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REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 138 BREVES NOTAS SOBRE O PERFIL JURÍDICO DA UNIÃO ESTÁVEL Marcos Bernardes de Mello Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas. PhD em Direito Público pela PUC-SP. MSc em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Professor (voluntário) do Curso de Graduação e do Mestrado em Direito da UFAL. Membro da Academia Alagoana de Letras. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Resumo: Este trabalho constitui revisão do artigo publicado na coletânea Famílias no Direito Contemporâneo, coordenado por Gustavo Andrade, Fabíola Lobo e Catarina Oliveira, Salvador, JusPodivm, 2000, com o título: Sobre a classificação do fato jurídico da união estável, com a finalidade de classificar o fato jurídico de constituição de união estável no universo dos fatos jurídicos. Para tanto, desenvolveu-se um breve estudo sobre a evolução da família no Direito brasileiro, considerando-a enquanto regida pelo Código Civil de 1916. O ponto de vista defendido na versão deste artigo revê aquele que sustentamos, equivocadamente, em sua primeira edição, quando propusemos classificar a união estável como um ato jurídico stricto sensu compósito. Palavras-chave: Família. Fato jurídico. Ato jurídico stricto sensu. Negócio jurídico. Casamento. União estável. Abstract: This work constitutes a review of the article published in the collection Famílias no Direito Contemporâneo, cood. Gustavo Andrade, Fabíola Lobo e Catarina Oliveira, Salvador, Juspodium, 2000, with the title: Sobre a classificação do fato jurídico da união estável, with the purpose of classifying the legal fact of stable union constitution in the legal facts universe. To this end, a brief study was developed on the evolution of the family in brazilian law, considering it as governed by the Civil Code of 1916. The point of view defended in this version of this article, reviews that one we wrongly maintained in its first edition, when we proposed to classify the stable union as a composite legal act. Keywords: Family. Legal fact. Stricto sensu legal act. Legal transaction. Marriage. Stable union. Sumário: 1. Nota introdutória. 2. Breves anotações sobre a evolução histórica da família sob a égide do Código Civil de 1916. 3. Classificação dos fatos jurídicos lato sensu. 3.1. Considerações gerais. 4. Classificação do fato jurídico da união estável. 4.1. As normas jurídicas sobre a união estável. 4.2. Definição do suporte fáctico da união estável. 4.3. Análise do conteúdo normativo do art. 1.723. 5. Natureza do fato jurídico da união estável. 5.1. Ato-fato jurídico? 5.2. União estável como ato jurídico lato sensu. 5.3. A união estável como negócio jurídico. 6. Conclusão. 7. Referências. 1 NOTA INTRODUTÓRIA A família brasileira, do ponto de vista jurídico, veio sofrendo, notadamente após a segunda metade do século XX, profundas transformações sob o influxo de novas concepções morais e filosóficas que passaram a dominar o mundo. Desde o final da Segunda Grande Guerra, como uma resposta aos seus horrores, em especial às monstruosas afrontas à Humanidade, viu-se o ressurgimento de ideias de predominante inspiração jusnaturalista, esquecidas de há muito à força do exagerado e, por isso mesmo, pernicioso positivismo jurídico, as quais passaram a dominar as Constituições editadas ou reformadas a partir do pós-Guerra, que passaram a enfatizar em seu corpo o reconhecimento dos direitos fundamentais do homem, erigindo, em especial, à posição de guia supremo dos ordenamentos jurídicos o respeito à dignidade do ser humano. No plano familiar, esse cenário estimulou a adoção do divórcio, até então proibido em grande parte dos ordenamentos jurídicos, e a abolição da distinção de tratamento jurídico entre os filhos, igualando os considerados legítimos aos até então ditos bastardos (apesar do esquecimento dos incestuosos), medidas que vieram com certo atraso e indisfarçável timidez. Em verdade, porém, a maior revolução na estrutura jurídica da família brasileira somente veio a ocorrer com a Constituição de 1988, que revolveu o fundo do poço, levantou a lama dos preconceitos e hipocrisias sociais e procurou filtrá-la para removê-los, apesar de não tê-lo feito completamente, deixando ainda incômodos resíduos. No meio dessa transmutação merece destaque o reconhecimento jurídico de grupos familiares aos quais se fechavam os olhos, embora, de REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 139 fato, já existissem d‘antanho: a união de homem e mulher sem casamento e impedimento para casar, a família monoparental e a família socioafetiva. A união estável, no Direito nacional, tem sido objeto de estudos os mais brilhantes. As suas características e suas consequências já foram muito bem analisadas. Apesar disso, nem sempre se tem conseguido esgotar a multiplicidade das questões que a envolvem, notadamente em razão da complexidade das relações que se estabelecem entre os conviventes. Por isso, mesmo que sem a pretensão de inovar nas matérias mais estudadas, procuraremos, neste trabalho, definir a posição da união estável no conjunto dos fatos jurídicos lato sensu, estimulado a responder a questionamentos que sobre isto me são feitos por estudantes e estudiosos. Para tanto, com a necessária brevidade, examinaremos a imagem da família brasileira sob a égide do Código de 1916 e sua evolução até a Constituição de 1988, a figura da união estável tal como tratada pelo direito positivo brasileiro, para daí buscar classificá-la entre as várias espécies de fatos jurídicos lato sensu, segundo os critérios metodológicos propostos adotados pelo que denominei teoria do fato jurídico, inspirada na doutrina de Pontes de Miranda. 2 BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 O Código Civil de 1916, refletindo as concepções morais de seu momento histórico, somente considerava como lícitas e capazes de gerar efeitos jurídicos as relações entre homens e mulheres quando resultantes do casamento. Família era somente aquela criada pelo matrimônio. Todas outras uniões entre pessoas de sexos diferentes, ou de mesmo sexo, com a finalidade de vida em comum eram (a) tidas como ilícitas ou (b) simplesmente desconsideradas como se inexistentes fossem, ao menos no plano do direito civil. Constituíam espécie (a) as relações ditas concubinárias que, doutrinariamente, eram classificadas em (i) puras, quando nenhum dos concubinos tivesse o impedimento dirimente para casar resultante de já ser casado ou desquitado, e (ii) impuras, aquelas em que um deles (ou ambos) 140 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões já fosse casado ou mesmo desquitado,1 ou, ainda, se entre eles houvesse parentesco em grau gerador de impedimento dirimente absoluto.2 Esse tratamento projetava sobre a família as qualificações de legítima ou de ilegítima, conforme sua formação decorresse, respectivamente, de casamento ou de relações extramatrimoniais. À família legítima eram assegurados todos os direitos e deveres possíveis resultantes das relações de parentesco. Mesmo quando a família fosse simplesmente natural (= família que existia sem casamento, mas não havia impedimento para casar entre os conviventes), a ocorrência de casamento posterior legitimava os filhos havidos antes dele (= os filhos eram ditos legitimados), passando a ser juridicizadas as relações entre as pessoas (=reconhecidas como relações jurídicas). Contrariamente, negava-se à família ilegítima a geração de qualquer eficácia jurídica, sendo até proibido o reconhecimento de filhos nascidos em seu seio, exceto quando se tratava de filho natural (= filho havido de relações entre pessoas que não ostentavam qualquer impedimento dirimente absoluto para casar, v.g. os solteiros, viúvos,sem parentesco, consanguíneo ou afim, em grau proibido – vide nota n. 1). Embora considerada ilegítima, à família resultante de concubinato, puro ou impuro, ao longo do tempo, à força de jurisprudência, especialmente do STF, se passou a reconhecer alguma eficácia jurídica, que se refletia tanto entre os concubinos, como também no que dizia respeito à filiação. Assim é que, relativamente aos concubinos, em se tratando de sucessão mortis causa: (i) em caso de concubinato puro, desde que provado ter a concubina contribuído, efetivamente, de alguma forma, para a constituição do patrimônio comum, teria ela direito de participar do espólio como se fora sócia, por aplicação analógica das normas regentes das impropriamente denominadas sociedades de fato;3 nessa hipótese, seu quinhão seria fixado segundo o grau de sua participação na formação do patrimônio, se concorresse com herdeiros;4 1 Com a evolução dos conceitos, em face do entendimento do STF de que o filho de pessoa desquitada não po- dia ser considerada adulterino, mas era tido como simplesmente filho natural, tendo em vista que o desquitado não poderia cometer adultério por não mais lhe caber o dever de fidelidade, passou-se a entender que seria puro o concubinato de pessoa desquitada, sendo simplesmente natural o filho daí nascido. 2 As relações incestuosas, pelo menos até a Constituição de 1988, eram simplesmente desconsideradas pelo direito civil, não gerando qualquer eficácia entre os conviventes ou relativamente aos filhos havidos da união. 3 Dizemos ser imprópria a denominação sociedade de fato porque essas sociedades, em verdade, são jurídicas, em sentido estrito, não de fato (= sem juridicidade). São, sem dúvida, sociedades desde que o contrato de sociedade é formalizado, mas sem personalidade jurídica, o que somente adquirem ao serem registradas no registro próprio (civil ou empresarial). A personalidade jurídica é apenas um plus, importantíssimo, na realidade, mas não essencial à sua existência. O Código Civil de 2002, reconhecendo isso, a denominou sociedade em comum e a regulamentou. 