Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Um Tratado Sobre o Amor de Deus Bernardo de Claraval Facebook.com/oEstandarteDeCristo Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 2 Sumário: Breve Apresentação............................................................................................................ 3 Algumas citações deste Tratado.......................................................................................... 4 Prefácio.............................................................................................................................. 13 CAPÍTULO I – Porque e como amar a Deus? .................................................................. 14 CAPÍTULO II – O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma: como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu..................................................................................................................................... 15 CAPÍTULO III – Motivos que os Cristãos têm a mais que os infiéis para amar a Deus.... 17 CAPÍTULO IV – Quais são os que acham consolo nas lembranças de Deus, e são mais puros em sentir o amor por Ele.......................................................................................... 20 CAPÍTULO V – Obrigação de amar a Deus, particularmente para os cristãos................. 22 CAPITULO VI – Recapitulação, sumário dos capítulos anteriores.................................... 24 CAPÍTULO VII – Vantagens e recompensas do amor de Deus. As coisas da terra não podem satisfazer o coração do homem............................................................................. 25 CAPÍTULO VIII – Nós começamos por nos amar para nós mesmos; é por nós o primeiro grau do amor...................................................................................................................... 29 CAPÍTULO IX – Segundo e terceiro graus do amor.......................................................... 31 CAPÍTULO X – O quarto grau do amor é de somente se amar para Deus....................... 32 CAPÍTULO XI – O amor perfeito só será partilhado entre os santos após a ressurreição geral................................................................................................................................... 34 CAPÍTULO XII – Fragmento de uma carta aos Chartreux (religiosos da ordem de São Bruno) sobre o amor.......................................................................................................... 36 CAPÍTULO XIII – Da lei da vontade própria e da concupiscência, que é a dos escravos e dos mercenários................................................................................................................ 38 CAPÍTULO XIV – Da lei do amor que é para os filhos...................................................... 39 CAPÍTULO XV – Dos quatro graus do amor, e do estado bem-aventurado dos santos no céu..................................................................................................................................... 40 Uma Biografia de Bernardo de Claraval............................................................................ 44 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 3 Breve Apresentação Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus que é Amor, o Todo-Amorável! (2 Coríntios 1:3; 1 João 4:8, 16). Mui gratos a Deus, apresentamos mais esta tradução que Ele mesmo em graça, misericórdia e amor nos tem concedido. Trata-se do Clássico Tratado Sobre o Amor de Deus, pelo piedoso Bernardo, Abade de Claraval, o ―doutor língua de mel‖. A obra em si constitui um dos maiores escritos cristãos sobre o tema, assim como a túnica de Jesus era tecida toda de alto a baixo e não tinha costura (João 19:23), assim podemos dizer que este tratado é todo tecido de alto a baixo por uma pena mui piedosa e sábia, e por um coração em ardente amor a Deus, sem costura ou remendo da tão abominável corrução moral e desejo de poder, avareza e hipocrisia, tão comum nos seus dias. Quanto ao autor, Bernardo viveu na Idade das Trevas, mas podemos definir sua vida com o nome do monastério por ele fundado: Clairvaux (Claraval), que significa ―Vale Límpido‖ ou ―Vale da Luz‖. Apesar de ser um Abade da Igreja do anticristo, o Papa, e de lhe serem atribuídas muitas histórias mirabolantes pela tradição papista, além de muita veneração e apreço, Bernardo é tido em alta estima e consideração pelos protestantes, sobre isto Steven Lawson escreve: ―O ensino de Bernardo foi profundamente apreciado por Lutero e Calvino. Este último via Bernardo como o maior testemunho em prol da verdade entre o sexto e décimo sexto século. Já Lutero saudava Bernardo como um homem de admirável santidade e o considerava como um dos melhores santos medievais. Charles Spurgeon concordou com Lutero, dizendo: ―São Bernardo foi um homem que admiro em grau máximo, e o tenho com um dos escolhidos do Senhor‖. Ele continuou dizendo que Bernardo era ‗um dos homens mais santos e humildes‘, o qual, ‗parece cair em delírio de amor quando fala de seu divino Mestre‘.‖ 1 O nosso maior desejo com esta publicação, para nós mesmos e para vocês que pousarem os olhos nestas linhas, é que esta obra contribua para que possamos conhecer e amar ao Deus que nos amou primeiro, pois sem dúvida o maior pecado é a quebra do maior mandamento e a causa do pouco amor é falta do vero conhecimento de Deus, pois aquele que mais conhece a Deus, mais ama (1 João 4:8). Oh! que possamos conhecer e amar ―Àquele que nos amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados‖ (Apocalipse 1:5). Faz assim Senhor, por Cristo. Amém! Editores EC, 16 de junho de 2014 ______________ [1] LAWSON, Steven J. Reformador Monástico. Último Monástico: Bernardo de Clairvaux. Cap. 16. Pág. 399-423. In: LAWSON, Steven J. Pilares da graça. Longa linha de Vultos Piedosos. Vol. II. Tradução: Valter Graciano Martins. São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 2013. Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 4 Algumas citações deste Tratado “Não tenho a intenção de satisfazer todas as vossas perguntas, eu responderei apenas, conforme a inspiração dada por Deus, àquela que vocês me fizeram sobre o amor de Deus; é a mais doce a ser estudada, a menos perigosa a ser tratada e a mais útil a ser ouvida”. “Vocês querem então saber de mim por qual motivo e em que medida nós devemos amar a Deus? Pois bem, eu vos direi que o motivo do nosso amor por Deus, é Ele mesmo, e que a medida deste amor é amar sem medida”. “[...] esta pergunta: Porque devemos amar a Deus, se apresenta sob dois aspectos: Ou nos perguntamos a que ponto Deus merece o nosso amor, ou então qual é a vantagem que vemos em amá-Lo; para esta questão dupla, há apenas uma resposta: O motivo pelo qual devemos amar a Deus é o próprio Deus. E, aliás, se nós colocamos um ponto de vista de mérito, não há maior do que Deus de ter Se entregado a nós, mesmo sendo indignos; de fato, o que poderia Ele, tão Deus quanto é nos dar algo que valesse mais do que Ele?” “[...] encontramos antes de qualquer coisa que Ele nos amou primeiro. Ele merece, portanto, que paguemos de volta, principalmente se considerarmos Quem é o que ama, quais são os que Ele ama e como Ele os ama”. “Deus nos amou com um amor sem interesses e Ele nos amou quando ainda éramos seus inimi- gos. Mas com qual amor Ele nos amou? São João responde: „Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito‟ (João 3:16). São Paulo continua: „Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós‟ (Romanos 8: 32); e este Filho diz Ele mesmo, falandoDele: „Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos‟ (João 15:13). Eis os direitos do Santo Deus Soberano Grande e Poderoso que Se deu por amor aos homens pecadores, infinitamente pequenos e fracos”. “Não é Dele, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina: e o ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas são os mais necessários”. “[...] a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar com força, uma vez encontrado, Aquele a quem queremos pertencer”. “[...] de nada vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude”. “„E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?‟ (1 Coríntios 4:7) Ele não diz simplesmente: „Por que te glorias?