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LITERATURA POPULAR U1 P3

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LITERATURA 
POPULAR
Alessandra Bittencourt Flach
A oralidade e a escritura
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
 � Estabelecer aproximações entre a oralidade e a escritura.
 � Reconhecer as especificidades do texto oral.
 � Identificar as marcas da oralidade no texto escrito.
Introdução
Um dos aspectos mais interessantes e característicos da poesia po-
pular é a referência à oralidade, presente mesmo nos textos escritos. 
Como você deve saber, a cultura popular é assim definida em rela-
ção a uma cultura erudita. Em geral, a ideia de “povo” está associada 
a uma cultura iletrada ou que não domina plenamente os códigos 
linguísticos da norma culta. Historicamente, essa distinção entre po-
pular e erudito a partir da oposição entre oral e escrito levou a uma 
valorização da segunda forma com a mais nobre e complexa. Neste 
texto, você vai aprender que a oralidade está na origem de toda 
forma de literatura e, ainda hoje, mesmo em culturas plenamente 
letradas, tem presença marcante.
No princípio, era a palavra: as origens orais 
da literatura
Os mais antigos registros de culturas – em qualquer parte do mundo – re-
metem ao canto e à dança. Essas práticas coletivas estavam associadas aos 
rituais religiosos e às festas de colheita. Aí está, por exemplo, a origem da tra-
gédia grega, surgida nas festas em homenagem a Dionísio (ou Baco), o deus 
grego das festas e dos ciclos da vida. Inicialmente uma homenagem ao deus 
feita por meio de cantos e danças, a tragédia foi se consolidando como um 
gênero dramático de grande relevância, inclusive para a história da literatura.
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Nos períodos do Renascimento e do Classicismo, as tragédias gregas serviram de mo-
delo para as tragédias modernas. Elas atingiram seu ápice com autores como Shakes-
peare e Racine. Também se tornaram símbolos de erudição, apreciadas entre as elites. 
No entanto, sua origem está na Grécia Antiga, em festas populares.
Hoje em dia, estamos imersos na cultura escrita. Nossa comunicação 
passa, necessariamente, pelo registro escrito. Raras comunidades ainda 
podem ser consideradas totalmente ágrafas. Mesmo assim, a oralidade – a 
mais primordial forma de comunicação e interação – tem espaço garantido 
em nossas práticas sociais.
Mais especificamente em relação à literatura, a oralidade tem espaço nas 
rodas de contação de histórias, nos saraus, nos repentes, nas adivinhações. O 
jogo de palavras, sua sonoridade, o efeito da voz, tudo isso compõe um estilo 
literário bem específico. Na literatura popular, de modo especial, esse estilo 
tem grande expressividade.
É claro que, com o avanço da escrita, ao longo dos séculos, ocorreram 
mudanças significativas nos processos de uso e valorização da oralidade. Em 
culturas antigas, por exemplo, a palavra proferida pelo xamã, pelo pajé ou 
pelo sábio tinha valor de lei. Hoje, nossos sistemas “legais” não prescindem 
do documento escrito.
Para que você perceba o quanto a oralidade está presente na literatura 
escrita, vamos mencionar duas obras clássicas da literatura universal cuja im-
portância para as sociedades ocidentais é inquestionável: A Ilíada e A Odis-
seia. Desde a origem desses textos, há um mistério sobre sua autoria. Ela cos-
tuma ser atribuída ao poeta grego Homero. Mas quem foi ele? Pouco se sabe 
sobre sua vida, ou mesmo se ele existiu de verdade. Há, inclusive, a hipótese 
de que Homero fosse cego, um poeta popular que transmitia (oralmente) essas 
histórias, até que alguém as fixou pela escrita.
A questão homérica, como ficou conhecida essa polêmica, levou muitos 
pesquisadores a desenvolverem teorias sobre o processo de composição 
dessas epopeias. Havia certa resistência em reconhecer a origem oral dessas 
importantes obras.
