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PEDRO MAGALHÃES GANEM (Organizador) ALTERNATIVAS À PRISÃO © 2019 - Editora Canal Ciências Criminais 1 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004. Direção Editorial Bernardo de Azevedo e Souza Conselho Editorial André Peixoto de Souza Bruno Augusto Vigo Milanez Diógenes V. Hassan Ribeiro Fábio da Silva Bozza Fauzi Hassan Choukr Felipe Faoro Bertoni Fernanda Ravazzano Baqueiro Maiquel A. Dezordi Wermuth Capa e projeto gráfico Estúdio Xiru Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G196a Ganem, Pedro Magalhães Alternativas à prisão [recurso eletrônico] / Pedro Magalhães Ganem (Organizador). – Porto Alegre : Canal Ciências Criminais, 2019. 216 p. ISBN: 978-85-92712-27-3 (e-book) Modo de acesso: http://editora.canalcienciascriminais.com.br 1. Direito Penal – Brasil. 2. Criminologia crítica. 3. Sistema penitenciário. 4. Punitivismo. 5. Prisão – medidas alternativas. 6. Justiça penal restaurativa. I. Título. CDD341.54 Bibliotecária Responsável: Eliane Mª. Pereira Kronhardt (CRB 10/1518) 2 SUMÁRIO Apresentação 04 Capítulo 1 Reflexões sobre os caminhos até a justiça restaurativa (Ana Flávia Silveira) 06 Capítulo 2 A garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva e o clamor público (Carlos Bermudes) 30 Capítulo 3 Propostas abolicionistas e minimalistas para a solução de conflitos (Carolina Assis Castilholi) 71 Capítulo 4 Prisionização: efeitos e possíveis soluções (Flávio Lúcio Leite Júnior) 104 Capítulo 5 Desvio secundário: a construção de uma vida no crime (Gabriel Carvalho dos Santos) 126 Capítulo 6 Princípio da liberdade: adoção de medidas alternativas à prisão processual no Brasil (Leonardo Leite Nascimento) 146 Capítulo 7 O monitoramento eletrônico e a sua relevância para a efetivação das medidas alternativas à prisão (Maria Eliani Diniz Dourado Arrais) 181 Considerações finais 216 3 APRESENTAÇÃO Alternativas à prisão é um trabalho realizado pelos integrantes da primeira edição da Comissão Especial de Estudos de Medidas Alternativas à Prisão e eu, como coordenador do grupo, fui honrosamente incumbido de prefaciar a obra e trazer para você leitor um pouco do que pode esperar dessa prazerosa leitura. Apesar de compilados em uma mesma obra, os artigos, que estão separados em capítulos, não são sequenciais, ou seja, não há necessariamente uma continuidade de raciocínio entre um e outro, tratando-se de textos independentes, mas sempre com o mesmo pano de fundo: abordar questões relacionadas às possíveis alternativas à prisão. Portanto, temos aqui textos críticos voltados para a análise, debate e possíveis soluções para o catastrófico cenário prisional brasileiro, de modo que cada artigo aborda uma importante temática direcionada para meios outros que não a prisão. Considero esse trabalho o fruto de mais uma excelente iniciativa do Canal Ciências Criminais, dessa vez direcionada a fomentar o debate sobre o que se fazer além de prender alguém (se é que há a necessidade de restrição da liberdade). Vivemos uma época em que o populismo penal ganha força e precisamos de mais obras como essa, de modo a levar mais luz para o debate e conhecimento para o público, evitando, assim, medidas no campo penal 4 que visem apenas saciar o anseio punitivista e seletivo de parte da população. Em pleno século XXI não é possível sustentar e legitimar discursos ultrapassados e que objetivam apenas causar mal a quem se encontra preso, pois a prisão por si só não é a solução para nenhum dos graves problemas de violência que enfrentamos. Precisamos ir além do simples ato de prender. Afinal, como o título do trabalho já pressupõe, precisamos de Alternativas à prisão! Pedro Magalhães Ganem Verão de 2019. 5 CAPÍTULO 1 REFLEXÕES SOBRE OS CAMINHOS ATÉ A JUSTIÇA RESTAURATIVA Por Ana Flávia Silveira 1 1. SISTEMA PENITENCIÁRIO – PODER ESTATAL E SOCIEDADE Pensar no sistema penal e entender a sua função no sentido de dar e receber, numa linguagem social e retributiva, torna-se algo tão místico, que não se sabe ao certo a quem o Estado busca acolher caprichos, uma vez que são variados pontos de vistas. Em um primeiro momento, suas ações buscam demonstrar um poder estatal descomunal para assombrar aquele indivíduo que, diante das circunstâncias, é inferiorizado, ainda que isso resulte colocar em jogo direitos básicos e fundamentais positivados. Depois, leva-se a pensar que seu comportamento são respostas de autoafirmações de domínio para que assim possa cintilar a sua própria força suprema estatal – paternal, para com a sociedade, ressaltando sua vaidade antes mesmo de colocar em questão, o olhar para o outro como “ser humano”, e 1 Bacharela em Direito (UNIVALI). Pós-graduanda em Filosofia e Direitos Humanos (PUC/PR). 6 descaracterizar a “coisificação” do homem, todo esse comportamento infantilizado para mostrar, sua “grandeza”. Pergunta-se, será que o Estado estaria deitado no divã de Freud com seu superego? Atos cruéis e, com eles, destroços ilimitados que descarregam dentro do sistema penal, tirando identidades, liberdade e colocando negligência, desdém, frieza e assim afrontando todos os princípios básicos e humanísticos e a perda do “eu” como identificação. Deste modo, é o que expressa FOUCAULT : 2 Não será que, de modo geral, o sistema penal é a forma em que o poder como poder se manifesta da maneira mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo na prisão, priva-lo de alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor, etc., é a manifestação mais delirante que se possa imaginar. [...] o que impressiona nessa história é não apenas a puerilidade dos exercícios de poder,mas o cinismo com que ele se exerce como poder da maneira mais arcaica, mais pueril, mais infantil. [...] A prisão é único lugar onde o poder pode se manifestar em estado puro em suas dimensões mais excessivas e se justificar com poder normal. 2 FOUCAULT. Microfísica do poder…, p. 73. 7 Além de perceber tamanhos protagonismos estatais, também é imprescindível levar em consideração os coadjuvantes responsáveis pelo cenário, ou até mesmo estes que lutam para “ver o circo pegar fogo”, chamemos todos para compor a fala. A mídia nas suas manchetes diárias, capas de jornais, revistas e chamadas televisivas, com conteúdo julgador por meras opiniões que levam a audiência sensacionalista. Ainda, temos os discursos políticos infundados que falam apenas o que a população deseja ouvir, dentro de soluções simples e rápidas, como algo que cai do céu ou o próprio “salvador do mundo”, causando aquele efeito sombrio que logo vem a pergunta: “como isso ainda não foi feito?” Patenteando ideias, de modo que são consideradas geniais . 3 Afinal, o discurso punitivista segue qual caminho? A sociedade com seu manifesto de ódio e vazio ecoando nos meios comunicativos, ou os próprios veículos gritando suas ideias como a única forma de justiça e influenciando a massa? Tais percepções acima pontuadas devem se interligar ou até podem ser consideradas como algo que vem justamente do mesmo ponto de partida, assim percebe-se que, além dos contribuintes para possibilitar tais efeitos, não seria possível se o próprio Estado não dispusesse do mesmo ideal, com sua força e seu exibicionismo barato, assim como destaca BAUMAN 4 3 VINÍCIUS. Bolsonaro: bandido bom... 4 BAUMAN. Globalização…, p.126. 