‟, mas ele http://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/4/7 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 5 acrescenta: „Como se não o houveras recebido‟ para mostrar que ele é repreensível, não por se gloriar do que tem, mas de se gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada vaidade, já que não se apoia no fundamento sólido da verdade. O apóstolo a distingue da verdadeira glória, dizendo: „Aquele que se gloria glorie-se no Senhor‟ (1 Coríntios 1:31), isso é, na verdade: porque Deus é a verdade”. “[...] há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos, está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1:6-7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confundir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chamados de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conheci- mento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a glória que nós bem sabemos que não nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso, nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no terceiro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindicando para nós mesmos, o que pertence a Deus”. “[...] se esta ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em seus benfeitos”. “[...] à excelência e à inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos, em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36: 4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens, sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude, não seria a inteligência maléfica e nem a excelência Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 6 inútil, ele clama e louva a Deus ingenuamente nestes termos: „Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade‟ (Salmos 115:1). O que significa: Senhor, nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuímos tudo ao Teu nome, porque é Dele que nós recebemos tudo”. “[...] qual é o infiel que não sabe que recebeu somente Daquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro a não ser ao que disse em Gênesis: „Façamos o homem a nossa imagem e semelhança (Gênesis 1:26)?‟ Quem verá o autor da inteligência em outro que não Naquele que ensina tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se não do Deus das virtudes?” “[...] vê o Filho Unigênito do Pai carregando a sua cruz, o Deus de toda majestade atingido por golpes e cuspidas, o Autor da vida e da glória pregado, transpassado, cheio de opróbrios, dando por Seus amigos Sua alma abençoada. Vendo tudo isso, ela sente a espada de dois gumes do amor penetrar mais fundo em seu coração e ela clama: „Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor.‟ As maças que a esposa introduzida no jardim de Seu amado tem prazer em colher da árvore da vida, têm gosto do maná do céu e a cor do sangue do Cristo. E então ela vê a morte golpeada até a morte e aquele que a fez, crescer o cortejo de seu Vencedor, ela ainda vê este subir triunfante, de debaixo da terra para sobre a terra e da terra para os céus, seguido de uma grande multidão de cativos, de modo que somente ao nome de Jesus, todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da terra (Filipenses 2:10). A terra, debaixo da antiga maldição, produzia somente espinheiros e abrolhos; rejuvenescida então por uma nova benção, é coberta de flores. Então a esposa lembra-se deste versículo: „O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele confiou o meu coração, e fui socorrido; assim o meu coração salta de prazer, e com o meu canto o louvarei‟ (Salmos 28:7), recobra o ânimo com os frutos da paixão que ela colheu da árvore da cruz, e com as flores da ressurreição cujo perfume delicioso convida o amado a renovar as suas visitas”. “[...] é no esplendor de sua ressurreição que devemos ver as novas flores dos novos tempos que a graça faz reflorescer para um segundo verão; no final dos tempos, na ressurreição real, elas darão inumeráveis frutos: „Porque eis que passou o inverno; a chuva cessou, e se foi; aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola ouve-se em nossa terra‟ (Cânticos 2:11,12). Ela quer dizer, falando assim, que o verão apareceu com Aquele que fez derreter o gelo da morte para renascer emtemperatura primaveril de uma nova vida, dizendo: „Eis que faço novas todas as coisas‟ (Apocalipse 21:5). Seu corpo, semeado na morte, refloresceu na ressurreição, e, ao perfume que Dele emana, vimos logo nos nossos vales e planícies, o que estava árido, morto ou congelado, cobrir-se de verde, renascer em vida e retomar o calor”. “O renovar destes frutos e a beleza deste campo, de onde exalam os mais doces perfumes encantam também o Pai cujo Filho fez novas todas as coisas, e lhe inspiram esta exclamação: http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/115/1+#v1 http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/28/7 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 7 „Eis que o cheiro do meu Filho é como o cheiro do campo, que o Senhor abençoou‟ (Gênesis 27:27). Sim, um campo cheio de flores, pois é de Sua plenitude que recebemos tudo o que temos. Mas a Esposa, ao se agradar Dele, vem colher em simplicidade flores e frutos para adornar a morada íntima de sua consciência, para que ao chegar o seu Amado, seu pequeno leito do coração exale os perfumes mais suaves. Portanto, se nós queremos que Cristo faça repetidamente em nós Sua morada, é preciso que nossos corações estejam cheios da fiel lembrança da misericórdia e do poder cujas provas recebemos em Sua morte e em Sua ressurreição”. “[...] eu vejo em Sua morte a prova da Sua misericórdia, na ressurreição a do Seu poder, e em todo o restante eu as encontro as duas reunidas”. “Se a Esposa pede que a suportemos com flores aromáticas e que a fortaleçamos com frutos cheirosos, eu acho que é porque ela sente que o amor pode perder calor e força; mas ela só terá estímulos até ser introduzida no quarto de Seu amado, sentindo-se coberta de beijos há muito desejados e possa exclamar: „A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace‟” “„A memória de meu nome passará de séculos em séculos‟ é para mostrar que os eleitos que ainda têm sede da presença do Esposo, têm ao menos a lembrança Dele para se consolarem, enquanto durar este século, durante o qual as gerações passam e se sucedem. Se está escrito: „Proferirão abundantemente a memória da tua grande bondade‟ (Salmos 145:7), certamente ouve- se daqueles cujo o salmista disse anteriormente: „Uma geração louvará as tuas obras à outra geração‟ (Salmos 145:4). Portanto os que vivem na terra possuem para si somente a lembrança do Esposo, e os que nos céus reinam, se alegram de Sua presença; esta última é a glória dos eleitos que já chegaram à salvação, a outra é a consolação dos que ainda estão a caminho”. “Não podeis, ó malditos escravos do dinheiro, gloriar-vos na cruz do nosso Senhor Jesus Cristo e ao mesmo tempo colocar vossa esperança nos tesouros, suplicar por fortuna e experimentar o quanto o Senhor é doce; e então com certeza O temerão muito, quando O verdes, Aquele cuja lembrança não vos pareceu cheia de doçura”. “E para a alma fiel, ela suspira com todas as suas forças após ter conhecido a Deus, e descansa suavemente em Sua lembrança; ela se gloria das ignomínias da cruz, enquanto não pode ver o Senhor face a face. Eis certamente o repouso e o sono que a Esposa, a colomba de Cristo, experimenta, esperando em meio aos bens que lhes são dados em herança; ela tem, agora, pela lembrança de Sua inefável doçura, ó Senhor Jesus, as asas brancas e prateadas da pureza e da inocência, e mais ainda, ela espera estar embriagada de felicidade quando ela avistar o esplendor em Sua face do ouro [...] e Sua sabedoria inundar de luz na glória e na felicidade dos santos”. “„A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace‟ (Cânticos 2:6). A mão esquerda do Esposo é a lembrança deste amor do qual ninguém mais pode igualar a grandeza e que O impulsionou a dar a vida por Seus amigos; Sua mão direita é a visão Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 8 beatificada que Ele prometeu aos Seus e a alegria que os embriagará quando gozarem de Sua divina presença. Não é por acaso que esta visão divina e dêitica, esta inestimável felicidade da visão de Deus é representada pela mão direita, pois é desta mão que é mencionado de forma inefável: „tua mão direita há delícias perpetuamente‟ (Salmos 16:11)”. “É pelo bom aroma que exalam como tantos perfumes deliciosos que a Esposa se apressa alegremente e se sente consumida de amor; quando ela se vê tão amada, lhe parece que ama tão pouco, ainda que fosse ela mesma todo amor, e ela tem razão de assim crer; de fato, que retorno pode um grão de poeira pagar por um amor tão grande vindo de tão alto”. “Porque „Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito‟ (João 3:16). Ora obviamente é de Deus Pai que falamos aqui, e, quando foi dito: „porquanto derramou a sua alma na morte‟ (Isaias 53:12), trata-se aqui do Filho; quanto ao Espírito Santo lemos: „Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito‟ (João 14:26). Portanto Deus nos ama e