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Figura 1: Presente de grego: as epopeias gregas A Ilíada e A Odisseia 
narram a guerra de Troia, ocorrida provavelmente entre 1.300 e 1.200 
a.C. Nessa batalha, o herói grego Ulisses (ou Odisseu, em grego) manda 
construir um cavalo gigante de madeira, com o qual presenteia os troia-
nos. O que os troianos não sabiam era que, no interior do cavalo, havia 
inúmeros soldados gregos, que invadiram e destruíram Troia.
Fonte: Leremy / Shutterstock.com
Muito recentemente, estudiosos concluíram que, em A Ilíada e A Odis-
seia, há fortes indícios de um método oral de composição. Ou seja, o tipo de 
verso, as repetições, os epítetos, entre outras evidências, indicam um processo 
de composição oral. As histórias eram repetidas de memória, seguindo certo 
padrão mnemônico.
O termo mnemônico é utilizado para designar técnicas que auxiliam na memori-
zação de informações.
Por que essa descoberta é revolucionária? Porque o fato de obras tão va-
lorizadas nos círculos literários (nos quais a escrita era soberana) terem uma 
origem oral eleva a importância de uma literatura de transmissão oral. Além 
disso, indica uma relação estreita entre a oralidade e a literatura erudita e 
escrita, diferentemente do que se pensava até então.
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Basicamente, a origem oral desses textos indica a possibilidade de existir 
uma sistemática complexa e refinada nas produções orais. Até então, a litera-
tura oral era vista como mais simples, menos dotada de artifícios. Os poetas 
orais eram considerados menos hábeis em suas composições.
No processo de evolução e transformação da comunicação e da literatura, a escrita 
consolidou seu espaço. Contudo, isso não significa que ela tenha substituído ou supe-
rado a literatura de tradição oral. Trata-se de dois meios de expressão artística, os quais 
se cruzam com mais frequência do que imaginamos.
Oralidade e performance
Quando você reflete sobre a literatura oral, precisa destacar dois aspectos 
– de um lado, a materialização de uma voz e de um corpo que comunicam; 
de outro, a presença e a intervenção do ouvinte no momento em que o 
texto se constitui.
Se você pensar no processo de produção de um texto cuja origem e divul-
gação se deem na escrita, vai perceber que seu autor produz segundo cara-
terísticas e modelos que considera adequados ao fim daquela obra. Ele tem 
em vista um público leitor a quem dirige seu texto. Trata-se de um trabalho 
individual e solitário.
A realização plena desse texto se dá no momento em que é recebido pelo 
leitor e, efetivamente, lido. Ainda que tenha interpretações diversas e sentidos 
que podem se ampliar, o mesmo texto escrito pode ser lido diversas vezes, 
pelo mesmo leitor e/ou por vários leitores, que irão se deparar sempre com a 
mesma sequência linguística.
Um texto oral se constrói na presença do ouvinte, leva em conta as reações 
deste e, ainda, incita-o a participar do processo composicional. Na oralidade, 
esse processo constitui um momento único, irrepetível. É impossível replicar 
aquele mesmo instante comunicativo do mesmo modo.
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Performance é o nome que utilizamos para definir o momento da enunciação da 
literatura oral. A performance envolve todos os recursos utilizados pelo contador de 
história no momento em que profere suas palavras, entre eles o espaço, os gestos, os 
sons do ambiente, o olhar e, principalmente, a voz. O som da voz, por si só, possui certo 
poder encantatório. O som sempre exerce um poder. Portanto, não só aquilo que é 
dito, mas também o modo de dizer compõe os sentidos da história, que é transmitida 
e recebida ao mesmo tempo, aqui e agora.
No texto oral, ao contrário do que ocorre no texto escrito, não se pode 
repetir a mesma sequência de palavras exatamente do mesmo jeito. Embora a 
história seja a mesma, por exemplo, quem a conta recorre à memória, impro-
visando certas partes, incluindo novos componentes, sendo influenciado por 
outras reações dos ouvintes.