8 A construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas – todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e acima de tudo, a de que “fazem algo” não apenas explicitamente pela segurança individual dos governados, mas, por extensão, também pela garantia e certeza deles. Reconhecer o poder estatal com a potencialidade de outros meios e ambos enaltecer percepções punitivistas com uma competitividade desleal ao garantismo, é entender que o sistema penal, uma vez feito contato com ele, o indivíduo será julgado e condenado, mas não apenas pelo judiciário, mas a sociedade, estigmatizando o sujeito e tratando-o como diferenças e preconceitos, conforme garante ZAFFARONI 5 Cabe registrar que a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas pelo simples contato com o sistema penal. Os meios de comunicação de massa contribuem para isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se as sentenças com qualificações como “vagabundos”, “chacais”, etc. 5 ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas…, p. 134. 9 Contudo, basta um simples contato do sujeito com vinculado a imagem de criminoso, e inserido no sistema penitenciário, são motivos de grandes repercussões, julgamentos midiáticos e estigmatizações que podem marcar a vida do indivíduo de forma drástica e para sempre. 6 2. VINGAR-SE E PUNIR? QUAL OBJETIVO DO APRISIONAMENTO? O sistema penitenciário carece de medidas necessárias para fazer com que o encarceramento gere efeitos positivos para com o indivíduo e a sociedade, para que acima de qualquer coisa, seja algo eficaz, não apenas para justificar a punição, mas para que não seja algo limitante com a finalidade de punir pelo simples prazer de castigar. Entretanto, quando se fala em aprisionamento, é possível visualizar que a sociedade, ainda que esteja de olhos tapados para perceber o real problema do mundo carcerário, deve ser pensado na coletividade, para dar uma resposta positiva a esta, quando ela receber novamente o “ex-presidiário” no seu convívio social. Em contrapartida, o próprio preso deveria receber um acompanhamento para que possa se restabelecer e voltar para o seu convívio em sociedade de modo que seu comportamento não seja uma reprodução de reincidência até o final da sua (sofrida) vida. 6 AQUINO. Da série “Julgamentos Históricos”... 10 Mas o que aparenta é que o sistema prisional não está interessado em solucionar problema social algum e, ainda, descarrega montanhas de frustrações no indivíduo e na coletividade de modo geral. É a velha história do “faz mais mal do que bem”. Sendo assim, tudo aponta que a prisão não é o lugar para ressocialização do preso, pelo contrário, quanto mais o indivíduo se encontra preso, ele tende a absorver comportamentos ainda piores, que são ensinados dentro do próprio sistema penitenciário pelos presos que ali convivem, de modo a gerar mais crimes e, consequentemente, mais reincidentes, como se fosse uma porta giratória na entrada do presídio. 7 Além disso, as garras do encarceramento são tão indomáveis que é imperioso questionar a finalidade do cárcere, uma vez ele não transforma o ser humano para a reinserção na sociedade, tampouco ensina medidas e comportamentos para que não tenham mais contato com o mundo do crime. Nesse sentido, especialistas nesse âmbito criminológico alertam que o sistema do cárcere não pode se confundir com o sistema educacional, conforme afirma BARATTA 8 Exames clínicos realizados com os clássicos testes de personalidade mostram os efeitos negativos do encarceramento sobre a psique dos condenados e a correlação destes efeitos 7 OLDONI; SILVA. Estudos sobre o sistema... 8 BARATTA. Criminologia crítica…, p. 184. 11 com a duração daquele. A conclusão a que chegam estudos deste gênero é que “a possibilidade de transformar um delinquente antissocial violento em um indivíduo adaptável, mediante uma longa pena carcerária, não parece existir” e que “ instituto da pena não pode realizar sua finalidade com instituto de educação”. Afinal, qual é a finalidade do cumprimento da pena, do encarceramento, da inserção no sistema penitenciário? Além de causar grandes dificuldades e desrespeitar a vida humana e submissão autoritária, ela serve como medida educativa para que o indivíduo não cometa mais crime e assim seja melhor socialmente para conviver, ou simplesmente ele é punido por mero prazer? Se a finalidade da pena for apenas aplicada comoum castigo, é bem verdade que aqui se percebe um desvio daquilo que se espera de um aprisionamento, pois a pena enquanto não possui um caráter retributivo, é apenas um meio de manifestar no outro a ideia de vingança, é o que afirma BATISTA 9 A pena não pode, pois, exaurir-se num rito de expiação e opróbrio, não pode ser uma coerção puramente negativa. Isso não significa, modo algum, questionar o caráter retributivo, timbre real e inegável da pena. Contudo, a pena que se detém na simples retributividade e, portanto, 9 BATISTA. Introdução crítica…, p. 97. 12 converte seu modo em seu fim, em nada distingue da vingança. A finalidade da pena não pode ter caráter de vingança, que aqui voltamos ao assunto dos caprichos do Estado, mas deve na sua mais plena potência buscar por soluções para estes empasses, para que o indivíduo e a sociedade sejam valorizados para poder manter esse sistema - ainda que falho, um pouco menos injusto. Para tanto, buscar soluções para um problema tão extenso torna-se algo tão exaustivo e desesperançoso que, quando o sistema penal procura chamar atenção das autoridades para demonstrar não apenas a sua real finalidade, mas que realmente é falho, caro e degradante, é visto com insignificância, afinal, saber que existe um problema é diferente de solucioná-lo. Assim, destaca ZAFFARONI 10 Negar um problema já existente, recorrendo ao argumento de que reconhecê-lo implica riscos e perigos, não representa uma resposta real e, sim, a adoção de uma atitude histérica: ignoro o perigo e, com isso, suponho que ele desapareça. Mas a falácia dos discursos punitivistas, a falta de relação com direitos humanos, a desinformação da sociedade sobre seus próprios direitos e garantias, dá 10 ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas…, p. 83. 13 a percepção de que o problema sempre é o outro. A medida em que os problemas sociais se manifestam a população julga e condenada a própria sorte. 3. O PROBLEMA ESTÁ NO OUTRO OU DENTRO DA SOCIEDADE? É importante pensar se, o problema realmente está no outro quando é apontado de “criminoso”, ou quem o aponta também é parte deste problema, e quais medidas são tomadas quanto a isso, uma vez que, tornar-se omisso ou se desenquadrar de determinada conduta não o faz “inocente”, no máximo o faz passivo. O que pode ser preocupante no pensar que o problema sempre é o outro, é que isso torna-se algo tão limitante que não gera apenas apologia a pena, mas um tipo de consentimento e aceitação de que isso existe e “está tudo bem”, a respeito disso pode ser entendido que ser inerte, também é um grande gerador do mal, é o que diz ZIMBARDO 11 Um dos maiores e menos conhecidos colaboradores do mal passam ao largo dos protagonistas da injúria e provêm do coro silencioso que olha, mas não vê, que escuta, mas não ouve. Sua presença silenciosa na cena de maus feitos torna ainda mais imprecisa a linha nebulosa entre o bem e o mal. Perguntamos em 11 ZIMBARDO. O efeito lúcifer..., p. 439. 