4 EMENTA: Não discrepa da Súmula 380 Acórdão que conclui: Concubina. Participação nos bens do amasio. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 141 (ii) quando não houvesse como comprovar essa participação na constituição do patrimônio comum, a concubina teria direito a uma indenização pelos serviços domésticos prestados durante a convivência concubinária.5 Essa mesma solução era aplicada em havendo concubinato impuro, como consequência da concepção de que seria inadmissível a concorrência com a esposa. No que se referia à prole: (i) ao filho natural (nascido de concubinato puro), apesar de considerado ilegítimo, era-lhe assegurado o direito ao reconhecimento da paternidade, a alimentos e à herança, embora em quinhão diferente daquele deferido ao filho legítimo, se com esse concorresse, diferenciação essa que esteve vigente até ser revogada pela norma do art. 51, 2, da Lei n. 6.515/77 (Lei do Divórcio); (ii) ao filho adulterino (=nascido de concubinato impuro em decorrência de ser ao menos um dos pais casado), somente a partir da Lei n. 883/49 lhe foi admitido o direito ao reconhecimento da paternidade, mesmo assim somente depois de extinta a sociedade conjugal do pai pela morte ou pelo desquite, e o consequente direito à herança, limitado seu quinhão à metade do que coubesse a filho legítimo, se com esse concorresse. Essa discriminação quanto à herança também somente desapareceu com a já citada norma do art. 51, 2, da Lei do Divórcio; (iii) ao filho incestuoso (=nascido de relações entre pessoas em grau proibido de parentesco) não se reconhecia qualquer direito, inclusive o de reconhecimento. Mais que isso: simplesmente se tratava esse filho como se não tivesse pai.6 Ação objetivando o reconhecimento de sociedade de fato e divisão dos bens. Confessada pelos herdeiros do amasio a existência da sociedade, deve-se julgar procedente a ação. A procedência, porém, não implica, ne- cessariamente, em atribuir a autora 50% dos bens. Se os fatos e circunstanciais da causa evidenciam uma par- ticipação societária menor, deve-se atribuir um percentual condizente com a contribuição. Agravo regimental improvido. Súmulas 279 e 291. (AI 108313 AgR / RJ. Relator(a): Min. Cordeiro Guerra - Segunda Turma - Jul: 18.02.1986 - DJ 11.04.1986 PP-05400 EMENT VOL-01414-01 PP-00674). 5 EMENTA: Concubinato. Serviços domésticos prestados pela concubina. Indenização a ela devida, pois que tais serviços são perfeitamente destacáveis do concubinato em si e negar-lhes remuneração seria acoroçoar o locupletamento indevido do homem com o trabalho da mulher. Recurso Extraordinário conhecido e provi - do. (RE 102130 / RJ - Rel. Min. Soares Muñoz - Primeira Turma - Jul. 30.04.1984 - DJ 25.05.1984, p-08237. EMENT VOL -01337-06 p-01186 - RTJ vol-00110-01, p-00432). Essa solução adotada pacificamente pelo STF (jurisprudência é farta) sempre a consideramos aviltante, senão, ao menos, imprópria e desarrazoada, tendo em vista que se tratava, como se trata, de um relacionamento afetivo, toram et mesam, e, nunca, de uma mera relação de emprego. 6 Somente com o advento da Constituição de 1988 cessou qualquer discriminação relativamente aos filhos em razão da norma do art. 227, § 6º, que proclamou a igualdade de todos os filhos, independentemente de sua origem. 142 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 3 CLASSIFICAÇÃO DOS FATOS JURÍDICOS LATO SENSU 3.1 Considerações gerais Todo suporte fáctico, seja qual for o fato jurídico,7 lícito ou ilícito, sem exceção, é composto por um núcleo constituído por um elemento cerne (que define o seu gênero e marca, no tempo, a sua concreção) e elementos completantes (que completam o núcleo, determinando, no gênero, a sua espécie).8 Esses elementos são descritos abstratamente nas normas jurídicas, de modo que são postos como hipóteses que, ao se concretizarem no mundo da facticidade, sofrem sua incidência e se transformam no fato jurídico respectivo. Os elementos nucleares do suporte fáctico constituem os dados de suficiência do suporte fáctico e, portanto, dizem respeito à existência do fato jurídico e o caracterizam.9 Uma classificação de qualquer objeto, para ser precisa e abranger todas as espécies possíveis, portanto, para ter cientificidade, deve ter como fundamento um dos seus elementos existenciais que seja invariável, comum a todos da mesma espécie e constitua a diferença específica (differentia specifica) que o distingue dos demais do gênero próximo (genus proximum). Além disso, deve referir-se ao mínimo existencial do fato jurídico, de modo que abranja todas as espécies do conjunto, absolutamente, sem qualquer exceção. Fiel a sua preocupação com o rigor científico e aplicando esse princípio, Pontes de Miranda elaborou uma classificação dos fatos jurídicos 7 Acrescente-se que há outros elementos ditos subjetivos e objetivos que integram os suportes fácticos, mas que não interessam ao âmbito deste estudo. Sobre elementos do suporte fáctico, vide: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, § 12. 8 Exemplos desses elementos, usando como tipo um contrato de compra e venda: a) cerne, o consenso (von- tade) entre comprador e vendedor; b) completantes: a promessa de transmissão da propriedade de um bem (= objeto), por certo preço em moeda nacional. Se muda no suporte fáctico elemento completante, muda a classificação do fato jurídico. Utilizando o exemplo acima, se substituirmos o elemento preço por gratuidade, o contrato deixará de ser de compra e venda, passando a ser de doação. Se o objeto não for a promessa de transmissão da propriedade, mas, o uso gratuito de um bem não fungível, ter-se-á um contrato de comodato; se, ainda, o objeto for o uso oneroso (remunerado) de um bem,ter-se-á um contrato de locação. Em todos os casos, o cerne (consenso de vontades), que é o mesmo, define o gênero negócio jurídico. 9 Quando se trata de atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos, há ainda elementos complementares, que não têm influência existência do ato jurídico, uma vez que dizem respeito, apenas, à sua validade e/ou eficácia, e também elementos integrativos, que se referem tão somente à produção de certa eficácia de alguns negócios jurídicos. Esses são denominados elementos de eficiência do suporte fáctico. Em geral não estão descritos na norma que define o suporte fáctico do fato jurídico, mas em normas específicas que se destinam a regular a validade e/ou a eficácia de todos os daquele gênero. Exemplos de elementos: (i) complementares: (a) relativos aos sujeitos, capacidade de agir, legitimação negocial; b) relativos ao objeto, suas licitude, moralida- de, possibilidade e determinabilidade; (c) à forma da exteriorização da vontade: determinada ou não defesa em lei; (ii) integrativos: o registro público do acordo de transmissão nos contratos de transmissão de bens imóveis, que deflagra sua eficácia real de transmitir a propriedade; o registro do contrato de constituição de sociedade que gera a sua personalidade jurídica; o lançamento tributário de que resulta a obrigatoriedade de pagamento do tributo; o registro do casamento religioso, que lhe atribui a eficácia de matrimônio civil. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 143 em que tomou por base os elementos do núcleo do suporte fáctico tal como hipoteticamente previsto na norma jurídica, não importando como os fatos se concretizam na realidade. Por consequência, como o suporte fáctico abstrato (=hipoteticamente descrito na norma) é invariável (porque só se modifica se e quando há mudança na norma), a classe a que pertence o fato jurídico não varia, independentemente de como se dá a concreção de seu suporte fáctico. A materialização do suporte fáctico de maneira diferente da prevista na norma somente importa se a própria norma prescreve a forma da concreção como elemento completante do suporte fáctico, ou, naturalmente, se essa diferença configure suporte fáctico de outra norma, porque, nesse caso, ele passará a ser classificado segundo esse outro suporte fáctico.10 Seguindo essa sistemática, a primeira e fundamental divisão dos fatos jurídicos lato sensu tem como elemento classificatório (=diferenciador) ser o fato jurídico conforme ou contrário a direito, portanto, se é lícito ou ilícito.11 Dentro de cada uma dessas duas categorias, os diversos fatos jurídicos são classificados segundo a natureza do elemento cerne de seu suporte fáctico. Vejamos. Os fatos da vida, numa classificação bastante simples, mas totalmente abrangente das espécies possíveis, ou são eventos (=fatos da natureza em geral, mesmo que relacionados ao ser humano), ou são condutas (=fatos produzidos pela atuação do homem, vale dizer: atos). A partir daí, três são as hipóteses possíveis de existência de elementos cernes de suportes fácticos: i) apenas evento; ii) conduta de que resulta evento; iii) somente conduta (= ato). Considerando essas três possibilidades, os fatos jurídicos lato sensu são assim classificados: 1) fato jurídico stricto sensu, aquele cujo cerne do suporte fáctico é composto apenas por eventos, mesmo que digam respeito a seres humanos, 10 Exemplifiquemos. Tomemos o caso da morte que, por ter como cerne de seu suporte fáctico (= elemento de suficiência) o fato-evento natural (=biológico) da extinção da vida, é classificado sempre como fato jurídico stricto sensu, seja qual for o dado que a determinou. Não importa, portanto, se a morte ocorreu por uma causa natural (morreu de câncer, e.g.) ou se em consequência de ato humano (suicídio, homicídio, p.ex.). Qualquer dessas circunstâncias não afeta a sua classificação como fato jurídico stricto sensu, não o transferindo para outra qualquer categoria de fato jurídico lato sensu. O homicídio constitui outro fato jurídico, o ato jurídico ilícito de alguém matar outrem, culposa ou dolosamente, em cujo suporte fáctico o fato jurídico stricto senso da morte entra apenas como um dos elementos completante de seu núcleo. Assim, também, ocorre com os atos-fatos jurídicos em que a vontade em praticar a conduta de que resulta a situação fáctica é irrelevante, sen- do relevante apenas o seu resultado fáctico. Mesmo que na materialização do suporte fáctico de determinado ato-fato jurídico a conduta tenha sido volitiva (tenha havido a vontade de praticá-la), ele não se transformará em ato jurídico (ex. a elaboração de uma escultura, que constitui o ato-fato da especificação, não deixa de ser ato-fato pela circunstância de o escultor a realizar intencionalmente). 