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Produção do cineasta Zózimo Bulbul bolição-100 anosA Síntese Crítica do documentário Produzido por Ana Gabriela Vasconcelos Cavalcante Licencianda em História pela UFRPE A proposta do cineasta negro Zózimo Bulbul em ‘Abolição’, demonstra de forma evidente desde o inicio de sua tessitura a intencionalidade central: questionar as implicações da lei de 13 de maio de 1888, cem anos após a sua promulgação. Para subsidiar tal questionamento, abre-se um campo de diálogos que apontam diferentes narrativas acerca da dita abolição da escravatura partindo de diferentes sujeitos que, a partir dos lugares sociais que respectivamente ocupam, explanam suas experiências e concepções acerca da proposta central. Desse modo, as distintas abordagens às quais somos expostos enquanto espectadores vão interagindo com a realidade que persistentemente é apresentada nas cenas de plano de fundo e nas explanações centrais. Como recortes e fragmentos de matérias jornalísticas que reiteram a marginalização e subalternização do povo negro, bem como as cenas dos centros urbanos e de locais socialmente elitizados, nos quais a presença negra é apresentada majoritariamente ocupando o lugar de miserabilidade e dos subempregos, apesar de ideias que circundam no imaginário social de que a abolição foi efetiva e de que o Brasil é o país da ‘democracia racial’. Assim, com uma incitação à percepção crítica, a construção que é feita vai permitindo- nos questionar de forma autônoma a problemática exposta. Digo de forma autônoma, sem preterir, entretanto, os conhecimentos que são apreendidos pela magnitude e potência da produção. Mas, o faço ao considerar que o documentário consegue extrair de nosso interior as nossas próprias percepções sobre a realidade que se apresenta e sobre esse passado histórico (que permanece tão presente na sociedade), haja vista os mecanismos de naturalização das opressões raciais atuantes no Brasil que tendem ao silenciamento e adormecimento da criticidade e do combate ao racismo. Desse modo, ‘Abolição’ figura-se também como um convite à luta antirracista. A estética e a fotografia vão sendo montadas com a apresentação de obras de arte que retratam o sistema escravista, assim que se inicia o documentário. A sensação de incômodo e agonia torna-se inevitável. E assim, mergulhamos na obra com o olhar já impregnado por esta visão, que vai se mesclando com uma revolta quando numa espécie de cronologia montada simbolizando o cenário de 12, de 13 e de 14 de maio, - assim correspondendo ao antes, durante e após a abolição- é evidenciada a estrutura de permanência daquilo que havia sido tido como superado. Ainda nos minutos iniciais, em uma sala de aula aparece ao fundo um quadro negro com o seguinte questionamento provocativo: ‘Abolição- uma farsa?’. E em sequência são apresentados argumentos que apontam para uma explicação. Como se pode abolir um sistema que durante vários séculos subjugou e dizimou os povos africanos, sem prever uma indenização, uma reforma agrária e um lugar para que essa população viesse ocupar na sociedade? Se durante a vigência da escravatura os negros ocupavam um lugar bem definido na sociedade, que sim era cruel e desumano, mas ainda assim era um lugar, após a abolição desse sistema tais sujeitos passaram a ocupar um não-lugar social, o que acabou tornando-os uma massa flutuante entre a cidade e o campo, desempregada e largada ‘a própria sorte’. Esse estado foi conscientemente e institucionalmente previsto por um projeto político de eugenia, que destinou os “espaços desocupados” no âmbito do trabalho aos imigrantes que com incentivo estatal chegaram massivamente ao Brasil. O intuito das elites dominantes se fazia claro: embranquecer o país através da miscigenação, para que assim em questão de tempo não houvesse mais pessoas negras. A encenação teatral de fantoches que é mostrada em recortes, pelo uso de uma comicidade e de uma linguagem mais aberta e informal, acaba ecoando de forma mais audível e se fixando nas nossas apreensões, o que é muito positivo, pois impacta diretamente o nosso olhar. Quando, por exemplo, em uma das cenas apresentadas o personagem negro em resposta a