14 seguida: porque as pessoas não ajudam? Por que não agem quando sua ajuda é necessária? Seria sua passividade um defeito pessoal, frieza, uma indiferença? Diferentemente, há mais uma vez dinâmicas sociais reconhecíveis em jogo? Na verdade, o que faz a sociedade pensar que não faz parte deste cenário todo é o conforto de não se empatizar com problemas alheios, ainda que isso gere inúmeras consequências. Falar sobre o sistema penitenciário, é falar da própria população, é algo simples e sistemático, uma vez que, quem está inserido no sistema penitenciário é a própria sociedade, ela mesma, carente de informações, respeito, oferecimento de garantias básicas, sem educação, escola, saneamento e mão de obra barata. Significa dizer que, a própria sociedade precisa ser reeducada, mas não apenas isso, a sociedade precisa ser percebida como a composição de pessoas que merecem ter seus direitos e garantias respeitados, independente de classes sociais, estigmas, credos, mas na sua essência, na percepção do indivíduo. Além disso, cuidar da sociedade oferecendo e assegurando direitos, nos faz pensar que ela deve uma resposta, afinal, a mesma que merece ter direitos respeitados, também precisa respeitar o outro. A sociedade prisional é a sociedade em 15 vivemos, o que lhe faz pensar que o infrator, culpado e errado é sempre o outro? Assim, expõe BARATTA 12 Antes de falar de educação e reinserção é necessário, portanto, fazer um exame do sistema de valores e dos modelos de comportamento presentes na sociedade em que se quer reinserir o preso. Um tal exame não pode senão levar a conclusão, pensamos, de que a verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo o condenado, antes de querer modificar os excluídos é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo assim, a raiz do mecanismo de exclusão. Sendo assim, a sociedade é completamente cega para perceber sua responsabilidade e sua atuação em situações como estas, seus comportamentos, pensamentos, opiniões - ainda que baseadas no “achismo”, apontam um culpado, que nunca é ele mesmo, mas o outro, aquele que erra e que deve ser julgado e condenado a pagar, ainda que isso signifique participar de uma grande depreciação da vida humana: A inserção do indivíduo no cárcere. Neste sentido, a tentativa de ter um olhar mais humano para o outro, necessário se faz analisar a relação entre o conflito individual, para obter um entendimento das respostas oferecidas, forma de 12 BARATTA. Criminologia crítica…, p. 186. 16 lidar com o preso percebendo este como um ser humano e na sua condição humana. Garantir a integridade do outro e se comportar de modo compatível com a ideia de que, deseja ao outro apenas e tão somente aquilo que gostaria de receber, é algo que se tornou tão comum e apagado que, deve ser lembrado pela mente e exercido pelas condutas para com o outro e, serviria até como uma boa manchete para os jornais, mas talvez não seria alvo de um sensacionalismo prazeroso. 13 A sociedade tem em geral uma visão deturpada do que seja o cárcere e, sobretudo, de quem sejam os presos. É necessário que se desfaçam muitos preconceitos, inclusive como condiçãopara se melhorar o prestígio e autoestima do pessoal penitenciário, o que seria um passo importante para ter pessoal vocacionado trabalhando nas prisões. Deste modo, deve ser percebido que por trás de todo crime existe o conflito, um problema a ser resolvido pelo infrator e pela vítima - se houver, assim, pode ser visualizado que cada caso, é uma situação específica e tratar problemas como crimes propriamente ditos, não é perceber o outro de forma humana, assim, Hulsman expõe 14 13 SÁ. Criminologia clínica…, p. 118-119. 14 HULSMAN; CELIS. Penas perdidas…, p. 101. 17 Para mim, não existem crimes sem delitos, mas apenas situações problemáticas. E sem a participação das pessoas diretamente envolvidas nessas situações, é impossível resolvê-las de forma humana. Assim, significa dizer que, determinadas pessoas são tratadas e olhadas como seres humanos, enquanto outras apenas vistas como uma “coisa”, da qual pode ser suscetível a violação de seus direitos fundamentais. Por isso, a luta para humanizar um sistema completamente desumano, é constante. Por isso, deve sempre ser chamados os maiores responsáveis para modificar esta questões que precisam urgentemente serem percebidas. 4. DA JUSTIÇA RESTAURATIVA Após diversos apontamentos sobre déficit prisional para com o crime, indivíduo e sociedade, urge a necessidade de apresentar medidas que possibilitam visualizar uma solução eficaz e uma resposta a sociedade, ao indivíduo e até mesmo para a vítima em casos de crimes contra vida. Assim, visto tal cenário, urge a necessidade de chamar atenção para o papel da Justiça Restaurativa. A Justiça Restaurativa surgiu na década de 70 , direcionando soluções de conflitos através de diálogos de formas pacíficas, sendo iniciado no Canadá e na Nova Zelândia. 18 https://justicarestaurativa.weebly.com/origem.html Percebendo a eficácia e a proporção a ideia se espalhou sendo que a própria ONU em 1999 por meio da Resolução 1999/26 e 2002/12, passou a incentivar os estados, as organizações internacionais entre outras entidades a trocarem informações e experiências em matéria de mediação e Justiça Restaurativa. Para tanto, a ideia de Justiça Restaurativa, é pensada de várias formas para sua aplicabilidade, buscando aprimorar a sua inovação para obter aplicabilidade tanto na esfera judicial como na extrajudicial, é o que foi regulamentado pela resolução 125/2010 do CNJ. Tendo em vista que tal resolução foi criada em 2010, a proporção da Justiça Restaurativa vem se destacando ainda mais ao longo dos anos e chama atenção das autoridades para sua implementação, ganhando voz e espaço no mundo jurídico em determinadas previsões legais, assim mais uma vez o Conselho Nacional de Justiça, lança uma campanha nacional “Justiça Restaurativa do Brasil” em 2015 e no ano seguinte, 2016, inaugura uma resolução 225/2016 contendo diretrizes para implementação da prática restaurativa dentro do poder judiciário. Assim, a Justiça Restaurativa vem ganhando voz no mundo, sendo necessário expor sua, importância e percepções para que assim seja possível visualizar a restauração do indivíduo para sua reinserção social e mais que isso, sendo trabalhado o perdão, a cura e a dor da vítima. 19 http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2579 http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf Sendo assim, a ideia da Justiça Restaurativa já está no próprio nome “restaurar”, significa dizer que não é uma justiça que visa retribuir, mas a recompor os danos causados e feridas que devem ser trabalhados processos de cura, perceber que punir não é considerado algo eficaz, é o que conceitua ZEHR 15 Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração – ao invés de mais violação – deveriam contrabalançar o dano advindo do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar. Deste modo, é perceptível que o ponto principal é buscar sanar problemas buscando, principalmente, a causa e não apenas remediando ou retribuindo com penas travestidas de castigos, pelo contrário, o indivíduo uma vez curado poderá obter mais chances de não cometer crimes e evitar uma reincidência do que aquele que é castigado e esquecido nas penitenciárias. Além disso, a Justiça Restaurativa além de se empenhar em realizar um trabalho reconciliador com diálogo, dinâmica e processo de cura, ele também abrange diversos pontos para ajudar a influenciar de 15 ZEHR. Trocando as lentes…, p 176. 