Buscar

Sabino_-_Fisiologia_Hormonios_-_2004_(342)

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 342 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 342 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 342 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

O Peso da Forma. 
Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. 
 
 
 
 
Cesar Sabino 
 
 
 
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. 
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS. 
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e 
Antropologia – PPGSA. 
 
 
 
 
 
Orientadora: Prof.a Dr.a Mirian Goldenberg. Doutora em 
Antropologia Social. Museu Nacional. 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2004 
 
 
2
 
 
 
Sabino, César 
 
O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. 
Rio de Janeiro:UFRJ/PPGSA, 2004. 
 
366p.il. 
 
Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA 
 
1.Esteróides anabolizantes. 2. Drogas. 3. Fisiculturismo. 4. Corpo. 5. 
Construção de Identidade. 6. Antropologia. 7. Tese Dout – (UFRJ/PPGSA) I 
Título 
 
 
 
3
 
Agradecimentos 
Uma tese de doutorado nunca é uma produção individual, sua 
elaboração envolve a participação direta ou indireta de muitas pessoas. O 
exemplo de profissionalismo, atenção e dedicação tive a sorte de encontrar 
aqui no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na pessoa da minha 
orientadora Mirian Goldenberg. Não tenho palavras para agradecer sua grande 
paciência, valiosa orientação e também o grande e constante incentivo que nos 
momentos mais difíceis sempre me proporcionou, não me deixando esmorecer 
no meio do caminho. 
Também, gostaria de agradecer à Professora Madel Therezinha Luz 
pela oportunidade de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre 
Racionalidades Médicas no Instituto de Medicina Social da UERJ e de suas 
exemplares aulas na mesma instituição. Durante este rico período de 
aprendizado desenvolvi não apenas meu interesse pelas estudos sobre corpo, 
gênero e saúde, mas também o interesse pelas Ciências Sociais. Com ela 
comecei a desenvolver o gosto e o respeito pelo ofício de pesquisador e 
professor nos idos de 1994. 
 Para com as professoras Madel Luz e Mirian Goldenberg tenho uma 
imensa e inefável dívida. A elas minha incomensurável gratidão, respeito e 
admiração. 
Agradeço muito, também, aos professores Marco Antônio Gonçalves e 
Elsje Maria Lagrou as sugestões fundamentais, o atencioso carinho, as aulas 
repletas de questionamentos antropológicos, nas quais a tecitura do 
pensamento se fazia sempre presente, e as revistas importadas sobre cultura 
física do início do século XX trazidas da Europa – que me foram gentil e 
generosamente presenteadas. Documentos fundamentais na elaboração de 
parte dessa tese. 
 Ao professor Luis Fernando Dias Duarte gostaria de agradecer os 
conselhos e as pacientes sugestões sobre textos e temas importantes por ele 
 
 
4
 
indicados e que também foram fundamentais para a elaboração desse 
trabalho. 
 Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia 
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) pela acolhida em 
suas instalações e às funcionárias da secretaria, e amigas, Denise e Cláudia 
pela atenção e o carinho sempre dispensados. 
 À CAPES agradeço a bolsa concedida, sem a qual a dedicação ao 
trabalho de pesquisa não poderia ter sido realizado com o aproveitamento 
devido. 
 Aos meus amigos Marcelo Peloggio, Washington Dener, Marcus Siani, 
Andréa Osório, Sônia Beatriz e Marcelo Silva Ramos agradeço a vivacidade do 
pensamento (não apenas crítico, mas criador), o companheirismo e a paciência 
que só amigos de verdade possuem. A eles também agradeço as indicações 
bibliográficas, as sugestões e as críticas que foram muito úteis para a 
elaboração deste trabalho. 
 À Cláudia Bomfim da Fonseca não tenho palavras para agradecer sua 
dedicação, a inestimável ajuda com a informática, as fotografias tiradas durante 
o trabalho de campo, as sugestões temáticas, o companheirismo, a paciência, 
e a compreensão. Á ela minha admiração, meu amor e meu carinho. 
 Agradeço a minha mãe Irani Sabino, meus amigos e familiares, que 
suportaram minha inconstância (e aparente distância) durante a elaboração 
desta tese, mesmo sem entender o porquê dela, ou mesmo sua finalidade. 
 Agradeço, também, a atenção de todos os amigos das academias que 
freqüentei durante o trabalho de campo: os professores Gustavo Lopes e 
Ricardo Barguine, Rafael Pacheco, Wolney Teixeira, Renata Bérenger, Márcia 
Novak, Tatiana Amaral, Nina Aielo, Luca Paes Leme, Rafaello, Fabrício, Luís, 
Rafael e tantos outros que aturaram o olhar intrometido e as perguntas 
freqüentes de um pesquisador. 
 
 
 
 
5
 
ABSTRACT 
 
 
The aim of this thesis is to comprehend the word vision and the social 
organization of bodybuilders at the Rio de Janeiro’s Gyms. It intends to 
understand the sense of the drugs use (steroids), remedy use, diets use, and 
health marketing to makes the bodybuilder person through the passage rituals. 
It enphazise, also, the transit among the steroids and other drugs like 
marijuana and cocaine at the gyms, exploring the interfaces of drugs 
consumerism and a new health ideology with anomic violence. 
 
 
Resumo 
 
O Objetivo desta tese é compreender a visão de mundo e a organização 
social dos fisiculturistas das academias do Rio de Janeiro. Procura entender o 
sentido do uso de drogas (esteróides anabolizantes), remédios, dietas e o 
mercado da saúde. Itens que participam na construção da pessoa do 
fisiculturista por intermédio de rituais de passagem. Enfatiza, também, nestas 
instituições, a relação entre o uso de esteróides e drogas como maconha e 
cocaína, explorando a ligação do consumo destas com a nova idologia da 
saúde e a prática da violência anômica. 
 
 
6
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 “Nous avions conscience que la connaissance du sport est 
la clé de la connaissance de la societé ”. 
 Norbert Elias 
 
 
 
“Nosso corpo é apenas uma estrutura social de 
muitas almas” 
Nietzsche 
 
 
7
 
ÍNDICE 
 
 
Apresentação 10 
 
 
O Corpo Utópico 13 
 
 
Capítulo I 
 
O Surgimento do Bodybuilding 28 
 
Heróis Fundadores 37 
 
A Gesta de Arnold Schwarzenegger 60 
 
 
Capítulo II 
 
O Surgimento dos Esteróides 67 
 
No Reino de Dionisos 76 
 
Droga Hierarquizante 82 
 
Apolo Rei 87 
 
Entre Apolo e Dionisos 91 
 
 
Capítulo III 
 
Ética e Estética do Esteróide 97 
 
Do Ascetismo ao Hedonismo 110 
 
Drogas Masculinizantes e Individualismo 121 
 
O Complexo de Piegan 124 
 
Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo 127 
 
 
 
Capítulo IV 
 
Fármacos e Formas. Breves Notas Etnográficas 131 
 
 
 
8
 
A Química da Forma 141 
 
A Farmácia de Adonis 158 
 
A Forma da Dor 169 
 
A Lógica Classificatória Muscular 178 
 
Séries de Repetição: A Divisão do Trabalho Muscular 199 
 
 
Capítulo V 
 
Comendo como Bicho: Publicidade, Mito e Grastro(a)nomia 207 
 
Dieta Forte 211 
 
Publicidade e Forma 224 
 
Mito e Mídia 228 
 
Mitos da Forma 233 
 
Mercadorias Classificatórias 238 
 
Imagens e Palavras 244 
 
Raios e Leões 248 
 
Fábrica e Mecânica de Corpos 250 
 
 
Capítulo VI 
 
Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme 257 
 
Pele de Homem. Pele de Mulher 262 
 
Tatuagem e Lógica da Identidade 271 
 
Magia Capilar ou A Louridade da Loura 276 
 
O Cabelo do Malhador 279 
 
A Loura Virtual 283 
 
 
 
9
 
 
Capítulo VII 
 
Elogio à Barbárie 292 
 
Violência Difusa 295 
 
O Status da Briga 298 
 
Violência Anômica 309 
 
 
Considerações Finais 325 
 
Referências Bibliográficas 329 
 
 
Anexos 343 
 
 
 
10 
 
 
Apresentação 
 
Este trabalho tem como objetivo compreender a construção social do 
corpo nas academias cariocas de musculação e fisiculturismo, buscando 
aprofundar questões levantadas durante a elaboração da dissertação de 
mestrado “Os Marombeiros. Construção de Corpo e Gênero em Academias de 
Musculação”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e 
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS)no ano 
de 2000. A dissertação, uma etnografia que buscou focalizar o cotidiano das 
academias de musculação da Zona Norte do Rio de Janeiro (Tijuca, Andaraí, 
Grajaú e Vila Isabel), destacou as relações de gênero e o uso de esteróides 
anabolizantes relacionado à construção da forma física nestas instituições. A 
análise de tais questões, embora ainda ligadas ao estudo sobre a hierarquia 
estética do grupo e o uso de drogas, deteve-se no subgrupo específico dos 
fisiculturistas (e não nos freqüentadores das academias de musculação, em 
geral, como havia sido desenvolvido anteriormente), focalizando e 
aprofundando aspectos tais como o simbolismo relacionado à alimentação do 
grupo, o uso de suplementos alimentares, o trânsito do uso de esteróides 
(denominados drogas apolíneas na dissertação de mestrado) para o consumo 
de drogas como a maconha e a cocaína (estas, por sua vez, denominadas 
drogas dionisíacas), as perspectivas míticas suscitadas pela propaganda e pelo 
marketing direcionado à manutenção da saúde e boa forma, o sistema 
simbólico expresso pelas tatuagens, o simbolismo ligado à coloração capilar e 
o elogio à violência. A pesquisa da tese de doutorado ampliou o espectro de 
academias incluindo instituições do bairro de Copacabana. O direcionamento 
da pesquisa para tais academias ocorreu devido ao fato de neste bairro 
localizar-se o maior número de academias freqüentadas por fisiculturistas, 
homens e mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, atualmente. Entendendo-se 
por fisiculturistas, não apenas os freqüentadores de academias de musculação 
e fitness, em geral, mas indivíduos que se destacam do resto dos 
freqüentadores por dedicar grande parte do seu tempo desenvolvendo massa 
muscular muito acima da média, além de participarem, mas não 
 