11 Discute-se, em doutrina, se não seria uma contradictio in adiecto considerar jurídico um ilícito, precisamente por ser contrário a direito. A ideia de que é jurídico tudo o que, sendo suporte fáctico de norma jurídica, é juridicizado pela incidência e entra no mundo jurídico, afasta a objeção. Vide: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, § 30. 144 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões mas, neste caso, tomados sob sua natureza biológica (nascimento, morte, implemento de idade, avulsão, aluvião, formação de ilhas, frutificação e.g.); 2) ato-fato jurídico, aquele em que o suporte fáctico é integrado por uma conduta de que resulta, necessariamente, a ocorrência de um fato irremovível e inevitável, o qual, à sua vez, não se materializa senão como decorrência daquela conduta (caça, pesca, especificação, descoberta do tesouro, concepção do ser humano, v.g.). Nessa categoria, porque o resultado fáctico advém sempre de uma conduta, que não ser querida, portanto que pode ocorrer independentemente do querer da pessoa, essa conduta é recebida pelo direito como avolitiva; o que importa é a ocorrência do fato irremovível; 3) ato jurídico lato sensu, em que uma exteriorização consciente de vontade constitui o elemento cerne de seu suporte fáctico. Essa espécie se divide em: (i) negócios jurídicos e (ii) atos jurídicos stricto sensu, que se diferenciam em razão do poder de autorregramento da vontade, existente nos primeiros e inexistente nos segundos,12 o qual se caracteriza pela possibilidade que os sistemas jurídicos outorgam às pessoas (a) de escolha da categoria jurídica que lhe convém a seus objetivos, bem como (b), em amplitude variável, de estruturar do conteúdo da relações jurídicas que deles resultam (=direitosdeveres, pretensõesobrigações, açõessituações de acionado, exceçõessituações de exceptuado). Todas essas espécies são encontradas tanto entre os lícitos, como entre os ilícitos, exceto os negócios jurídicos, porque não há negócios jurídicos ilícitos, em razão do não reconhecimento pelo sistema jurídico, no caso de ilicitude, de poder de autorregramento da vontade. Por isso há, apenas, atos ilícitos.13 Diante disso, para que o aplicador do Direito conheça o fato jurídico (lato sensu) e possa classificá-lo dentre os diversos gêneros e suas várias espécies, tal como está descrito, hipoteticamente, nas normas jurídicas, mister se faz que as interprete de modo que possa chegar à identificação e individuação de todos os elementos que constituem o núcleo de seu suporte fáctico. Naturalmente, como ocorre com toda e qualquer expressão linguística, a descrição normativa do suporte fáctico pode ser feita com maior ou menor determinação. É evidente que, quanto mais específica e precisa for a descrição do suporte fáctico, mais simples será a tarefa do intérprete para 12 O poder de autorregramento da vontade é usualmente denominado autonomia da vontade ou autonomia privada, expressões criticadas por Pontes de Miranda, que as considera inadequadas. 13 Pontes de Miranda classifica os atosilícitos na categoria geral dos atos jurídicos lato sensu. Por uma questão meramente didática, optamos por distingui-los. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 145 identificar os elementos fácticos que o compõem. Ao contrário, quanto maior a indeterminação da proposição normativa mais complexa a atividade interpretativa do aplicador para definir sua correta composição. Mas, haja maior ou menor determinação na enunciação da proposição normativa, a interpretação da norma jurídica é pressuposto essencial e insuperável para que se conheça seu verdadeiro conteúdo, identificando o suporte fáctico e o fato jurídico a que ele se refere. 4 CLASSIFICAÇÃO DO FATO JURÍDICO DA UNIÃO ESTÁVEL 4.1 As normas jurídicas sobre a união estável No caso específico da união estável, as normas jurídicas sobre ela editadas contêm larga dose de indeterminação, como se mostrará, o que cria alguns problemas para se chegar à sua caracterização e, portanto, à sua classificação no universo dos fatos jurídicos. A primeira referência que se tem a essa espécie no Direito nacional vem da Constituição Federal de 1988, que considerou como entidade familiar, para fins de proteção pelo Estado, a união estável entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (art. 226, § 3º). Com essa norma, plena de ambiguidades, tanto em relação à sua caracterização, como à eficácia jurídica que se atribuía ao fato jurídico da união estável, o constituinte erigiu à categoria de instituição jurídica a união entre homem e mulher não decorrente do casamento desde que configurasse um concubinato puro (quanto ao concubinato impuro a situação jurídica continuou inalterada), ou seja, desde que não houvesse entre os conviventes (=companheiros) impedimento dirimente algum para se casarem.14 Em face dessa disposição, o legislador infraconstitucional editou as normas jurídicas que entendeu necessárias, visando a regulamentar a novel instituição jurídica.15 A primeira delas, a Lei n. 8.971/94, deferiu o direito a alimentos, “à companheira comprovada de homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos ou dele tenha prole..., enquanto não constituir nova união desde que prove a necessidade”. 14 Essa exigência de que as pessoas não tivessem impedimento dirimente para casar (=impedimento que acarreta a nulidade de pleno iure do casamento, Código Civil, art. 1.521) resulta da cláusula constitucional de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. 15 Instituição jurídica, por definição, é o conjunto de normas jurídicas que regulam certa relação jurídica. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, § 9º, 2.1, e nota n. 24). 146 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões Essa mesma lei, em seus arts. 2º e 3º, assegurou à companheira direitos sucessórios consubstanciados no usufruto de parte dos bens da herança, se concorrendo com filhos ou com ascendentes do de cujos, cabendo-lhe a totalidade do espólio na falta de herdeiros necessários. Em caso de participação dos companheiros na constituição do patrimônio, caberia ao sobrevivente a meação da herança. Em seguida, foi editada a Lei n. 9.278/96, que, declarando-se regulamentadora da norma constitucional (§ 3º do art. 226), definiu como união estável a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituir família. A adoção dessa norma, sem que haja declarado a expressa revogação da lei anterior (n. 8.971/94), em face das diferenças existentes entre suas disposições, tanto em relação aos pressupostos fácticos caracterizadores da união estável (duração temporal mínima de cinco anos ou existência de prole, na primeira, e indeterminação na segunda), quanto à eficácia atribuída ao fato jurídico, causou perplexidade à doutrina e à jurisprudência que, com divergências, propuseram várias e diferentes soluções para o conflito normativo, valendo ressaltar, por sua maior importância, a questão dos requisitos da ocorrência do lapso temporal de cinco anos ou existência de prole, que alguns consideravam recepcionados pela nova lei, e outros não. A experiência decorrente da aplicação dessas normas conduziu a que, finalmente, na jurisprudência, viesse a prevalecer a corrente de opinião segundo a qual a concreção do suporte fáctico da união estável não dependeria de parâmetros temporais rígidos, tampouco da existência de prole em comum, cabendo ao juiz, valorando as circunstâncias apuradas em cada caso, decidir segundo juízo de equidade. O Código Civil de 2002, finalmente, conceituou a união estável em seu art. 1.723, nos mesmos moldes do texto da Lei n. 9.278/96, apenas acrescentando a exigência de que não haja entre os conviventes impedimento dirimente absoluto para casar resultante de parentesco. (O impedimento decorrente de casamento, foi relativizado pela parte final do § 1º). Portanto, a definição normativa de seu suporte fáctico hipotético (=abstrato) continuou a ser feito de modo bastante aberto, impreciso, indeterminado, a saber: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável. (Grifos nossos). REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 147 4.2 Definição do suporte fáctico da união estável Analisado o conteúdo dessas normas jurídicas, temos que constituem pressupostos caracterizadores do fato jurídico (lato sensu) da união estável a existência de (a) convivência pública, contínua e duradoura de (b) um homem e uma mulher, (c) que não sejam casados (salvo