20 modo positivo nesse trabalho, como o protagonismo da família do indivíduo, amigos, comunidade e até mesmo a vítima, sendo tudo voltado para que a conduta e a convivência seja diferente daquele momento em diante, conforme disponível em JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21 16 A justiça restaurativa concentra a reação ao crime e à delinquência no restabelecimento de todos os efeitos negativos associados ao crime. Portanto, será restaurativa qualquer ação que aponte na direção do restabelecimento de qualquer pessoa afetada por um crime – seja a vítima, amigos ou familiares da vítima, membros da comunidade, o ofensor, ou a família e amigos do ofensor minimizando conscientemente a probabilidade de qualquer dano ou ofensa no futuro. Sendo assim, é possível perceber que, todas as técnicas usadas pensando em tocar o indivíduo através de gestos e de influências de pessoas são indispensáveis para o processo de cura e de restauração, assim, o que se destaca em todo esse procedimento é a percepção do ser humano na sua essência, o olhar para o indivíduo sem julgamentos ou castigos. Ao contrário do que se é acostumado a ver na justiça retributiva, agora a restauração procura antes de 16 JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21…, p. 2. 21 mais nada resgatar, principalmente, a igualdade que existe em cada um, é o que dispõe a REVISTA DO ADVOGADO 17 A justiça restaurativa resgata a humanidade que há em cada um e em todos, e convida a que se saia do lugar erradamente confortávelde culpabilizar em nome da inocência de muitos. Não há vítimas e culpados. Somos todos responsáveis por escolhas que impactam a construção de convívio social, seja em micro e macroescalas, e a transformação das realidades individuais necessariamente implica um olhar mais ampliado, que desvela as responsabilidades coletivas. Deste modo, a alteração na forma de tratamento do infrator torna-se tão significativo que é possível perceber os reflexos dentro de si e para com a sociedade, e a chance de um novo recomeço, transformando todo o ambiente ao redor através da mudança de comportamento e de olhar para o outro. Mas, analisando o sistema penal, é notório a ausência de regulamentos direcionados para a vítima do crime ou a família (no caso de morte da vítima, por exemplo), essa se torna completamente esquecida e é ressaltada a ideia de que o direito penal também não foi feito para vítimas, mas unicamente para o infrator/criminoso. 17 REVISTA DO ADVOGADO…, p. 79. 22 Sendo assim, o respeito ao direito humano, também deve se estender a vítima ou sua família, acolher e entender os sentimentos que estão sendo manifestados diante do que tenha acontecido com cada pessoa, para que seja possível existir uma conciliação e uma mediação entre o infrator e a vítima. Assim, mais um ponto que a Justiça Restaurativa trabalha é com o papel da vítima do crime, buscando dar amparo para que esta possa ser ouvida e entendida diante do trauma sofrido e dos danos gerados em decorrência disto, é o que dispõe ZEHR 18 Em algum ponto do processo as vítimas necessitam sentir-se vinculadas. Precisam saber que o que lhes aconteceu estava errado e não era merecido, e que os outros também acham aquilo errado. Elas precisam saber que algo foi feito para corrigir o mal e reduzir as chances de uma nova ocorrência. Querem ouvir os outros reconhecendo sua dor e legitimando sua experiência. Ser ouvido por sua necessidade de expressar seus sentimentos, chega a ser algo tão crucial e revelador com algo muito simples, isto é, o infrator merece ser ouvido, acolhido, entendido e perdoado, assim como a vítima também necessita desses cuidados para que sua ferida seja cicatrizada e curada. 18 ZEHR. Trocando as lentes…, p 180. 23 Por isso, a mediação entre ambos torna-se importante para que o problema seja resolvido ali e que uma vez resolvido, não seja estendido para gerar outros, mediar vítima e ofensor, é restaurar tanto um quanto outro, é mudar a direção do caminho que será seguido, assim expõe mais uma vez ZEHR 19 A mediação entre vítima e ofensor é abordagem que atende a esses critérios. A mediação vítima-ofensor fortalece os participantes, põe em cheque as representações equivocadas, oferece ocasião para troca de informações e incentiva ações com o propósito de corrigir a situação. Quando mediadores da comunidade estão envolvidos, esse tipo de mediação também abre espaço para participação comunitária. A mediação é totalmente compatível com a abordagem restaurativa da justiça. Deste modo, as formas de trabalhar a Justiça Restaurativa por meio de diálogos restaurativos busca a resolução de conflitos entre os envolvidos e para que através destes mecanismos e técnicas seja resultado de uma abrangência de entendimento sobre aquela situação vivenciada. Este meio de primeiramente buscar entender o que aconteceu, pode se manifestar de forma tão significativa que isso pode responder questões que talvez não teria sido levantadas de outras formas, isto é, entender o mundo e a realidade do outro, tanto do 19 ZEHR. Trocando as lentes…, p 193. 24 infrator - os motivos que o levaram a manifestar aquele comportamento ainda que ele mesmo não saiba necessariamente dar uma resposta, mas também apontar para o mesmo a realidade da vítima e seu sofrimento para que aqui também se tenha um olhar de igualdade. Sendo assim, PELIZZOLI dispõe 20 Os círculos de diálogo e restaurativos não visam apenas o importante Acordo, mas algo de aprendizagem do cordis neste encontro que busca acordos; a compreensão do mundo em desacordo, o papel de crescimento e dos frutos de dor dentro dos conflitos; a aprendizagem social, a necessidade – vergonhosa – de ter de fazer os sujeitos humanos renasceram para uma inteligência coletiva e sensível, criativa, que aposta na afirmação da vida, que em meia a lama vê a possibilidade de brotar uma ideia. Em meio aos pagamentos virtuais de rostos humanos, em meio ao simulacro, descaso e descrédito nos moldes políticos no capitalismo as práticas restaurativas são uma luz entre tantas outras a iluminar tempos sombrios. Entretanto, buscando fazer uma interligação com os títulos anteriores entender o papel da Justiça Restaurativa aparenta ser uma solução completamente cabível e efetiva para os problemas apontados acima, além de ser algo voltado ao 20 PELIZZOLI. Cultura de paz restaurativa..., p. 19. 