A ideia de autoriatambém precisa ser considerada em suas especifici-
dades no que se refere à oralidade. Muitas das histórias orais que conhecemos 
(e repetimos!) não têm um autor conhecido, já que adquirem sempre uma nova 
versão conforme são contadas. Em certa medida, há uma autoria coletiva, 
uma vez que os textos orais vão sendo contados e recontados. Mas, como 
cada performance é única, não se pode minimizar o talento de cada um que se 
apropria desses textos e dá vida a eles por meio de sua voz.
O interesse e as características dos ouvintes também interferem no modo 
de contar e precisam ser contemplados por quem conta a história. Imagine 
como seria desagradável se a história contada não atraísse a atenção do pú-
blico ou o tema não fosse de seu interesse.
Mais do que na literatura erudita, na literatura popular, o público a quem 
o texto se dirige é plenamente conhecido (está diante de quem fala). Como 
sabemos, os exemplos e os costumes contidos nos textos populares devem 
atender às expectativas daqueles a quem se destinam, devem transmitir co-
nhecimentos, interferindo, de algum modo, na vida de quem ouve as histórias.
A seguir, você vai ler duas versões de um conto popular chamado “A for-
miga e a neve”. Ambas foram registradas em livros, mas circulam por aí por 
meio da oralidade.
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Conto 1
Uma formiga prendeu o pé na neve.
“Ó neve, tu és tão forte que o meu pé prendes!”
Responde a neve: “Tão forte sou eu que o Sol me derrete”.
“Ó Sol, tu és tão forte que derretes a neve que o meu pé prende!”
Responde o Sol: “Tão forte sou eu que a parede me impede”. [...]
“Ó carniceiro, tu és tão forte que matas o boi, que bebe a água, 
que apaga o lume, que queima o pau, que bate no cão, que mor-
de o gato, que come o rato, que fura a parede, que impede o Sol, 
que derrete a neve que o meu pé prende!”
Responde o carniceiro: “Tão forte sou eu que a morte me leva”.
(COELHO, 1999, p. 85-86.)
Conto 2
Uma vez uma formiga foi ao campo e ficou presa num pouco de 
neve. Então ela disse à neve: “Oh, neve, tu és tão valente que meu 
pé prendes?” A neve respondeu: “Eu sou valente, mas o sol me 
derrete”. Ela foi ao sol e disse: “Oh sol, tu és tão forte que derretes 
a neve, a neve que meu pé prende?” O sol respondeu: “Eu sou 
valente, mas a nuvem me esconde”. [...]
Vai ao homem: “Oh, homem, tu és tão valente que matas a onça, 
que devora o cachorro, que bate no gato, que come o rato, que 
fura a parede, que para o vento, que desmancha a nuvem, que 
esconde o sol, que derrete a neve que meu pé prende?” – “Eu 
sou valente, mas Deus me acaba. Foi a Deus: “Oh, Deus, tu que és 
tão valente que acabas o homem, que mata a onça, que devora 
o cachorro, que bate no gato, que come o rato, que fura a pare-
de, que para o vento, que desmancha a nuvem, que esconde o 
sol, que derrete a neve que meu pé prende?” Deus respondeu: 
“Formiga, vai furtar”. Por isso é que a formiga vive sempre ativa 
e furtando.
(ROMERO, 1985, 108-109.)
A história narrada nos dois contos é bem conhecida. Inclusive, a estrutura 
de conto cumulativo é um recurso próprio da oralidade, uma espécie de desafio 
à memória. A estrutura formular favorece a memorização e o encadeamento. 
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Mesmo sendo textos narrativos, você pode perceber neles certo ritmo, dado tanto 
pelas repetições quanto pelas rimas (“tu és tão valente que meu pé prendes?”).
O primeiro conto foi coletado em Portugal. O segundo, no Brasil. Isso 
exemplifica a circularidade e a persistência da literatura popular, que vai se 
transformando e se adaptando ao longo do tempo e conforme a região.