 
11 
 
necessariamente, de campeonatos ou competições de bodybuilding. Sendo tal 
grupo o maior representante de aficcionados pelo desenvolvimento muscular, 
tendo a forma física como, se não a maior, a principal preocupação de suas 
vidas, determinadas dimensões existentes de maneira não muito significativa 
em outras academias (nas quais participam em número reduzido) puderam ser 
melhor analisadas e pesquisadas nestas instituições de Copacabana nas quais 
representam contingente significativo. 
Esta tese de doutorado é o resultado de 54 meses de pesquisa (trabalho 
de campo) em 10 academias de musculação e 2 de fisiculturismo da Zona 
Norte e Zona Sul cariocas: 4 academias no bairro de Vila Isabel; 3 academias 
no bairro da Tijuca; 2 no bairro do Grajaú; 2 em Copacabana e 1 no Andaraí. 
As duas academias de Copacabana pesquisadas são exclusivamente 
freqüentadas por fisiculturistas. No entanto, também foram pesquisados os 
grupos de fisiculturistas que freqüentam as academias de musculação da Zona 
Norte. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200 homens 
e 110 mulheres) com idade entre 16 e 55 anos. Porém, apenas duas 
entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo todos os outros relatos e 
conversas escritos em cadernos e diários de campo, imediatamente após o 
pesquisador deixar os locais de pesquisa. Foi priorizada a abordagem baseada 
na observação participante. Os comportamentos e as falas descritas são os 
dos fisiculturistas, e simpatizantes do fisiculturismo, em seu mundo cotidiano ou 
“habitat natural”, como escreveu Wacquant (2001) em seu livro sobre os 
boxeurs. 
 A tese está organizada em sete capítulos. É apresentada uma breve 
etnografia ressaltando determinadas características consideradas 
fundamentais para a construção do modelo de academia descrito no relato. 
Esta pequena etnografia ressalta a importância, relatada pelos próprios 
usuários, do uso dos esteróides anabolizantes e outras drogas para a 
construção da identidade do grupo relacionada às suas aspirações e visão de 
mundo, considerando-se seu histórico e a dimensão simbólica do seu uso. 
Inicialmente é apresentado um breve histórico do fisiculturismo, seu 
surgimento, a consolidação do campo, seus ícones e sua projeção 
 
 
12 
 
internacional, destacando a função de um mito de referência para os 
bodybuilders: a gesta do “herói” Schwarzenegger. A história do fisiculturismo no 
Brasil não foi abordada, pois não encontrei nada de significativo sobre ela. Fato 
que já sugere a realização de outra pesquisa abordando apenas este aspecto. 
Logo após é considerada a dimensão simbólica do uso de esteróides tratado 
como um novo tipo de uso de novas drogas. Uso relacionado ao processo de 
medicamentalização de parcela significativa da cultura atual. Cultura que tende, 
como sugeriu Sfez (1995), a elaborar uma utopia da saúde. Também é 
realizado um breve histórico do surgimento dos esteróides introduz a questão 
do uso do discurso científico pelo mercado da forma física e dos suplementos 
alimentares. 
Em outro capítulo destaca-se o papel da publicidade relacionada à 
construção e manutenção dos mitos corporais modernos e sua relação com as 
práticas alimentares dos freqüentadores assíduos das academias de 
fisiculturismo. A pesquisa enfatiza o papel simbólico da alimentação e sua 
relação com a manutenção da forma pelos fisiculturistas, o aspecto 
sagrado/profano da comida, a demonização da gordura, as classificações 
alimentares, a consubstancialidade animal (ligada ao uso, por parte dos 
pesquisados, de vitaminas e drogas para animais por causa da crença de que 
tal compartilhar confere aquisição de propriedades animalescas consideradas 
virtudes pelo grupo). Também focalizam-se os significados das dietas e sua 
relação com o uso dos esteróides - o elixir-mor dos bodybuilders - , o papel da 
publicidade sobre a comida, os suplementos alimentares e a forma física e sua 
função classificatória cotidiana ligada à fabricação dos mitos fisiculturistas. 
Neste ponto, a pesquisa (pautada sobre a análise de propagandas 
publicitárias) foi influenciada pelo trabalho de Rocha (1995). 
No capítulo seguinte é relatada também, de forma breve, a experiência 
pessoal do pesquisador no campo, sua relação com o seu próprio corpo e com 
as estruturas dos dois campos de inserção profissional: o campo da academia 
e o insurgente campo do fisiculturismo carioca. É destacado o papel da lógica 
classificatória das competições e dos exercícios e a relação que estes, e sua 
lógica, têm com a ordenação da realidade cotidiana do grupo. Nesse âmbito, o 
 
 
13 
 
simbolismo relacionado a crenças em mau-olhados, superstições e azar 
marcam sua presença de reencantamento de um mundo onde o ascetismo 
apresenta-se constantemente. O significado, por exemplo, dos números 
ímpares na lógica classificatória do grupo é bastante sugestivo. 
O capítulo posterior dá continuidade a essa análise simbólica 
focalizando, porém, a hierarquia inscrita não apenas nos músculos, mas na 
pele dos fisiculturistas por intermédio de suas tatuagens. É ressaltado de que 
forma tais desenhos e inscrições possuem uma gramática própria traduzindo 
relações de violência simbólica específicas do grupo, demarcando papéis 
sociais relacionados ao gênero e à classe social. A seguir, é focalizada a 
função simbólica do cabelo, a importância do cabelo louro e dos pêlos 
alourados situados em determinadas regiões do corpo feminino e sua relação 
com a hierarquia estética das academias. Também é destacado o sentido 
positivo para os homens da ausência de pêlos, enquanto que para as mulheres 
a presença de tais itens pode, ao contrário, ter o mesmo sentido positivo. Por 
fim, o aspecto da violência simbólica traduzida em práticas físicas surge no 
último capítulo da tese com a análise do cultivo e da exaltação do estilo rústico, 
por vezes antiintelectual e violento, por parte destas pessoas que cultivam os 
músculos e o consumo da forma. 
 
 O corpo utópico 
 
Atravessamos uma época na qual o culto à forma corporal ganhou 
amplitude inédita. Não é mais novidade: músculosdefinidos e inflados, 
tatuagens, piercings, implantes de silicone, botox, bronzeado artificial, cirurgias 
plásticas, estão constantemente presentes no cotidiano das grandes cidades e 
na mídia atual. Uma espécie de cultura do corpo – nos dois sentidos: da forma 
física e sistema subjetivo – vem se consolidando, ao menos em parte, nas 
sociedades complexas hodiernas, articulando padrões estéticos perseguidos 
por um crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu corpo. Estes, ao 
buscarem a construção de um corpo mais adequado aos ideais estéticos 
hegemônicos ligados à adoração física vigentes nestas sociedades, acabam 
 
 
14 
 
por construir também uma ética singular diretamente radicada na estética. 
Corpo como axis mundi. Este processo tem conduzido indivíduos e grupos de 
determinados extratos sociais a buscarem uma perfeição física – obviamente 
inalcançável - radicada na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, 
métodos milagrosos e consumismo de produtos da indústria químico-
farmacêutica como esteróides e suplementos alimentares, além de vitaminas e 
“fortificantes” dos mais variados tipos (Luz, 1997; Del Priore, 2000; Pope, 
Phillips & Olivardia, 2000; Nascimento, 2003). A preocupação não apenas com 
a aparência, mas com a forma física, - com o entalhe muscular lapidado a ferro, 
suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias-, apesar de ser poduzida 
coletivamente, torna-se carregada de investimento individual. Homens e 
mulheres famosos anunciam na imprensa e nos programas de televisão, as 
transformações corporais que decidiram realizar lançando mão de recursos tais 
como personal trainners, nutricionistas, cirurgiões plásticos e outros 
profissionais do rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde – entendida 
aqui como “boa forma física”. De acordo com tal ideal, cada indivíduo é 
considerado responsável (e culpado) pela sua juventude, beleza e saúde: só é 
feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um deve buscar em si 
as imperfeições que podem - e devem - ser corrigidas (Goldenberg, 2002; Luz, 
2000). Neste âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado que 
o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma pode 
significar, neste fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, disciplina e talento 
para vencer, galgando os patamares da hierarquia social. A saúde torna-se um 
mandamento com efeito normalizador e adquire características de uma utopia, 
entendida, segundo Sfez (1995), como projeto que supera, por sua natureza 
praticamente religiosa – dado seu caráter universalista -, a ideologia. Esta, 
embora pretenda universalidade é reconhecida pelos teóricos enquanto 
discurso particular, ou seja, discurso originário de uma parcela específica da 
sociedade, sendo portanto discurso parcial. No caso das práticas corporais 
ligadas primordialmente ao paradigma estético esta utopia está atravessada 
por representações de beleza ancoradas nos valores individualistas da cultura 
contemporânea. Assim, 
 
 
15 
 
 
“é a estética, mais que a racionalidade médica e seus 
modelos (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério 
sociocultural maior de enquadramento dos sujeitos para 
determinar se realmente são ‘saudáveis’, ou se precisam exercer 
alguma ‘atividade de saúde’, através do estabelecimento de 
padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado 
como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do 
corpo que ao modelo doença/prevenção” (Luz, 2003: 5. Grifos da 
autora). 
 
