação sexual pública com uma pessoa de pele escura. Embora a maioria dos homens aponte a mulata como padrão de beleza e alvo de desejo sexual no Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas parecem limitar-se ou a representações,como desfiles 20 carnavalescos ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição e casos secretos, por exemplo.” (Norvell, 2002:261). Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e conseqüentemente a mídia, articularem discursos sobre a beleza miscigenada que não condizem na prática com a realidade que elas mesmas reproduzem. Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e freqüentadores das academias de musculação em geral, tal processo é similar. O padrão de beleza apresentado nas representações dos indivíduos mostra-se eminentemente europeu. As representações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas algumas vezes, também a oprimí-lo. Sobre a tríade conceitual beleza – juventude 5 – saúde 6 um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez mais, empurrados ao consumo de práticas ligadas à boa forma (Del Priore, Op. 5 - A categoria juventude apresenta-se como portadora de ambigüidade que lhe é inerente pelo fato de não gozar de consenso entre os especialistas nem mesmo em termos de delimitação etária. Certo é que, nas sociedades complexas ocidentais, mais especificamente entre as camadas médias urbanas, ela é um signo que reúne um conjunto de categorias relacionadas ao corpo, à vestimenta e ao estilo de vida, ou seja, o conceito juventude assume o aspecto de produto, tendo um valor simbólico calcado em uma estética específica que gera, por usa vez, a produção de significativa variedade de bens e serviços que têm impacto direto sobre os discursos sociais que a identificam, e que também podem ser consumidos por adultos no intuito de estender no tempo sua capacidade de portarem tal signo de juventude. Este aspecto exclui do processo as classes baixas, posto que são os indivíduos de setores médios e altos aqueles que possuem acesso à educação de fato podendo postergar as responsabilidades inerentes à vida adulta, sendo, por isso, capazes de emitir por mais tempo os signos sociais da juventude. Assim, o signo juventude está praticamente restrito, ao menos no Brasil, às camadas média e alta, as quais possuem acesso à educação superior e à moratória na plenitude do termo (Reis, 2000). Nas academias de musculação é possível notar outra manifestação deste signo relativo aos indivíduos da chamada meia idade. Tais indivíduos, por já terem se desfeito das responsabilidades relativas à idade adulta – formação de família, criação de filhos, conquista de determinados bens, etc. – ou seja, por já terem passado, com relativo sucesso, por tal fase, rearticulam o signo da juventude, como se tentassem readquirir um tempo perdido. Desta forma, em academias de classes mais altas é comum, por exemplo, a presença de senhoras quase sexagenárias com corpos portando todos os símbolos relacionados à juventude. O mesmo pode ser dito dos homens. Certa vez, ao chegar a uma sala de musculação em uma academia da zona sul avistei, virada em minha direção de costas, uma loura alta vestindo colant vermelho. O corpo curvilíneo, definido e bronzeado chamava atenção. Repentinamente ela virou o rosto e percebi que, apesar do corpo jovem, suas feições pareciam ter nascido décadas antes do resto do corpo. Esta mulher lembrava uma pintura cubista a qual os retoques da cirurgia plástica haviam definido as caracterísiticas anacrônicas das partes do corpo. Imediatamente lembrei de um trecho do poema de Bandeira – poema no qual o autor ironiza outro trabalho de Castro Alves - chamado Teresa (1996:136): “... Quando vi Teresa de novo/ Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)...” 6 - A OMS define saúde como “estado de bem estar físico mental e social”, ou seja um estado ideal e, portanto, inexistente em sua plenitude. Na prática, a saúde surge como um paradigma polissêmico e polifônico, um “aparente monolito simbólico, até certo ponto ideológico em sua homogeneidade... [representando] um conjunto híbrido de imagens, representações, significados, diretrizes, e práticas sociais sintetizadas (ou sincretizadas)...” (Luz, 1999:2. Grifo da autora). 21 Cit.). Longe de desembaraçar-se dos esquemas tradicionais de dominação, o corpo hoje nas sociedades complexas, pode sofrer restrições gradativas levando indivíduos e grupos a construirem suas identidades associadas a tal tríade conceitual citada. As representações sociais atuais tendem a impelir os indivíduos e grupos a se colocarem a serviço da forma física ou, no mínino, a articular estratégias de interação tendo em vista tal demanda coletiva pela “boa forma”7. Tal controle, diferente do passado, possui a tendência a se articular por intermédio da mídia, da propaganda e do marketing. A proliferação de “corpos perfeitos” em revistas, outdoors, telas de televisão, cinemas e internet tecem uma trama cotidiana de agenciamentos coletivos que, respaldados no discurso sobre a saúde, leva indivíduos e grupos a construírem rituais de adoração à forma que colocam em risco as suas próprias vidas. Neste caso, todo o possível tende a ser investido no aperfeiçoamento e na manutenção da aparência. A forma oblitera o conteúdo, em uma sobrecarga sensorial, como pode demonstrar Samuel Fussel escrevendo sobre a época em era fisiculturista: “ Músculos, grandes, expressivos músculos – bem, eles são algo mais. Obviamente uma rápida olhadela no meu corpo enorme já me garante imunidade mesmo contra a criminalidade mais insana. E a beleza de tudo isso é que