25 humanismo para com o outro, mas deve ser pensado na disponibilidade dos entes responsáveis pelo sistema penal. Por ser um assunto relativamente “novo”, as implementações da Justiça Restaurativas estão tomando suas posições, e seus reflexos são extensos como uma resposta no indivíduo, na família, na vítima e/ou na família da vítima, solução para reduzir a superlotação carcerária e processual. Contudo, é indispensável reconhecer o papel humano e acolhedor desse método de restaurar o indivíduo pela sua essência humana, pelo respeito com o outro e com o seu mundo e modo de viver. E poder resgatar e recompor sua importância para refletir na sua vida dali para frente com a cura, o perdão e a transformação de seu ambiente de convívio. CONSIDERAÇÕES FINAIS Questionar funções do estado, comportamentos sociais e seus reflexos para com o indivíduo em particular, pode ser algo complexo para conseguir visualizar a finalidade do aprisionamento. Além de ser algo despersonificador, torna-se algo degradante e disfuncional, pois o cárcere é encarregado penas de punir o indivíduo para obter a saciação de uma grande sede de vingança e não de justiça. Para tanto, busca perceber que algo necessita ser feito e que o sistema penal traz consigo um grito de socorro ensurdecedor - que não é ouvido e tampouco26 se tem notícias. Mas, busca-se também entender os motivos que a sociedade possui grande desdém aos presos e a verdade é que nem ela mesma percebe o quanto faz parte dos problemas sociais, uma vez que a sociedade de dentro do cárcere é a mesma de fora do cárcere. Para tanto, não basta apenas criticar todo sistema penitenciário e junto com ele o poder do estado e a sociedade, mas é necessário também apontar soluções para conseguir recuperar o indivíduo que teve/tem contato direto ao cárcere. Sendo assim, a Justiça Restaurativa vem crescendo cada vez mais e tomando seu lugar para a recuperação do indivíduo, ela aborda tudo o que é necessário para conseguir devolver ao presidiário o seu valor humano na sua essência, sem o olhar julgador e oferecer o acolhimento. Além disso, mais do que tentar recuperar o indivíduo inserido no cárcere, a Justiça Restaurativa também possui papel ativo para com outras pessoas que giram em torno do problema taxado como “crime”, ela tenta trabalhar também com a vítima, família, sociedade e entre outros meios. Contudo, fazer a alternância da realidade fática entre a visão e comportamento do estado e sociedade com o sistema penitenciário e apontar grandes soluções através desse novo olhar da Justiça Restaurativa é poder ter um olhar esperançoso de que existe pessoas lutando, não só por justiça, mas pelo ser humano. 27 REFERÊNCIAS AQUINO, Diego Bayer e Bel. Da série “Julgamentos Históricos”: Escola Base, a condenação que não veio pelo judiciário . Disponível aqui . Acesso em: 09 jul. 2018. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 18. ed. Trad. R. Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2003. HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas : o sistema penal em questão. 2. ed. Niterói: Luam, 1997. JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21: Justiça Restaurativa e Processo circular nas varas de infância e juventude. São Paulo: Palas Athena, 09 jul. 2018. OLDONI, Fabiano; SILVA, Pollyana Maria da. Estudos sobre o sistema prisional: da seletividade à ilegalidade. Joinville: Manuscritos Editora, 2017. PELIZZOLI, Marcelo L. 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Desse modo, considerando a premissa exposta, é certo que a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória deve ser sempre vista como exceção, sendo a liberdade a regra, apenas 21 Especialista em Ciências Criminais (FDV). Graduado em Direito (FSG). Professor de Direito Penal e Processo Penal na Faculdade Multivix. Advogado Criminalista. 30 justificando a privação da liberdade nas hipóteses em que esta reste absolutamente inviável e possa causar prejuízos à instrução processual e aplicação da lei penal. São as chamadas prisões processuais, que possuem finalidade instrumental e são denominadas pela doutrina majoritária como “prisões processuais” . 22 No artigo 312 do Código de Processo Penal está a previsão legal dos fundamentos/circunstâncias autorizadoras para a decretação da prisão preventiva, sendo que uma delas é a “garantia da ordem pública”. O fundamento “garantia da ordem pública”, descrita no caput do dispositivo em comento, tem sido objeto de fortes críticas por parte da doutrina, sobretudo em razão da sua recorrente utilização indiscriminada como fundamento genérico para decretação de prisões preventivas, ofendendo, portanto, o princípio da motivação das decisões judiciais, previsto taxativamente no texto constitucional (art. 93, IX da CF), que impõe ao julgador o dever de fundamentação objetiva e lastreada em elementos concretos, devidamente provados. Diante tal constatação, a discussão da temática abordada neste artigo reverte-se de importância ímpar, posto que, ao tratar da liberdade dos cidadãos, bem jurídico intrínseco à dignidade humana, é indispensável a observar a estrita legalidade, não se 22 Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 13 ed. São Paulo:Saraiva, 2010; BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3.ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2015; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 15.ed. Rio de Janeiro, 2011. 31 admitindo investidas punitivas discricionárias do Estado sobre o indivíduo, mormente quando esta resultar na subtração da sua liberdade. Trata-se, portanto, da defesados direitos e garantias fundamentais, interesse de toda a coletividade, uma vez que tais direitos e garantias compõem a espinha dorsal do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, o problema central a ser analisado no presente artigo é voltado para o seguinte questionamento: é possível identificar alguma relação entre a garantia da ordem pública e clamor público, influenciado pela mídia, como fundamento das prisões preventivas? A importância desta pesquisa é evidente, quando se considera as consequências que a decretação de uma prisão preventiva pode acarretar na vida de um indivíduo, principalmente quando tal decisão não esteja amparada por razões concretas, e sua justificação assentada em fundamentação jurídica idônea. Segundo o último diagnóstico de pessoas presas no Brasil, realizado no ano de 2014, pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Sócio Educativas – DMF, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui uma população prisional de 711.463 (setecentos e onze mil quatrocentos e sessenta e três) presos, o que o coloca como a terceira maior população prisional do mundo, atrás somente da China e Estados Unidos. 