Tais imperativos relacionados a estratégias sociais impelem um 
crescente número de indivíduos a lutarem contra sua genética e o processo 
inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma espécie de 
obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude. Tal obsessão pode ser 
percebida pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos 
lançados a cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas 
inovadoras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos 
implantes de silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, do 
consumo de substâncias químicas de tipos variados para diminuir a 
porcentagem de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em 
forma de cremes para atenuar as marcas de expressão. Este poder 
normalizador, padrão de atuação coletiva que leva inconscientemente milhões 
de pessoas a desejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético, 
paradoxalmente vai de encontro ao ideal de liberdade individual inerente à 
representação do individualismo da cultura ocidental1 (Luz, 1988; 2000; 
Dumont,1985). 
 
1 -Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, modernidade e 
Ocidente, consideramos, da mesma forma que Duarte (1999:22), viável a utilização do ponto de vista 
comparado da hipótese de que participamos de um sistema de significação específico a que se pode 
chamar, tentativamente, de “cultura ocidental moderna”, que implica uma certa maneira de perceber e 
compreender os fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender 
fenômenos das outras culturas. 
 
 
16 
 
Este processo gerontofóbico e somatófilo no caso da sociedade 
brasileira pode apresentar características peculiares ressaltadas por diversos 
sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuilding 2amador, 
as brasileiras e brasileiros articulam recursos técnicos universais para otimizar 
partes específicas do corpo valorizadas pela sua cultura. Partes tais como 
nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e peitos nos casos 
masculinos, são “trabalhados” por exercícios com pesos para alcançar forma e 
volume adequados ao padrão estético vigente (Da Matta, 1996). De acordo 
com Malysse (1999; 2002), a atual expansão das técnicas de construção do 
corpo no Brasil – ao menos no Rio de Janeiro onde o autor realizou trabalho de 
campo – tendem a reiterar as profundas hieraquias sociais disfarçadas pela 
cordialidade das interações nas quais o contato corporal se realiza sem 
significar, contudo, proximidade social, de fato. Diz o autor: 
 
“no contexto do culto carioca ao corpo, este é o portador de 
valores de distinção social. No Rio, não é apenas a beleza em si 
que constitui o valor fundamental da distinção social, mas também 
a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua 
aparência...essa relação de espelho com o corpo confirma de 
maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca (...). 
Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a 
retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente. Nesse 
contexto, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A 
corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em direção 
ao corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada e 
 
2 - O Bodybuilding ou fisiculturismo pode ser sumariamente definido como uso de exercícios 
progressivos de força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver uma 
musculatura específica. Este desenvolvimento é conseguido através de exercícios contínuos realizados 
com pesos acoplados a barras – que podem ser curtas ou longas – e/ou em máquinas projetadas para tal. O 
uso de tais pesos é controlado em conformidade com o objetivo estético do executante. Em geral, a 
quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo. Relacionado a tal prática existe 
todo um saber sobre nutrição, fisiologia e uso de remédios e substâncias diversas que circula nas 
academias de musculação. Este saber geralmente tem por base os conhecimentos científicos ligados à 
ciência médica ou biomedicina. Contudo, grande parte do conhecimento articulado pelos fisiculturistas e 
personal trainers é prático, ou seja, apreendidoe produzido no cotidiano de tais instituições por 
intermédio da experimentação intuitiva ou por simples imitação. Assim, uma substância (remédio, 
 
 
17 
 
esteticamente orientada por imagens-norma ou por uma 
iconologia desse culto corpo.” (2002:131). 
 
 Tocar-se em quantidade maior do que outros povos em espaços 
públicos e privados não equivale à proximidade social efetiva, como uma 
análise apressada poderia concluir. Paradoxalmente, o contato físico com o 
outro, neste caso, pode significar distanciamento hierárquico e 
instrumentalização egoísta da alteridade. Neste processo, o problema das 
representações sociais relacionadas à estética do corpo brasileiro aparecem 
ligadas à concepção de que este corpo encarnaria uma beleza inigualável, tida 
como produto nacional (inclusive “para exportação” como diz o senso comum) 
que não estaria associada diretamente às questões de reivindicação étnico-
política3. Este aspecto alude a uma percepção falsa de democratização, 
radicada mais em um movimento estetizante, e acima de tudo mercadológico, 
que de fato político (Fry, 2001; 2002). Não havendo no Brasil vínculo direto 
entre práticas cosméticas e contestação às formas de opressão sexual ou 
racial, a questão da beleza surgiria enquanto produto final da miscigenação -, 
valorizada, neste caso. Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da 
mulher brasileira, com sua “cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas 
pernas grossas e seu andar malemolente” são produto da “mistura de raças”, 
tal mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida) um item 
indicativo da “democracia racial” brasileira, cultura supostamente capaz de 
sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente diferenciador: 
“não há beleza maior do que a da mulher brasileira”, diz o senso comum 
nacional. Esta ode à “beleza miscigenada” da brasileira (Freyre, 1986), - clichê 
 
suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum fisiculturista percebe ter funcionado no seu 
aprimoramento estético é repassado para todos aqueles que desejam alcançar tal aprimoramento. 
3 - O trabalho de Bomfim (2002) sugere como prática comum à cultura nacional a manipulação 
circunstancial da identidade étnica denominada “etnia virtual”. Este processo ocorre quando indivíduos 
ou grupos manipulam uma suposta ascendencia minoritária – ciganos (no caso específico do trabalho da 
autora), negros, etc - com o intuito de construir um papel vantajoso em determinado contexto social. Este 
esteticismo populista pode ser claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para 
negros em universidades públicas no Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro -, situação na qual 
vários indivíduos considerados brancos se declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente, 
vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. N.o 244. 20/jan/2003. p.p. 36-7). Rezende e Maggie 
também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno, etc. , tornam-se atribuições que podem 
variar “de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala.” (2002:15). 
 
 
18 
 
de guia turístico que esconde o fato de as percepções estéticas serem produto 
da socialização -, é imagem dominante na representação da identidade 
nacional (Edmonds, 2002) radicada no senso comum; muitas vezes 
contrabandeado para os estudos sociológicos. Tal representação que concebe 
a beleza da brasileira como produto da miscigenação esquece que a grande 
maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas mundo afora pelo 
seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada têm de musas mestiças, 
ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao 
incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou italianas: Gisele 
Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana Weickert, Ana 
Hickmann, etc. 
 E é justamente tal padrão eurocêntrico de beleza feminina que impera 
na mídia e que domina, se não na morfologia ao menos na etnia, o campo das 
academias de musculação. Sendo instituições de classe média as academias 
pesquisadas expressam as idiossincrasias relativas às visões de mundo dos 
seus freqüentadores. Tais concepções a respeito das relações étnicas estão de 
acordo com o que foi percebido por John Norvell. O trabalho do autor coloca 
em xeque as conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas 
camadas médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca, 
destacando a ambigüidade presente no discurso deste grupo que usa de 
eufemismos para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se “claros”, 
“alvos”, “morenos claros”, e assim por diante, quando confrontados com suas 
características européias4. Como a representação do Brasil é a de uma nação 
totalmente miscigenada, não se fala de brancura – ao menos em discursos 
oficiais e “politicamente corretos” - como característica valorizada; assim os 
informantes evitam referir-se a si mesmos como “brancos”, mesmo quando 
descendentes diretos de imigrantes europeus com todas as características 
inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo, e quando o fazem, é com 
 
4 - Farias (2002) escreve que no Brasil ser bronzeado é símbolo de status. A cor bronzeada, o estar 
moreno, ou ser moreno, com toda ambigüidade que tal termo possui (e por isso mesmo) é sinônimo de 
positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho 
entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, este 
discurso é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época 
do verão. Em outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco, ao menos no discurso. 
 