provavelmente eu nunca serei obrigado a utilizar realmente esses músculos. Eu poderia permanecer um covarde e ninguém saberia!” (Fussel, 1991:25). Ou ainda o depoimento de um fisiculturista brasileiro entrevistado por mim em : 7- Essa parte do trabalho tem por objetivo destacar a dimensão de agenciamento coletivo presente nas normas e regras da construção do corpo nas academias de musculação nas quais impera uma ética estetizante. Contudo, tal abordagem não tem por objetivo generalizar as conclusões, posto que no próprio campo estudado apresentam-se estratégias, articuladas por indivíduos e grupos, de subversão desta lógica do esteticismo por vezes anti-solidário. Assim, se há por um lado, uma espécie de obediência e passividade por parte daqueles que tendem a seguir, um tanto irrefletidamente, as modas e costumes, por outro lado, sempre existem, mesmo em minoria, os que articulam práticas inventivas, estratégias de 22 “ Eu gasto muito para manter esse corpo...em alimentação e esteróides eu gasto por mês uns dois mil reais só com isso. Já vendi dois carros e uma moto para poder malhar, quando não tenho dinheiro arrumo de um jeito ou outro, vendo o que eu tenho, depois compro de novo... são fases, o que eu não deixo é de crescer, isso é a minha vida, nada vai me desviar disso, nem dinheiro, nem mulher, nem médico... sofri um acidente de moto em 96 e fiquei em estado grave, quebrei perna, costela, braço, fiquei entrevado no hospital, cortei minha cara toda... o médico me disse que eu não ia mais poder malhar pesado, disse que eu ia ficar aleijado; dois meses depois eu tava ‘malhando’ e seis meses depois da alta eu já estava bom, não adianta, não deixo de malhar, por nada.” (Marcos 28 anos. Personal trainer). Para que seja viável a busca de entendimento de uma instituição, seja ela qual for, é necessário “estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento da organização que a sustenta” (Wacquant, 2002: 31). Do mesmo modo, para que seja possível a busca de entendimento deste processo de adoração à forma presente nas sociedades complexas atuais se faz necessário elucidar o significado e o enraizamento das práticas corporais realizadas em academias de musculação e ginástica com todas as suas incessantesvariações de práticas de exercícios que vem se espalhando de maneira crescente pelas grandes cidades. Examinar a trama das relações sociais e simbólicas tecidas no interior e ao redor das salas de exercícios de hipertrofia muscular é tarefa imprescindível para que tal processo de compreensão desta realidade seja possível. A musculação tornou-se, a partir da segunda metade do século XX, uma prática em expansão conferindo à massa muscular hipertrofiada o status de novo item da moda associado à crescente indústria de suplementos, esteróides, publicações especializadas e tecnologia de máquinas para subversão fazendo dobrar as forças das estruturas de dominação simbólica propondo novas práticas e 23 exercícios. Vasta parafernália do suor tem se desenvolvido ao redor do globo construindo os ditames da fibra muscular como um modo de vida (Courtine, 1995). Se na segunda metade do século XIX homens hipermusculosos eram símbolo do desvio, - em geral apresentados (na Europa e América do Norte) em freak shows - , na primeira metade do século XX passaram a representar um ideal relacionado àconstrução do caráter empreendedor e progressista tido como necessário para a manutenção da família e do ideal de nação, concepções caras às sociedades disciplinares (Foucault, 1988; Costa, 1989; Rabinow,1999). Atualmente, ostentar massa hipertrofiada e definida8 pode significar a adesão ao consumo e ao paroxismo da aparência. De meio para atingir um ideal, o corpo tornou-se, para muitos, um projeto. Revistas, TV, cinema, outdoors, reiteram a importância da imagem corporal e dos exercícios para a articulação do chamado marketing pessoal: corpo-empresa, corpo- máquina, corpo-produto de consumo. Neste processo, o mercado do corpo amplia-se e as academias de musculação surgem como instituições onde uma parcela das camadas médias urbanas tenta aprimorar a sua forma em nome de um ideal de saúde, não menos respaldado pelo consumo. Desta forma, a musculação enquanto instituição – e portanto enquanto elemento que extrapola, e muito, a dimensão apenas biológica – é uma das oficinas na qual são forjados corpos. O local onde são elaboradas, experimentadas e sistematizadas as habilidades técnicas que permitem construir e conformar este material feito de sangue, músculos e desejos. A competência esportiva transmitida pelas academias está diretamente relacionada à estética (salvo raras exceções nas quais a musculação é usada como apoio ou fortalecimento muscular para a prática de outros esportes); e nisto ela possui uma função institucional que é extra-esportiva, pois as interações sociais realizadas em seu interior estão ligadas mormente ao culto da forma física. De fato, o bodybuilding resume-se a um conjunto de técnicas corporais (Mauss, 1974) e de aprimoramento da forma muscular, e as academias – umas mais outras menos- apresentam-se como espécies de representações (Certeau, 2002; Bourdieu, 2001; Luz, 1999; 2003). 