32 Deste total, 32% deles encontram-se presos provisoriamente, ou seja, sem sentença condenatória. O Estudo divulgado pelo CNJ revelou ainda que a capacidade de vagas do sistema prisional brasileiro é de 357.219 vagas (trezentos e cinquenta e sete mil duzentos e dezenove), o que atesta um déficit de 354.244 vagas (trezentos e cinquenta e quatro mil duzentos e quarenta e quatro). Importa destacar ainda que no Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP) existem 373.911 (trezentos e setenta e três mil novecentos e onze) mandados não cumpridos, o que, portanto, elevaria a população prisional brasileira para 1.085.544 (um milhão oitenta e cinco mil e quinhentos e quarenta e quatro) presos e o déficit de vagas saltaria para 728.235 (setecentos e vinte e oito mil duzentos e trinta e cinco). Estes números revelam um cenário preocupante a respeito do sistema prisional brasileiro, sobretudo no que se refere ao percentual de presos provisórios, que corresponderiam a 227.668 (duzentos e vinte e sete mil seiscentos e sessenta e oito) pessoas privadas de liberdade sem sentenças condenatórias confirmadas. Assim, é de salutar importância questionar as razões pelas quais tantas pessoas encontram-se privadas de sua liberdade sem, no entanto, terem sido condenadas, de modo a despertar especial interesse na análise da problemática apresentada a partir da perspectiva da possível influência do clamor popular e da mídia por medidas de maior rigor punitivo, além 33 do seu impacto na realidade processual e no sistema prisional brasileiro. De antemão, é possível constatar empiricamente que de uma forma geral a população brasileira desperta especial interesse por notícias vinculadas na mídia relativas à criminalidade, violência e especialmente à atividade persecutória policial. Acrescenta-se ainda que muito do que a população conhece ou julga conhecer sobre o sistema de justiça criminal e circunstâncias relacionadas à legislação criminal é transmitido pelos meios de comunicação, os quais, por não possuírem conhecimentos técnicos específicos ou por tendenciosamente buscarem interferir na opinião pública, na maioria das vezes, divulgam (des) informações que se afastam da realidade. Desse modo, ainda que sem a pretensão de exaurir as discussões sobre a temática abordada, acredita-se que o presente estudo tem como contribuição a possibilidade de fomentar o debate, bem como provocar reflexões para possíveis propostas de contenção do discurso punitivista e conhecimento vulgarizado da questão criminal, a partir de uma abordagem crítica do sistema de justiça criminal, sobretudo no que se refere à influência da mídia nas questões criminais. 34 1. A PRISÃO PREVENTIVA: UMA ANÁLISE À LUZ DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA A partir da Constituição de 1988, o princípio da presunção de inocência foi alçado no ordenamento jurídico brasileiro como norma fundamental, passando a compor o catálogo das cláusulas pétreas, insuscetível, portanto, de supressão, por força do disposto no art. 60 §4º, IV, inclusive por meio de emenda ao texto constitucional. Desse modo, a ordem constitucional vigente, diferentemente da constituição anterior (1967), passou a assegurar de maneira expressa – que antes sequer existia – como direito fundamental, a presunção da inocência dos indivíduos submetidos a processos de qualquer natureza, estabelecendo, como corolário lógico de tal presunção, a vedação de privação de liberdade antes de sentença condenatória transitada em julgado, excetuando as hipóteses de flagrância e aquelas determinadas por juiz competente e mediante decisão devidamente fundamentada. Assim, é certo que a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória deve ser sempre vista como exceção, sendo a liberdade a regra e apenas se justificando a sua utilização nas hipóteses em que ela (liberdade) se apresente como situação 35 absolutamente inviável e prejudicial à instrução processual e aplicação da lei penal. Em relação ao princípio da presunção de inocência, BADARÓ afirma a possibilidade de extrair de seu 23 conteúdo três significados, a saber: a) garantia política; b) regra de tratamento do acusado e c) regra probatória. Em relação ao significado da garantia política, afirma o referido autor que é inconcebível um Estado Democrático de Direito que não adote o sistema processual penal de natureza acusatória e como reflexo direto deste o in dubio pro reo, de modo que a presunção de inocência é um princípio básico de um modelo de processo penal dedicado a respeitar a dignidade da pessoa humana e os direitos dela decorrentes. Quanto ao significado da regra de tratamento, assevera que, em decorrência do princípio da presunção de inocência, é vedado atribuir ao acusado no processo penal a qualidade de culpado e a clara visualização deste sentido está na impossibilidade de serem realizadas prisões processuais automáticas ou obrigatórias, baseadas tão somente na existência de um processo criminal ondese busca a apuração da autoria e materialidade de determinado fato delituoso. Quanto ao significado da regra probatória, decorre a exigência de que a garantia de presunção de inocência seja utilizada como regra de julgamento. 23 BADARÓ. Processo penal…, pp. 57-58. 36 Logo, na existência de dúvida quanto a responsabilidade penal do acusado, o melhor caminho a percorrer é a absolvição. Ou seja, para que se afirme uma condenação, é imperioso a presença de provas relevantes quanto a autoria e materialidade delitiva, sem as quais, impera a regra do in dubio pro reo. Portanto, dentro de um sistema normativo constitucional que se assenta sob a égide de um Estado Democrático de Direito, outra visão senão a de que a situação de inocência é garantia fundamental e sua prevalência é inafastável seria inadmissível, posto que estaria em confronto com o núcleo principal do sistema garantidor que a Constituição, ao menos formalmente, se propõe a estabelecer. Em sentido semelhante, enaltecendo a importância do sistema processual penal de estrutura acusatória e alocando o estudo da presunção de inocência no campo da culpabilidade, LOPES JÚNIOR chama a 24 atenção para que a formação da culpa seja determinada por meio do contraditório, onde o magistrado deva manter-se alheado do movimento probatório. Com isso, busca-se atribuir às partes (acusação e defesa) a atividade probatória, sendo que, na hipótese de dúvida quanto à culpabilidade e em observância ao princípio da presunção de inocência, deverá o magistrado absolver ao acusado. O princípio da presunção de inocência, quando analisado a partir de um dever de tratamento ao 24 LOPES JR. Direito processual penal…, p. 92. 37 acusado e sob a perspectiva do estudo da culpabilidade, impõe limitações ao poder punitivo, tanto dentro do processo quanto fora dele, de modo que a prevalência da inocência seja um verdadeiro obstáculo à discricionariedade punitiva estatal. Nesse sentido, LOPES JÚNIOR destaca que 25 Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – inicialmente – ao juiz, determinando que a carga de prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?). Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência. 25 LOPES JR. Direito processual penal…, p. 93. 38 À luz da presunção de inocência, resta evidente que não há medida cautelar mais aflitiva e causadora de danos ao indivíduo do que a prisão preventiva, posto que é naturalmente degradadora socialmente e estigmatizante, uma vez que ao indivíduo privado de liberdade preventivamente, ainda que após o processo reste provado sua inocência, terá, em decorrência da sua passagem pelo cárcere, a etiqueta de criminoso conferida pela sociedade, afetando diretamente a sua imagem perante seus pares. Em que pese as considerações feitas em relação ao princípio da excepcionalidade da prisão preventiva, a realidade brasileira tem se mostrado distante do postulado ora comentado, uma vez que na prática forense é comum o uso indiscriminado da prisão preventiva, mesmo quando outras medidas seriam suficientes para a preservação da instrumentalidade processual. Tecendo severas críticas ao atual cenário das prisões preventivas na realidade brasileira, LOPES JÚNIOR 26 assevera que No Brasil, as prisões cautelares estão excessivamente banalizadas, a ponto de primeiro se prender, para depois ir atrás do suporte probatório que legitime a medida. Ademais, está consagrado o absurdo primado das hipóteses sobre os fatos, pois se prende para investigar, quando, na verdade, primeiro se 26 LOPES JR. Direito processual penal…, p. 602. 