se separados de fato), nem parentes em grau proibido para casar, (d) estabelecida com o objetivo de constituição de família. Nesse conjunto de pressupostos fácticos, alguns, como (a) serem os conviventes de sexos diferentes, e (b) não incidirem nos impedimentos dirimentes enumerados no art. 1.521 do Código Civil, exceto, no caso de casados, quando estejam separados, têm conteúdo terminológico praticamente unívoco, pois que estratificado na linguagem comum e do direito, donde não implicarem maiores dúvidas ou indagações. Apesar disso, a identificação da existência de relações familiares constatadas no ambiente social diferentes do modelo definido na lei (casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo, e.g.), fez com que, o STF, interpretando o Código Civil conforme outros valores inspiradores da Constituição, reconhecesse a possibilidade do casamento e da união estável homoafetivos, afastando, assim, a exigência absoluta de relações heteroafetivas para a constituição de entidades familiares.16 Outros, porém, em face da vaguidade com que estão expressados, acarretam ambiguidades semânticas que impunham ao intérprete atividade hermenêutica bastante complexa para encontrar-lhes o verdadeiro sentido. É o que ocorria com as expressões estável, separado de fato, convivência pública, permanente e contínua, com o objetivo de constituição de família. No encontrar o significado adequado à norma jurídica dessas expressões concentrou-se o esforço interpretativo da doutrina e jurisprudência destinado a revelar o conceito de união estável. 16 ADPF 132 / RJ - ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - Rel. Min. AYRES BRITTO Jul. 05.05.2011 -T. Pleno - DJe-198 DIVULG 13.10.2011 PUBLIC 14.10.2011 - EMENT VOL-02607- 01, p-00001. No inciso 6 da longa ementa desse Acórdão está dito: "6. INTERPRETAÇÃODO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação con- forme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconheci- mento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva." (Grifo nosso). No mesmo sentido, entre outros, os RE n. 552.802, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe de 24.10.11; RE n. 643.229, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 08.09.11; RE n. 607.182, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 15.08.11; RE n. 590.989, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 24.06.11; RE n. 437.100, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 26.05.11, Relator Min. Luiz Fux - DJe de 01.10.2012 , RE 477554 - Relator o Min. Celso de Mello, DJe de 25.08.2011. Reconhecida repercussão geral pelos RE 646721, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 06.12.2011; e ARE 656298, Relator o Ministro Ayres Britto, Jul. 08.03.2012 - T. Pleno - DJe de 04.2012 148 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões Além de tudo isso, há ainda as questões referentes à fixação do momento em que se deve considerar constituída ou extinta a união estável, em especial para a solução de demandas de natureza patrimonial. 4.3 Análise do conteúdo normativo do art. 1.723 1. O conteúdo jurídico do fato da convivência. Consoante temos mostrado em nossos escritos,17 a norma jurídica constitui o produto da valoração dos fatos pela comunidade jurídica,18 de modo que tanto o fato social como o evento da natureza nunca entram na composição de um suporte fáctico em sua simplicidade de fato real (=bruto), mas sempre com um determinado sentido que, no mínimo, consiste em sua referibilidade aos seres humanos. Por isso é que fato real (=bruto), mesmo nas espécies mais simples, nunca é igual a suporte fáctico, pois esse recebe aquele em certo sentido, conforme determinados valores, o que o torna plus em relação ao puro fato. Em decorrência, a conceituação do fato integrante de suporte fáctico nunca coincide com seu significado usual na linguagem comum. É em face disso que o intérprete, na valoração do suporte fáctico para constatar se houve sua concreção suficiente à incidência, deve analisar os fatos de acordo com seu significado jurídico próprio, sob pena de, em não o fazendo, poder errar na aplicação da norma jurídica (= não fazer coincidentes incidência e aplicação). No que tange ao suporte fáctico da união estável, o vocábulo convivência recebeu qualificações que lhe deram conotação jurídica diferente daquela própria da linguagem usual:19 o art. 1.723 do Código Civil impõe que a convivência afetiva entre os companheiros seja pública, contínua e duradoura. 1.1. Convivência pública. Esse requisito implica que não se possa considerar integrante do suporte fáctico da união estável uma convivência mantida em segredo, à socapa, escondida. Por isso, é imperioso que exista conhecida de outros, mantida ostensivamente, sem rebuço, ao menos no círculo social em que vivem os companheiros. O vocábulo pública no contexto da união estável, porém, não tem o mesmo sentido próprio da linguagem comum de algo conhecido por todos, universalmente, mas de alguma coisa 17 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 18 Usamos a expressão comunidade jurídica para designar o grupo social que tem poder para ditar suas próprias normas jurídicas. 19 “s.f. (1769) ato ou efeito de conviver. 1. vida em comum; contato diário ou frequente (a c. em família) (desvir- tuou-se na c. de delinquentes) 2. intimidade, familiaridade (evita a c.com vizinhos) 3. coexistência harmoniosa [...]. "(DICIONÁRIO HOUAISS da língua portuguesa, com a nova ortografia da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. (Verbete convivência)). REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 149 que tenha notoriedade. Aqui, publicidade é sinônimo de notoriedade. Zeno Veloso,20 sobre o assunto, esclarece que: Apesar da lei ter usado o vocábulo ‘público’, como um dos requisitos para caracterizar a união estável, não se deve interpretá-lo nos extremos de sua significação semântica. O que a lei exige, com certeza, é a notoriedade. Há uma diferença de graus: embora tudo que seja pública é notório, nem tudo que é notório é público. Interpretando-se a norma com inteligência, tem-se de concluir que basta que a relação seja conhecida no meio social onde vivem os parceiros. Essencial é que um relacionamento, para alcançar o patamar de união estável, não pode ser secreto, dissimulado, clandestino. Dessa lição não discrepam os juristas que tratam do assunto. 1.2. Convivência contínua e duradoura. Em relação ao que seja convivência contínua e duradoura, o Código Civil parece tautológico, uma vez que essas palavras têm sentido semântico semelhantes, donde haver sinonímia e, por consequência, seu emprego repetido não passaria de um desnecessário reforço de linguagem. No entanto, em rigor, os dois vocábulos não são sinônimos perfeitos; a identidade semântica existe apenas em uma só acepção: quando com duradouro se quer dizer permanente.21 Por isso, considerando o princípio de hermenêutica jurídica segundo o qual, na lei, não há palavras inúteis, devemos buscar o porquê da aparente tautologia. Parece-nos bastante evidente que, com os vocábulos contínua e duradoura o legislador quis dar especial ênfase à circunstância de que a convivência do casal (a) não pode ser fugaz, eventual, circunstancial, episódica, efêmera, nem ter raízes superficiais, mas, ao contrário, deve manter-se no tempo, ser persistente e perseverante, portanto, duradoura e (b) também ter perenidade, constância e sem interrupções, sem descontinuidades. O ser duradoura (= permanente) implica a necessidade de que a relação persista durante um lapso temporal razoável. Considerando-se que o tempo da convivência deixou de ser prefixado em lei, a razoabilidade de sua duração deve ser avaliada pelo aplicador do Direito segundo as circunstâncias.22 Na lição de 20 VELOSO, Zeno. União estável: doutrina, legislação, direito comparado, jurisprudência. Belém: Ministério Público do Estado do Pará, Cejup, 1997, p. 69. No mesmo sentido: VELOSO, Zeno; VILAÇA, Álvaro (Coord.). Código Civil comentado: direito de família, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela: arts. 1.694 a 1.783. São Paulo, Atlas, 2003, v. XVII , p. 110. 21 O Dicionário Huoaiss de sinônimos e antônimos, ao registrar o verbete duradouro, anota como um dos seus sinônimos o vocábulo contínuo. Não o faz, porém, inversamente, quando registra o verbete contínuo, o que, a nosso ver, mostra se tratarem de sinônimos imperfeitos, vale dizer, sinônimos somente em certo sentido. (HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss de sinônimos e antônimos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003). 22 Se homem e mulher, sem impedimentos dirimentes para casar, estabelecem uma convivência notória, dura- doura e sem interrupções, e um deles vem a falecer após um ano, por exemplo, parece evidente que não há como negar àquele relacionamento o caráter de união estável. 150 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões Álvaro Vilaça: “Em cada caso concreto, deverá o juiz perceber se houve, realmente, ou não, duração suficiente para a existência da união estável”. 