24 santuários da estética física onde a performance, grosso modo, dita a norma alimentando o atual processo da construção da aparência. O fisiculturista (também conhecido popularmente no Rio de Janeiro como “marombeiro”9), espécie de ícone do culto à forma, síntese das tendências corpólatras, depila seu corpo, cuida de sua pele, aprende a caminhar de forma dramática ressaltando os seus detalhes musculares, treina poses no espelho, faz dieta, vai ao esteticista e fica deprimido quando engorda ou perde massa muscular. Sua vida, em geral, gira em torno da forma física sendo o olhar do outro a maior recompensa para ele que acredita ser o livre construtor de sua própria morfologia. É possível perceber tal aspecto no relato a seguir: “Quando tô na rua e todo mundo fica olhando espantado para mim por causa do meu tamanho é a verdadeira glória... não ser percebido é o fim! Se ninguém te olha, você é um qualquer, um ninguém, um nada...” (Carlos. 33 anos. Advogdo). Se, por intermédio da adoração à muscularidade, o fisiculturismo acaba por exaltar um paradigma de masculinidade que pode ser denominada hegemônica, por outro lado, subverte o cuidado de si, introduzindo práticas tradicionalmente femininas no cotidiano masculino ao transformar a forma física em objeto de sedução, de atenção e admiração, articulando uma espécie de feminização da masculinidade (Kimmel, 1998; Ramos, 2000), porém sem alterar a ética andrólatra da formação desta.Talvez estes homens sejam uma espécie de amostra da crescente onda de pressão estética que a sociedade atual tem feito incidir sobre a masculinidade. A mesma pressão para adquirir a forma física perfeita, que as mulheres sofrem há séculos, agora tem sido, cada vez mais, enfrentada pelos indivíduos do sexo masculino. Estes têm utilizado todos os tipos de recursos para construir uma forma adequada às 8 - Definir musculatura significa não apenas fazê-la crescer, mas diminuir a porcentagem de gordura para que as fibras musculares se tornem visíveis, por exemplo o abdômen deve estar em forma de gomos e isso apenas é possível se o indivíduo tiver baixo percentual de gordura e não apenas massa muscular. 9 - A palavra origina-se de maromba: vara que funâmbulo usa para se equilibrar na maroma: corda na qual caminha. Maromba pode significar também o(s) peso(s) com o qual o funâmbulo se mantém em equilíbrio. Como no fisiculturismo e halterofilismo são utilizadas barras com pesos (halteres) removíveis, ou não, nas extremidades, não é difícil perceber a associação das imagens do homem que anda na corda bamba, utilizando o peso da maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza os pesos para otimizar sua forma e força. Marombeiro, na cidade do Rio de Janeiro, tornou-se sinônimo de freqüentador assíduo de academias de musculação, o mesmo que “rato de academia” (Sabino, 2002: 139). 25 representações sociais10 de beleza: musculação compulsiva, uso de esteróides anabolizantes, produtos redutores de adiposidade, cirurgias plásticas, cuidado com pele e cabelos, tudo para cultivar uma imagem hipermasculinizada11. Neste processo de produção dos músculos, os marombeiros ou fisiculturistas servem também como cobaia para a indústria da forma. Assim (com licença da metáfora mecanicista) como os carros de fórmula 1 servem de experimento para a indústria automotiva aplicar nos carros de passeio seus avanços tecnológicos, da mesma maneira o corpo dos fisiculturistas serve para as indústrias farmacêuticas, de suplementos alimentares, de aparelhos de musculação e moda esportiva, como veículo de teste para a eficácia de seus produtos. Os saberes e as práticas sobre o corpo são produzidos e reproduzidos no cotidiano das academias. Tais técnicas do corpo estruturam e organizam um processo crescente de expansão do cuidado com a forma e a força física, organizando também as relações sociais dentro e fora das instituições de exercícios físicos (Sabino, 2003). Enquanto muitas instituições esportivas isolam os seus freqüentadores da rua, da violência social e da ação do crime organizado, apresentando-se, não raro, como o único caminho possível de ascensão social, como é o caso das academias de boxe nos guetos americanos (Wacquant, Op. Cit.) e dos clubes de futebol no Brasil, a academia de musculação ou de bodybuilding opera por lógicainvertida. Em sua maioria pertencentes à classe média, média- baixa urbana, é comum entre os frequentadores destes recintos repletos de pesos e máquinas o cultivo de uma certa admiração por um submundo do qual 10 - Representações sociais, coletivas ou culturais: segundo Durkheim, criador do termo “...maneiras de pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõe” (1972: 4); proseguindo: “designam a camada mais antiga, e também a mais estável e a mais implícita da visão de mundo dos indivíduos. Nas representações coletivas encontram-se categorias de classificação, imagens e símbolos que organizam as relações dos indivíduos entre si e com a natureza. Essa visão de mundo apresenta-se como natural não exigindo qualquer justificativa” (Bozon, 1995:123- 4). Ainda: “são esquemas de pensamento impensados que sob forma de um conjunto de pares de oposição binária [por exemplo, forte/fraco, alto/baixo, masculino/feminino, bom/ruim, rico/pobre, etc] funcionando como categorias de percepção, constroem as relações de poder do ponto de vista daqueles que afirmam sua dominação, fazendo-a parecer natural...(Bourdieu, 1990:34). 11 - Se há uma forte corrente que hipervaloriza a masculinidade construíndo uma espécie de androlatria na sociedade atual, existem reações nesta mesma sociedade, como aponta o trabalho de Osório sobre o movimento wicca. Nas representações deste grupo o valor atribuído ao que é feminino é sempre positivo, ao contrário do que se observa em sociedades tradicionais. Se, nestas sociedades, o corpo da mulher é perverso e impuro, na wicca ele é fonte de vida e criação e, portanto, sagrado (Osório, 2002). 