Entre ambos os contos, você pode notar certas regularidades e, também, 
diferenças. O conto 2 tem um final um pouco diferente, inclusive com a expli-
cação sobre o motivo de a formiga estar sempre andando e carregando coisas.
Muito provavelmente, podemos atribuir essas diferenças às adaptações 
feitas pelos contadores das histórias, que levam em consideração o público a 
quem se dirigem e os hábitos do lugar. No conto português, há uma referência 
ao “carniceiro”, ou açougueiro, termo pouco usado no Brasil. Na versão bra-
sileira, temos a “onça” como elemento regional.
Como você pode constatar, a oralidade requer certa reprodução de formas 
fixas (como a sequência previsível nos contos), mas também envolve a memória, 
que adapta e recria essas formas, de modo a encantar e conquistar os ouvintes.
As fórmulas orais na escrita
À medida em que compreende as relações entre oralidade e escrita, você precisa 
considerar as diferentes presenças da oralidade no texto. Assim, fique atento à 
seguinte divisão, que tem fins didáticos: literatura exclusivamente oral, lite-
ratura oral com registro escrito e literatura escrita com influência da ora-
lidade.
Literatura exclusivamente oral
É aquela transmitida de pessoa a pessoa, envolvendo a performance. Mesmo 
que as histórias sejam conhecidas e repetidas, possuem fontes diversas e não 
têm registro escrito ou autoria definida. Toda vez que um grupo de pessoas se 
reúne para ouvir uma história, estamos diante desse tipo de literatura, que se 
produz no instante da interação. O registro mais fiel, porém não plenamente 
completo, seria em vídeo.
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Literatura oral com registro escrito
Envolve as produções orais que são fixadas em coletâneas, antologias. Em 
geral, são histórias de amplo conhecimento, com várias versões. Seu registro, 
apesar de manter resquícios da oralidade, conta com a intervenção de quem 
faz a coleta (que não é, necessariamente, seu autor). Assim, essa pessoa pode 
optar, por exemplo, por utilizar a norma culta da língua ou uma variação mais 
coloquial.
Nesse item, podemos incluir as leituras coletivas, ou seja, aquelas leituras 
feitas a partir de um livro, destinadas à audiência de um grupo. No Brasil, por 
exemplo, no período colonial, as grandes fazendas dispunham de enormes li-
vros com romances populares (importados da Europa). Como quase ninguém 
sabia ler, sempre que alguém se dispunha a fazê-lo, recebia a atenção de todos. 
Daí em diante, as pessoas iam repetindo oralmente as histórias que ouviram 
ler. Essa é uma das hipóteses que explica a existência de tantas narrativas 
envolvendo temas medievais no Brasil, onde, sabidamente, a cultura medieval 
não existiu.
Veja um trecho desses romances medievais que circulavam aqui no Brasil 
pela tradição popular dos cantadores:
O cavaleiro Roldão
Carlos Magno era irmão
De uma gentil donzela
Não houve naquele tempo
Outra que fosse mais bela
Era o orgulho da França
E Berta era o nome dela
Religiosa e composta
Das belezas corporais
Cheia de mil perfeições
Dos dons espirituais
E por isso o seu irmão
Gostava dela demais
Todos os príncipes vizinhos
Desejavam sua mão
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Queriam mas tinham medo
Do poder de seu irmão
Ela empregou amizade
Ao senhor duque Milão. 
(PROENÇA, 1986, p. 314.)
Os versos se referem à lenda de Roldão (também conhecido como Ro-
lando), na época da dinastia carolíngia, no século VIII. Na Europa, é famoso 
o poema épico La chanson de Roland, sobre o mesmo motivo.
É interessante você notar como esse tema, que circulava entre as elites das 
sociedades medievais como um elogio das virtudes do herói, chega à forma 
popular em um país cuja tradição cavalheiresca não se desenvolveu.