uma incitação da personagem que representa a neta da princesa Isabel, questionando a efetividade da abolição, de forma sarcástica enfatiza que em linguagem vulgar ela pode significar “que os negros vão pra puta que pariu”. Seguindo a farsa da abolição, a proclamação figurou-se como uma tentativa das elites brasileiras de entrar no capitalismo sem a integração dos negros, substituindo-os, como já fora mencionado, pelos imigrantes brancos. Assim, o cenário se arquitetava tencionando excluir a população egressa do cativeiro de ‘toda a capacidade de nacionalidade e de cidadania’. Isso se torna evidente quando são considerados os debates que aconteciam na câmara antes e depois da dita abolição, com a derrota do partido liberal e de seu projeto político que previa a concessão de terras aos negros, defendido pelo deputado negro André Rebolças e apoiado pelo também político negro José do Patrocínio e pelo abolicionista branco Joaquim Nabuco nas vésperas de 12 e 13 de maio. Em detrimento, o projeto vencedor na câmara foi aquele que objetivava a abertura do país a imigração massiva de europeus. Desse modo, é desconstruída a ideia de que a abolição possibilitou a proclamação e se fez possível objetivando alimentar as indústrias com a mão de obra negra, para que o país adentrasse assim no processo capitalista de produção. E, no contexto do centenário, é evidenciado que a articulação política mantém-se majoritariamente nas mãos de uma elite oligárquica branca, desse modo a penetração dos sujeitos negros nesses espaços de poderio torna-se dificultada, o que implica num estado de escassez de direitos efetivamente garantidos na prática a população negra. A exclusão social do negro o levou a buscar outras formas culturais e políticas de resistência, como o movimento capoeirista, o refúgio na religiosidade. Entretanto, a república mostrou-se como um aparelho estatal ainda mais repressivo. Pois, enquanto no império o escravizado era controlado basicamente pelos senhores escravagistas, no sistema republicano tal controle era efetivado numa esfera ainda maior, pelo Estado que dispunham de dinâmicas mais eficientes para a repressão. Desse modo, a principal problemática que se figurou no cenário de ruptura com a escravidão e transferência para o modelo republicano de poder foi à falta de inclusão da população negra no mercado de trabalho. E, como pode uma população ascender socialmente, num cenário profundamente opressivo onde as estruturas que fundamentam a sociedade são racistas? Contudo, apesar de mostrar-se como veículo de denúncia a toda forma de manutenção das opressões racistas, a cinematografia de Zózimo Bulbul não deixa de veicular em si as narrativas de resistência e de liberdade, mesmo antes do cenário abolicionista, com a formação e resistência dos Quilombos, numa dinâmica que se organizava em combate ao sistema vigente. Desse modo, é explorado também o contexto de ascensão dos Movimentos Negros no Brasil no inicio da década de 70, com destaque a formação do MNU (Movimento Negro Unificado), como reflexo de um conjunto de implicações internas e externas. E, mais propriamente no cenário externo, a luta dos movimentos antirracistas e decoloniais efervescem. Países africanos vivenciam processos de embate pela sua independência, iniciando-se em meados da década de 50 e ganhando ainda mais força em 60, com o destaque de líderes que, para além de condutores da luta de seu povo, tinham uma relevância e uma força intelectual que causavam impacto para além de África. Outro fator motivador apontado que embora fosse mais distante geograficamente e culturalmente do Brasil, o influenciou profundamente foi a luta por direitos civis que explodia nos Estados Unidos, liderada pelos negros norte americanos, que questionavam as opressões racistas aos quais eram vitimas. Ademais, os paíseslatino-americanos lutavam para romper os laços do colonialismo. Numa perspectiva cultural, os diálogos apresentados pelo documentário demonstram que o samba negro foi concebido como movimento de resistência, e nesse ponto é tecido uma crítica à mercantilização da cultura popular, que a fim de tornar um produto comercializável rejeita a essência e as origens de tal manifestação