26 eles não fazem parte ou que presenciam eventualmente através do noticiário sobre os crimes da cidade ou distante das janelas de seus apartamentos em condomínios. Se é possível alguém tornar-se um fisiculturista de competição hoje no Brasil, devido a expansão gradativa desta prática, em sua maioria tais indivíduos não buscam a profissionalização12, apenas organizam seu cotidiano por intermédio do sistema simbólico e prático da educação corporal e estética que confere um certo sentido às suas vidas. Se a representação deste sistema, construída por intermédio da mídia especializada, apregoa uma existência ilibada, independente de vícios, ligada à família e à ordem, na prática ocorre o inverso. Este paradoxo, como será possível perceber adiante, é parte da própria constituição do devir fisiculturista. Pois ao mesmo tempo em que o fisiculturista deseja ser aceito socialmente, estampando através de seus músculos disciplina e dedicação, cultiva um certo ar estigmatizado, de alguém que tem relação obscura com o lado marginalizado e misterioso da sociedade - o que por vezes pode comportar uma certa romantização do crime. Obviamente, tal relação confere àquele que cultiva seus músculos um certo sentimento de poder, já que o estigma também porta um quantum de força simbólica que não é apenas negativa (Douglas, 1976; Goffman, 1983). Ou, para repetir Foucault, se o poder reprime e exclui disciplinarmente ele também produz: “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (1993:8). 12- A profissionalização efetiva do fisiculturismo não existe no Brasil. Os atletas mais famosos (José Carlos Souza Santos, tetracampeão mundial, por exemplo) são internacionalmente conhecidos como amadores e não recebem prêmios em dinheiro – o campeonato norte-americano Mister Olympia paga ao vencedor o prêmio de 1 milhão de dólares – porém, podem receber patrocínio de redes de lojas de suplementos alimentares (o atleta citado recebe apoio da Probiótica) e fazer propaganda de produtos ligados ao fisiculturismo e a outros esportes. 27 O lado marginal e estigmatizado muitas vezes admirado pelos fisiculturistas é reforçado pelo contínuo uso das drogas (esteróides anabolizantes) que são inerentes à própria construção de pessoa dos frequentadores assíduos das academias. O uso ritualizado de tais substâncias é parte integrante da existência daqueles que desejam se integrar ao grupo; embora os próprios freqüentadores não assumam tal fato diante de indivíduos estranhos ao seu grupo social. Por serem substâncias proibidas por lei, a construção de pessoa do fisiculturista envolve um sólido e crescente relacionamento com redes de tráfico de substâncias químicas. Estas surgem atualmente como novas drogas no cenário mundial. 28 Capítulo I O surgimento do Body Building “É a sociedade inteira que ensina a seus membros que, para eles, só existe oportunidade, no seio da ordem social, à custa de uma tentativa absurda de saírem dela” Lévi-Strauss O fisiculturismo, ou bodybuilding, originou-se na Europa – mais especificamente na Inglaterra Vitoriana 13 - do final do século XIX, e pode ser percebido como representando um dos possíveis desdobramentos, por um lado, do processo civilizatório destacado por Elias (1990;1993) em sua obra, e por outro, pelo surgimento dos processos disciplinares e biopolíticos destacados por Foucault (1993;1997). Seu surgimento coincidiu com o advento da fotografia e o fortalecimento da indústria cultural, a qual distribuiu gradativamente as imagens dos corpos musculosos (e as crescentes técnicas para transformá-los em tais) para uma audiência cada vez mais espalhada pelo mundo. Dizer que o surgimento do fisiculturismo significou um desdobramento do que Elias designou como processo civilizatório significa repetir, com o autor, que a esportificação das atividades de luta existentes na Idade Média – maneiras populares, e violentas, de resolver conflitos, assumiram a partir de um determinado período, uma forma estilizada. É necessário destacar, ao 13 Os termos vitoriano e eduardiano referem-se ao período no qual os monarcas ingleses Rainha Vitória (1837-1901) e Rei Eduardo VII (1901-1910) exerceram seus reinados. O termo vitoriano pode referir-se, além de outros aspectos, à arte e à arquitetura que grassou no último período do reinado da rainha Vitória permanecendo durante o breve reinado de Eduardo VII. O estilo foi fortemente influenciado pela austeridade e pelo interesse em torno do classicismo greco-romano que levou à promoção das grandes excavações arqueológicas na Grécia e na Itália. Apesar da inspiração classicista, o estilo vitoriano foi marcado pela busca de maior opulência e ornamentação se comparado ao prévio período “clássico” da era napoleônica. Neste contexto, o fisiculturismo insurgente na Inglaterra mostrou-se como uma tentativa de retorno à estética atlética da estatuária grega. 29 menos brevemente, as mutações pelas quais passaram as práticas de atividades físicas para melhor compreensão da gênese destas, no caso específico o bodybuilding, e seu lugar em alguns contextos sociais hodiernos, sem esquecer, contudo, que não é possível divorciar a análise do esporte e das práticas corporais do contexto social no qual estão inseridos. Tais práticas apenas fazem sentido quando relacionadas com os sistemas simbólicos que representam e que as constituem e com outras dimensões da sociedade. A princípio é preciso delimitar, como fizeram Elias e Dunning (1994), as singularidades entre jogo e esporte. O jogo apresentar-se-ia como universal, presente em todas as culturas, atuais ou não. Seria práticatradicional, existente em todas as sociedades ao longo do tempo e do espaço. Já o esporte é o produto de uma descontinuidade produzida no ocidente europeu, que – para usar um certo acento