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Vitamina contra o nanismo estatal João Sicsú 05/10/2007 É FUNDAMENTAL analisar o Orçamento público e o tamanho do Estado, ou seja, sua capacidade de gerar bem-estar. Aparentemente, essas coisas estariam relacionadas: quanto maior o Orçamento, maior a capacidade do Estado de ofertar serviços e bens públicos de qualidade. Entretanto, a máxima "as aparências enganam" aplica-se aqui: o Orçamento no Brasil tem tamanho considerável, aproximadamente 40% do PIB, mas o Estado brasileiro sofre de nanismo. O tamanho do Orçamento mede-se pela carga tributária mais a capacidade de realização de déficits públicos. A carga tributária e o tamanho do PIB são as variáveis que explicam a arrecadação. Já a capacidade de endividamento depende, especialmente, da confiança do público na capacidade do governo de honrar a sua dívida. O nanismo de um Estado pode ser examinado por meio de uma variável-síntese: o número de fiscais da receita pública por 1.000 km2 de um país. O argumento é que a meticulosa arrecadação de impostos, o combate à sonegação e a criminalização de atividades econômicas ilícitas seriam necessários para sustentar um Estado -do ponto de vista moral e da necessidade de seu financiamento para realizar múltiplas atividades. Tais critérios são sempre arbitrários e passíveis de sofrer críticas. Mas é melhor utilizar algum critério, ainda que reconheçamos sua limitação. Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), para o ano de 2004, o Brasil possuía 0,9 fiscal para cada 1.000 km2 de território. Já a Bélgica possuía mais de 310 fiscais, a Holanda, 227, e o Japão, mais de cem. No ranking de países não pertencentes à OCDE, o Brasil ocupou a última colocação: o Estado brasileiro é o nanico da sua turma. A carga tributária brasileira elevada não deve ser considerada, a priori, como uma carga negativa. Uma carga tributária elevada é inaceitável somente quando ela é non-delivery, ou seja, não entrega o prometido: quando os impostos são altos e as ofertas públicas são precárias, isto é, quando paga-se uma elevada carga tributária e ainda se pagam caros planos de saúde e escolas privadas porque escolas e hospitais públicos não têm qualidade. Nessas ocasiões, a sociedade tende a desenvolver um sentimento antiestatal e a propaganda liberal do "Estado ineficiente" ganha ressonância. O Estado brasileiro é nanico porque o governo gasta de forma ineficiente e exagerada, pagando juros inaceitáveis relativos à divida pública. Entre 2003 e 2006, o Banco Central gerou para a União uma despesa nessa rubrica de aproximadamente R$ 600 bilhões. Se o BC tivesse economizado a metade, o governo federal poderia ter realizado dezenas de PACs já no primeiro mandato do presidente Lula. Uma "vitamina" que o Estado precisa tomar para superar o seu naniquismo é a contratação de fiscais, professores, engenheiros, médicos, pesquisadores e policiais. O governo não tem recursos para essa "vitamina" porque tem sido um gastador exuberante; desperdiça um volume enorme de recursos na forma de pagamento de juros, o que debilita o próprio Estado, acentuando seu nanismo. Por meio de concursos públicos e pagando salários dignos, o Estado poderia ser revigorado, absorvendo profissionais de alto nível para servir a sociedade que paga uma elevada carga tributária. Mas o que se vê é o Orçamento desperdiçado com gastos exorbitantes que não geraram empregos nem bem-estar. O governo precisa melhorar a qualidade do seu gasto, comprando "vitamina" no lugar de pagar juros não civilizados. JOÃO SICSÚ é diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor do Instituto de Economia da UFRJ. É autor do livro "Emprego, Juros e Câmbio" (Campus-Elsevier, 2007) e co-autor e organizador do livro "Arrecadação (de onde vem?) e Gastos Públicos (para onde vão?)", Boitempo Editorial, 2007. Excepcionalmente hoje não é publicado o artigo de LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS . A hora é do governo João Sicsú 01/11/2008 