 
19 
 
incômodo ou constrangimento. Apesar de tal constatação discursiva o trabalho 
de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a prática difere, 
algumas vezes, daquilo que é dito: 
 
“os cariocas de classe média observam que não partilham 
os valores culturais que constituem o núcleo da nação...em algum 
momento começam a falar sobre o passado de imigrantes de sua 
família...apontam, quase com melancolia, que não gostam 
particularmente de carnaval, festa tão brasileira e miscigenada de 
inversão, sexo e entrega. Muitas vezes saem da cidade nessa 
época, fugindo para locais elegantes de veraneio nas montanhas 
ou na praia. Confessam que não sabem dançar samba. Só as 
mulatas do morro sabem realmente sambar. Falam sobre o 
povão, as massas racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria, 
sua irreverência. Um advogado de classe média alta me disse: 
‘Assim como você é gringo aqui, eu também’. Apontou para rua e 
explicou: ‘Meu nome não é da Silva. No uso gíria o tempo todo. 
Não sambo. Não tenho sangue negro.’ Este último ponto, relativo 
à ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa 
que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora se 
descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista, 
essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles 
preferem fazer referências a parentes imigrantes específicos, e 
não a parentes negros, mulatos ou indígenas. Reconhecem que 
sua família de fato não é tão misturada quanto a norma brasileira, 
embora haja muito provavelmente um parente indígena ou negro 
‘em algum lugar do passado’. Às vezes admitem que haveria 
tensão na família se eles ou seus filhos tivessem uma relação 
sexual pública com uma pessoa de pele escura. Embora a maioria 
dos homens aponte a mulata como padrão de beleza e alvo de 
desejo sexual no Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas 
parecem limitar-se ou a representações,como desfiles 
 
 
20 
 
carnavalescos ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição 
e casos secretos, por exemplo.” (Norvell, 2002:261). 
 
 Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e 
conseqüentemente a mídia, articularem discursos sobre a beleza miscigenada 
que não condizem na prática com a realidade que elas mesmas reproduzem. 
Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e freqüentadores das academias de 
musculação em geral, tal processo é similar. O padrão de beleza apresentado 
nas representações dos indivíduos mostra-se eminentemente europeu. 
As representações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas 
algumas vezes, também a oprimí-lo. Sobre a tríade conceitual beleza – 
juventude 5 – saúde 6 um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez 
mais, empurrados ao consumo de práticas ligadas à boa forma (Del Priore, Op. 
 
5 - A categoria juventude apresenta-se como portadora de ambigüidade que lhe é inerente pelo fato de não 
gozar de consenso entre os especialistas nem mesmo em termos de delimitação etária. Certo é que, nas 
sociedades complexas ocidentais, mais especificamente entre as camadas médias urbanas, ela é um signo 
que reúne um conjunto de categorias relacionadas ao corpo, à vestimenta e ao estilo de vida, ou seja, o 
conceito juventude assume o aspecto de produto, tendo um valor simbólico calcado em uma estética 
específica que gera, por usa vez, a produção de significativa variedade de bens e serviços que têm 
impacto direto sobre os discursos sociais que a identificam, e que também podem ser consumidos por 
adultos no intuito de estender no tempo sua capacidade de portarem tal signo de juventude. Este aspecto 
exclui do processo as classes baixas, posto que são os indivíduos de setores médios e altos aqueles que 
possuem acesso à educação de fato podendo postergar as responsabilidades inerentes à vida adulta, sendo, 
por isso, capazes de emitir por mais tempo os signos sociais da juventude. Assim, o signo juventude está 
praticamente restrito, ao menos no Brasil, às camadas média e alta, as quais possuem acesso à educação 
superior e à moratória na plenitude do termo (Reis, 2000). Nas academias de musculação é possível notar 
outra manifestação deste signo relativo aos indivíduos da chamada meia idade. Tais indivíduos, por já 
terem se desfeito das responsabilidades relativas à idade adulta – formação de família, criação de filhos, 
conquista de determinados bens, etc. – ou seja, por já terem passado, com relativo sucesso, por tal fase, 
rearticulam o signo da juventude, como se tentassem readquirir um tempo perdido. Desta forma, em 
academias de classes mais altas é comum, por exemplo, a presença de senhoras quase sexagenárias com 
corpos portando todos os símbolos relacionados à juventude. O mesmo pode ser dito dos homens. 
Certa vez, ao chegar a uma sala de musculação em uma academia da zona sul avistei, virada em 
minha direção de costas, uma loura alta vestindo colant vermelho. O corpo curvilíneo, definido e 
bronzeado chamava atenção. Repentinamente ela virou o rosto e percebi que, apesar do corpo jovem, suas 
feições pareciam ter nascido décadas antes do resto do corpo. Esta mulher lembrava uma pintura cubista 
a qual os retoques da cirurgia plástica haviam definido as caracterísiticas anacrônicas das partes do corpo. 
Imediatamente lembrei de um trecho do poema de Bandeira – poema no qual o autor ironiza outro 
trabalho de Castro Alves - chamado Teresa (1996:136): “... Quando vi Teresa de novo/ Achei que os 
olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando 
que o resto do corpo nascesse)...” 
6 - A OMS define saúde como “estado de bem estar físico mental e social”, ou seja um estado ideal e, 
portanto, inexistente em sua plenitude. Na prática, a saúde surge como um paradigma polissêmico e 
polifônico, um “aparente monolito simbólico, até certo ponto ideológico em sua homogeneidade... 
[representando] um conjunto híbrido de imagens, representações, significados, diretrizes, e práticas 
sociais sintetizadas (ou sincretizadas)...” (Luz, 1999:2. Grifo da autora). 
 
 
21 
 
Cit.). Longe de desembaraçar-se dos esquemas tradicionais de dominação, o 
corpo hoje nas sociedades complexas, pode sofrer restrições gradativas 
levando indivíduos e grupos a construirem suas identidades associadas a tal 
tríade conceitual citada. As representações sociais atuais tendem a impelir os 
indivíduos e grupos a se colocarem a serviço da forma física ou, no mínino, a 
articular estratégias de interação tendo em vista tal demanda coletiva pela “boa 
forma”7. Tal controle, diferente do passado, possui a tendência a se articular 
por intermédio da mídia, da propaganda e do marketing. A proliferação de 
“corpos perfeitos” em revistas, outdoors, telas de televisão, cinemas e internet 
tecem uma trama cotidiana de agenciamentos coletivos que, respaldados no 
discurso sobre a saúde, leva indivíduos e grupos a construírem rituais de 
adoração à forma que colocam em risco as suas próprias vidas. Neste caso, 
todo o possível tende a ser investido no aperfeiçoamento e na manutenção da 
aparência. A forma oblitera o conteúdo, em uma sobrecarga sensorial, como 
pode demonstrar Samuel Fussel escrevendo sobre a época em era 
fisiculturista: 
 
 “ Músculos, grandes, expressivos músculos – bem, eles 
são algo mais. Obviamente uma rápida olhadela no meu corpo 
enorme já me garante imunidade mesmo contra a criminalidade 
mais insana. E a beleza de tudo isso é que provavelmente eu 
nunca serei obrigado a utilizar realmente esses músculos. Eu 
poderia permanecer um covarde e ninguém saberia!” (Fussel, 
1991:25). 
 
Ou ainda o depoimento de um fisiculturista brasileiro entrevistado por 
mim em : 
 
7- Essa parte do trabalho tem por objetivo destacar a dimensão de agenciamento coletivo presente nas 
normas e regras da construção do corpo nas academias de musculação nas quais impera uma ética 
estetizante. Contudo, tal abordagem não tem por objetivo generalizar as conclusões, posto que no próprio 
campo estudado apresentam-se estratégias, articuladas por indivíduos e grupos, de subversão desta lógica 
do esteticismo por vezes anti-solidário. Assim, se há por um lado, uma espécie de obediência e 
passividade por parte daqueles que tendem a seguir, um tanto irrefletidamente, as modas e costumes, por 
outro lado, sempre existem, mesmo em minoria, os que articulam práticas inventivas, estratégias de 
 
 
22 
 
 
“ Eu gasto muito para manter esse corpo...em alimentação 
e esteróides eu gasto por mês uns dois mil reais só com isso. Já 
vendi dois carros e uma moto para poder malhar, quando não 
tenho dinheiro arrumo de um jeito ou outro, vendo o que eu tenho, 
depois compro de novo... são fases, o que eu não deixo é de 
crescer, isso é a minha vida, nada vai me desviar disso, nem 
dinheiro, nem mulher, nem médico... sofri um acidente de moto 
em 96 e fiquei em estado grave, quebrei perna, costela, braço, 
fiquei entrevado no hospital, cortei minha cara toda... o médico me 
disse que eu não ia mais poder malhar pesado, disse que eu ia 
ficar aleijado; dois meses depois eu tava ‘malhando’ e seis meses 
depois da alta eu já estava bom, não adianta, não deixo de 
malhar, por nada.” (Marcos 28 anos. Personal trainer). 
 