nos ama com todo o Seu ser; pois a Trindade toda nos ama, se é permitido expressar assim, falando do Ser infinito e incompreensível no qual não há partes”. “Trata-se do infiel? Como ele não conhece o Deus Filho, ele está na mesma ignorância em relação ao Pai e ao Espírito Santo; e da mesma forma que ele não glorifica ao Filho, ele não saberia glorificar o Pai que O enviou e nem tampouco o Espírito Santo que é um dom do Filho; ele conhece Deus menos do que nós, portanto não é estranho que O ame menos; todavia, ele não ignora o fato de que se deve inteiramente Àquele que ele sabe que recebeu a vida. Mas e quanto a mim? Porque não posso ignorá-lO, não somente Deus me fez um ser sem que eu o merecesse; não somente Deus supre abundantemente as minhas necessidades, me consola com bondade e me governa com solicitude, mas mais ainda é o Autor da minha redenção e da minha salvação eterna; Ele é para mim um tesouro e fonte de glória. De fato está escrito; „Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção‟ (Salmos 130:7)”. “A razão e a justiça obrigam-me apressadamente a me doar inteiramente Àquele de quem recebi tudo o que sou, e de consagrar todo o meu ser em amá-Lo. A fé me diz também a ter por Ele um amor tal que eu entendo melhor o quanto devo estimá-Lo mais do que a mim mesmo, pois se herdei de Sua magnificência tudo o que sou, eu Lhe devo também o Seu próprio dom”. “De fato, por que a obra não amaria aquele que a fez, já que recebeu o poder de amar, e, por que não O amaria com todas as suas forças se é somente Dele que ela as recebeu? Adicione a isso tudo que ele foi tirado do nada sem nenhum mérito anterior, para em seguida ser exaltado; a obrigação de amar a Deus vos parecerá de tanto mais evidente e seus direitos ao nosso amor tanto mais fundamentados. Aliás, não foi Ele ao cúmulo em Suas bênçãos e Suas misericórdias, quando nos salvou, quando estávamos semelhantes aos animais que perecem (Salmos 49:20)? De fato, pelo pecado fomos destituídos do nível de honra que era nosso, para nos tornarmos semelhantes ao boi que ara no campo, e a animais desprovidos de razão. Portanto, se devo me doar completamente ao meu Criador, o que mais não lhe deveria ao meu Restaurador, a tamanho Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 9 Restaurador? Foi-Lhe muito menos fácil me restaurar do que me criar; pois, para dar vida não somente a mim, mas a toda a criação, dizem as Escrituras „pois mandou, e logo foram criados‟ (Salmos 148:5). Mas para restaurar o ser que, com uma única palavra, feito tão completo, quantas palavras não foram pronunciadas, quantas maravilhas Ele deve ter operado,quantos tratamentos cruéis, ou devo ir mais fundo ainda, quantos tratamentos indignos Lhe foram necessário sofrer!” “„Que darei eu então ao Senhor, em reconhecimento por tudo que fez comigo (Salmos 116:12)?‟ Quando Ele me criou, me deu minha vida: mas a devolveu a mim mesmo quando se deu por mim; a concedeu-me uma vez, em seguida a devolveu, portanto, por mim, devo duas vezes. Mas o que darei eu a Deus por Ele? Pois, mesmo que eu pudesse me dar a mim mesmo mil vezes, que seria isto comparado a Deus?” “Ele nos amou primeiro, Ele tão grande e nós tão pequenos; Ele nos amou com excesso, tal como somos, e sem qualquer mérito nosso; por isso eu disse no começo que a medida do nosso amor por Deus deve ser sem medida ou exceder qualquer medida; aliás, já que este amor é imenso, infinito (pois assim é Deus) eu pergunto, quais seriam o termo e a medida de nosso amor por Ele?” “Eu Te amarei, portanto, Senhor, Tu que és a minha força e meu apoio, meu refúgio e minha salvação, Tu que és para mim tudo o que pode existir de mais desejável e mais amável. Meu Deus e meu sustento, eu Te amarei com todas as minhas forças, não tanto quanto mereces, mas certamente tanto quanto eu puder, se eu não puder o quanto deveria, pois é impossível para mim amá-lO mais do que todas as minhas forças. Poderei amá-lO mais somente quando receber o poder da Sua Graça, e ainda assim não será o quanto mereces. Teus olhos veem toda a minha insuficiência, mas eu sei que Tu escreves no Livro da Vida, todos aqueles que fazem o quanto podem, mesmo que não façam tudo o que devem. Eu já disse o suficiente, se não me engano, para mostrar como Deus deve ser amado, e por quais boas obras Ele mereceu o nosso amor. Eu digo, por quais boas obras, pois por excelência, quem a poderia entender, quem a poderia expressar, quem a poderia sentir?” “[...] se nós devemos amar a Deus, sem nos preocupar com a recompensa, ainda assim somos recompensados por tê-lO amado”. “[...] o amor é um movimento da alma e não um contrato; não se o pode adquirir em virtude de uma convenção, e também nada adquire por este meio; é totalmente espontâneo em seus movimentos e nos faz semelhantes a ele: enfim o verdadeiro amor encontra em si mesmo a sua satisfação. Sua recompensa é no sujeito amado; pois qualquer que seja o sujeito que dizemos amar, se o amamos em vista de outro, então é este que verdadeiramente amamos e não aquele cujo coração usa para atingi-lo. Por isso que Paulo não prega o Evangelho para ter o que comer, mas ele come para poder pregar o Evangelho; pois, o que ele ama, não é a comida que ele pega, mas o Evangelho que ele anuncia (1 Coríntios 9:18)”. “[...] aquele que ama a Deus, não teria ele necessidade de se sentir atraído por uma recompensa que não seja o próprio Deus; de outra forma não seria a Deus que ele amaria e sim a recompensa”. Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 10 “Está na natureza do homem o desejar, cada um conforme a sua tendência e sua percepção”. “Se olhássemos para um homem, desesperado de fome, respirar fundo aspirando profundamente para matar a fome, o chamaríamos de tolo; assim são aqueles que pensam matar a fome da alma, quando a preenchem com coisas corporais que lhe dão de fato, mas o que importa isso para o espírito?” “O motivo do amor de Deus é o próprio Deus, e estou certo em dizer isto, pois Ele é de fato a causa ao mesmo tempo eficiente e final do nosso amor. Pois é Ele quem faz nascer a ocasião para o amor, Ele é que o incendeia e ainda Ele o enche de desejos. Ele faz com que O amemos, ou melhor, Ele é tal que não que não tem como não ser alvo do nosso amor; Ele o é também de nossa esperança: se não esperássemos ter a alegria de amá-lO um dia, O amaríamos agora em vão. Seu amor prepara e abençoa o nosso. Em sua bondade excessiva Ele começa por prover em nós, e então nos cobra merecidamente de volta, e, futuramente, Ele nos reserva as mais doces esperanças. Ele é rico para todos os que O invocam; porém, em toda a sua riqueza, nada é mais valioso do que Ele. Ele é [...] nossa recompensa, é alimento das almas santificadas e o regaste das que estão cativas”. “O primeiro e maior mandamento é este: „Amarás o Senhor teu Deus‟ (Mateus 22:37). Mas a natureza é mole demais e muito fraca para tal preceito, por isso começa por amar-se a si mesma; é este amor que chamamos de carnal”. “Seu amor ficará guardado nos limites da justiça e da moderação, do momento em que ele consagrar às necessidades de seus irmãos tudo aquilo que recusa às suas próprias paixões. É assim que o amor pessoal torna-se um amor fraternal, saindo de dentro pra fora”. “[...] para que nosso amor ao próximo seja impecável, é preciso que Deus esteja envolvido; é de fato possível amar o próximo verdadeiramente, se não for em Deus? Ora, qualquer que não tenha sido educado em amor, não saberia amar em Deus; é preciso, portanto começar por amar a Deus, se queremos amar o próximo nEle, de modo que Deus que é o autor de todos as outras bênçãos, o é também de nosso amor por Ele, eis como não somente Ele criou a natureza, mas ainda como Ele a sustenta, pois é tal que, após receber a existência, ainda precisa dAquele que lhe a conce- deu e que lhe conserva; se ela pode somente existir nEle, ela não pode subsistir sem Ele”. “A frequência das tribulações nos obriga a recorrer frequentemente a Deus, ora é impossível voltar a Ele frequentemente e não experimentar dEle, e é impossível experimentar dEle sem perceber o quanto Ele é doce. Assim acontece que logo somos levados a amá-lO verdadeiramente, muito mais por causa da doçura que encontramos nele do que por causa do nosso próprio interesse, de modo que, a exemplo dos Samaritanos dizendo à mulher quem lhes havia anunciado a vinda do Messias entre eles, „E diziam à mulher: Já não é pelo teu dito que nós cremos; porque nós mesmos o temos ouvido, e sabemos que este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do mundo‟ (João 4:42). Nós também dizemos à nossa carne agora não é mais por tua causa que amamos o Senhor, mas porque nós mesmos experimentamos e havemos reconhecido o quanto Ele é doce”. Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 11 “„Louvai ao Senhor, porque Ele é bom (Salmos 118:1). Aquele que louva ao Senhor, não somente porque o Senhor é bom pra ele, mas simplesmente porque o Senhor é bom, ama verdadeiramente Deus pelo o que Ele é e não por si mesmo”. “„Tua justiça é como as grandes montanhas‟ (Salmos 36:6); é a mesma coisa para este quarto amor, é um monte muito elevado, uma montanha abundante em pasto e fértil, „Quem subirá ao monte do Senhor‟ (Salmos 24:3)? Quem me dará asas como as da colomba, para que eu possa voar até o topo e ali repousar? Um lugar tranquilo, a morada de Sião. Ah! Quão longo é meu exílio! Quando então se elevará até lá a carne e o sangue, o barro e o pó de que fui feito? Quando então, embriagado pelo amor de Deus, minha alma se anulando e não se estimando mais do que um vaso trincado, lançar-se-á em direção a Deus, se perderá nEle e, sendo um só e mesmo espírito com Ele (2 Coríntios 6:17), quando poderá clamar: „A minha carne e o meu coração desfalecem; mas Deus é a fortaleza do meu coração, e a minha porção para sempre‟ (Salmos 73:26)?” “Encontraremos a nossa felicidade bem menos no nosso sustento de cada dia e nas bênçãos que temos como herança, do que no cumprimento de Sua Vontade em nós; aliás, é justamente o que pedimos todos os dias orando: „seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu (Mateus, VI, 10)‟. Ó puro e santo amor! Ó doce e santa afeição! Ó submissão da alma inteira e desinteressada! Tanto mais inteira e desinteressada que é exemplo de todo retorno a si mesma, tanto mais tenra e doce que tudo o que a alma sente nessa ocasiãoé divino. Chegar neste ponto é ser exaltado. Da mesma forma que uma gotinha de água junto a uma grande quantidade de vinho parece desaparecer tomando o gosto e a cor deste líquido; da mesma forma ainda que, na fornalha onde é mergulhado, o ferro parece perder a sua natureza e mudar-se em fogo; ou ainda como o ar penetrado pelos raios de sol torna-se em luz e parecer mais alumiar do que ser ele próprio alumiado: assim acontece para os santos em todos os seus sentimentos humanos; parece que se fundem e fluem na vontade de Deus”. “A nossa alma chegará facilmente a este grau supremo do amor, quando as preocupações ou caprichos da carne não farão mais obstáculo à sua caminhada rápida e apressada em direção à felicidade que ela deve encontrar no Senhor. É preciso crer, no entanto, que os santos mártires, antes mesmo que a alma deles deixasse seus corpos vitoriosos, experimentaram ao menos em parte esta felicidade? Em todo caso é certo que um imenso amor fluía em suas almas, para dar- lhes forças para exporem suas vidas e desprezar as tormentas. Como eles o faziam. Não obstante, não podemos duvidar que os terríveis suplícios que sofreram não tenham alterado, ou até destruído, a alegria de suas almas”. “O que para nós está prescrito para esta vida não é, portanto a perfeição absoluta do amor, mas o desejo desta perfeição. De maneira que, tanto quanto a fraqueza humana o permitir, estejamos constantemente ocupados somente com o pensamento, o amor, a união e a vontade de Deus”. “[...] durante os vivos e castos abraços do Esposo e da Esposa, há um rio cujas correntes alegram Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 12 a cidade de Deus (Salmos 46:4), o que para mim nada mais é do que o Filho mesmo de Deus, que passa como que servindo seus convidados (Lucas 12:37) como prometeu, a fim de que alegrem-se os justos, e se regozijem na presença de Deus, e folguem de alegria (Salmos 68:3). Eis de onde vem esta satisfação, que não é seguida de desgosto; este ardor insaciável, portanto, calmo e tranquilo de ver; este eterno e incomparável desejo de ter, que não tem sua fonte na privação, enfim esta embriaguez sem excesso, que mergulha e se afoga, não no vinho, mas em Deus e na Verdade. A alma chegou, portanto, para sempre ao quarto grau do amor, quando ama somente a Deus e O ama unicamente; pois, neste caso, não nos amamos mais para nós, mas para Ele, de modo que Ele é a recompensa, a recompensa eterna daqueles que O amam e O amam para sempre”. “[...] o amor verdadeiro e sincero, que vem realmente de um coração puro, de uma boa consciên- cia e de uma fé sincera, é aquele que nos faz amar o bem alheio como o nosso. Porque aquele que ama apenas o que lhe diz respeito, ou ao menos que ama mais aquilo que lhe diz respeito do que aquilo que diz respeito aos outros, mostra bem que não tem um amor puro e que não ama o bem para o bem e sim como que para ele: portanto, ele não pode obedecer ao profeta que lhe diz: „Louvai ao Senhor, porque Ele é bom‟ (Salmos 118:1). Talvez ele O louve porque Ele é bom para ele, mas não Lhe dá a devida glória por Ele ser bom em Si”. “Todo homem que recusa submeter-se ao seu doce império torna-se seu próprio tirano, e que todos os que rejeitam o jugo suave e o fardo leve do amor são forçados a gemer sob o peso esmagador de sua própria vontade”. “Senhor meu Deus, porque não apagas o meu pecado e porque não fazes desaparecer a minha iniquidade, afim de que, lançando o peso esmagador de minha vontade própria eu respire sob o fardo leve do amor, e que, não mais estando sujeito às entranhas do medo servil e nem às expectativas da ganância mercenária, eu seja levado apenas pelo Teu sopro do Espírito, Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus (Romanos 8:14)?” “Os filhos não estão sem lei, a menos que pensemos ao contrário, porque está escrito: „a lei não é feita para o justo‟ (1 Timóteo 1:9.) Mas precisamos saber que existe uma lei promulgada no espírito de servidão, e esta imprime apenas medo; e que há outra ditada pelo espírito de liberdade, esta inspirando apenas a doçura. Os filhos não são constrangidos a se submeter à primeira, mas estão sempre sob o império da segunda”. “Eis porque o Senhor diz tão bem: „Tomai sobre vós o meu jugo‟ (Mateus 11:29), como se Ele dissesse: Eu não vos forço a tomá-lo; tome-o se o quiserem; mas, se não o tomarem, eu vos digo que ao invés do repouso que Eu vos prometo, achareis apenas sofrimento e fatiga para a vossa alma”. Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 13 Um Tratado Sobre o Amor de Deus Bernardo de Claraval Prefácio Ao mui ilustre senhor, Haimeric, cardeal-diácono e chanceler da Igreja Romana, Bernar- do, abade de Claraval; vivo para o Senhor e morto em Cristo. Até agora vocês estavam acostumados a me pedir orações, e não me propunham as- suntos a tratar. Não que eu me sinta mais habilidoso para um do que para o outro; mas ao menos as orações convêm melhor a minha profissão, senão da forma como cumpro os deveres; mas quanto às questões a serem resolvidas, me parece que, para tratá-las, são necessárias duas coisas que, na verdade, me fogem completamente, isto é, quero falar em espírito e precisão. No entanto eu percebo com prazer, eu confesso, que vocês deixaram de lado as coisas da carne pelas do espírito, mas vocês deveriam ter se dirigido a alguém que oferecesse mais recursos do que eu. Esta desculpa, é verdade, é comum às pessoas capazes e igualmente às que não o são, e não é nada fácil saber se provém da modéstia ou da incapacidade, enquanto não tenha sido tentado em esforços no sentido solicitado. Portanto, vos peço receber o que me permite a minha mediocridade, pois não quero, permanecendo em silêncio, me fazer passar por um sábio. Todavia não tenho a intenção de satisfazer todas as vossas perguntas, eu responderei apenas, conforme a inspiração dada por Deus, àquela que vocês me fizeram sobre o amor de Deus; é a mais doce a ser estudada, a menos perigosa a ser tratada e a mais útil a ser ouvida; guardem as outras para os mais habilidosos que eu. Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 14 CAPÍTULO I Porque e como amar a Deus? 1. Vocês querem então saber de mim por qual motivo e em que medida nós devemos amar a Deus? Pois bem, eu vos direi que o motivo do nosso amor por Deus, é Ele mesmo, e que a medida deste amor é amar sem medida¹. É explícito o bastante? Sim, talvez, para um homem inteligente; mas eu tenho que falar aos sábios e aos ignorantes, e se eu falei o suficiente para os primeiros, preciso levar em conta os segundos; é, portanto, para estes que desenvolvo meu pensamento, mergulhando mais fundo. Ora eu digo que temos dois motivos de amar a Deus pelo que Ele é; não há nada mais justo, nada mais vantajoso. De fato, esta pergunta: Porque devemos amar a Deus, se apresenta sob dois aspectos: Ou nos perguntamos a que ponto Deus merece o nosso amor, ou então qual é a vantagem que vemos em amá-Lo; para esta questão dupla, há apenas uma resposta: O motivo pelo qual devemos amar a Deus é o próprio Deus. E, aliás, se nós colocamos um ponto de vista de mérito, não há maior do que Deus de ter Se entregado a nós, mesmo sendo indignos; de fato, o que poderia Ele, tão Deus quanto é nos dar algo que valesse mais do que Ele? Se, portanto nos perguntamos qual o motivo que temos de amar a Deus, nós buscamos qual o direito que Ele se deu ao nosso amor, encontramos antes de qualquer coisa que Ele nos amou primeiro. Ele merece, portanto, que paguemos de volta, principalmente se considerarmos Quem é o que ama, quais são os que Ele ama e como Ele os ama. Qual é de fato aqueleque nos ama? Não seria aquele a quem todo espírito dá este testemunho: ―Tu és o meu Senhor, a minha bondade não chega à tua presença‖ [Salmos 16:2]? E este amor em Deus não seria a verdadeira caridade que não busca seus próprios interesses? Mas a quem se refere este amor gratuito²? O Apóstolo responde: ―Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus‖ (Romanos 5:10). Deus nos amou com um amor sem interesses e Ele nos amou quando ainda éramos seus inimigos. Mas com qual amor Ele nos amou? São João responde: ―Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito‖ (João 3:16). São Paulo continua: ―Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós‖ (Romanos 8: 32); e este Filho diz Ele mesmo, falando Dele: ―Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos‖ (João 15:13). __________ [1] Vemos a mesma coisa em uma carta de Sévère, Bispo de Milève, a santo Agostinho, das quais deste último podemos ler: ―Não há medida intimada ao nosso amor por Deus, visto que a medida com a qual devemos amá-Lo é a de amá-Lo sem medida‖. Jean de Salisbury imita este trecho escrito por são Bernardo, em seu livro ―Polycratique‖, liv. VII; capítulo XI. (Polycrate foi um tirano de Samos de 533 ou 532 a 522 a.C) Anátema, portanto, a Bérenger, o impudente apologista de Abélard [Abelardo], que ousa permitir-se censurar esta bela expressão do nosso santo Doutor. [2] Amor gratuito, isto é que não busca seus próprios interesses como citado acima: Algumas edições diferem um pouco nesta parte em certos manuscritos. http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/16/2 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 15 Eis os direitos do Santo Deus Soberano Grande e Poderoso que Se deu por amor aos homens pecadores, infinitamente pequenos e fracos. Mas, diremos, se - É assim para o homem, não é a mesma coisa para os anjos: eu concordo; mas é porque isto não foi necessário: aliás, aquele que socorreu os homens na miséria, protegeu os anjos de uma miséria parecida e se o Seu amor pelos homens lhes permitiu que não permanecessem como estavam, Ele, por este mesmo amor impediu os anjos de se tornarem tal qual nós fomos. CAPÍTULO II O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma: como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu. 2. Qualquer um que entendeu o que está escrito acima também vê, eu acho, porque isto é, por qual motivo devemos amar a Deus. Se isto não é visto pelos infiéis, Deus tem como confundir a ingratidão deles nos bens, sem contar o quanto preenche o corpo e a alma. Não é Dele, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina: e o ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas são os mais necessários. Sobre os bens de primeira ordem, é na alma, nesta parte do nosso ser que vence sobre a outra, que nós devemos procurá-los; são a excelência, a inteligência e a virtude [...]. 3. Estes três bens aparecem cada um sob dois aspectos ao mesmo tempo: a excelência aparece na prerrogativa própria à natureza humana e no temor que o homem inspirou sem cessar a todos os seres que vivem na terra; a inteligência, não só percebe a dignidade do homem, mas entende também que para estar em nós, todavia ela não vem de nós; enfim a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar com força, uma vez encontrado, Aquele a quem queremos pertencer. Também de nada vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude, como podemos provar com o seguinte raciocínio: Ninguém pode se gloriar do que tem, se ele não sabe que o tem; mas se, sabendo, ele ignora que o que ele tem não vem dele, ele se gloria, mas não o faz em Cristo, e é a ele que o apóstolo diz: ―E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?‖ (1 Coríntios 4:7) Ele não diz simplesmente: ―Por que te glorias?‖, mas ele acrescenta: ―Como se não o houveras recebido‖ para mostrar que ele é repreensível, não http://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/4/7 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 16 por se gloriar do que tem, mas de se gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada vaidade, já que não se apoia no fundamento sólido da verdade. O apóstolo a distingue da verdadeira glória, dizendo: ―Aquele que se gloria glorie-se no Senhor‖ (1 Coríntios 1:31), isso é, na verdade: porque Deus é a verdade. 4. Portanto há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos, está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1:6-7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confundir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chamados de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhecimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a glória que nós bem sabemos que não nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso, nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no terceiro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindicando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em seus benfeitos. 5. Também à excelência e à inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos, em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 17 aquele que age desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36: 4-5), e ele tentou, como um servo infiel,desviar e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens, sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude, não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus ingenuamente nestes termos: ―Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade‖ (Salmos 115:1). O que significa: Senhor, nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelên- cia, nós atribuímos tudo ao Teu nome, porque é Dele que nós recebemos tudo. 6. Mas nós nos afastamos demais do nosso desígnio, querendo provar que mesmo os que não conhecem a Cristo, sabem bem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente Daquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro a não ser ao que disse em Gênesis: ―Façamos o homem a nossa imagem e semelhança (Gênesis 1:26)?‖ Quem verá o autor da inteligência em outro que não Naquele que ensina tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, não tem desculpas [...] CAPÍTULO III Motivos que os Cristãos têm a mais que os infiéis para amar a Deus. 7. Os fiéis, ao contrário, sabem o quanto precisam de Jesus crucificado, mas mesmo admirando e recebendo o amor que Ele tem por nós, que está acima de todo conhecimen- to, não demonstram nenhuma confusão em dar nada além do que eles mesmos, por me- nor que sejam, em retorno a uma caridade e a uma condescendência tão grandes; mas é tão fácil para eles amar mais do que se sentirem eles mesmos mais amados; porque àquele a quem se dá menos amor, esse o sentirá também bem menos. Os Judeus não http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/115/1+#v1 http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/115/1+#v1 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 18 mais que os pagãos, não sentem a excitação pelos mesmos aguilhões do amor que oprime a Igreja e fazem com que ela diga: ―Eu fui ferido por amor‖; ou ainda: ―Sustentai- me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor‖ (Cânticos 2: 5) [...] ela vê o Filho Unigênito do Pai carregando a sua cruz, o Deus de toda majestade atingido por golpes e cuspidas, o Autor da vida e da glória pregado, transpassado, cheio de opróbrios, dando por Seus amigos Sua alma abençoada. Vendo tudo isso, ela sente a espada de dois gumes do amor penetrar mais fundo em seu coração e ela clama: ―Suste- ntai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor‖. As maças que a esposa introduzida no jardim de Seu amado tem prazer em colher da árvore da vida, têm gosto do maná do céu e a cor do sangue do Cristo. E então ela vê a morte golpeada até a morte e aquele que a fez, crescer o cortejo de seu Vencedor, ela ainda vê este subir triunfante, de debaixo da terra para sobre a terra e da terra para os céus, seguido de uma grande multidão de cativos, de modo que somente ao nome de Jesus, todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da terra (Filipenses 2:10). A terra, debaixo da antiga maldição, produzia somente espinheiros e abrolhos; rejuvenescida então por uma nova benção, é coberta de flores. Então a esposa lembra-se deste versículo: ―O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele confiou o meu coração, e fui socorrido; assim o meu coração salta de prazer, e com o meu canto o louvarei‖ (Salmos 28:7), recobra o ânimo com os frutos da paixão que ela colheu da árvore da cruz, e com as flores da ressurreição cujo perfume delicioso convida o amado a renovar as suas visitas. 