Gastar é preciso, viver não é preciso. Fernando Pessoa imortalizou a frase, a ele atribuída, "navegar é preciso, viver não é preciso". Muitos interpretam que o poeta deu à primeira sentença o sentido da razão, já que para navegar é preciso usar instrumentos, é preciso exatidão. A segunda não está relacionada ao desprezo pela vida. Ao contrário, a ênfase está na inexatidão da vida, na riqueza de rotas por onde navegar. Bússolas tornam a navegação exata. Mas a vida não tem bússolas, o que possui são temores, paixões, incertezas e possibilidades diversas. A frase imortalizada é pura abstração. É ousadia utilizá-la para tratar de economia. Contudo, a crise financeira instituiu um jogo semelhante à conhecida tensão poética: razão "versus" emoção. A crise chegou gerando transtornos. Os governos reagiram socorrendo instituições financeiras. Mas a sensação de temor permanece. Ainda que não vejam novas velas sendo rasgadas e governos recosturando-as, os navegantes já estão assustados. As instituições financeiras foram e serão socorridas, mas empresários, trabalhadores e banqueiros estão temerosos. Eles vão tomar a decisão que consideram mais prudente: cortar gastos. Os bancos vão reduzir as concessões de crédito, os empresários vão arquivar projetos de novos investimentos e os trabalhadores vão fazer poupança por precaução. O setor privado age segundo a sentença "viver não é preciso", escolhendo a forma mais adequada de sobreviver a algo que não vê com exatidão, mas de cuja gravidade tem percepção. A racionalidade do setor privado é eivada de emoção -essa é a riqueza da vida. O resultado dessas ações racionais é que, se todos recolhem suas velas, as naus tendem a desacelerar. Mas as economias não podem estagnar. Para haver reação, alguém deve gritar: "Içar velas, navegar é preciso". É o que o setor público deve gritar e fazer: gastar os seus recursos é preciso. É hora de enfrentar os temores da vida privada com a exatidão das bússolas dos governos. Se os governos não gastarem, suas economias ficarão à deriva. Em alguns casos, poderão parar. Em outros, podem naufragar. Portanto, como disse o Nobel Paul Krugman, "fica claro agora que resgatar os bancos é apenas o começo: a economia não financeira também precisa desesperadamente de ajuda. (...) No momento, uma elevação nos gastos do governo é o remédio correto...". A sugestão de Krugman é conhecida, é a saída keynesiana: i) gastos em infra-estrutura, que mobilizam volumes elevados de recursos e empregam vastos contingentes de trabalhadores; e ii) gastos nas diversas formas de transferência de renda aos que têm alta propensão a gastar o que recebem -por exemplo, ampliação de valor e cobertura de programas sociais e aumento real do salário mínimo. Aviso aos navegantes: as finanças públicas brasileiras estão com apenas 0,58% de déficit nominal/PIB ao longo deste ano. A Comunidade Européia estabelece, para tempos de normalidade, que seus membros podem fazer até 3% de déficit/PIB. Portanto, o governo brasileiro está em "condições européias" de fazer uma política de gastos agressiva. Em 2008, o governo fez até agora um superávit primário de 5,8% do PIB, muito superior à meta oficial, que é 4,25%. Nos primeiros oito meses do ano, o governo fez 24,3% do PIB em despesas correntes. Em igual período do ano passado, fez 25,3%. Com pessoal e encargos, gastou 4,37% do PIB de janeiro a agosto. Em igual período de 2007, havia gasto 4,45%. Em suma, quando o setor privado estava gastando, o governo estava economizando. Agora que o setor privado está se retraindo, é hora de o governo gastar. Neste momento, se o governo agir com a lógica privada da retração, provocará uma desaceleração econômica. E se assim continuar agindo, poderá provocar uma recessão. Alguns dirão que não podemos fazer déficits. Mas Krugman já respondeu: "A coisa responsável a fazer, agora, é fornecer à economia o apoiode que ela precisa. Não está na hora de nos preocuparmos com o déficit". O resultado esperado é que o setor privado