Para que seja viável a busca de entendimento de uma instituição, seja 
ela qual for, é necessário “estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento 
da organização que a sustenta” (Wacquant, 2002: 31). Do mesmo modo, para 
que seja possível a busca de entendimento deste processo de adoração à 
forma presente nas sociedades complexas atuais se faz necessário elucidar o 
significado e o enraizamento das práticas corporais realizadas em academias 
de musculação e ginástica com todas as suas incessantesvariações de 
práticas de exercícios que vem se espalhando de maneira crescente pelas 
grandes cidades. Examinar a trama das relações sociais e simbólicas tecidas 
no interior e ao redor das salas de exercícios de hipertrofia muscular é tarefa 
imprescindível para que tal processo de compreensão desta realidade seja 
possível. 
A musculação tornou-se, a partir da segunda metade do século XX, uma 
prática em expansão conferindo à massa muscular hipertrofiada o status de 
novo item da moda associado à crescente indústria de suplementos, 
esteróides, publicações especializadas e tecnologia de máquinas para 
 
subversão fazendo dobrar as forças das estruturas de dominação simbólica propondo novas práticas e 
 
 
23 
 
exercícios. Vasta parafernália do suor tem se desenvolvido ao redor do globo 
construindo os ditames da fibra muscular como um modo de vida (Courtine, 
1995). Se na segunda metade do século XIX homens hipermusculosos eram 
símbolo do desvio, - em geral apresentados (na Europa e América do Norte) 
em freak shows - , na primeira metade do século XX passaram a representar 
um ideal relacionado àconstrução do caráter empreendedor e progressista tido 
como necessário para a manutenção da família e do ideal de nação, 
concepções caras às sociedades disciplinares (Foucault, 1988; Costa, 1989; 
Rabinow,1999). Atualmente, ostentar massa hipertrofiada e definida8 pode 
significar a adesão ao consumo e ao paroxismo da aparência. De meio para 
atingir um ideal, o corpo tornou-se, para muitos, um projeto. Revistas, TV, 
cinema, outdoors, reiteram a importância da imagem corporal e dos exercícios 
para a articulação do chamado marketing pessoal: corpo-empresa, corpo-
máquina, corpo-produto de consumo. Neste processo, o mercado do corpo 
amplia-se e as academias de musculação surgem como instituições onde uma 
parcela das camadas médias urbanas tenta aprimorar a sua forma em nome de 
um ideal de saúde, não menos respaldado pelo consumo. 
Desta forma, a musculação enquanto instituição – e portanto enquanto 
elemento que extrapola, e muito, a dimensão apenas biológica – é uma das 
oficinas na qual são forjados corpos. O local onde são elaboradas, 
experimentadas e sistematizadas as habilidades técnicas que permitem 
construir e conformar este material feito de sangue, músculos e desejos. A 
competência esportiva transmitida pelas academias está diretamente 
relacionada à estética (salvo raras exceções nas quais a musculação é usada 
como apoio ou fortalecimento muscular para a prática de outros esportes); e 
nisto ela possui uma função institucional que é extra-esportiva, pois as 
interações sociais realizadas em seu interior estão ligadas mormente ao culto 
da forma física. De fato, o bodybuilding resume-se a um conjunto de técnicas 
corporais (Mauss, 1974) e de aprimoramento da forma muscular, e as 
academias – umas mais outras menos- apresentam-se como espécies de 
 
representações (Certeau, 2002; Bourdieu, 2001; Luz, 1999; 2003). 
 
 
24 
 
santuários da estética física onde a performance, grosso modo, dita a norma 
alimentando o atual processo da construção da aparência. 
 O fisiculturista (também conhecido popularmente no Rio de Janeiro 
como “marombeiro”9), espécie de ícone do culto à forma, síntese das 
tendências corpólatras, depila seu corpo, cuida de sua pele, aprende a 
caminhar de forma dramática ressaltando os seus detalhes musculares, treina 
poses no espelho, faz dieta, vai ao esteticista e fica deprimido quando engorda 
ou perde massa muscular. Sua vida, em geral, gira em torno da forma física 
sendo o olhar do outro a maior recompensa para ele que acredita ser o livre 
construtor de sua própria morfologia. É possível perceber tal aspecto no relato 
a seguir: “Quando tô na rua e todo mundo fica olhando espantado para mim por 
causa do meu tamanho é a verdadeira glória... não ser percebido é o fim! Se 
ninguém te olha, você é um qualquer, um ninguém, um nada...” (Carlos. 33 
anos. Advogdo). 
Se, por intermédio da adoração à muscularidade, o fisiculturismo acaba 
por exaltar um paradigma de masculinidade que pode ser denominada 
hegemônica, por outro lado, subverte o cuidado de si, introduzindo práticas 
tradicionalmente femininas no cotidiano masculino ao transformar a forma física 
em objeto de sedução, de atenção e admiração, articulando uma espécie de 
feminização da masculinidade (Kimmel, 1998; Ramos, 2000), porém sem 
alterar a ética andrólatra da formação desta.Talvez estes homens sejam uma 
espécie de amostra da crescente onda de pressão estética que a sociedade 
atual tem feito incidir sobre a masculinidade. A mesma pressão para adquirir a 
forma física perfeita, que as mulheres sofrem há séculos, agora tem sido, cada 
vez mais, enfrentada pelos indivíduos do sexo masculino. Estes têm utilizado 
todos os tipos de recursos para construir uma forma adequada às 
 
8 - Definir musculatura significa não apenas fazê-la crescer, mas diminuir a porcentagem de gordura para 
que as fibras musculares se tornem visíveis, por exemplo o abdômen deve estar em forma de gomos e 
isso apenas é possível se o indivíduo tiver baixo percentual de gordura e não apenas massa muscular. 
9 - A palavra origina-se de maromba: vara que funâmbulo usa para se equilibrar na maroma: corda na qual 
caminha. Maromba pode significar também o(s) peso(s) com o qual o funâmbulo se mantém em 
equilíbrio. Como no fisiculturismo e halterofilismo são utilizadas barras com pesos (halteres) removíveis, 
ou não, nas extremidades, não é difícil perceber a associação das imagens do homem que anda na corda 
bamba, utilizando o peso da maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza os pesos para otimizar sua 
forma e força. Marombeiro, na cidade do Rio de Janeiro, tornou-se sinônimo de freqüentador assíduo de 
academias de musculação, o mesmo que “rato de academia” (Sabino, 2002: 139). 
 
 
25 
 
representações sociais10 de beleza: musculação compulsiva, uso de esteróides 
anabolizantes, produtos redutores de adiposidade, cirurgias plásticas, cuidado 
com pele e cabelos, tudo para cultivar uma imagem hipermasculinizada11. 
Neste processo de produção dos músculos, os marombeiros ou fisiculturistas 
servem também como cobaia para a indústria da forma. Assim (com licença da 
metáfora mecanicista) como os carros de fórmula 1 servem de experimento 
para a indústria automotiva aplicar nos carros de passeio seus avanços 
tecnológicos, da mesma maneira o corpo dos fisiculturistas serve para as 
indústrias farmacêuticas, de suplementos alimentares, de aparelhos de 
musculação e moda esportiva, como veículo de teste para a eficácia de seus 
produtos. Os saberes e as práticas sobre o corpo são produzidos e 
reproduzidos no cotidiano das academias. Tais técnicas do corpo estruturam e 
organizam um processo crescente de expansão do cuidado com a forma e a 
força física, organizando também as relações sociais dentro e fora das 
instituições de exercícios físicos (Sabino, 2003). 
Enquanto muitas instituições esportivas isolam os seus freqüentadores 
da rua, da violência social e da ação do crime organizado, apresentando-se, 
não raro, como o único caminho possível de ascensão social, como é o caso 
das academias de boxe nos guetos americanos (Wacquant, Op. Cit.) e dos 
clubes de futebol no Brasil, a academia de musculação ou de bodybuilding 
opera por lógicainvertida. Em sua maioria pertencentes à classe média, média-
baixa urbana, é comum entre os frequentadores destes recintos repletos de 
pesos e máquinas o cultivo de uma certa admiração por um submundo do qual 
 
10 - Representações sociais, coletivas ou culturais: segundo Durkheim, criador do termo “...maneiras de 
pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se 
lhe impõe” (1972: 4); proseguindo: “designam a camada mais antiga, e também a mais estável e a mais 
implícita da visão de mundo dos indivíduos. Nas representações coletivas encontram-se categorias de 
classificação, imagens e símbolos que organizam as relações dos indivíduos entre si e com a natureza. 
Essa visão de mundo apresenta-se como natural não exigindo qualquer justificativa” (Bozon, 1995:123-
4). Ainda: “são esquemas de pensamento impensados que sob forma de um conjunto de pares de 
oposição binária [por exemplo, forte/fraco, alto/baixo, masculino/feminino, bom/ruim, rico/pobre, etc] 
funcionando como categorias de percepção, constroem as relações de poder do ponto de vista daqueles 
que afirmam sua dominação, fazendo-a parecer natural...(Bourdieu, 1990:34). 
11 - Se há uma forte corrente que hipervaloriza a masculinidade construíndo uma espécie de androlatria 
na sociedade atual, existem reações nesta mesma sociedade, como aponta o trabalho de Osório sobre o 
movimento wicca. Nas representações deste grupo o valor atribuído ao que é feminino é sempre positivo, 
ao contrário do que se observa em sociedades tradicionais. Se, nestas sociedades, o corpo da mulher é 
perverso e impuro, na wicca ele é fonte de vida e criação e, portanto, sagrado (Osório, 2002). 
 