8. Enfim ela exclama. ―Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito é verde‖ (coberto de flores) (Cânticos 1:16). Falando deste leito, ela deixa claro o que deseja, e, acrescentando que ele está coberto de flores, ela mostra em que estão baseadas as suas esperanças; não é sobre as vantagens de sua pessoa, mas sobre a a- tração que as flores, colhidas em um campo abençoado por Deus, têm para o seu amado, porque é o que sentem por Cristo que quis ser concebido e alimentado em Nazaré. Este esposo celeste, atraído pelo perfume que emana delas, tem prazer em entrar no quarto do coração, quando o encontra cheio de frutas e perfumado pelo aroma das flores. E Ele vem apressadamente e tem prazer em morar na sua alma que Ele contempla em medita- ção, cuidadosamente dedicada e colhe os frutos de Sua paixão e cultiva as flores de Sua ressurreição. Ora estes frutos da última colheita, isto é de todos os séculos que se foram sob o império da morte e do pecado, que amadureceram na plenitude dos tempos, são as lembranças de sua paixão. Mas é no esplendor de sua ressurreição que devemos ver as novas flores dos novos tempos que a graça faz reflorescer para um segundo verão; no final dos tempos, na ressurreição real, elas darão inumeráveis frutos: ―Porque eis que passou o inverno; a chuva cessou, e se foi; aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/28/7 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 19 a voz da rola ouve-se em nossa terra‖ (Cânticos 2:11,12). Ela quer dizer, falando assim, que o verão apareceu com Aquele que fez derreter o gelo da morte para renascer em temperatura primaveril de uma nova vida, dizendo: ―Eis que faço novas todas as coisas‖ (Apocalipse 21:5). Seu corpo, semeado na morte, refloresceu na ressurreição, e, ao perfume que Dele emana, vimos logo nos nossos vales e planícies, o que estava árido, morto ou congelado, cobrir-se de verde, renascer em vida e retomar o calor. 9. O frescor destas flores. O renovar destes frutos e a beleza deste campo, de onde exalam os mais doces perfumes encantam também o Pai cujo Filho fez novas todas as coisas, e lhe inspiram esta exclamação: ―Eis que o cheiro do meu Filho é como o cheiro do campo, que o Senhor abençoou‖ (Gênesis 27:27). Sim, um campo cheio de flores, pois é de Sua plenitude que recebemos tudo o que temos. Mas a Esposa, ao se agradar Dele, vem colher em simplicidade flores e frutos para adornar a morada íntima de sua consciência, para que ao chegar o seu Amado, seu pequeno leito do coração exale os perfumes mais suaves. Portanto, se nós queremos que Cristo faça repetidamente em nós Sua morada, é preciso que nossos corações estejam cheios da fiel lembrança da misericórdia e do poder cujas provas recebemos em Sua morte e em Sua ressurreição. É o pensamento de Davi, quando disse: ―Deus falou uma vez; duas vezes ouvi isto: que o poder pertence a Deus. A ti também, Senhor, pertence a misericórdia‖ (Salmos 62: 11-12) Jesus Cristo provou superabundantemente, pois após morrer por nós por nossos pecados, Ele ressuscitou para nos justificar, subiu aos céus para nos proteger, e nos envia o Espírito Santo para nos consolar; e, mais tarde Ele voltará para a consumação da salvação. Ora eu vejo em Sua morte a prova da Sua misericórdia, naressurreição a do Seu poder, e em todo o restante eu as encontro as duas reunidas. 10. Se a Esposa pede que a suportemos com flores aromáticas e que a fortaleçamos com frutos cheirosos, eu acho que é porque ela sente que o amor pode perder calor e força; mas ela só terá estímulos até ser introduzida no quarto de Seu amado, sentindo-se coberta de beijos há muito desejados e possa exclamar: ―A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace‖ (Cânticos 2: 6). Mas então ela sentirá e verá por si mesma o quanto estas provas de amor que Seu Amado lhe dava da mão esquerda, para assim dizer, pois Ele as dava sem contar nos dias em que estava entre nós, cedem em doçura aos abraços da sua mão direita e os são inferiores, e ela entenderá suas palavras. ―O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita‖ (João 6: 63), e ela penetrará no sentido destas palavras: ―Meu espírito é mais doce que o mel e minha herança mais agradável que o mel nas prateleiras‖. Se em seguida dissermos: ―A memória de meu nome passará de séculos em séculos‖ é para mostrar que os eleitos que ainda têm sede da presença do Esposo, têm ao menos a lembrança Dele para se conso- larem, enquanto durar este século, durante o qual as gerações passam e se sucedem. Se Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 20 está escrito: ―Proferirão abundantemente a memória da tua grande bondade‖ (Salmos 145:7), certamente ouve-se daqueles cujo o salmista disse anteriormente: ―Uma geração louvará as tuas obras à outra geração‖ (Salmos 145:4). Portanto os que vivem na terra possuem para si somente a lembrança do Esposo, e os que nos céus reinam, se alegram de Sua presença; esta última é a glória dos eleitos que já chegaram à salvação, a outra é a consolação dos que ainda estão a caminho. CAPÍTULO IV Quais são os que acham consolo nas lembranças de Deus, e são mais puros em sentir o amor por Ele. 11. Mas é interessante ver quais são os que encontram consolo na lembrança de Deus. Não são os homens corruptos que irritam Deus sem cessar e a quem Ele diz: ―Mas ai de vós, ricos! porque já tendes a vossa consolação‖ (Lucas 6: 24), mas os que podem gritar com verdade: ―a minha alma recusava ser consolada‖ (Salmos 72:2); acreditaremos neles voluntariamente, se eles acrescentarem com o Salmista: ―Mas eu me lembrei de Deus‖ e encontrei gozo nesta lembrança (Salmos 72:3). E de fato, é verdade que aqueles que ainda não gozam da presença do Amado, olham para o futuro, e que aqueles que despre- zam cavar algumas consolações na torrente das coisas que passam, experimentam coisas abundantes na lembrança das que duram eternamente. Assim são aqueles que buscam o Senhor e a face do Deus de Jacó, ao invés de buscar seus próprios interesses. Para aqueles que suplicam a Deus e buscam a Sua presença com todo desejo, a lem- brança é doce; mas bem longe de saciar a sua fome, ela a faz crescer para o alimento que deve saciá-los. É o que antecipa este alimento que diz, falando dele: ―Os que comem ainda terão fome‖. É também isto o que diz aquele que disto se alimenta: ―eu me satisfarei da tua semelhança quando acordar [me terás mostrado a tua glória]‖ (Salmos 17:15). Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos (Mateus 5:6). E maldita serás, raça malvada e perversa, maldito és, povo tolo e insensato, que não amas a sua lembrança e teme a sua presença! Tens razão em temer, pois agora não queres escapar dos caçadores, pois ―Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína‖ (1 Timóteo 6:9); não poderás jamais fugir a esta palavra dura, sim, muito dura e cruel: ―Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno‖ (Mateus 25:41). Quão mais suave e mais doce é aquela que ouvimos repetir na Igreja, lembrando a paixão: ―Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna‖ (João 6:54)! O que nos faz dizer: Aquele que honra a minha morte, e, seguindo meu exemplo mortifica a sua carne sobre a terra, terá a vida eterna; ou então, se comigo sofres, também comigo http://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/5/6 http://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/5/6 Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 21 estarás no Reino. E, portanto ainda hoje, muitos, face a estas palavras, se retiram e se afastam dizendo, se não em palavras, mas pelo comportamento: ―Duro é este discurso; quem o pode ouvir? (João, 6:60-61). Desta forma os homens que, ao invés de conserva- rem seu coração reto e puro e permanecerem fiéis a Deus, preferiram colocar suas espe- ranças nas riquezas incertas, não podem agora ouvir falar da cruz; a simples lembrança da paixão lhes parece de peso esmagador; quanto mais serão esmagadoras para estes as palavras do juiz: ―Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos‖ (Mateus 25:41)? Elas esmagarão, como uma rocha aquele sobre o qual cairão. Mas os santos serão benditos; com o Apóstolo, eles não têm outra ambição senão ―muito desejamos também ser-lhe agradáveis, quer presentes, quer ausentes‖ (2 Coríntios 5:9). E também ouvirão estas palavras: ―Vindes benditos do meu Pai, etc‖. Será então que aqueles que não guardaram seu coração reto, sentirão, porém tarde demais, o quanto doce e leve é o jugo e o fardo de Cristo, aos quais orgulhosamente retiraram seu coração endurecido, como se se tratasse de um jugo esmagador e um fardo pesado. Não podeis, ó malditos escravos do dinheiro, gloriar-vos na cruz do nosso Senhor Jesus Cristo e ao mesmo tempo colocar vossa esperança nos tesouros, suplicar por fortuna e experimentar o quanto o Senhor é doce; e então com certeza O temerão muito, quando O verdes, Aquele cuja lembrança não vos pareceu cheia de doçura. 