39 deveria investigar, diligenciar, para somente após prender, uma vez suficientemente demonstrados o fumus commisssi delicti e o periculum libertatis. Em se tratando de medidas cautelares, dentre elas a prisão preventiva, há ainda de ser destacado o princípio do contraditório ou “contraditoriedade” . 27 A lei 12.403/2011 inovou positivamente ao acrescentar no ordenamento processual a exigência prevista no § 3º do artigo 282 de que, “ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo”. Desse modo, em se tratando de medidas cautelares, a regra a ser observada, quando inexistente o prejuízo da ineficácia da medida, é a abertura do contraditório ao acusado para que se manifeste sobre eventual necessidade da medida cautelar, e após manifestação, ao magistrado, verificando a necessidade da medida, será possível decretar a sua incidência no caso concreto, desde que observando sempre a instrumentalidade das medidas cautelares, em especial a prisão preventiva. Oportuno destacar ainda que as audiências de custódias , hoje uma realidade na prática processual 28 27 BADARÓ. Processo penal…, p. 959. 28 A resolução nº 2013/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamenta as Audiências de Custódia. 40 brasileira, veio em boa hora reforçar a garantia do contraditório no sistema das medidas cautelares, surtindo especial efeito positivo no que se refere às prisões preventivas, posto que, por meio de tais audiências, ao magistrado é conferida a possibilidade de averiguar no caso concreto a necessidade da manutenção da segregação da liberdade do acusado preso em flagrante delito, evitando assim a prisão de indivíduos indistinta e indevidamente. A prisão preventiva deverá, portanto, ser excepcional e se justificará temporalmente enquanto subsistir a situação que lhe justificou inicialmente, edesde que, decretada para resguardar a eficácia do provimento judicial final do processo. Tecidas essas considerações gerais a respeito das prisões preventivas e a necessidade de observância do princípio da presunção de inocência, importa-nos apresentar e analisar a relação existente entre mídia e a questão criminal. 2 A QUESTÃO CRIMINAL E SUA RELAÇÃO COM A MÍDIA: A CONTRIBUIÇÃO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA A exploração pela mídia de casos criminais desperta especial atenção na população em geral, além de se apresentar como um elemento sempre presente nos informativos diariamente consumidos, muitas vezes 41 como principal forma de informação de um número imenso de pessoas. Essa relação entre a mídia e as questões criminais desperta interesse para fins de discussões e pesquisas de cunho científico-acadêmico a partir do momento que se verifica que parte da mídia extrapola o limite, saindo da sua função comunicativa para uma função política na cobertura das questões criminais, passando, portanto, a interferir diretamente no sistema penal. Nesse aspecto, Batista afirma que a relação acima 29 destacada é “característica dos sistemas penais do capitalismo tardio”, tendo como uma das principais funções dos mecanismos midiáticos a legitimação do sistema penal, mediante uma espécie de parceria entre o sistema punitivo e os operadores midiáticos. O renomado autor ainda afirma que [...] quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um processo em curso, e assume diretamente a função investigatória ou promove uma reconstrução dramatizada do caso – de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução processual -, passou a atuar politicamente. 30 29 BATISTA. Discursos sediciosos..., p. 271. 30 BATISTA. Discursos sediciosos..., p. 276. 42 Empiricamente é possível perceber que a mídia “[...] legitimou [quase sempre] intensamente o poder punitivo exercido pela ordem burguesa, assumindo um discurso defensista-social [...]” , sobretudo em 31 face dos setores sociais marginalizados e das minorias afastadas dos setores hegemônicos da sociedade. Ocupou-se, portanto, no papel de legitimação do sistema punitivo. O discurso comum e dominante da mídia em relação à questão criminal é voltado para afirmação da crença punitiva, firmado na ideia de que a pena e decretos de prisões, ainda que antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, são o remédio de resultado instantâneo para os problemas sociais que estão intimamente relacionados aos atos criminosos. Nesse cenário, verifica-se que o discurso midiático em torno da questão criminal impede o surgimento e desenvolvimento de um ambiente argumentativo democrático, pois inviabiliza a possibilidade de o receptor da informação conhecer pontos de vista diversos a respeito daquela notícia veiculada. Ademais, quanto ao credo da pena como solução imediata para os conflitos sociais decorrentes da questão criminal, a aceitação da ideia de que a ascensão de um Estado Penal, mediante o aumento da utilização das prisões preventivas, bem como o recrudescimento da legislação é a melhor saída a ser adotada. Batista , em tom de crítica, assevera 32 31 BATISTA. Discursos sediciosos..., p. 272. 32 BATISTA. Discursos sediciosos..., p. 274. 43 [...] alguém se recorda da última vez em que a promulgação de uma lei criminalizante foi objeto de crítica pela imprensa? Também aqui pouco importa que a criminalização provedora seja uma falácia, uma inócua resposta simbólica (com efeitos reais) atirada a um problema real (com efeitos simbólicos) No mesmo sentido, é perfeitamente aceitável a afirmação de Cardoso , no sentido de que 33 [...] o discurso criminológico dominante nos meios de comunicação se presta a reivindicar e aplaudir a criminalização de condutas como solução milagrosa dos problemas sociais, sem que haja uma maior ponderação crítica diante da tendência de inchaço contínuo do poder punitivo do Estado. Tendo em vista a constatação de que a relação da mídia e o sistema penal apresenta contornos que extrapolam o campo da dogmática jurídica e avançam no campo da sociologia política, aparenta-se como possível a adoção do discurso próprio da criminologia crítica para permitir a superação do paradigma clássico a respeito do sistema penal e avançarmos dialeticamente em direção a reflexões que apresentem hipóteses que 33 CARDOSO. Discurso criminológico “acientífico”..., p. 418. 44 possam contribuir para a construção de um discurso alternativo ao atual discurso acrítico e punitivo perpetrado através da mídia. Relevante destacar que a adoção da criminologia, sobretudo aquela de viés crítico, será adotada como “[...] recurso interpretativo dos sintomas contemporâneos e não como método ou técnica para estudo [...]”. Desse modo, valemo-nos da criminologia crítica “[...] no sentido de pensar com a criminologia e não restar limitado à sua descrição histórica e/ou ao desenvolvimento de suas principais teorias”. 34 Portanto, com a adoção desse discurso criminológico crítico, é possível superar as funções declaradas do sistema penal e possibilitará adentrar no terreno obscuro do direito pe nal clássico, para expor as suas reais funções, e a partir daí verificar em que medida a questão criminal sofre interferência do discurso midiático, sobretudo, naquilo que se refere às prisões preventivas, fundamentadas na garantia da ordem pública. 