metodológico weberiano – racionalizou as práticas corporais, regrando-as, regulando-as, administrando-as, buscando delas estirpar a violência presente nessas atividades. O esporte é, portanto, moderno; produto da modernidade. Não se pode dizer, por isso mesmo, que sua existência tenha sido sustentada como prática universal. Ao menos em seu período inicial, ele seria a liberação controlada das emoções, tentativa de amenizar violentas disputas que, não raro, estariam presentes nos jogos guerreiros ou rituais das sociedades européias tradicionais. A existência de regras escritas e uniformes codificando as práticas, a autonomização do jogo e, conseqüentemente, do espetáculo do jogo, além de severas punições contra atos violentos, seriam algumas das características constituitivas das práticas esportivas surgidas na modernidade (Idem; Chartier, 1994). Se existe uma disposição psico-social relacionada às práticas de jogos presente em todas as sociedades e culturas ao longo do tempo e do espaço (Huizinga, 1988), a prática esportiva, embora relacionada diretamente aos jogos tradicionais, destes se destaca pela sua singularidade. O esporte, produto da disciplinarização e racionalização, transformou o jogo em prática distinta, com configurações específicas, em outras palavras. Tal racionalização da competição e disciplinarização dos corpos proporcionou o surgimento dos 30 campos esportivos com toda atual profissionalização que lhes é característica, seus locais (ginásios, academias, clubes e estádios), saberes e tempos específicos 14. Ao calendário religioso e folclórico dos rituais coletivos, o esporte passou a opôr, ou conjugar, um calendário próprio de competições nas quais as datas passaram a existir em consonância com os ritmos anuais de cada disciplina. A implantação e a arquitetura dos estádios, ligada também à criação de normas para gestão da intimidade dos indivíduos, relacionou-se ao propósito insurgente de gestão populacional (Foucault, 1987; Costa,1989) e à extração do máximo de lucro possível do espetáculo. O calendário esportivo, então, passa a depender das exigências da propaganda, do ritmo do trabalho e dos hábitos de lazer característicos do capitalismo em consolidação (Elias & Dunning, Op. Cit.). Surgem regras fixas que visam permitir a realização uniforme e potencialmente universal das práticas esportivas: “A história de cada esporte é portanto, fundamentalmente, a história da constituição de um corpo de regulamentos cada vez mais detalhados e precisos, que impõem um código único às maneiras de jogar e de competir que eram, anteriormente, estritamente locais ou regionais” (Chartier, Op. Cit.:16). A diferença entre o esporte e o jogo tradicional se manifesta, por um lado, por regras uniformes que suplantam progressivamente os usos locais e circunstanciais dos jogos tradicionais, por outro, pela existência de especialistas que têm a função de constituir um direito específico para reger as práticas esportivas. Segundo Elias e Dunning, é a partir destas regulamentações que dois aspectos fundamentais podem ser compreendidos: a redução do nível de violência tolerável nos enfrentamentos físicos, e o desenvolvimento de uma ética da lealdade que não 14 - O exemplo do futebol popular (folk football,soccer), praticado na Inglaterra antes do século XIX, é sugestivo deste processo de mutação jogo-esporte. Tal prática era realizada através do enfrentamento de duas identidades sociais previamente definidas como a residência em uma mesma comunidade citatina ou domínio senhorial, o exercício de uma mesma profissão , o pertencimento a uma grupo de ‘jovens’ – ou seja, celibatários possuindo mais ou menos a mesma idade – ou o grupo dos homens casados. O jogo reproduzia, portanto, as perspectivas que lhe eram anteriores e exteriores, e que organizavam os rituais festivos. Tais jogos inscreviam-se nos calendários das festas religiosas e folclóricas, sendo, contudo, negociados conforme as partes em questão. Desprovidos de um tempo próprio, independente de outros eventos, eles se realizavam sempre aos domingos após as missas não tendo também espaço específico, definitivo, para ser realizado. Qualquer espaço comunitário podia ser utilizado para o jogo que não apresentava regras uniformes, fixas e demarcadas. As convenções que permitiam o jogo eram rudimentares, locais e costumeiras: “de uma região a outra, de um vilarejo a outro, de uma partida a outra, todos os elementos podiam tornar-se diferentes: o número de participantes, a duração do jogo, as regras aceitas, os objetos utilizados, os critérios que decidiam a vitória,etc. ” (Chartier, 1994:15). 31 separa o desejo de vitória do respeito às regras e do prazer do jogo como objetivo final. Para os autores, esse processo de descontinuidade social demonstra a transformação das estruturas da personalidade possibilitando o relaxamento dos controles emocionais sem deixar totalmente livre os movimentos espontâneos e perigosos das pulsões e dos afetos, “descontrole controlado das emoções” (Op. Cit.: 18). O prazer da prática ou do espetáculo esportivo coloca em jogo corpos que disputam e pelejam, devendo realizar tal processo de maneira respeitosa para com a vida; mesmo as peripécias e demonstrações de lutas severas não devem passar de um simulacro das batalhas violentas. Esta excitação bem controlada - batalha controlada em um espaço projetado – ligada às práticas esportivas, supõe duas condições: primeira, o aparecimento de práticas de lazer com características miméticas permitiu o relaxamento, a liberação do controle ordinariamente exercido sobre as emoções; controle diretamente equacionado