12. E para a alma fiel, ela suspira com todas as suas forças após ter conhecido a Deus, e descansa suavemente em Sua lembrança; ela se gloria das ignomínias da cruz, enquanto não pode ver o Senhor face a face. Eis certamente o repouso e o sono que a Esposa, a colomba de Cristo, experimenta, esperando em meio aos bens que lhes são dados em herança; ela tem, agora, pela lembrança de Sua inefável doçura, ó Senhor Jesus, as asas brancas e prateadas da pureza e da inocência, e mais ainda, ela espera estar embriagada de felicidade quando ela avistar o esplendor em Sua face do ouro [...] e Sua sabedoria inundar de luz na glória e na felicidade dos santos. Portanto bem certa está de gloriar-se desde agora e de dizer: ―A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace‖ (Cânticos 2:6). A mão esquerda do Esposo é a lembrança deste amor do qual ninguém mais pode igualar a grandeza e que O impulsionou a dar a vida por Seus amigos; Sua mão direita é a visão beatificada que Ele prometeu aos Seus e a alegria que os embriagará quando gozarem de Sua divina presença. Não é por acaso que esta visão divina e dêitica, esta inestimável felicidade da visão de Deus é representada pela mão direita, pois é desta mão que é mencionado de forma inefável: ―tua mão direita há delícias perpetuamente‖ (Salmos 16:11). É por um motivo semelhante que a mão esquerda é como a sede desta admirável caridade da qual falamos mais acima e da qual não sabemos realmente nos lembrar; pois é nesta mão que a Esposa recosta a sua cabeça esperando que a iniquidade passe. Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 22 13. Não, não é por acaso que o Esposo coloca sua mão esquerda sob a cabeça da Esposa, para que ela possa se soltar e repousar o que podemos chamar de cabeça, isto é a profundidade de sua alma, para que ela não se enfraqueça e não se desvie para os desejos carnaisdeste tempo; pois a embalagem terrestre e corruptível do corpo é um fardo pesado para a alma e a faz entrar em depressão, da qual ela precisa sair, levando em consideração uma misericórdia da qual tínhamos tão pouco direito, um amor tão gratuito e tão bem provado, uma honra tão inesperada, uma bondade indulgente e uma doçura tão perseverantes e tão admiráveis. Como pela meditação cuidadosa de todas estas coisas, não se elevaria a elas o espírito que delas se alimenta, e não se desligaria de todo sentimento ruim? Que profunda impressão terá sobre ele, e como poderia não lhe inspirar desprezo por aquilo que podemos gozar somente se renunciarmos a todas estas grandes coisas? É pelo bom aroma que exalam como tantos perfumes deliciosos que a Esposa se apressa alegremente e se sente consumida de amor; quando ela se vê tão amada, lhe parece que ama tão pouco, ainda que fosse ela mesma todo amor, e ela tem razão de assim crer; de fato, que retorno pode um grão de poeira pagar por um amor tão grande vindo de tão alto, quando mesmo se consumiria ele inteiramente de amor e de reconhecimento? Não foi ela avisada pela Divina Majestade, não mostrou-se inteiramente ocupada em salvá-la? Porque ―Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito‖ (João 3:16). Ora obviamente é de Deus Pai que falamos aqui, e, quando foi dito: ―porquanto derramou a sua alma na morte‖ (Isaias 53:12), trata-se aqui do Filho; quanto ao Espírito Santo lemos: ―Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito‖ (João 14:26). Portanto Deus nos ama e nos ama com todo o Seu ser; pois a Trindade toda nos ama, se é permitido expressar assim, falando do Ser infinito e incompreensível no qual não há partes. CAPÍTULO V Obrigação de amar a Deus, particularmente para os cristãos. 14. Quando pensamos em tudo isto, podemos facilmente compreender porque devemos amar a Deus e quais os direitos que Ele tem ao nosso amor. Trata-se do infiel? Como ele não conhece o Deus Filho, ele está na mesma ignorância em relação ao Pai e ao Espírito Santo; e da mesma forma que ele não glorifica ao Filho, ele não saberia glorificar o Pai que O enviou e nem tampouco o Espírito Santo que é um dom do Filho; ele conhece Deus menos do que nós, portanto não é estranho que O ame menos; todavia, ele não ignora o fato de que se deve inteiramente Àquele que ele sabe que recebeu a vida. Mas e quanto a mim? Porque não posso ignorá-lO, não somente Deus me fez um ser sem que eu o Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 23 merecesse; não somente Deus supre abundantemente as minhas necessidades, me consola com bondade e me governa com solicitude, mas mais ainda é o Autor da minha redenção e da minha salvação eterna; Ele é para mim um tesouro e fonte de glória. De fato está escrito; ―Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção‖ (Salmos 130:7), e ―Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção‖ (Hebreus 9:12), — ―Porque o Senhor ama o juízo e não desampara os seus santos‖ (Salmos 37: 28). Ele nos enriquece; de fato, está escrito: ―boa medida, recalcada, sacudida e transbordando‖ (Lucas 6:38). E ainda em outro escrito: ―As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam (1 Coríntios 2:9)‖. Ele nos enche de glória, pois, segundo o Apóstolo: ―de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso‖ (Filipenses 3:20-21)‖, e mais: ―Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada‖ (Romanos 8:18). ―Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente‖ (2 Coríntios 4:16-17). 15. Que daria eu, portanto, ao Senhor por tudo isto? A razão e a justiça obrigam-me apressadamente a me doar inteiramente Àquele de quem recebi tudo o que sou, e de consagrar todo o meu ser em amá-Lo. A fé me diz também a ter por Ele um amor tal que eu entendo melhor o quanto devo estimá-Lo mais do que a mim mesmo, pois se herdei de Sua magnificência tudo o que sou, eu Lhe devo também o Seu próprio dom. Enfim o dia da fé cristã não tinha ainda um Deus que se havia incorporado, não havia ainda morrido na cruz e nem descido ao sepulcro, nem subido aos céus ao lado de Seu Pai; digo, Ele não havia ainda rompido toda a extensão do Seu amor por nós, deste amor do qual tive a amabilidade de partilhar mais alto com vocês, o homem já havia recebido a ordem de amar O Senhor seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, isto é, de todo o seu ser, de todo amor que for capaz, como criatura dotada de força e inteligência. E não seria de forma alguma uma injustiça da parte de Deus de reivindicar Sua obra e Seus dons. De fato, por que a obra não amaria aquele que a fez, já que recebeu o poder de amar, e, por que não O amaria com todas as suas forças se é somente Dele que ela as recebeu? Adicione a isso tudo que ele foi tirado do nada sem nenhum mérito anterior, para em seguida ser exaltado; a obrigação de amar a Deus vos parecerá de tanto mais evidente e seus direitos ao nosso amor tanto mais fundamentados. Aliás, não foi Ele ao cúmulo em Suas bênçãos e Suas misericórdias, quando nos salvou, quando estávamos semelhantes Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 24 aos animais que perecem (Salmos 49:20)? De fato, pelo pecado fomos destituídos do nível de honra que era nosso, para nos tornarmos semelhantes ao boi que ara no campo, e a animais desprovidos de razão. Portanto, se devo me doar completamente ao meu Criador, o que mais não lhe deveria ao meu Restaurador, a tamanho Restaurador? Foi- Lhe muito menos fácil me restaurar do que me criar; pois, para dar vida não somente a mim, mas a toda a criação, dizem as Escrituras ―pois mandou, e logo foram criados‖ (Salmos 148:5). Mas para restaurar o ser que, com uma única palavra, feito tão completo, quantas palavras não foram pronunciadas, quantas maravilhas Ele deve ter operado, quantos tratamentos cruéis, ou devo ir mais fundo ainda, quantos tratamentos indignos Lhe foram necessários sofrer! ―Que darei eu então ao Senhor, em reconhecimento por tudo que fez comigo (Salmos 116:12)?