 
26 
 
eles não fazem parte ou que presenciam eventualmente através do noticiário 
sobre os crimes da cidade ou distante das janelas de seus apartamentos em 
condomínios. Se é possível alguém tornar-se um fisiculturista de competição 
hoje no Brasil, devido a expansão gradativa desta prática, em sua maioria tais 
indivíduos não buscam a profissionalização12, apenas organizam seu cotidiano 
por intermédio do sistema simbólico e prático da educação corporal e estética 
que confere um certo sentido às suas vidas. Se a representação deste sistema, 
construída por intermédio da mídia especializada, apregoa uma existência 
ilibada, independente de vícios, ligada à família e à ordem, na prática ocorre o 
inverso. Este paradoxo, como será possível perceber adiante, é parte da 
própria constituição do devir fisiculturista. Pois ao mesmo tempo em que o 
fisiculturista deseja ser aceito socialmente, estampando através de seus 
músculos disciplina e dedicação, cultiva um certo ar estigmatizado, de alguém 
que tem relação obscura com o lado marginalizado e misterioso da sociedade - 
o que por vezes pode comportar uma certa romantização do crime. 
Obviamente, tal relação confere àquele que cultiva seus músculos um certo 
sentimento de poder, já que o estigma também porta um quantum de força 
simbólica que não é apenas negativa (Douglas, 1976; Goffman, 1983). Ou, 
para repetir Foucault, se o poder reprime e exclui disciplinarmente ele também 
produz: 
 
“o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito 
é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, 
mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, 
forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma 
rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do 
que uma instância negativa que tem por função reprimir” (1993:8). 
 
 
12- A profissionalização efetiva do fisiculturismo não existe no Brasil. Os atletas mais famosos (José 
Carlos Souza Santos, tetracampeão mundial, por exemplo) são internacionalmente conhecidos como 
amadores e não recebem prêmios em dinheiro – o campeonato norte-americano Mister Olympia paga ao 
vencedor o prêmio de 1 milhão de dólares – porém, podem receber patrocínio de redes de lojas de 
suplementos alimentares (o atleta citado recebe apoio da Probiótica) e fazer propaganda de produtos 
ligados ao fisiculturismo e a outros esportes. 
 
 
27 
 
O lado marginal e estigmatizado muitas vezes admirado pelos 
fisiculturistas é reforçado pelo contínuo uso das drogas (esteróides 
anabolizantes) que são inerentes à própria construção de pessoa dos 
frequentadores assíduos das academias. O uso ritualizado de tais substâncias 
é parte integrante da existência daqueles que desejam se integrar ao grupo; 
embora os próprios freqüentadores não assumam tal fato diante de indivíduos 
estranhos ao seu grupo social. Por serem substâncias proibidas por lei, a 
construção de pessoa do fisiculturista envolve um sólido e crescente 
relacionamento com redes de tráfico de substâncias químicas. Estas surgem 
atualmente como novas drogas no cenário mundial. 
 
 
 
 
28 
 
 
 Capítulo I 
 
O surgimento do Body Building 
 
 
“É a sociedade inteira que ensina a seus membros que, para eles, só 
existe oportunidade, no seio da ordem social, à custa de uma tentativa absurda 
de saírem dela” 
Lévi-Strauss 
 
 
 O fisiculturismo, ou bodybuilding, originou-se na Europa – mais 
especificamente na Inglaterra Vitoriana 13 - do final do século XIX, e pode ser 
percebido como representando um dos possíveis desdobramentos, por um 
lado, do processo civilizatório destacado por Elias (1990;1993) em sua obra, e 
por outro, pelo surgimento dos processos disciplinares e biopolíticos 
destacados por Foucault (1993;1997). Seu surgimento coincidiu com o advento 
da fotografia e o fortalecimento da indústria cultural, a qual distribuiu 
gradativamente as imagens dos corpos musculosos (e as crescentes técnicas 
para transformá-los em tais) para uma audiência cada vez mais espalhada pelo 
mundo. Dizer que o surgimento do fisiculturismo significou um desdobramento 
do que Elias designou como processo civilizatório significa repetir, com o autor, 
que a esportificação das atividades de luta existentes na Idade Média – 
maneiras populares, e violentas, de resolver conflitos, assumiram a partir de 
um determinado período, uma forma estilizada. É necessário destacar, ao 
 
13 Os termos vitoriano e eduardiano referem-se ao período no qual os monarcas ingleses Rainha Vitória 
(1837-1901) e Rei Eduardo VII (1901-1910) exerceram seus reinados. O termo vitoriano pode referir-se, 
além de outros aspectos, à arte e à arquitetura que grassou no último período do reinado da rainha Vitória 
permanecendo durante o breve reinado de Eduardo VII. O estilo foi fortemente influenciado pela 
austeridade e pelo interesse em torno do classicismo greco-romano que levou à promoção das grandes 
excavações arqueológicas na Grécia e na Itália. Apesar da inspiração classicista, o estilo vitoriano foi 
marcado pela busca de maior opulência e ornamentação se comparado ao prévio período “clássico” da era 
napoleônica. Neste contexto, o fisiculturismo insurgente na Inglaterra mostrou-se como uma tentativa de 
retorno à estética atlética da estatuária grega. 
 
 
 
29 
 
menos brevemente, as mutações pelas quais passaram as práticas de 
atividades físicas para melhor compreensão da gênese destas, no caso 
específico o bodybuilding, e seu lugar em alguns contextos sociais hodiernos, 
sem esquecer, contudo, que não é possível divorciar a análise do esporte e das 
práticas corporais do contexto social no qual estão inseridos. Tais práticas 
apenas fazem sentido quando relacionadas com os sistemas simbólicos que 
representam e que as constituem e com outras dimensões da sociedade. 
A princípio é preciso delimitar, como fizeram Elias e Dunning (1994), as 
singularidades entre jogo e esporte. O jogo apresentar-se-ia como universal, 
presente em todas as culturas, atuais ou não. Seria práticatradicional, 
existente em todas as sociedades ao longo do tempo e do espaço. Já o esporte 
é o produto de uma descontinuidade produzida no ocidente europeu, que – 
para usar um certo acento metodológico weberiano – racionalizou as práticas 
corporais, regrando-as, regulando-as, administrando-as, buscando delas 
estirpar a violência presente nessas atividades. O esporte é, portanto, 
moderno; produto da modernidade. Não se pode dizer, por isso mesmo, que 
sua existência tenha sido sustentada como prática universal. Ao menos em seu 
período inicial, ele seria a liberação controlada das emoções, tentativa de 
amenizar violentas disputas que, não raro, estariam presentes nos jogos 
guerreiros ou rituais das sociedades européias tradicionais. A existência de 
regras escritas e uniformes codificando as práticas, a autonomização do jogo e, 
conseqüentemente, do espetáculo do jogo, além de severas punições contra 
atos violentos, seriam algumas das características constituitivas das práticas 
esportivas surgidas na modernidade (Idem; Chartier, 1994). Se existe uma 
disposição psico-social relacionada às práticas de jogos presente em todas as 
sociedades e culturas ao longo do tempo e do espaço (Huizinga, 1988), a 
prática esportiva, embora relacionada diretamente aos jogos tradicionais, 
destes se destaca pela sua singularidade. O esporte, produto da 
disciplinarização e racionalização, transformou o jogo em prática distinta, com 
configurações específicas, em outras palavras. Tal racionalização da 
competição e disciplinarização dos corpos proporcionou o surgimento dos 
 
 
 
 
30 
 
campos esportivos com toda atual profissionalização que lhes é característica, 
seus locais (ginásios, academias, clubes e estádios), saberes e tempos 
específicos 14. Ao calendário religioso e folclórico dos rituais coletivos, o 
esporte passou a opôr, ou conjugar, um calendário próprio de competições nas 
quais as datas passaram a existir em consonância com os ritmos anuais de 
cada disciplina. A implantação e a arquitetura dos estádios, ligada também à 
criação de normas para gestão da intimidade dos indivíduos, relacionou-se ao 
propósito insurgente de gestão populacional (Foucault, 1987; Costa,1989) e à 
extração do máximo de lucro possível do espetáculo. O calendário esportivo, 
então, passa a depender das exigências da propaganda, do ritmo do trabalho 
e dos hábitos de lazer característicos do capitalismo em consolidação (Elias & 
Dunning, Op. Cit.). Surgem regras fixas que visam permitir a realização 
uniforme e potencialmente universal das práticas esportivas: “A história de 
cada esporte é portanto, fundamentalmente, a história da constituição de um 
corpo de regulamentos cada vez mais detalhados e precisos, que impõem um 
código único às maneiras de jogar e de competir que eram, anteriormente, 
estritamente locais ou regionais” (Chartier, Op. Cit.:16). A diferença entre o 
esporte e o jogo tradicional se manifesta, por um lado, por regras uniformes 
que suplantam progressivamente os usos locais e circunstanciais dos jogos 
tradicionais, por outro, pela existência de especialistas que têm a função de 
constituir um direito específico para reger as práticas esportivas. Segundo Elias 
e Dunning, é a partir destas regulamentações que dois aspectos fundamentais 
podem ser compreendidos: a redução do nível de violência tolerável nos 
enfrentamentos físicos, e o desenvolvimento de uma ética da lealdade que não 
 
14 - O exemplo do futebol popular (folk football,soccer), praticado na Inglaterra antes do século XIX, é 
sugestivo deste processo de mutação jogo-esporte. Tal prática era realizada através do enfrentamento de 
duas identidades sociais previamente definidas como a residência em uma mesma comunidade citatina ou 
domínio senhorial, o exercício de uma mesma profissão , o pertencimento a uma grupo de ‘jovens’ – ou 
seja, celibatários possuindo mais ou menos a mesma idade – ou o grupo dos homens casados. O jogo 
reproduzia, portanto, as perspectivas que lhe eram anteriores e exteriores, e que organizavam os rituais 
festivos. Tais jogos inscreviam-se nos calendários das festas religiosas e folclóricas, sendo, contudo, 
negociados conforme as partes em questão. Desprovidos de um tempo próprio, independente de outros 
eventos, eles se realizavam sempre aos domingos após as missas não tendo também espaço específico, 
definitivo, para ser realizado. Qualquer espaço comunitário podia ser utilizado para o jogo que não 
apresentava regras uniformes, fixas e demarcadas. As convenções que permitiam o jogo eram 
rudimentares, locais e costumeiras: “de uma região a outra, de um vilarejo a outro, de uma partida a outra, 
todos os elementos podiam tornar-se diferentes: o número de participantes, a duração do jogo, as regras 
aceitas, os objetos utilizados, os critérios que decidiam a vitória,etc. ” (Chartier, 1994:15). 
 