ao mundo opressor do trabalho no capitalismo e da existência pública que instaura a separação entre a vida privada e esta. Nos espaços de disputas esportivas seria permitido expressar e dar vazão às emoções que cotidianamente deveriam ser censuradas e administradas para que a manutenção da ordem social fosse possível. Desta forma, o surgimento das tecnologias esportivas com todo seu saber que acaba por constituir a ciência do esporte pode ser visto, também, em uma ótica foucaultiana, como mais um dispositivo da insurgente sociedade disciplinar que se consolida a partir do século XVIII na Europa, ou ainda, como mais um processo de racionalização – entendido enquanto técnica e cálculo administrativo da vida - inerente às sociedades européias, de acordo com Weber (Foucault, 1997; 1993; 1988; Weber, 1992;1995). Ao conceito de processo civilizatório de Elias poderia ser somada a idéia de disciplinarização de Foucault e crescente racionalização do mundo da vida de Weber. A segunda condição sustenta que esta admistração dos afetos violentos pela tecnologia esportiva só se faz viável por intermédio da interiorização dos sistemas simbólicos de constrangimento que se traduzem em mecanismos de autocontrole ligados ao surgimento de uma nova economia emocional. Os estádios e os ringues nos quais os dispositivos de autocontrole 32 comandam de maneira universal e regular todos os comportamentos dos participantes e as liberações emocionais surgem como instâncias nas quais a sociedade pode efetuar certas atividades de expressão de disputas sem colocar em perigo um retorno da agressividade destrutiva e da violência gratuita. Do duelo sangrento às partidas esportivas, o processo de disciplinarização tem por objetivo a pacificação doespaço social, embora parcial e tendenciosa, assegurando o monopólio sobre o uso legítimo da força pelo Estado, transferindo para o interior do indivíduo os constrangimentos que deveriam evitar os confrontos sangrentos e abertos; dispositivo interiorizado de censura efetivado em práticas e comportamentos coletivos e individuais (habitus) que não tem mais por base a autoridade exterior dos constrangimentos punitivos15. O processo civilizatório surge, também, como um processo de esportização: mudança que transforma os passatempos e as atividades de enfrentamento tradicional, sem regras fixas nem restrições severas contra uma possível violência anômica, em práticas estilizadas e controladas por regras universais. Este processo poderia ser definido como a tentativa de codificar normas com o objetivo de suspender o perigo contra os corpos e a vida produzindo relaxamento controlado das disposições emocionais com a exclusão definitiva da violência destrutiva do adversário. Uma prática esportiva que não condiz com tal definição estaria fugindo dos parâmetros da estilização da violência e, possivelmente, representando um retrocesso no controle da violência anômica, ou como Elias diria, um “processo de descivilização” (Op. Cit.:59. Grifo nosso). O surgimento do sport (e do processo de esportificação) teve início na Inglaterra durante o século XVIII entre a aristocracia do campo e a gentry. 15 - Elias em 1939 publicou sua tese (Über den Prozess der Zivilisation. Sociogenetische und psycogenetische Untersuchungen, 2 tomes, Bâle, 1939) sobre o processo civilizatório destacando que “as normas sociais definidoras dos comportamentos e das sensibilidades, mais precisamente nos altos círculos da sociedade, começaram a mudar radicalmente a partir do século XVI , e em uma direção bem precisa: elas passam a ser mais estritas, mais diferenciadas e onipresentes, mas também mais iguais e mais moderadas, posto que elas eliminam o excesso de auto punição como a autocomplacência. Esta mudança é traduzida pelo termo de ‘civilidade’, lançado por Erasmo de Roterdã, que em inúmeros países simbolizará um novo refinamento que dará mais tarde nascimento ao verbo ‘civilizar’... esta mudança do código de sensibilidades e dos comportamentos está ligada ao processo de formação do Estado, e, em 33 Nessa época, o termo não estava limitado apenas aos esportes de participação, mas incluia os jogos competitivos que tinham o objetivo de conferir distração e prazer aos espectadores, o esforço físico principal era realizado mais pelos animais do que pelos competidores humanos. O surgimento destas práticas coincide com o surgimento e fortalecimento do Estado e a conseqüente tentativa de pacificação do espaço social caracterizada pelo monopólio da violência legítima por este mesmo Estado. O esporte apresenta-se como parte de toda uma conformação social na qual a tentativa de organizar e reger o espaço público se consolida; ele torna-se possível primeiro na Inglaterra devido ao fato de a sociedade inglesa expressar tal esforço ordenatório. Sua configuração política, calcada no regime parlamentarista, apresenta já uma estilização das lutas sociais com tendência a amenizar o confronto violento16. No regime parlamentar, as lutas não violentas obedecem a regras estabelecidas representando efetivamente o nível de tolerância da tensão que caracteriza a cultura inglesa na época, seu habitus social (Elias, Idem). A similaridade dos jogos políticos do regime parlamentar com os jogos esportivos não é acidental. De fato, segundo Elias, no início do século XVIII na Inglaterra se chamará sport às antigas assembléias de Estado – a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, representantes das pequenas particular, à sujeição das classes guerreiras a um controle mais estrito pela ‘curialização’ dos nobres nos países da europa continental” (1994: 27). 