23 Já não se pode ter como estável a união sujeita a seguidas interrupções que afetem os laços da afetividade.Cada vez que a existência desses laços é interrompida, quebrada estará a estabilidade da convivência e descaracterizada a união estável por ausência de continuidade. A continuidade não se desfaz, porém, se os conviventes se separam por algum motivo justificável, sem prejuízo da afetividade que os levaram a estabelecer a união. Não importa o tempo da separação, desde que permaneça intacta a relação de afeto, sendo certo que essas interrupções devem ser consideradas na configuração da duração da união estável.24 2. Impedimento resultante de casamento. O casamento constitui impedimento dirimente para que alguém convole novas núpcias ou estabeleça uma união estável, na sua constância. Relações permanentes (=não eventuais) de homem e mulher que sejam estabelecidas na vigência do casamento constituem concubinato, não união estável, na censurável terminologia adotada pelo Código Civil, art. 1.727. No caso de matrimônio, somente com o divórcio ou a viuvez cessa o impedimento para outro casamento que, no entanto, permanece na hipótese prevista no art. 1.521, II, c/c art. 1.595, § 2º, do Código Civil. Diferentemente, em se tratando de constituição de união estável, o estado de separado de fato25 constitui causa excludente do impedimento resultante de matrimônio. Ao regular essa matéria, o Código Civil não prescreveu requisitos outros para a caracterização da situação de separado de fato, senão a pura circunstância de sua existência. Portanto, havendo separação de fato, não importa por que lapso de tempo, inexiste proibição de que pessoa casada constitua união estável. Mantém-se, porém, o impedimento resultante do parentesco por afinidade na linha reta, de modo que o genro não pode constituir união estável com a sogra,26 nem o sogro com a nora, e assim por diante. 23 VILAÇA, Álvaro; AZEVEDO, Antonio Junqueira de (Coord.). Comentários ao Código Civil: parte geral do direito de família. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 19, p. 256. 24 Se, por exemplo, um dos conviventes vai fazer curso de grande duração em cidade diferente daquela em que reside o casal, mas continuam se correspondendo e se visitando de vez em quando, não desaparece a conti- nuidade. 25 Desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/ 2010, que adotou do divórcio direto, não há mais que se falar em separação judicial. Permanece atual, porém, a figura da separação de fato na existência da qual pode a pessoa casada constituir união estável. 26 Por isso, a piada de que a sogra é eterna. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 151 A questão, entretanto, de se fixar o momento (tempo) em que se deu a ocorrência da separação, nem sempre é simples, como parece, em razão de obstáculos que podem existir à prova dos fatos. Senão, vejamos. Não há dúvida de que havendo separação judicial (quando era necessária), ou medida cautelar de separação de corpos, o ato judicial que as haja decretado constitui marco temporal indelével do status da pessoa. Em face do sistema jurídico nacional, considera-se a separação efetivada desde o trânsito em julgado da sentença,27 retroagindo seus efeitos à data da concessão da medida cautelar de separação de corpos, quando tenha havido (arg. ao art. 1.580, do Código Civil). Em rigor, é possível ter-se como separado de fato o casal desde a data da decisão judicial que defere o pedido da separação cautelar de corpos, perdurando a situação durante a tramitação e até a decisão final do processo judicial de separação, salvo se provado o restabelecimento da convivência entre os cônjuges nesse ínterim, hipótese em que a autorização judicial perde sua eficácia. No caso de separação de fato, porém, a prova do seu termo inicial depende de prova, que pode ser fácil, se há documento hábil que o consigne,28 ou bastante complexa se depender de outros tipos de prova, como a testemunhal. Porque as normas jurídicas não preveem pressupostos relativos à sua duração por certo tempo, nem outros quaisquer, como a existência de prole, para caracterizar a situação fáctica suficiente a configurar a união estável, basta a comprovação da convivência pública, contínua e duradoura para que se componha seu suporte fáctico e, assim, tê-la por existente desde o momento declarado na sentença que a reconheça. Por isso, quando a hipótese fáctica for de pessoa separada de fato deve-se considerá-la desimpedida para constituir união estável desde o momento em que cessar em definitivo a convivência conjugal, circunstância cuja prova, como anotado, pode ser bastante complexa. 3. Impedimento resultante de união estável preexistente. Apesar de o Código Civil não conter norma específica, o STJ, fazendo analogia com o casamento,29 que tem na monogamia seu fundamento e, ainda, a exigência 27 Em rigor, a eficácia do divórcio começa a partir do momento em que se faz a averbação da sentença no re- gistro de casamentos, uma vez que o registro é elemento integrativo da eficácia erga omnes do divórcio (e da separação decretada quando possível e necessária). Enquanto não efetivado o registro da sentença de divórcio permanecem vigentes os efeitos do casamento. 28 Por exemplo, existência de documento escrito, como (a) contrato, por instrumento público ou particular, permitido pelo art. 1.725 do Código Civil; (b) correspondência entre o casal, desde que nela conste declaração sobre a data de constituição da união estável. Para fins da prova da data do início da união estável não importa se o contrato acima referido é válido ou não, desde que a eventual invalidade não diga respeito à anulabilidade por erro, dolo, coação, ou nulidade por fraude ou simulação. 29 EMENTA: CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. REQUISITOS LEGAIS. EQUIPARAÇÃO A CASAMENTO. PRIMAZIA DA MONOGAMIA. RELAÇÕES AFETIVAS DIVERSAS. QUALIFICAÇÃO MÁXIMA DE CONCUBINATO. RECURSO DESPROVIDO (AgRg no Ag 1130816 / MG - Rel. Min. VASCO DELLA GIUSTINA (Desembargador convocado do TJ/RS) - T3 - DJe 27.08.2010). (Grifo nosso). 152 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões de que precisa ser sólida (=duradoura) a relação afetiva entre os conviventes para que se constitua uma união estável, firmou pacífica jurisprudência no sentido de ser inadmissível a existência de simultâneas uniões estáveis.30 Em verdade, consoante já mencionado antes, a união estável está construída no direito pátrio à semelhança do casamento. Portanto, as normas que regem a milenar instituição do matrimônio lhe podem ser aplicadas, analogicamente, em havendo lacuna na legislação, como acontece no caso de concomitância de uniões afetivas. Por isso, a jurisprudência do STJ considera que, em ocorrendo simultaneidade de uniões dessa espécie, somente uma pode ser reconhecida como união estável, considerando-se como tal a que se tenha formado primeiro, dando-se o tratamento de concubinato àquela(s) que se tenha(m) materializado posteriormente (Código Civil, art. 1.727). 4. O conteúdo jurídico das expressões “com o objetivo de constituição de família”. Esse requisito de que haja, entre os conviventes, o objetivo de constituir família tem recebido a crítica doutrinária, porque não deve haver, apenas, o objetivo, mas, efetivamente, constituir uma família. Que significa isso? Inicialmente, o desejo de uma vida em comum. Não é essencial que os conviventes precisem demonstrar intenção de ter filhos, por exemplo. Requer- se, apenas, que passem a viver perante as pessoas que formam seu círculo social como uma família, assumindo um estado em tudo semelhante ao de pessoas casadas, concedendo-se, mutuamente, o tratamento, a consideração, o respeito que se devem dispensar, reciprocamente, os esposos, conforme sugere Zeno Veloso.31 Gerar filhos, ou não, pode ser decorrente de opção pessoal, mas também de uma imposição da natureza (infertilidade), de modo que não se pode condicionar a constituição de uma entidade familiar à existênciade prole. Anote-se, ainda, que nas situações de homoafetividade, existe a impossibilidade biológica de geração de filhos comuns, o que afasta a possibilidade de exigir-se a procriação de filhos para caracterizar a união estável. A adoção e a inseminação artificial podem atender à necessidade que tenha o casal homoafetivo de ter filhos, mas nunca elimina a impossibilidade biológica da filiação em comum. 30 UNIÃO ESTÁVEL. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC/1973. INEXISTÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. SÚMULA 283/STF. RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. SÚMULA 7/STJ. UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO. (AgInt no AREsp 455777/ DF - Rel MIN. RAUL ARAUJO - T4 - DJe 08.09.2016). EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. NÃO CONFIGURAÇÃO. UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMU- LA 83/STJ. (AgRg no AREsp 395983 / MS - Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI - T4 - DJe 07.11.2014). Veja-se, ainda, o REsp 1157273 / RN - Rel. Min. NANCY ANDRIGHI - T3 - DJe 07.06.2010). 31 VELOSO, Zeno. União estável: doutrina, legislação, direito comparado, jurisprudência. Belém: Ministério Público do Estado do Pará, Cejup, 1997, p. 69. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 153 5. Dados irrelevantes para a caracterização da união estável. (i) Quebra dos deveres de lealdade, respeito e assistência. O STJ, no REsp 1157273/RN, assim decidiu: EMENTA – Direito civil. Família. Paralelismo de uniões afetivas. Recurso especial. Ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Casamento válido dissolvido. Peculiaridades. Sob a tônica dos arts. 1.723 e 1.724 do CC/02, para a configuração da união estável como entidade familiar, devem estar presentes, na relação afetiva, os seguintes requisitos: (i) dualidade de sexos; (ii) publicidade; (iii) continuidade; (iv) durabilidade; (v) objetivo de constituição de família; (vi) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; (vii) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos.32 (REsp 1157273/RN, Rel. Ministra Nancy Andrighi, T3, DJe 07.06.2010). (Grifo nosso). Como resulta evidente, o STJ considerou elementos de existência da união estável dados que dizem respeito ao plano da eficácia. Sem razão, a nosso ver. Consoante temos mostrado em nossos escritos sobre a teoria do fato jurídico, conforme a concepção de Pontes de Miranda, o mundo jurídico (=mundo formado, exclusivamente, por fatos jurídicos) é dividido em três planos: da existência, da validade e da eficácia. Todo fato jurídico (=fato juridicizado pela incidência da norma jurídica), seja qual for sua natureza, entra no mundo jurídico no plano da existência. Aqui, nesse plano, não se discute se é válido ou eficaz, apenas se existe (=se todos os fatos previstos no seu suporte fáctico se concretizaram). Daí, em se tratando de ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico (porque a vontade humana é elemento cerne de seus suportes fácticos), o fato jurídico passa ao plano da validade, em que se verificará se é válido, nulo ou anulável. Os válidos e os nulos putativos adentram ao plano da eficácia, em que poderão produzir os efeitos (=consequências jurídicas) que lhes são imputados pela norma que os haja gerado. O anuláveis também entram de imediato no plano da eficácia e podem produzir os efeitos que lhe são próprios, mas interimisticamente, vale dizer: serão desconstituídos se forem anulados judicialmente (Código Civil, art.182), mas se podem tornar definitivos se confirmados pelas partes (Código Civil, art. 172 s) ou se precluir a ação anulatória. Todos os outros fatos e atos jurídicos (=fato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico e atos jurídicos, lícitos 32 Neste artigo escrevemos que os deveres de lealdade, respeito e assistência mútuos deveriam ser considerados inerentes ao conceito de convivência e, por isso, seriam elementos caracterizadores da união estável, na linha desse e de outros acórdãos do STJ. Dessa afirmativa tiramos que uma convivência em que não estivessem presentes aquelas características não poderia ser considerada dado suficiente à concreção do suporte fáctico da união estável. Estávamos equivocados. Modificamos nossa opinião. Por quê? Mostramos no texto. 154 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões ou ilícitos) não passam pelo plano da validade, indo diretamente do plano da existência ao plano da eficácia. Esse percurso do plano da existência ao plano da eficácia que deve ser trilhado pelo fato jurídico é inexorável, fatal, incontornável porque, logicamente, existência é pressuposto de validade e de eficácia. Em hipótese alguma pode o fato jurídico gerar eficácia jurídica sem passar pelo plano da existência, simplesmente porque o que não existe não pode ser qualificado como válido ou inválido, eficaz ou ineficaz; tão somente pode sê-lo como inexistente.33 Ora, o art. 1.724 do Código Civil ao dispor que “as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”,34 não definiu, em verdade, elementos de suficiência do suporte fáctico da união estável (= pressupostos de existência), mas, apenas prescreveu o conteúdo eficacial das relações jurídicas pessoais (= não patrimoniais) que dela resultam. Por decorrência, esses deveres de lealdade, respeito e assistência mútuos devem ser considerados inerentes à ideia de como deve ser a convivência na vigência união estável (=relações pessoais entre os companheiros). Por isso, é evidente, pressupõem, necessariamente, que já exista o fato jurídico da união estável. Não podem ser, assim, elevados à categoria de elementos de suficiência para a materialização de seu suporte fáctico.35 Em essência, no Direito nacional, casamento e união estável são, sem dúvida, instituições jurídicas análogas em face das semelhanças de suas características fácticas, conforme já proclamado pelo STJ nos acórdãos citados. Distinguem-se, em verdade, em razão (i) dos requisitos normativos para que se constituam, sendo formais os do casamento e informais os da união estável e (ii) dos conteúdos das relações jurídicas que geram. Sob esse último aspecto (i), apesar de os vocábulos usados para definir os deveres serem diferentes, sem dúvida têm significados semelhantes: (a) no casamento são os definidos no art. 1.566, a saber: I – fidelidade recíproca, II – vida em comum no domicílio conjugal, III – mútua assistência, IV – sustento guarda e educação dos filhos, e V – respeito 33 Sobre a fenomenologia da juridicização cf MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. Especificamente sobre os planos do mundo jurídico, os §§ 20 e 24, do plano da existência. 34 Antes, o art. 2º da Lei n. 9.278/96 não mencionava a lealdade; referia-se a respeito e consideração mútuos; assistência moral e material recíproca; guarda e educação dos filhos comuns. 35 Para admiti-los como elementos de suficiência do suporte fáctico da união estável seria necessário que a lei, não os previsse como deveres dos conviventes, mas os estabelecesse como requisitos da convivência, junta- mente com a publicidade, a continuidade e a duração. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 155 e consideração mútuos); (b) na união estável estão relacionados no art. 1.724: deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.36 36 Anote-se a seguinte observação: o histórico do projeto de que resultou o Código Civil atual, mostra que, embora houvesse tramitado por 25 anos no Congresso Nacional, houve açodamento em sua aprovação final no Senado, do que resultou terem algumas instituições recebidotratamento inadequado, do que é exemplo a união estável, prejudicando a inteireza de sua sistemática. Vejamos. A Câmara dos Deputados aprovou o projeto do Código antes da promulgação da Constituição de 88, e o remeteu ao Senado, onde ficou a dormitar, praticamente esquecido, de 1986 a 1998. Assim, com a promulgação da Constituição de 88 que, influenciada pela verdadeira revolução nos paradigmas morais da sociedade brasileira ocorrida por imposição das novas carências sociais, incorporou novos princípios, novas concepções a vetustos institutos jurídicos, notadamente no Direito de Família, área onde foram quebrados todos os padrões tradicionais de família estratificados desde 1916, com os olhos do Século XIX. Por consequência, o Projeto do Código Civil, como aprovado pela Câmara ficara, evidentemente, defasado, perdera sua atualidade, sob muitos aspectos. Cabia ao Senado, portanto, revê-lo em profundidade, para torná-lo atualizado segundo os valores compatíveis com a nova Constituição. Mas, não foi o que ocorreu. Ali permaneceu, esquecido e intocado, até quando, ao aproximar-se o final do seu mandato e sabendo que para lá não voltaria, o ilustre jurista e senador baiano, Josaphat Marinho, resolveu dar andamento ao projeto e aprová-lo, vinculando seu nome ao Código, como ocorrera com outro eminen- te baiano, Ruy Barbosa, no Código de 1916. O tempo, porém, urgia, era curto, o que impôs um trabalho superficial, aprovado a “toque de caixa”, como diria minha avó, resultando uma peça prenhe, por isso, de defeitos. Acrescente-se a isso o fato de que o ilustre mestre baiano era notável constitucionalista, mas, ao que parece, pouco afeito aos problemas, aos métodos, à terminologia e aos conceitos do Direito Civil. Da mesma deficiência, com a devida vênia, parecia padecer o grupo que o assessorou. Resultado: a parte do projeto relativa ao Direito de Família continha tanto descompasso com a nova ordem constitucional que era, mani- festamente, imprestável. Sobre isso, há um fato histórico que merece destaque. O Senado devolvera à Câmara dos Deputados o Projeto que aprovara. Então, a presidência da Câmara dos Deputados dirigiu ao Presidente da OAB, à época o ilustre advogado Reginaldo Oscar de Castro, pedido, com urgência urgentíssima, de uma manifestação da Ordem sobre o texto do Projeto de Código Civil que acabara de ser recebido (anote-se que os artigos do projeto não haviam sido ainda renumerados, em razão de modificações e inclusões de novos dispositivos). Fomos designados, juntamente com o eminente civilista e Professor Alfredo de Assis Gonçalves, ilustre Conselheiro Federal pelo Paraná, para que, com a mesma rapidez, proferíssemos parecer analisando- -o. Nas poucas horas de que dispúnhamos, elaboramos breve parecer em que enfatizamos os defeitos mais gritantes do projeto, inclusive uma dezena de inconstitucionalidades, notadamente, na área do Direito de Família, que pudemos detectar no exame perfunctório que nos fora possível fazer. A situação era tão grave que não tivemos outra alternativa senão recomendar o arquivamento do projeto pela Câmara, considerando que, o texto inicialmente por ela aprovado, em razão dos muitos anos de defasagem, não poderia ser ressuscitado, e da mesma forma era imprestável o do Senado. Esse nosso parecer sofreu uma reação em despropositado artigo do eminente Professor Miguel Reale (Presidente da Comissão que elaborara originalmente o Projeto de Código), publicado no jornal Estado de São Paulo, em que criticando a nossa sugestão, opinou pela aprovação do projeto, mesmo reconhecendo todos seus defeitos, deixando-os para corrigir durante a sua vacatio legis). E foi o que aconteceu. O Congresso Nacional, para contornar o problema diante das objeções que pusemos e nosso parecer (anote-se que a Comissão revisora do projeto presidida pelo Deputado pernambucano Ricardo Fiúza - que também não entendia nada de direito, especialmente civil - não fez referência expressa, em seu relatório, a essa participação da OAB, embora tenha agradecido, genericamente, a colaboração da Ordem, como fez em relação a outras entidades), aprovou a Resolução, nº 1/2000, que, acrescentando