artística, assim como os periódicos inicialmente abolicionistas e que retornam como mecanismo de denúncia ao racismo, mas, sobretudo como veiculo de disseminação da intelectualidade e cultura da negritude, como especial destaque para ‘O Clarim da Alvorada’ e ‘A Voz da Raça’. Nessa dinâmica, também como veiculo de protesto e elevação da negritude é concebida a Frente Negra Brasileira, que atua fomentando a ocupação de espaços na sociedade, para que o negro conseguisse sua independência econômica, tendo inclusive o objetivo de fundar um partido político negro. Porém, o contexto do Estado Novo levou ao seu fechamento, por ser compreendida como uma entidade de classe. Um ponto bastante interessante que a produção aborda é a fundação em 1940 do Teatro Experimental Negro. Com o intuito de resgatar os valores de África no Brasil, rompendo com as concepções ‘folclorizantes’ e com as construções imagéticas estereotipadas vinculadas as representações do negro na dramaturgia brasileira. Além disso, ocupar esse espaço é direito da população negra, cujos ancestrais subjugados pelo cativeiro construíram com sua força de trabalho o Brasil. Nesses pontos a cinematografia do Zózimo Bulbul, inclusive, acha-se em consonância, na busca por novas representações da negritude no cinema. Dessa forma é possível refletir também sobre a constituição das estéticas negras numa sociedade onde o padrão de beleza e civilidade é eurocêntrico e racista, quando no decorrer do documentário, em uma das falas é feita a seguinte ponderação: “Nossa beleza sempre foi ocultada, só quem via nossa beleza eram as nossas mães pretas, as mais velhas que ajudavam nos abortos e enterravam os fetos nos quintais. e assim a gente foi crescendo sem horizontes”. E apesar de questionar os lugares de subalternidade relegados às mulheres negras, que após a abolição tornaram-se o sustentáculo central da família brasileira. Contudo, se faz muito pertinente à participação e ao discurso da Benedita Silva, primeira vereadora negra do Rio de Janeiro. Pois, permite ao espectador não olhar a história a partir de uma única perspectiva, pois uma história única acaba fomentando estereótipos e fazendo prevalecer a narrativa do opressor. Além disso, o diálogo proposto com o movimento camponês que explana a atuação da liga camponesa, liderada por Francisco Julião acaba por reiterar o impacto da falta de uma reforma agrária na não conclusão da abolição. Assim, produzido e estreado no centenário da abolição, o longa-metragem intitulado com a mesma nomenclatura, incita o questionamento sobre a veracidade de tal ruptura. Quais as transformações palpáveis que se fizeram possíveis? Para além da falta de assistência e exclusão, foram criados de mecanismo de imobilismo social para os negros, ademais a consolidação da modernização permitiu o aperfeiçoamento das engrenagens de opressão. Por fim, evocando uma das indiscutíveis colocações do historiador francês Marc Bloch, ao ponderar que “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado (2001, p. 65)”, surge o questionamento: como é efetivamente possível discutir esse passado objetivando compreender e modificar o presente, quando ele persistentemente é ameaçado de silenciamento e apagamento? Desse modo, o resgate da memória negra não deve ser visto apenas como direito, mas como profunda necessidade. E nesse ponto a cinematografia de Zózimo em ‘Abolição’ cumpre sua finalidade ao propor novas representações do corpo negro em cena e a possibilidade de vislumbre de novos horizontes de transformações e reparação histórica. Direção: Zózimo Bulbul Roteiro Zózimo Bulbul Elenco: Camila Amado, Benedita da Silva, Grande Otelo, entre outros. Nacionalidade: Brasil Distribuidor: Embrafilme Ano de produção: 1988 Tipo de filme: longa-metragem Duração: 2h 30min Ficha Técnica https://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-18270/ https://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-18270/ https://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-590627/ https://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-687125/ https://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-6744/
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