Literatura escrita com influências da oralidade
Nesse caso, podemos falar em autoria. Um escritor recorre a temas e formas 
da tradição oral para compor uma versão escrita. Nesse tipo de texto, é pos-
sível identificar, além de temas populares, algumas marcas da oralidade, 
como referências aos interlocutores, repetições, rimas, reprodução de sons. 
Um exemplo desse tipo de produção são as obras eruditas que buscam na 
tradição popular elementos para compor seus textos.O escritor pernambu-
cano Ariano Suassuna recorreu à literatura popular para compor personagens 
como João Grilo e Chicó, da peça teatral Auto da Compadecida. João Grilo é 
um tipo muito recorrente nas histórias orais. Suassuna recria suas caracterís-
ticas populares de malandragem e esperteza. Mas também usa a repetição da 
fórmula “Não sei, só sei que foi assim” toda vez que Chicó conta uma história 
pouco provável de ter acontecido. Isso é uma clara referências às situações 
orais de contação de histórias.
Os temas populares, que ultrapassam gerações e territórios, persistem em 
nosso imaginário porque falam sobre a vida e sobre comportamentos de um 
modo que ainda hoje é significativo. Porém, como estamos acostumados a 
confiar no escrito, deixamos, muitas vezes, de exercitar a memória auditiva e 
as potencialidades da voz.
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Na literatura de tradição oral, como você leu há pouco, o modo de contar é tão 
significativo quanto aquilo que é dito. Talvez por isso não nos importemos de ouvir a 
mesma história contada mais de uma vez. A performance é o que garante que a expe-
riência seja única.
O discurso oral é marcado pelas fórmulas – recurso que favorece a fixação 
de uma ideia ou conceito. Há, portanto, certos padrões rítmicos. Eles são for-
mados por repetições, antíteses, aliterações, assonâncias, epítetos, estruturas 
sintáticas e outras expressões formulares, que contribuem para a memori-
zação e a reprodução dos textos.
O início com “Era uma vez...” ou “Vou contar a história de um tempo 
muito distante...” sinaliza para o começo da história e demanda a atenção dos 
ouvintes. Já as fórmulas de encerramento denotam que, a partir daquele mo-
mento, essa atenção não será mais necessária: “E foram felizes para sempre...”; 
“Entrou por uma perna de pato, saiu por uma perna de pinto. Quem quiser que 
conte cinco”; “Vitória! Vitória! Acabou a história”.
As estruturas formulares no interior das histórias também garantem sua 
persistência e divulgação. Muitas delas têm três elementos: três aventuras, 
três objetos, como em “Um rei tinha três filhas...”. Veja o exemplo a seguir:
As três lebres
Havia n’outros tempos um rei que tinha uma filha, que dizia que 
só casaria com o homem que fosse capaz de inventar uma adi-
vinhação que ela não adivinhasse. Correram ao palácio muitos 
príncipes e fidalgos, mas todos se foram sem que as suas adivi-
nhações ficassem por adivinhar. Foi-se passando muito tempo e 
estas notícias corriam por muitas partes, até que chegaram aos 
ouvidos de certo aldeão muito esperto e ele ao saber isto dispôs-
-se logo a partir para o palácio, sem saber ainda o que havia de 
perguntar à princesa. Montou a cavalo, sem mais bagagem do 
que o seu livro de orações, e sem farnel de qualidade alguma. 
Durante o caminho teve fome, e sede, mas não havia ali em tal 
descampado nem comer, nem água; então o aldeão, olhando, viu 
morto no chão um coelho, tomou-o, e depois de o esfolar, fez 
uma fogueira do seu livro de orações, assou o coelho, e comeu-o. 
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A sede era, porém, cada vez maior; ele então fez correr muito o 
cavalo até que o suor lhe caía em bica; apanhou-o no seu chapéu 
e bebeu-o, e depois continuou a sua viagem. Chegado ao palácio 
viu muitos fidalgos, que perguntavam adivinhações, à princesa, 
e ela tudo adivinhava. Então ele depois de todos terem falado 
levantou-se e disse:
“Comi carne sem ser caçada
Em palavras de Deus assada;
Bebi água que não foi do céu caída,
Nem também na terra nascida.