‖ Quando Ele me criou, me deu minha vida: mas a devolveu a mim mesmo quando se deu por mim; a concedeu-me uma vez, em seguida a devolveu, portanto, por mim, devo duas vezes. Mas o que darei eu a Deus por Ele? Pois, mesmo que eu pudesse me dar a mim mesmo mil vezes, que seria isto comparado a Deus? CAPITULO VI Recapitulação, sumário dos capítulos anteriores. 16. Reconheçamos então primeiramente em que medida merece Deus ser amado, ou melhor, vamos entender que deve ser sem medida. De fato, para resumir em poucas palavras, Ele nos amou primeiro, Ele tão grande e nós tão pequenos; Ele nos amou com excesso, tal como somos, e sem qualquer mérito nosso; por isso eu disse no começo que a medida do nosso amor por Deus deve ser sem medida ou exceder qualquer medida; aliás, já que este amor é imenso, infinito (pois assim é Deus) eu pergunto, quais seriam o termo e a medida de nosso amor por Ele? Além do mais, o nosso amor não é gratuito; é o pagamento de nossa dívida. Enfim, quando é o Ser imenso e eterno, o próprio amor por excelência, quando se trata de um Deus cuja grandeza é semlimites, a sabedoria incomensurável, a paz excedendo a todo sentimento e todo pensamento; quando, digo, é um Deus tal que nos ama, guardaremos em relação a Ele alguma medida em nosso amor? Eu Te amarei, portanto, Senhor, Tu que és a minha força e meu apoio, meu refúgio e minha salvação, Tu que és para mim tudo o que pode existir de mais desejável e mais amável. Meu Deus e meu sustento, eu Te amarei com todas as minhas forças, não tanto quanto mereces, mas certamente tanto quanto eu puder, se eu não puder o quanto deveria, pois é impossível para mim amá-lO mais do que todas as minhas forças. Poderei amá-lO mais somente quando receber o poder da Sua Graça, e ainda assim não será o Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 25 quanto mereces. Teus olhos veem toda a minha insuficiência, mas eu sei que Tu escre- ves no Livro da Vida, todos aqueles que fazem o quanto podem, mesmo que não façam tudo o que devem. Eu já disse o suficiente, se não me engano, para mostrar como Deus deve ser amado, e por quais boas obras Ele mereceu o nosso amor. Eu digo, por quais boas obras, pois por excelência, quem a poderia entender, quem a poderia expressar, quem a poderia sentir? CAPÍTULO VII Vantagens e recompensas do amor de Deus. As coisas da terra não podem satisfazer o coração do homem. 17. Vejamos agora quais vantagens existem para nós no amor de Deus. Sim vejamos, mas que relação entre o que veremos e o que é? No entanto, não podemos nos omitir, se bem que a nossa visão não pode englobar toda a verdade. Nós nos perguntamos acima por qual motivo e em qual medida deve-se amar a Deus, e dissemos que esta questão: ―por quais motivos devemos amá-lO‖ apresenta-se sob dois pontos de vista, pois podemos entender desta forma, que direitos tem Deus sobre o nosso amor; ou então, que vantagem nós encontramos em amá-lO? Nós falamos da melhor forma que podíamos, senão de um modo digno de Deus, dos direitos que Ele possui sobre o nosso amor: faremos o mesmo em relação às vantagens que encontramos neste amor; pois, se nós devemos amar a Deus, sem nos preocupar com a recompensa, ainda assim somos recompensados por tê-lO amado. A verdadeira caridade não pode permanecer sem paga, e, no entanto não é nem um pouco mercenária, pois não busca seus próprios interesses (1 Coríntios 8:5); o amor é um movimento da alma e não um contrato; não se o pode adquirir em virtude de uma convenção, e também nada adquire por este meio; é total- mente espontâneo em seus movimentos e nos faz semelhantes a ele: enfim o verdadeiro amor encontra em si mesmo a sua satisfação. Sua recompensa é no sujeito amado; pois qualquer que seja o sujeito que dizemos amar, se o amamos em vista de outro, então é este que verdadeiramente amamos e não aquele cujo coração usa para atingi-lo. Por isso que Paulo não prega o Evangelho para ter o que comer, mas ele come para poder pregar o Evangelho; pois, o que ele ama, não é a comida que ele pega, mas o Evangelho que ele anuncia (1 Coríntios 9:18). O verdadeiro amor não busca recompensa, mas ele merece uma; é certo que não propomos àquele que ama uma recompensa por seu amor, mas ele merece ser recompensado e o será se continuar a amar. Enfim, em uma ordem de coisas menos elevadas, excitamos a fazê-las, com promessas de recompensas, não aos que acham que são algo, mas os que se doam com pesar. Quem jamais teve a vontade de oferecer a alguém uma recompensa para lhe fazer algo que realmente ansiava fazer? Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 26 Certamente não damos dinheiro a um homem morrendo de fome e de sede, para incitá-lo a comer ou beber, e nem a uma verdadeira mãe, para que amamente o fruto do seu ventre, e não usamos de orações e promessas para incentivar alguém a cercar a sua plantação, a remoer a terra em volta das árvores ou elevar o muro de sua casa. Por uma razão mais forte ainda, aquele que ama a Deus, não teria ele necessidade de se sentir atraído por uma recompensa que não seja o próprio Deus; de outra forma não seria a Deus que ele amaria e sim a recompensa. 18. Está na natureza do homem o desejar, cada um conforme a sua tendência e sua percepção, o que lhe parece melhor do que aquilo que ele já possui, e de nunca estar satisfeito com algo que definitivamente não está de acordo com aquilo que ele queria. Citemos alguns exemplos: Se um homem que tem uma linda mulher, vê uma mais linda, seu coração a deseja, seu olhar arde em desejo; se ele tem uma vestimenta preciosa, ele deseja uma mais sumptuosa ainda; e com as riquezas que ele em, ele inveja os que têm mais do que ele. Não é comum vermos homens ricos em terras e em propriedades comprar novos campos, e, nos seus desejos sem fim, recuar constantemente os limites de seus domínios? Aqueles que moram na realeza, em vastos palácios, não cessam de acrescentar a cada dia novos edifícios aos antigos; tomados por uma inquieta curiosida- de, não param de construir e destruir, mudando o que está redondo para fazer quadrado. Se falarmos então de homens cheios de homenagens, não aspiram eles constantemente com todas as suas forças com uma ambição cada vez mais difícil de agradar por uma posição ainda mais elevada? Isto não tem fim, porque em todas estas coisas não conseguimos achar um ponto que seria propriamente dito o mais elevado e o melhor. Mas deveríamos estranhar que aqueles que não podem parar enquanto não possuírem o que tiver de maior e mais perfeito, não estejam nunca satisfeitos com o que for pior ou inferior? Mas o que eu acho insensato acima de qualquer expressão, é que desejamos sempre aquilo que não poderia jamais, não digo satisfazer, mas simplesmente adormecer os desejos ardentes. O que quer que seja que nós possuímos, nós não desejamos menos aquilo que ainda não temos e é sempre em relação ao que não temos que suspiramos mais e mais. E então o que acontece? O nosso coração, cedendo aos caprichos variados e enganosos do século, cansa-se inutilmente em sua corrida e não consegue se saciar; está sempre faminto e de nada vale o que já tem com aquilo que ainda lhe resta a ter; está bem mais atormentado pelo desejo do que lhe falta do que pela satisfação do que já tem. Não podemos ter tudo e aquilo que temos o adquirimos somente com esforço, o aproveitamos com temor e tendo a dolorosa certeza de perdê-lo um dia, mesmo não sabendo qual será este dia. Este é, portanto o caminho de uma vontade pervertida que pende ao bem soberano; é seguindo esta direção que ela se apressa em atingir o que a deve satisfazer; ou, melhor dizendo, é nestes desvios que a vaidade não se deixa vencer e a iniquidade se engana. Se queremos atingir um objetivo que nos propomos e enfim Facebook.com/oEstandarteDeCristo OEstandarteDeCristo.com Issuu.com/oEstandarteDeCristo 27 adquirir aquilo cuja possessão excede a todos os desejos, porque procurar de tantos outros lugares? Isto é se afastar do reto caminho, e a morte chegará bem antes de atingirmos o alvo desejado. 19. Em todos estes desvios se perdem os ímpios que procuram, por um movimento natural, a satisfazer seu apetite e negligenciam, como insensatos, os meios para conse- guir o que querem; quero dizer, a serem consumados e não consumidos. Ora, eles se consumem em vãos esforços e não conseguem chegar a uma felicidade consumida; pois, estão mais afeiçoados às criaturas do que ao Criador, e se voltam a todas elas e as experimentam umas após as outras, antes de pensar em tentar se dirigir ao Senhor que as criou. É aonde chegariam certamente, se pudessem um dia cumprir todos os seus de- sejos, ou seja, de possuir todo o universo, menos o seu Autor, e isto se faria em virtude mesmo da lei de suas concupiscências, que os faz esquecerem o que são, para almejar aquilo que
Compartilhar