perceba que as tempestades se dissolveram e icem suas velas. Portanto, o título deste artigo poderia ter sido "gastar é preciso para viver", um lema keynesiano dos momentos de crise. Keynes também manda lembranças João Sicsú 16/11/2008 Nesta Folha, Cesar Benjamin, inspirado, intitulou seu artigo publicado em 20/9 de "Karl Marx manda lembranças". O texto fazia um diagnóstico da crise financeira. Agora, é hora de focar na porta de saída, então, o título adequado não poderia deixar de conter o nome de J.M. Keynes. Marx, um revolucionário, fez diagnósticos. Keynes, um reformista radical, diagnosticou o capitalismo e propôs políticas, regras e instituições para mantê-lo vivo, regulado e a serviço da sociedade. É oportuno, portanto, destacar que a crise atual é resultado da falta de regulamentação financeira e da falta de políticas públicas de moradia para os cidadãos considerados "subprime". Foi a falta de Estado e não a sua ação ativa que causou a crise. Keynes tem sido lembrado. A ele tem-se recorrido, principalmente, para explicar a necessidade de intervenção nas instituições financeiras em crise. Nas obras de Keynes, não há inclinações ideológicas favoráveis a estatizações ou privatizações. Keynes reconheceu, sim, a importância de um sistema financeiro sadio e eficiente como instituição imprescindível ao bom funcionamento do sistema produtivo. É unicamente sob essa ótica que as políticas de resgate de instituições financeiras têm ligação com as idéias de Keynes. A crise patrimonial que atingiu grandes instituições abriu o canal de contaminação do setor real da economia, inclusive, nos países em desenvolvimento. Nestes, existem dois canais de contágio do setor real. O canal objetivo das reduções do crédito e da demanda internacional. E o canal subjetivo, expectacional, da confiança no futuro da economia. A tendência é que tal base de expectativas seja negativa na medida em que é influenciada pela volatilidade e pela desvalorização das moedas domésticas e das ações negociadas nas Bolsas locais. O crédito será afetado porque instituições financeiras que não foram atingidas diretamente estão temerosas e decidiram retrair seus negócios. Empresários que tinham planos de investimento vão engavetá-los para esperar o cenário ficar mais nítido. Mesmo aqueles que não necessitam do sistema financeiro para investir, produzir ou consumir tenderão a assumir posições defensivas. Portanto, o risco nos países em desenvolvimento é que haja uma forte desaceleração das suas economias. Nos países em desenvolvimento, todas as políticas de ampliação da liquidez podem manter a saúde dos sistemas financeiros, mas não serão capazes de restaurar plenamente a atividade de financiamento. Essa atividade depende de expectativas acerca do futuro. E, durante as crises, potenciais credores e devedores tendem a ser pessimistas. Portanto, para os países em desenvolvimento, uma saída para ser bem-sucedida deverá ter caráter genuinamente keynesiano. Deverá promover uma ativação dos negócios privados estimulada pelo setor público, que deverá fazer gastos, realizando obras de infra-estrutura, contratando mão-de-obra e transferindo renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os mais pobres) e, portanto, não vão represar liquidez. A política fiscal de gastos objetiva, ademais, promover uma reversão do quadro negativo ou excessivamente cauteloso que sustenta a formação de expectativas. Keynes alertou para a diferença existente entre as políticas de ampliação da liquidez e as políticas fiscais de gastos. As primeiras são dependentes de reações por vezes pessimistas, enquanto as últimas ativam diretamente os negócios privados da economia. E fazem, portanto, emergir novos argumentos para que os agentes formem expectativas otimistas acerca do futuro. Keynes junta-se, assim, a Marx para nos mandar lembranças. JOÃO SICSÚ é diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor do Instituto de Economia da UFRJ
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