 
31 
 
separa o desejo de vitória do respeito às regras e do prazer do jogo como 
objetivo final. Para os autores, esse processo de descontinuidade social 
demonstra a transformação das estruturas da personalidade possibilitando o 
relaxamento dos controles emocionais sem deixar totalmente livre os 
movimentos espontâneos e perigosos das pulsões e dos afetos, “descontrole 
controlado das emoções” (Op. Cit.: 18). O prazer da prática ou do espetáculo 
esportivo coloca em jogo corpos que disputam e pelejam, devendo realizar tal 
processo de maneira respeitosa para com a vida; mesmo as peripécias e 
demonstrações de lutas severas não devem passar de um simulacro das 
batalhas violentas. Esta excitação bem controlada - batalha controlada em um 
espaço projetado – ligada às práticas esportivas, supõe duas condições: 
primeira, o aparecimento de práticas de lazer com características miméticas 
permitiu o relaxamento, a liberação do controle ordinariamente exercido sobre 
as emoções; controle diretamente equacionado ao mundo opressor do trabalho 
no capitalismo e da existência pública que instaura a separação entre a vida 
privada e esta. Nos espaços de disputas esportivas seria permitido expressar e 
dar vazão às emoções que cotidianamente deveriam ser censuradas e 
administradas para que a manutenção da ordem social fosse possível. Desta 
forma, o surgimento das tecnologias esportivas com todo seu saber que acaba 
por constituir a ciência do esporte pode ser visto, também, em uma ótica 
foucaultiana, como mais um dispositivo da insurgente sociedade disciplinar que 
se consolida a partir do século XVIII na Europa, ou ainda, como mais um 
processo de racionalização – entendido enquanto técnica e cálculo 
administrativo da vida - inerente às sociedades européias, de acordo com 
Weber (Foucault, 1997; 1993; 1988; Weber, 1992;1995). Ao conceito de 
processo civilizatório de Elias poderia ser somada a idéia de disciplinarização 
de Foucault e crescente racionalização do mundo da vida de Weber. 
 A segunda condição sustenta que esta admistração dos afetos 
violentos pela tecnologia esportiva só se faz viável por intermédio da 
interiorização dos sistemas simbólicos de constrangimento que se traduzem 
em mecanismos de autocontrole ligados ao surgimento de uma nova economia 
emocional. Os estádios e os ringues nos quais os dispositivos de autocontrole 
 
 
32 
 
comandam de maneira universal e regular todos os comportamentos dos 
participantes e as liberações emocionais surgem como instâncias nas quais a 
sociedade pode efetuar certas atividades de expressão de disputas sem 
colocar em perigo um retorno da agressividade destrutiva e da violência 
gratuita. Do duelo sangrento às partidas esportivas, o processo de 
disciplinarização tem por objetivo a pacificação doespaço social, embora 
parcial e tendenciosa, assegurando o monopólio sobre o uso legítimo da força 
pelo Estado, transferindo para o interior do indivíduo os constrangimentos que 
deveriam evitar os confrontos sangrentos e abertos; dispositivo interiorizado de 
censura efetivado em práticas e comportamentos coletivos e individuais 
(habitus) que não tem mais por base a autoridade exterior dos 
constrangimentos punitivos15. 
 O processo civilizatório surge, também, como um processo de 
esportização: mudança que transforma os passatempos e as atividades de 
enfrentamento tradicional, sem regras fixas nem restrições severas contra uma 
possível violência anômica, em práticas estilizadas e controladas por regras 
universais. Este processo poderia ser definido como a tentativa de codificar 
normas com o objetivo de suspender o perigo contra os corpos e a vida 
produzindo relaxamento controlado das disposições emocionais com a 
exclusão definitiva da violência destrutiva do adversário. Uma prática esportiva 
que não condiz com tal definição estaria fugindo dos parâmetros da estilização 
da violência e, possivelmente, representando um retrocesso no controle da 
violência anômica, ou como Elias diria, um “processo de descivilização” (Op. 
Cit.:59. Grifo nosso). 
O surgimento do sport (e do processo de esportificação) teve início na 
Inglaterra durante o século XVIII entre a aristocracia do campo e a gentry. 
 
15 - Elias em 1939 publicou sua tese (Über den Prozess der Zivilisation. Sociogenetische und 
psycogenetische Untersuchungen, 2 tomes, Bâle, 1939) sobre o processo civilizatório destacando que “as 
normas sociais definidoras dos comportamentos e das sensibilidades, mais precisamente nos altos 
círculos da sociedade, começaram a mudar radicalmente a partir do século XVI , e em uma direção bem 
precisa: elas passam a ser mais estritas, mais diferenciadas e onipresentes, mas também mais iguais e 
mais moderadas, posto que elas eliminam o excesso de auto punição como a autocomplacência. Esta 
mudança é traduzida pelo termo de ‘civilidade’, lançado por Erasmo de Roterdã, que em inúmeros países 
simbolizará um novo refinamento que dará mais tarde nascimento ao verbo ‘civilizar’... esta mudança do 
código de sensibilidades e dos comportamentos está ligada ao processo de formação do Estado, e, em 
 
 
33 
 
Nessa época, o termo não estava limitado apenas aos esportes de 
participação, mas incluia os jogos competitivos que tinham o objetivo de 
conferir distração e prazer aos espectadores, o esforço físico principal era 
realizado mais pelos animais do que pelos competidores humanos. O 
surgimento destas práticas coincide com o surgimento e fortalecimento do 
Estado e a conseqüente tentativa de pacificação do espaço social 
caracterizada pelo monopólio da violência legítima por este mesmo Estado. O 
esporte apresenta-se como parte de toda uma conformação social na qual a 
tentativa de organizar e reger o espaço público se consolida; ele torna-se 
possível primeiro na Inglaterra devido ao fato de a sociedade inglesa 
expressar tal esforço ordenatório. Sua configuração política, calcada no regime 
parlamentarista, apresenta já uma estilização das lutas sociais com tendência a 
amenizar o confronto violento16. No regime parlamentar, as lutas não violentas 
obedecem a regras estabelecidas representando efetivamente o nível de 
tolerância da tensão que caracteriza a cultura inglesa na época, seu habitus 
social (Elias, Idem). A similaridade dos jogos políticos do regime parlamentar 
com os jogos esportivos não é acidental. De fato, segundo Elias, no início do 
século XVIII na Inglaterra se chamará sport às antigas assembléias de Estado 
– a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, representantes das pequenas 
 
particular, à sujeição das classes guerreiras a um controle mais estrito pela ‘curialização’ dos nobres nos 
países da europa continental” (1994: 27). 
16 - A formação do sistema parlamentar na Inglaterra e sua capacidade de moderar as disputas pelo poder 
data da época do rei João Sem-Terra (1199-1216). Após ser derrotado em conflitos com a França e com o 
papado, João Sem-Terra foi obrigado, pela nobreza inglesa, a assinar um documento denominado Magna 
Carta que limitava sua autoridade. Ele não podia, por exemplo, aumentar os impostos sem a autorização 
dos nobres. A Magna Carta estabelecia que o rei só podia criar impostos depois de ouvir o Grande 
Conselho, corpo político então formado por condes barões e bispos. Esta disputa entre nobreza e realeza 
foi acirrada no reinado do filho de João Sem-Terra, Henrique III (1216-1272) que além da oposição da 
nobreza enfrentou forte oposição popular. Neste período, o nobre Simon de Monfort liderou uma revolta 
da aristocracia e, para conseguir adesão popular, convocou um Grande Parlamento que reunia, além do 
clero e nobreza, representantes da burguesia insurgente. No reinado de Eduardo I (1272-1307), a 
existência do Parlamento foi oficializada e continuou a se fortalecer como instrumento mediador durante 
o reinado de seus sucessores. Em 1350, o Parlamento foi dividido em duas câmaras : a Câmara dos 
Lordes, formada pelo alto clero e nobreza, e a Câmara dos Comuns, formada pelos cavaleiros e 
burgueses. Desta forma, desde cedo na Inglaterra o rei teve sua autoridade restringida pelo surgimento 
deste instrumento mediador denominado Parlamento. Para Elias (Op. Cit), o surgimento da gentry, classe 
de proprietários de terra que não pertenciam à alta nobreza e que não eram representados pela Câmara 
dos Lordes, mas pela Câmara dos Comuns, teve conseqüências consideráveis para a repartição do poder 
político na Inglaterra a partir do século XVIII. Esta classe, ao disputar o poder com os outros extratos 
dominantes da época, proporcionará a articulação de estratégias políticas no Parlamento que permitirão a 
“pacificação das classes superiores inglesas” e, simultaneamente, “a transformação dos antigos passa-
tempos em passa-tempos do tipo esportivo” (: 39). 
 