Adivinhai agora, princesa, se de tanto sois capaz.”
Então a princesa disse que pedia três dias para adivinhar, pois era 
esta a que maiores voltas lhe havia fazer dar à cabeça. Ficou o 
aldeão no palácio à espera que a princesa adivinhasse; mas logo 
ao primeiro dia se foi ter com ele uma aia da princesa que lhe 
disse: “Explicai-me o que hoje perguntaste à princesa, e fazer-
-vos-hei tudo que me pedirdes.” Respondeu o aldeão: “Explicar-
-vos-ei tudo d’aqui a três dias, se me deixardes ficar esta noite no 
vosso quarto.” Disse logo a aia que sim, e fez uma cama no chão 
para o aldeão dormir n’ela. Deitou-se o aldeão, e a aia julgando 
que ele já dormia, deitou-se também; mas logo que viu que ela 
estava deitada, tirou-lhe uma saia que ela tinha despida, e saiu 
do quarto. No dia seguinte foi ter com ele outra aia da prince-
sa, a quem sucedeu o mesmo que à primeira. Finalmente, sem 
saber o que tinha sucedido às aias, foi a princesa ao terceiro dia 
ter com o aldeão, e ele disse-lhe também o mesmo que tinha 
dito às aias; mas em vez de tirar uma saia à princesa tirou-lhe o 
seu chambre de dormir que era de finas rendas. No quarto dia, 
logo de manhã, foi o aldeão explicar a adivinhação às aias e à 
princesa; e à hora em que a corte estava toda reunida para ou-
virem, a princesa respondeu logo: “A carne sem ser caçada, em 
palavras de Deus assada, era um coelho que encontraste morto 
no caminho, e que assaste no teu livro das orações. A água sem 
ser da terra nascida, nem do céu caída, era o suor do teu cavalo.” 
“É verdade, disse o aldeão.” Então o rei, levantando-se, ordenou 
ao aldeão que se fosse para a sua terra pois nada tinha a esperar. 
Mas ele disse logo. “Já que a princesa é tão inteligente, peço-lhe 
que adivinhe agora esta:
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Quando n’este palácio entrei
Três lebres encontrei,
Todas três esfolei;
E as peles d’elas mostrarei.”
Ia para mostrar as saias das aias e o chambre da princesa, mas 
esta levantou-se logo e disse: “Basta, basta, serás meu esposo, 
pois és o homem mais esperto que aqui tem vindo”.
(COELHO, 1999, p.193-195.)
Nesse conto, o número três se repete – três lebres, três dias, três encontros, 
três mulheres. Você também deve ter notado a linguagem cifrada das adivi-
nhas, que são consideradas estruturas formulares. Há, ainda, certa repetição 
e regularidade – vários pretendentes, várias adivinhações, o mesmo resultado; 
descrição das três noites, os pedidos das mulheres, a mesma resposta do aldeão. 
Quanto à linguagem, além das rimas nas adivinhas, a narrativa apresenta 
algumas repetições e aliterações: “inventar uma adivinhação que ela não adi-
vinhasse”; “todos se foram sem que as suas adivinhações ficassem por adi-
vinhar”; “perguntavam adivinhações, à princesa, e ela tudo adivinhava”; “as 
saias das aias”; “Basta, basta”.
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CASCUDO, L. da C. Literatura oral. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952.
CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. 13 ed. São Paulo: Global, 2003.
COELHO, A. Contos populares portugueses. 5 ed. Lisboa: Dom Quixote, 1999.
ONG, W. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Literatura popular em verso (antologia). Belo Horizonte/São 
Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1986.
ROMERO, S. Contos Populares do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1985.
SUASSUNA, A. Auto da compadecida. São Paulo: Agir, 1983.
Leituras recomendadas
FERNANDES, F. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo: UNESP, 2007.
ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

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