dispositivos ao Regimento Comum do Congresso, alterou o processo legislativo, dispondo que o projeto de Código que esteja em tramitação no Congresso Nacional há mais de três legislaturas será, antes de sua discussão final na Casa que o encaminhara à sanção, submetido a uma revisão para que adequar-se às alterações constitucionais e legais promulgadas desde sua propositura. A solução, embora inteligente, foi inadequada em face de sua manifesta inconstitucionalidade, resultante do fato de haver modificado o processo legislativo constitucio- nal mediante resolução. Se o Congresso houvesse aprovado uma emenda constitucional, mesmo que fosse transitória, especialmente para o caso desse Projeto estaria correto. Mas, por meio de resolução, a nosso ver, viciou-se o próprio Código. Se o Código foi aprovado dessa forma, e assim o foi, ele próprio está viciado por inconstitucionalidade formal, sem dúvida alguma. Não tenho dúvida nenhuma. Pois bem, sem querer entrar na apreciação de outros defeituosos aspectos do Código, mas fazendo uma análise tão somente do tratamento que o legislador dispensou à união estável, tem-se a certeza de que ficou ela esquecida durante todo o tempo em que se desenvolveram os trabalhos de revisão do projeto, parecendo que somente foi lembrada no último momento, quando já estava estruturado todo o Direito de Família. Em verdade, regularam-se o casamento e seus efeitos; regraram-se as relações de parentesco; normatizaram-se as relações pessoais e patrimoniais. So- mente depois de tudo isso, ao final do Livro IV do Direito de Família, tratou-se, avaramente, da união estável, reproduzindo-se, praticamente, a parca e deficiente legislação já vigente. No Livro V, do Direito das Sucessões, por exemplo, os direitos sucessórios dos companheiros, ao invés de estarem regulados no capítulo relativo à “Ordem da Vocação Hereditária”, como tecnicamente correto, foram normatizados, inadequadamente, no capítulo das disposições gerais. E mais: atribuiu-se ao convivente condição de herdeiro diferente da que se 156 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões Por isso, parece correto afirmar, fazendo uma comparação analógica com os deveres dos cônjuges no matrimônio, que, como a infidelidade conjugal, a vida em domicílios diversos, a falta de mútua assistência, de respeito e consideração mútuos e sustento guarda e educação dos filhos jamais tiveram o efeito de descaracterizar o casamento. Constituem, em essência, inadimplemento de deveres que podem acarretar consequências no plano da eficácia e, eventualmente, segundo a vontade do casal ou de um deles, a possibilidade de desfazimento do vínculo matrimonial. Da mesma forma, a falta de lealdade, de respeito e de assistência mútuos entre os conviventes, e de guarda, sustento e educação dos filhos são descumprimentos de deveres e também não são circunstâncias bastantes a desfigurar a união estável. (ii) Vida em comum sob o mesmo teto (=coabitação). Esse tema merece destaque, embora a ele já tenhamos, mesmo a vol d’oiseau, nos referido acima. Não constitui dado necessário à caracterização dos pressupostos da publicidade, da continuidade e da duração da união que os conviventes vivam sob o mesmo teto. A coabitação (nesse sentido) não é requisito para haver uma união estável. Com efeito, a realidade dos hábitos hoje cultivados por casais (unidos ou não pelo matrimônio) mostra que alguns preferem viver sob tetos diferentes, sem que tal situação implique ruptura dos laços matrimoniais ou mesmo simples inadimplência dos deveres conjugais (apesar de o Código Civil alinhar essa exigência como dever dos cônjuges). Daí se pode concluir que não há por que exigir-se dos conviventes que tenham, necessariamente, a mesma morada para que se caracterize a união estável, mesmo porque tal situaçãonão constitui garantia de que debaixo daquele teto exista, efetivamente, um casal. É expressiva a lição de Zeno Veloso,37 motivo pelo qual a reproduzimos, in litteris: Porém, a lógica jurídica não é a lógica das ciências exatas, não é a lógica dos teoremas, das fórmulas do mundo físico. É a sociedade que faz o Direito, e não o contrário. E não se pode deixar de observar um comportamento no meio social, representado por pessoas que convivem, assumem ostensivamente a posição de marido e mulher, de companheiro e companheira, mas em casas separadas. Nem por isso se pode dizer que não estão casados; nem só por isso se pode concluir que não há união estável. Se o casal, mesmo morando em locais diferentes, assumiu uma relação afetiva, se o homem e a mulher estão imbuídos do ânimo firme de deferiu ao cônjuge. Mas, não somente aí há exemplos de esquecimento do instituto. No corpo do Código mal se fala na união estável. Apenas um ou outro dispositivo menciona o companheiro ou a companheira. Vejam- -se, por exemplo, os arts. 25, 27, I, 30, § 2º, 33, 1.736 e 1.768, do Código Civil, em que se menciona cônjuge, olvidando-se os conviventes. Em palestras que proferimos sempre ressaltamos que, por seus defeitos, o Código precisaria ser construído pela doutrina e a jurisprudência, como efetivamente vem sendo feito. 37 VELOSO, Zeno; VILAÇA, Álvaro (Coord.). Código Civil comentado: direito de família, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela: arts. 1.694 a 1.783. São Paulo, Atlas, 2003, v. XVII, p.114. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 157 constituir família, se estão na posse do estado de casados, e se o círculo social daquele par, pelo comportamento e atitudes que os dois adotam, reconhece ali uma situação com aparência de casamento, tem-se de admitir a existência de união estável. Acrescente-se, finalmente, tomando o vocábulo coabitação sob outro de seus significados, não é essencial a existência de relações sexuais entre os conviventes para que se configure a união estável. Se conscientemente o casal decide viver uma relação platônica, portanto, somente afetiva, sem sexo, é decisão tomada dentro do âmbito da liberdade de cada um, que não desfigura a convivência como uma família. Destaque-se que, no matrimônio, entre os deveres que constituem o conteúdo eficacial de sua relação jurídica, inclui-se um dever dos cônjuges de manterem relação sexual. Trata-se, sem dúvida, tão somente de um dever que, por essência, não se reveste de impositividade, que somente existe quando há obrigação.38 Por ser um dever, sua inadimplência não afeta a existência do fato jurídico, embora possa acarretar sua desconstituição (anulação do casamento por erro, se a esposa, ou o esposo, se recusa definitivamente, por convicção pessoal, a manter relações sexuais, por exemplo). 5 NATUREZA DO FATO JURÍDICO DA UNIÃO ESTÁVEL 5.1 Ato-fato jurídico? O suporte fáctico da união estável se compõe por (a) um elemento subjetivo consubstanciado no objetivo de constituição de família, e (b) uma situação fáctica materializada na união pública, contínua e permanente de duas pessoas que não sejam impedidas de casar em razão de impedimento dirimente absoluto, exceto se, sendo casada, estiver separada de fato do cônjuge (Código Civil, art. 1.723, § 1º in fine). A estrutura desse suporte fáctico pode levar, e tem levado, frequentemente, doutrinadores a classificar o fato jurídico da constituição de união estável39 como um ato-fato jurídico, 38 Sobre dever e o caráter impositivo da obrigação, MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, § 37. Ao que nos parece o vetusto débito conjugal que imporia à mulher a obrigação de submeter-se aos desejos sexuais do marido, não existe. É coisa do passado. Basta lembrar a admissão de estupro da esposa pelo marido, e vice-versa, resultante da nova redação dada ao artigo 226, inciso II, do Código Penal, pela Lei n. 11.106/05 (que prevê causas de aumento da pena para o crime de estupro e demais crimes contra a dignidade sexual), in verbis: "Art. 226. A pena é aumentada: [...] II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela." 39 Constituição da união estável é a denominação do fato jurídico que tem por eficácia jurídica a união estável. 158 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões dando-se relevância à situação fáctica resultante da conduta humana que se receberia como avolitiva. Tal solução, porém, parece-me ser absolutamente incorreta. Com efeito, conforme visto antes, por definição, a espécie ato- fato jurídico se caracteriza pela circunstância de que, como decorrência necessária de uma conduta (=ato humano) se materializa uma situação de fato irremovível. Isso implica dizer que o fato que integra seu suporte fáctico só ocorre se houver uma conduta que o faça acontecer. Há, portanto, um determinismo natural absoluto presente na relação (fáctica) conduta-fato, donde ser essencial considerá-la rente à natureza, de modo que a vontade eventualmente existente para a realização da conduta é desconsiderada: a conduta humana é recebida pelo direito sempre como avolitiva. Em razão disso, toda vez que a norma jurídica prevê exteriorização consciente de elemento volitivo na composição do núcleo do suporte fáctico, não há ato- fato, mas ato jurídico lato sensu.40 E ainda. No ato-fato o conteúdo de sua eficácia é predeterminado pela norma, sem possibilidade de que seja ampliado ou reduzido pelo exercício de poder de autorregramento da vontade. Na caça, na pesca, na especificação, na confusão, na comistão,41 na descoberta do tesouro, na usucapião, por exemplo, são atos-fatos cuja eficácia jurídica consiste na aquisição da propriedade do bem. Eventualmente, quando alguns são ilícitos, acarretam dever de indenizar. Em algumas espécies, diferentemente, como a prescrição, a decadência (=caducidade) e a preclusão, sua eficácia é deseficacizante, porque encobrem ou extinguem a eficácia do fato jurídico por elas atingidos. Não cabe aos sujeitos ajustá-los segundo suas vontades. Finalmente, uma última objeção que fulmina a ideia de que se possa considerar a constituição de união estável um ato-fato jurídico da espécie ato real (categoria onde se poderia classificá-la) consiste em lembrar que é plena (=ilimitada) a capacidade de praticar ato-fato jurídico.42 No entanto, é incapaz para constituir união estável os menores de 16 anos. 40 Lê-se em Pontes de Miranda: “Ato humano é o fato produzido pelo homem; às vezes, não sempre pela von- tade do homem. Se o direito entende que é relevante essa relação entre o fato, a vontade e o homem, que em verdade é dupla, (fato, vontade-homem), o ato humano é ato jurídico lícito ou ilícito, e não ato-fato, nem fato jurídico stricto sensu. Se, mais rente ao determinismo da natureza ao ato é recebido pelo direito como fato do homem (relação “fato,homem”) com que se elide o último termo da primeira relação e o primeiro da segunda, pondo-se entre parêntese o quid psíquico, o ato, fato (dependente da vontade) do homem, entra no mundo jurídico como ato-fato.” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t.II, § 209, 2) 41 O Código Civil de 2002, no L. III, Tít. III, Cap. III, tanto no título da Seção VI, como nos arts. 1.273 e 1.274, registra o fato jurídico da comissão. Há um erro, a palavra correta é comistão (como constava do Código de 1916), que significa mistura de matérias diversas, com, o não, surgimento de espécie nova. 42 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, § 23, 2. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 159 5.2 União estável como ato jurídicolato sensu Na espécie união estável, a norma jurídica prevê como integrantes do núcleo de seu suporte fáctico: (a) a existência de condutas conscientes de duas pessoas que estabelecem uma convivência afetiva pública, permanente e duradora; (b) a exigência de que essa convivência tenha o objetivo de constituir família; e (c) a possibilidade de que os conviventes possam exercer o poder de autorregramento da vontade, regulando, dentro de certa amplitude, o conteúdo eficacial da relação jurídica que se estabelece, não parece ser possível classificá-la como ato-fato jurídico. Bem analisada a estrutura desse suporte fáctico, sua natureza de ato jurídico lato sensu lícito ressalta inquestionável. Contudo, em qual das duas espécies de atos jurídicos lato sensu lícitos pode-se situá-la: ato jurídico stricto sensu ou negócio jurídico?43 5.3 A união estável como negócio jurídico Na primeira edição deste artigo propusemos classificar a união estável como ato jurídico stricto sensu compósito, considerando que haveria um ato volitivo que se completaria como a situação fáctica da convivência. Uma melhor análise do tema nos levou, porém, a concluir que havia um grave equívoco nesse entendimento, máxime porque são características irremovíveis do ato jurídico stricto sensu: (a) não poder ser bilateral. Em verdade, a unilateralidade é indispensável quando se trata de ato jurídico stricto sensu, mesmo porque seus suportes fácticos se compõem, sempre, de manifestações unilaterais de vontade que consistem em reclamações ou provocações para que alguém faça alguma coisa (ação ou omissão), ou comunicações, ou exteriorizações de representação ou de sentimento, ou que apenas mandam que se pratique uma ação ou omissão, e outras não autônomas que se completam com uma situação fáctica para integrar seu suporte fáctico; (b) nem conter determinações inexas (=termos e condições). 43 Na 22ª edição de nosso Teoria do fato jurídico: plano da existência (2019), incluímos a nota n. 201, com o seguinte teor: Em edições anteriores dávamos como exemplo de ato jurídico stricto sensu compósito a união estável. Revimos essa posição, chegando à conclusão de que se trata de negócio jurídico em cujo suporte fác- tico há (a) uma manifestação de vontade não bastante em si, (b) que se completa com o ato-fato da convivência pública, permanente e contínua. Sobre essa espécie de ato jurídico. Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, § 44. 160 REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões Diante disso, parece-nos indiscutível que se trata de negócio jurídico bilateral de Direito de Família, cujo núcleo do suporte fáctico tem como elemento cerne exteriorizações de vontade de duas pessoas de estabelecerem uma convivência afetiva como se casados fossem, a que se somam, como elementos completantes: (i) a situação fáctica de ser a convivência pública, contínua e duradoura; (ii) a inexistência de impedimento dirimente absoluto para casar de ambos os conviventes, salvo se, sendo já casados, estejam separados de seu cônjuge; e, por fim, (iii) o objetivo de constituir uma família. Dessa configuração resulta à evidência que o suporte fáctico do fato jurídico da constituição de união estável se concretiza com sucessividade, continuadamente, como um processo,44 em razão mesmo da natureza dos fatos que o integram (= pressupostos da continuidade e da duração da relação afetiva). Por isso, a vontade em estabelecer a união estável pode não existir no momento em que se inicia a relação afetiva, mas tornar-se realidade no andar do tempo. Contudo, parece indiscutível, que a continuidade pública, contínua e duradora da convivência afetiva torna clara haver uma exteriorização consciente de vontade, uma conduta, necessariamente, volitiva, portanto. Ninguém estabelece uma relação afetiva duradoura, continuada e pública, como casal, sem querer. É possível até que, de início, o relacionamento não tenha o intento de estabelecimento de uma união estável, mas parece inadmissível que alguém inicie e mantenha um relacionamento afetivo público, contínuo e duradouro sem que tenha o intuito de fazê-lo. Há, em verdade, uma manifestação de vontade que é bastante à concreção do suporte fáctico, ex vi do princípio da liberdade de forma (Código Civil, art. 107) e da inexistência de exigência normativa de que essa vontade seja declarada (=exteriorização qualificada que exige, em geral, o seja por meio de uma formalidade qualquer). Todavia, não é somente por isso que a constituição da união estável é um negócio jurídico. Com efeito, o que tipifica o negócio jurídico não é somente a circunstância de haver uma exteriorização consciente de vontade na concreção do suporte fáctico. O ato jurídico stricto sensu também se caracteriza por ter uma vontade externada como cerne de seu suporte fáctico. Sem dúvida, o que distingue o negócio jurídico dos demais fatos jurídicos é, fundamentalmente, a atribuição que o sistema jurídico faz às pessoas do poder de escolha da categoria jurídica e, nos limites que estabelece, de estruturar o conteúdo das relações jurídicas dela resultantes (=poder de autorregramento 44 Processo, por definição, é um conjunto de atos e fatos que se concretizam ordenadamente no tempo. REVISTA IBDFAM - Famílias e Sucessões 161 da vontade, também dito de autonomia da vontade, autonomia privada). No ato jurídico stricto sensu não há esse poder, nem nos atos-fatos, ou nos fatos jurídicos stricto sensu e, menos ainda, nos fatos ilícitos lato sensu. Na espécie constituição de união estável, sem dúvida, o sistema jurídico outorga às pessoas tanto a liberdade de escolha em constituí-la ou não, optando entre ela e o casamento (outro negócio jurídico que tem estrutura do suporte fáctico semelhante ao dela), bem como o poder regular o conteúdo das relações jurídicas patrimoniais que por ela são geradas. Poder-se-ia objetar a essa afirmativa perguntando que poder de autorregramento é esse tão limitado? Um poder de autorregramento com amplitude análoga à do casamento, é a resposta. Com efeito, o poder de autorregramento da vontade no matrimônio se circunscreve, basicamente, à escolha em casar e em eleger o regime de bens, todos já exaustivamente regulamentados.45 Na união estável, da mesma forma, o poder de autorregramento se restringe querer o estabelecimento da convivência afetiva, facultando-se aos conviventes a liberdade de estruturar, mediante outro negócio jurídico específico, as relações patrimoniais que regerão a união estável, aplicando-se, em caso de não haver exercício dessa faculdade, o regime da comunhão parcial de bens (Código Civil, art. 1.725). A semelhança entre as duas espécies ressalta evidente. A exigência normativa de que tenham os conviventes o objetivo de constituir família, não é mais do que a explicitação do animus implícito que, em regra, conduz os nubentes ao casamento: constituir uma família. Desde priscas eras e até bem pouco tempo, como mostra a História, a família havida fora do matrimônio era considerada espúria e, por isso, socialmente rejeitada. O objetivo de constituir uma família reconhecida pela sociedade (=legítima ou legitimada, como se costumava denominar) estava, e ainda está implícito no ato de casar. Assim, em rigor, nesses aspectos, casamento e união estável são iguais. Distinguem- nos, em essência, como se formalizam os suportes fácticos dos dois institutos: solenemente no casamento, informalmente na união estável. Leve-se ainda em consideração que não é a amplitude do poder de autorregramento caracteriza o negócio jurídico. Se há faculdade de escolha, por mínima que seja, há poder de autorregramento da vontade e, portanto, negócio jurídico. Há mais. Por não se constituir a união estável por meio de um ato formal, com registro público que, por isso, quando
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