16 - A formação do sistema parlamentar na Inglaterra e sua capacidade de moderar as disputas pelo poder data da época do rei João Sem-Terra (1199-1216). Após ser derrotado em conflitos com a França e com o papado, João Sem-Terra foi obrigado, pela nobreza inglesa, a assinar um documento denominado Magna Carta que limitava sua autoridade. Ele não podia, por exemplo, aumentar os impostos sem a autorização dos nobres. A Magna Carta estabelecia que o rei só podia criar impostos depois de ouvir o Grande Conselho, corpo político então formado por condes barões e bispos. Esta disputa entre nobreza e realeza foi acirrada no reinado do filho de João Sem-Terra, Henrique III (1216-1272) que além da oposição da nobreza enfrentou forte oposição popular. Neste período, o nobre Simon de Monfort liderou uma revolta da aristocracia e, para conseguir adesão popular, convocou um Grande Parlamento que reunia, além do clero e nobreza, representantes da burguesia insurgente. No reinado de Eduardo I (1272-1307), a existência do Parlamento foi oficializada e continuou a se fortalecer como instrumento mediador durante o reinado de seus sucessores. Em 1350, o Parlamento foi dividido em duas câmaras : a Câmara dos Lordes, formada pelo alto clero e nobreza, e a Câmara dos Comuns, formada pelos cavaleiros e burgueses. Desta forma, desde cedo na Inglaterra o rei teve sua autoridade restringida pelo surgimento deste instrumento mediador denominado Parlamento. Para Elias (Op. Cit), o surgimento da gentry, classe de proprietários de terra que não pertenciam à alta nobreza e que não eram representados pela Câmara dos Lordes, mas pela Câmara dos Comuns, teve conseqüências consideráveis para a repartição do poder político na Inglaterra a partir do século XVIII. Esta classe, ao disputar o poder com os outros extratos dominantes da época, proporcionará a articulação de estratégias políticas no Parlamento que permitirão a “pacificação das classes superiores inglesas” e, simultaneamente, “a transformação dos antigos passa- tempos em passa-tempos do tipo esportivo” (: 39). 34 seções privilegiadas da sociedade – que constituiam o principal campo de batalha onde se forma o Governo. A articulação do poder pelos partidos através das regras do jogo político imposta a partir do voto de assembléia ou de uma eleição pública representaram as condições fundamentais para a constituição do regime parlamentar tal como surge na Inglaterra do século XVIII. Tal organização não seria viável se as facções antagônicas não tivessem a mediação do instrumental político para amenizar suas hostilidades, e mesmo ódio, controlando – através da violência autorizada (simbólica) – seus enfrentamentos: “ os dirigentes não abandonariam de bom grado aos seus rivais os imensos poderes que lhes conferiam as funções governamentais sem a condição assegurada de que eles mesmos – seus inimigos políticos – uma vez empossados, não se empenhariam em lhes atacar, perseguir, ameaçar, exilar, aprisionar ou matar” (Ibidem:36). Essa administração das práticas políticas permitiu legalmente a formação do campo político parlamentar definindo os elementos principais para a formação, a manutenção e o possível aprimoramento do jogo partidário da mesma forma que o campo esportivo articulou regras administrativas para a produção dos espetáculos permitindo uma estilização dos enfrentamentos violentos. O esporte, a princípio, se consolidará como atividade nobre, ou melhor dos nobres. A alta sociedade dispondo de grande capital social e simbólico se empenhará em práticas como a caça, a equitação, o tênis, o pólo,mais tarde as corridas de automóvel. Além de afirmar o status social do desportista, as práticas do esporte consolidavam uma ética na qual as afirmaçõesdas disposições e dos valores de classe estavam presentes e se colocavam como exemplo a ser seguido pelas classes inferiores. O fair-play apresenta-se como o conceito que subsume a concepção de que as atividades esportivas devem 35 ser gratuitas e desinteressadas, nas quais a maneira de ser, de aparecer e de fazer contam muito mais que a vitória. O gosto pelo risco, o culto à proeza e o desprendimento relacionado ao tempo, que deve sempre estar livre para treinos e práticas, representam uma condição aristocrática singular. Os meios (a exibição da prática) constituem os próprios fins. Ao contrário do esporte atual, reduzido a uma prática profissional e mercantil, e por isso mesmo plenamente dependente da vitória, o esporte dos séculos XVIII e XIX davam prioridade ao savoir-vivre e ao savoir-faire e não à busca da vitória a todo custo. Eram, como prática da nobreza, uma ritualização, estilização da existência (Saint-Martin, 1989). Paralela a essa concepção, surgia outra relacionada às atividades administrativas dos Estados preocupados com a saúde de sua população e, por isso mesmo, buscando constituir uma pedagogia do corpo disseminada nas escolas através da Educação Física visando gerir a vida, processo que Foucault denomina biopolítica. A prática de exercícios físicos, relacionada a esta educação física, terá por objetivo formar o caráter do indivíduo mais do que sua inteligência, educá-lo, mais que instruí-lo, incitá-lo a cultivar a coragem e a força e, sobretudo, a iniciativa mais que o saber. Enfim, formar um corpo forte com caráter obediente e dócil (Foucault, 1987). É uma educação de certa forma relacionada às instituições militares do Estado Moderno. Neste aspecto, há, portanto, dois tipos de ethos relacionados às práticas corporais: 1) aquele relativo à nobreza e sua ritualização da tradição; 2) o referente à burguesia e à manutenção de corpos institucionalizados e