2.1 O CONHECIMENTO VULGARIZADO DA QUESTÃO CRIMINAL: “CRIMINOLOGIA MIDIÁTICA” E O POPULISMO PENAL A violência, a criminalidade, o sistema penal, bem como seus desdobramentos são constantemente objeto de estudo e discussões no âmbito acadêmico, donde se extrai grande conteúdo científico em 34 CARVALHO. Antimanual de criminologia…, p. 45. 45 relação à questão criminal. Trata-se, pois da “criminologia acadêmica”. 35 O discurso criminológico produzido no interior da academia é construído paulatinamente, após longos debates e confronto dialético de pensamentos diversos, fundando-se empiricamente em pesquisas e contribuições doutrinárias de autores consagrados e detentores de respeitável confiabilidade, posto que construídas com afinco e em observância de irretocável rigor científico. Entretanto, em contraponto ao conhecimento científico e o discurso criminológico acadêmico,há um conhecimento vulgarizado da questão criminal, que se manifesta por meio dos meios de comunicação de massa. Trata-se do que Zaffaroni convencionou 36 chamar de “criminologia midiática”. Muito, ou quase tudo do que a população conhece – ou acredita conhecer - a respeito da questão criminal decorre desse discurso criminológico midiático que possui como principal característica a capacidade de “[...] criação de uma realidade através de informação, subinformação e desinformação em convergência com preconceitos e crenças baseada em uma etiologia criminal simplista [...]”. 37 35 ZAFFARONI. A questão criminal…, p. 193. 36 ZAFFARONI. A questão criminal…, p. 193. 37 ZAFFARONI. A questão criminal…, p. 193. 46 Assim, no que toca ao conhecimento da população em geral a respeito da questão criminal, Zaffaroni 38 assevera que [...] as pessoas que todos os dias caminham pelas ruas e tomam o ônibus e o metrô junto a nós têm a visão da questão criminal que é construída pelos meios de comunicação, ou seja, se nutrem – ou padecem – de uma criminologia midiática. A narrativa midiática sobre a questão criminal é desprovida de sustentação empírica e funda-se essencialmente em um discurso pautado no senso comum que corrobora para a construção de uma imagem distorcida sobre os problemas relativos à criminalidade, violência e conflitos sociais decorrentes do cometimento do ilícito penal. Ou seja, trata-se de um mecanismo argumentativo descompromissado com o conhecimento e que necessita ser produzido e reproduzido imediatamente, sob pena de tornar-se ultrapassado. A respeito do discurso midiático em relação a questão criminal, é relevante considerar também o fato de que o tempo da mídia não corresponde ao tempo da produção do conhecimento e discurso acadêmico, uma vez que, em razão da natureza comercial voltada para o lucro financeiro, e da satisfação imediata dos espectadores pelo produto oferecido, ali não há 38 ZAFFARONI. A questão criminal…, p. 194. 47 espaço ou condições democráticas para o desenvolvimento de um raciocínio construído através da dialeticidade argumentativa, de modo que o discurso único se torna o discurso verdadeiro. Assim, a abordagem midiática da questão criminal, assentado em seu discurso solipsista e recheado de senso comum presta um verdadeiro desserviço, posto que contribui para o crescimento de uma mentalidade coletiva punitiva e pautada na causalidade simplória da questão criminal, pois inviabiliza a análise crítica do contexto estrutural em que se desenvolve os conflitos sociais decorrentes do cometimento de ilícitos penais. Assim, verifica-se que [...] na criminologia midiática, de uma maneira geral, se percebe a constante necessidade de que os discursos sejam dirigidos ao público de modo a fazer com que a sociedade deposite esperança no sistema penal e tenham nele a principal ferramenta de combate à violência e a criminalidade. 39 Demonstrando preocupação em relação ao discurso da criminologia midiática e seu poder de dissuasão junto à população, Zaffaroni em sua obra “A questão Criminal”, assevera a necessidade de uma “criminologia militante” , no sentido de que o 40 39 BERMUDES; SILVA. Criminologia midiática…, p. 7. 40 ZAFFARONI. A questão criminal…, p. 296. 48 discurso criminológico acadêmico ecoe além dos muros da academia. Ou seja, é preciso que o criminólogo e o cientista acadêmico desça de sua torre de marfim e que se faça presente junto à população, de modo a demonstrar que o discurso midiático não é o único existente, e assim expor a falácia e insubsistência de suas funções declaradas para expor sua real função. Nesse sentido, assevera o referido autor que [...] cabe um papel importante ao mundo acadêmico latino-americano se, em lugar de se fechar em seus cubículos universitários, olhando para o próprio umbigo, opta por uma atitude militante, de comunicação com as pessoas; se é capaz de ir aos meios de comunicação e aos bairros, de comunicar o que se sabe e de organizar a neutralização da pulsão vingativa. 41 Em sentido análogo à proposta de Zaffaroni, Baratta 42 assevera que no atual contexto de prevalência do discurso midiático e do conhecimento vulgarizado e acientífico da questão criminal, para que possamos influenciar dentro da opinião pública e fazer frente ao discurso midiático, é fundamental o entrave de uma “[...] batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade” e acrescenta 41 ZAFFARONI. A questão criminal…, p. 297. 42 BARATTA. Criminologia crítica…, p. 205. 49 ainda que “para este fim é necessário promover sobre a questão criminal uma discussão de massa no seio da sociedade e da classe operária”. É essencial, portanto, para a superação ao discurso da criminologia midiática e a apresentação de uma via alternativa de conhecimento, que proporcionará o acesso da população ao discurso acadêmico, que os criminólogos críticos assumam o dever cívico de se engajar na divulgação do discurso crítico além dos quatro muros da academia. É necessário, portanto [...] democratizar o discurso sobre o crime e a criminalidade e contrapor as ponderações da criminologia crítica no espaço público. Neste ponto, o acesso aos meios de comunicação é crucial. 43 No mesmo alinhave à proposta de Zaffaroni, encontra-se a ideia desenvolvida por Gregg Barak, denominada “newsmakingcriminology”, que, em resumo, consistiria na intervenção midiática sobre as questões criminais pelos criminólogos, possibilitando o compartilhamento do conhecimento acadêmico com a população. Nesse sentido, Barack assevera que 44 43 CARDOSO. Discurso criminológico “acientífico”..., p. 421. 44 CARDOSO. Discurso criminológico “acientífico”..., p. 422. 50 Dentro das contradições da sociedade burguesa avançada, o sucesso ou o fracasso na newsmakingcriminology dependerá das inclinações ou habilidades dos criminólogos e outros de desenvolver relacionamentos com o pessoal e os processos internos à produção noticiosa. Ganhar acesso a redes de comunicação em massa, local ou nacional, é problemático, mas sem acesso direto, criminólogos não serão capazes de participar da construção em massa do crime ‘sério’ e do controle criminal. Portanto, em face do discurso criminológico midiático e de seu enorme
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