 
34 
 
seções privilegiadas da sociedade – que constituiam o principal campo de 
batalha onde se forma o Governo. A articulação do poder pelos partidos 
através das regras do jogo político imposta a partir do voto de assembléia ou 
de uma eleição pública representaram as condições fundamentais para a 
constituição do regime parlamentar tal como surge na Inglaterra do século 
XVIII. Tal organização não seria viável se as facções antagônicas não tivessem 
a mediação do instrumental político para amenizar suas hostilidades, e mesmo 
ódio, controlando – através da violência autorizada (simbólica) – seus 
enfrentamentos: 
 
“ os dirigentes não abandonariam de bom grado aos 
seus rivais os imensos poderes que lhes conferiam as 
funções governamentais sem a condição assegurada de 
que eles mesmos – seus inimigos políticos – uma vez 
empossados, não se empenhariam em lhes atacar, 
perseguir, ameaçar, exilar, aprisionar ou matar” 
(Ibidem:36). 
 
Essa administração das práticas políticas permitiu legalmente a 
formação do campo político parlamentar definindo os elementos principais para 
a formação, a manutenção e o possível aprimoramento do jogo partidário da 
mesma forma que o campo esportivo articulou regras administrativas para a 
produção dos espetáculos permitindo uma estilização dos enfrentamentos 
violentos. 
O esporte, a princípio, se consolidará como atividade nobre, ou melhor 
dos nobres. A alta sociedade dispondo de grande capital social e simbólico se 
empenhará em práticas como a caça, a equitação, o tênis, o pólo,mais tarde as 
corridas de automóvel. Além de afirmar o status social do desportista, as 
práticas do esporte consolidavam uma ética na qual as afirmaçõesdas 
disposições e dos valores de classe estavam presentes e se colocavam como 
exemplo a ser seguido pelas classes inferiores. O fair-play apresenta-se como 
o conceito que subsume a concepção de que as atividades esportivas devem 
 
 
35 
 
ser gratuitas e desinteressadas, nas quais a maneira de ser, de aparecer e de 
fazer contam muito mais que a vitória. O gosto pelo risco, o culto à proeza e o 
desprendimento relacionado ao tempo, que deve sempre estar livre para 
treinos e práticas, representam uma condição aristocrática singular. Os meios 
(a exibição da prática) constituem os próprios fins. Ao contrário do esporte 
atual, reduzido a uma prática profissional e mercantil, e por isso mesmo 
plenamente dependente da vitória, o esporte dos séculos XVIII e XIX davam 
prioridade ao savoir-vivre e ao savoir-faire e não à busca da vitória a todo 
custo. Eram, como prática da nobreza, uma ritualização, estilização da 
existência (Saint-Martin, 1989). Paralela a essa concepção, surgia outra 
relacionada às atividades administrativas dos Estados preocupados com a 
saúde de sua população e, por isso mesmo, buscando constituir uma 
pedagogia do corpo disseminada nas escolas através da Educação Física 
visando gerir a vida, processo que Foucault denomina biopolítica. A prática de 
exercícios físicos, relacionada a esta educação física, terá por objetivo formar o 
caráter do indivíduo mais do que sua inteligência, educá-lo, mais que instruí-lo, 
incitá-lo a cultivar a coragem e a força e, sobretudo, a iniciativa mais que o 
saber. Enfim, formar um corpo forte com caráter obediente e dócil (Foucault, 
1987). É uma educação de certa forma relacionada às instituições militares do 
Estado Moderno. Neste aspecto, há, portanto, dois tipos de ethos relacionados 
às práticas corporais: 1) aquele relativo à nobreza e sua ritualização da 
tradição; 2) o referente à burguesia e à manutenção de corpos 
institucionalizados e funcionais17. Para os nobres, o esporte não era apenas 
uma forma de inculcar nos jovens os valores aristocráticos que, nesta altura 
das práticas esportivas, estão inscritos, senão nas regras que regem 
explicitamente as práticas, ao menos nos princípios codificados que definem a 
maneira de praticar. O esporte permite acumular e articular o capital social que 
é transmitido por herança, reproduzindo a condição social no qual foi 
 
17 - De acordo com Luz (1994; 2003 a), tais atividades historicamente conhecidas como ginástica, têm 
uma tradição milenar na cultura ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana 
durante as últimas décadas do século XIX e no século XX sob a tutela do Estado. Associada à prática do 
esporte, a ginástica moderna nasceu sob o signo do paradigma saúde/ vitalidade, estreitamente ligada ao 
modelo higienista (posteriormente eugenista) do último terço do século século XIX, recuperação moderna 
nacionalista da concepção latina do mens sana em corpore sano. 
 
 
36 
 
produzido. Enquanto a nobreza olha para a tradição e sua reprodução no 
presente18, a burguesia fita o futuro, preocupando-se com o fortalecimento do 
contingente humano de seus Estados. Assim, há uma relação entre as 
transformações de práticas e de consumo de esportes (invenção ou importação 
de esportes ou equipamentos novos) e as transformações da demanda social 
e dos estilos de vida (Bourdieu, 1981). 
Também uma terceira corrente de práticas relacionadas ao corpo, além 
das destacadas acima, deve ser demarcada: aquela ligada aos tradicionais 
exercícios circenses, provavelmente com existência anterior às práticas 
esportivas da nobreza e a ginástica promovida pelo Estado burguês. De fato, 
os espetáculos de força e destreza física faziam parte das apresentações dos 
saltimbancos nas feiras medievais. Tais apresentações se consolidaram 
institucionalmente nas chamadas práticas circences - circos de lona. No século 
XIX, tais apresentações deram origem a outra vertente do espetáculo: os freak 
shows. Apresentações de extravagâncias nas quais a força de alguém ou sua 
característica física fora do normal ou, ainda, a sua incrível flexibilidade era 
demonstrada para um público específico. Como toda prática supõe um saber 
determinado, os exercícios no trapézio e as performances físicas foram 
constituídos pelo aperfeiçoamento repassado de geração para geração de 
artistas de circo. Tais saberes e práticas, distante do processo de 
esportificação empreendido pelas classes dominantes, acabaram migrando 
para as práticas de ginástica que vieram a conformar o que veio a se tornar a 
Educação Física (tornada depois ensino superior) aplicada à busca de eficácia 
dos exércitos e depois à busca da otimização da saúde dos cidadãos 
empreendida pelo Estado Moderno (Arnaud, 1991; Andrieu, 1992). A prática do 
fisiculturismo finca suas raízes nestas três correntes. Em primeiro lugar, se o 
esporte é a estilização dos combates, os torneios de fisiculturismo (e 
 
18 - Este “espírito” de tradição, por exemplo, é que engendrará a fundação dos clubes. Para os nobres do 
século XIX na europa ocidental, a prática de esportes como o golf, a equitação, o polo , etc. , se 
constituirá como meio de trocas mundanas, bailes, jantares, festas, soirées, rallyes, etc., conjunto de 
atividades “gratuitas” e “desinteressadas” que possibilitam a socialização escolhida e, através desta, o 
aumento do capital social. Neste processo, serão criados os clubes organizados em torno de uma atividade 
esportiva. Assim, por exemplo, na França em 1834 é criado o Jockey Club com o título de Cercle de la 
Societé d’ Encouragement pour l’amèlioration des races des cheveaux en France; em 1858 Le Yatch 
 
 
37 
 
inevitavelmente a musculação) constituem-se como a estilização da estilização, 
“puras lutas de aparência” (Courtine, 1995:83), simulacro do simulacro, posto 
basearem-se apenas na apresentação estética, sem nenhum enfrentamento 
físico concreto. Em segundo lugar, seus precursores, no final do século XIX, 
exaltavam a funcionalidade da prática de exercícios com peso para o 
aperfeiçoamento da saúde populacional, dos exércitos e dos trabalhadores. 
Terceiro, os torneios e apresentações de bodybuilding são produtos diretos 
dos freak shows já transformados em espetáculos para as massas no final do 
século XIX. Nestes circos de horrores, homens fortes, gigantes exóticos 
apresentavam seu tamanho e força descomunais para uma platéia ávida por 
novidades consideradas bizarras19 (Bogdan, 1994; Courtine, 1995). Assim , o 
campo20 do fisiculturismo originou-se de outro campo, o das artes e 
espetáculos circenses – estes por sua vez originaram-se dos saltimbancos 
medievais. 
 
 Heróis Fundadores 
 
As publicações sobre a história da musculação e do fisiculturismo (ou 
culturismo como algumas apresentam) sofrem de uma tendência comum aos 
escritos realizados por indivíduos pouco afeitos ao trato com as ciências 
sociais: tendem a criar super-heróis descolados do contexto histórico-social, 
como se fossem verdadeiros prometeus, resolvidos a doar aos simples mortais, 
 
Club; Le Cercle des Patineurs em 1865 e assim por diante. Locais que tinham por objetivo, entre outros 
aspectos, constituir espaços reservados para associação de nobres e notáveis (Saint-Martin, Op. Cit.). 
19 - O artigo de Bogdan (1994), além de apresentar a gênese social da categoria de “monstro” no século 
XIX – indivíduos com aparência e capacidades incomuns, – indica a organização de um comércio de tais 
indivíduos e suas imagens relacionado à formação do campo do show business na Europa e nos EUA . De 
acordo com o autor, empresários construíram

Continue navegando