funcionais17. Para os nobres, o esporte não era apenas uma forma de inculcar nos jovens os valores aristocráticos que, nesta altura das práticas esportivas, estão inscritos, senão nas regras que regem explicitamente as práticas, ao menos nos princípios codificados que definem a maneira de praticar. O esporte permite acumular e articular o capital social que é transmitido por herança, reproduzindo a condição social no qual foi 17 - De acordo com Luz (1994; 2003 a), tais atividades historicamente conhecidas como ginástica, têm uma tradição milenar na cultura ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana durante as últimas décadas do século XIX e no século XX sob a tutela do Estado. Associada à prática do esporte, a ginástica moderna nasceu sob o signo do paradigma saúde/ vitalidade, estreitamente ligada ao modelo higienista (posteriormente eugenista) do último terço do século século XIX, recuperação moderna nacionalista da concepção latina do mens sana em corpore sano. 36 produzido. Enquanto a nobreza olha para a tradição e sua reprodução no presente18, a burguesia fita o futuro, preocupando-se com o fortalecimento do contingente humano de seus Estados. Assim, há uma relação entre as transformações de práticas e de consumo de esportes (invenção ou importação de esportes ou equipamentos novos) e as transformações da demanda social e dos estilos de vida (Bourdieu, 1981). Também uma terceira corrente de práticas relacionadas ao corpo, além das destacadas acima, deve ser demarcada: aquela ligada aos tradicionais exercícios circenses, provavelmente com existência anterior às práticas esportivas da nobreza e a ginástica promovida pelo Estado burguês. De fato, os espetáculos de força e destreza física faziam parte das apresentações dos saltimbancos nas feiras medievais. Tais apresentações se consolidaram institucionalmente nas chamadas práticas circences - circos de lona. No século XIX, tais apresentações deram origem a outra vertente do espetáculo: os freak shows. Apresentações de extravagâncias nas quais a força de alguém ou sua característica física fora do normal ou, ainda, a sua incrível flexibilidade era demonstrada para um público específico. Como toda prática supõe um saber determinado, os exercícios no trapézio e as performances físicas foram constituídos pelo aperfeiçoamento repassado de geração para geração de artistas de circo. Tais saberes e práticas, distante do processo de esportificação empreendido pelas classes dominantes, acabaram migrando para as práticas de ginástica que vieram a conformar o que veio a se tornar a Educação Física (tornada depois ensino superior) aplicada à busca de eficácia dos exércitos e depois à busca da otimização da saúde dos cidadãos empreendida pelo Estado Moderno (Arnaud, 1991; Andrieu, 1992). A prática do fisiculturismo finca suas raízes nestas três correntes. Em primeiro lugar, se o esporte é a estilização dos combates, os torneios de fisiculturismo (e 18 - Este “espírito” de tradição, por exemplo, é que engendrará a fundação dos clubes. Para os nobres do século XIX na europa ocidental, a prática de esportes como o golf, a equitação, o polo , etc. , se constituirá como meio de trocas mundanas, bailes, jantares, festas, soirées, rallyes, etc., conjunto de atividades “gratuitas” e “desinteressadas” que possibilitam a socialização escolhida e, através desta, o aumento do capital social. Neste processo, serão criados os clubes organizados em torno de uma atividade esportiva. Assim, por exemplo, na França em 1834 é criado o Jockey Club com o título de Cercle de la Societé d’ Encouragement pour l’amèlioration des races des cheveaux en France; em 1858 Le Yatch 37 inevitavelmente a musculação) constituem-se como a estilização da estilização, “puras lutas de aparência” (Courtine, 1995:83), simulacro do simulacro, posto basearem-se apenas na apresentação estética, sem nenhum enfrentamento físico concreto. Em segundo lugar, seus precursores, no final do século XIX, exaltavam a funcionalidade da prática de exercícios com peso para o aperfeiçoamento da saúde populacional, dos exércitos e dos trabalhadores. Terceiro, os torneios e apresentações de bodybuilding são produtos diretos dos freak shows já transformados em espetáculos para as massas no final do século XIX. Nestes circos de horrores, homens fortes, gigantes exóticos apresentavam seu tamanho e força descomunais para uma platéia ávida por novidades consideradas bizarras19 (Bogdan, 1994; Courtine, 1995). Assim , o campo20 do fisiculturismo originou-se de outro campo, o das artes e espetáculos circenses – estes por sua vez originaram-se dos saltimbancos medievais. Heróis Fundadores As publicações sobre a história da musculação e do fisiculturismo (ou culturismo como algumas apresentam) sofrem de uma tendência comum aos escritos realizados por indivíduos pouco afeitos ao trato com as ciências sociais: tendem a criar super-heróis descolados do contexto histórico-social, como se fossem verdadeiros prometeus, resolvidos a doar aos simples mortais, Club; Le Cercle des Patineurs em 1865 e assim por diante. Locais que tinham por objetivo, entre outros aspectos, constituir espaços reservados para associação de nobres e notáveis (Saint-Martin, Op. Cit.). 19 - O artigo de Bogdan (1994), além de apresentar a gênese social da categoria de “monstro” no século XIX – indivíduos com aparência e capacidades incomuns, – indica a organização de um comércio de tais indivíduos e suas imagens relacionado à formação do campo do show business na Europa e nos EUA . De acordo com o autor, empresários construíram
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