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F u n d a m e n to s e M e to d o lo g ia d o E n s in o d e H is tó ri a Henrique Rodolfo Theobald Fu nd am en to s e M et od ol og ia d o En si no d e Hi st ór ia He nr iq ue R od ol fo Th eo ba ld Fundamentos e Metodologia do Ensino de História Curitiba 2010 Henrique Rodolfo Theobald FAEL Diretor Executivo Maurício Emerson Nunes Diretor Acadêmico Osíris Manne Bastos Coordenadora do Núcleo de Educação a Distância Vívian de Camargo Bastos Coordenadora do Curso de Pedagogia EaD Ana Cristina Gipiela Pienta Secretária Acadêmica Dirlei Werle Fávaro EDITORA FAEL Coordenadora Geral Dinamara Pereira Machado Coordenador Editorial William Marlos da Costa Edição Thaisa Socher Revisão Juliana Melendres Projeto Gráfico e Capa Denise Pires Pierin Ilustração da Capa Cristian Crescencio Diagramação Sandro Niemicz Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária – Cleide Cavalcanti Albuquerque CRB9/1424 Theobald, Henrique Rodolfo T385f Fundamentos e metodologia do ensino de história / Henrique Rodolfo Theobald. – Curitiba: Editora Fael, 2010. 125 p. ISBN 85-64224-26-1 Nota: conforme Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 1. História (Ensino Fundamental). 2. Professores – Formação. I. Título. CDD 372.89 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. Dedico este livro à minha esposa Marisa e aos meus filhos Gabriel e Mariana, que dispensaram seu apoio e torcida por oito finais de semana, um por capítulo, abdicando de atividades de lazer em família. Dedico também ao Grupo de Pesquisa em Educação Histórica, coordenado pelas doutoras Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia Maria Braga Garcia, da Universidade Federal do Paraná, cujas pesquisas permitiram funda- mentar teoricamente as proposições aqui apresentadas, e ao Grupo de Professores de História do Município de Araucária, seio no qual pude dar vazão aos questionamentos em torno do ensino de história. Uma dedicação especial a todos aqueles que já foram meus alunos, que com seus rostos de inquietude, suas perguntas em sala, suas manifestações de dificuldades e sucessos na relação com o conheci- mento, permitiram que eu desenvolvesse questionamentos em relação ao processo ensino-aprendizagem e instigaram a minha “curiosidade epistemológica”, lançando-me à pesquisa sobre o ensino de história. Por último, mas não menos importante, dedico a você leitor, formado ou em formação, razão principal da elaboração desta obra idealizada pela Fael, a quem agradeço por ter depositado sua confiança em meu trabalho. apresentação A formação do professor tem sido alvo de várias discussões, refle- xões e publicações. Tem integrado as propostas governamentais para a educação e tem sido objeto de investigações que envolvem pontos es- pecíficos à formação inicial, como aspectos inerentes à dinâmica que envolve o dia a dia da escola e a formação continuada de professores. Nessa direção, a temática formação de professores precisa ser pensada e discutida constantemente, envolvendo principalmente aqueles que es- tão envolvidos de forma direta nesse campo. Por meio de estudos e debates sobre questões educacionais como cur- rículo, ensino, aprendizagem, fundamentos e métodos, é possível alavancar um processo de reflexão sobre a prática desenvolvida no interior da escola, espaço diretamente vinculado à formação dos professores. Nesta obra, Henrique Rodolfo Theobald, professor de história do Ensino Fundamental, mestre em educação e pesquisador do grupo de investigação em educação histórica, propõe uma discussão voltada aos profissionais envolvidos na formação inicial de professores da educação básica, bem como aos alunos que vivenciam a experiência do processo de formação e, de forma bem particular, pretende contribuir com aspectos voltados ao ensino de história. A obra reúne algumas das principais temá- ticas voltadas ao ensino de história: o ensino de história e a formação do professor; os objetivos do ensino de história; as crianças, jovens e adultos e a experiência de relação com o saber na escola; a investigação de ideias históricas de crianças, jovens e adultos; a natureza, seleção e organiza- ção de conteúdos e conhecimentos históricos; a didática específica do en- sino de história; a produção de narrativas em história; e a metodologia do ensino de história. O autor estruturou os capítulos em seções que buscam organizar as discussões propostas, ou seja, em cada etapa do capítulo, ordenou as reflexões fazendo uso de referenciais que subsidiem a temática, bem apresentação como de investigações que vêm sendo sistematizadas, e preocupou-se, fundamentalmente, com o ensino e a aprendizagem em história, tomando como referência a epistemologia da história. Em cada capítulo traz uma seção intitulada “Da teoria para a prá- tica”, que remete a uma reflexão sobre como a temática sistematizada alcança o espaço da vivência em espaço escolar. Dessa forma, convida o leitor a pensar sobre como as discussões que antecederam esta seção podem ser vislumbradas na relação professor-aluno. Na “Síntese”, o autor colabora com a sistematização dos pontos de vista, oferecendo ao leitor uma organização objetiva das discussões. E na seção “Glossário”, explicita o significado de palavras e/ou expressões que foram apresentadas no decorrer do capítulo. A etapa da formação inicial, de forma particular, é o momento em que as reflexões sobre “ser professor” passam a ser vislumbradas. No presente livro, o autor contribui para a formação dos professores e de futuros professores, tornando acessível e detalhando as reflexões que estão sendo sistematizadas pelas pesquisas em educação histórica so- bre o ensino de história. Ana Claudia Urban* * Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como professora no Instituto Superior de Educação Sant’Ana, de Ponta Grossa, e na rede estadual de ensino. É pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica – LAPEDUH/UFPR. apresentação apresentação sumário Prefácio.........................................................................................9 1 O ensino de história e a formação do professor .......................13 2 Objetivos do ensino de história ..................................................21 3 Crianças, jovens e adultos e a experiência de relação com o saber na escola .............................................29 4 Investigação de ideias históricas de crianças, jovens e adultos ..........................................................................47 5 Natureza, seleção e organização de conteúdos históricos ..................................................................59 6 Didática específica do ensino de história ..................................69 7 A produção de narrativas em história .......................................83 sumário 8 Metodologia do ensino de história .............................................97 Referências...............................................................................113 Glossário ...................................................................................121 sumário sumário prefácio 9 Esta obra destina-se a estudantes, professores ou leigos, que de alguma forma atuam ou se interessam pelo ensino de história, e propõe-se a aproximar o leitor de categorias e conceitos desenvolvi- dos pelas pesquisas mais recentes, relacionados aos fundamentos e às metodologias deste ensino. O primeiro passo será situar o ensino e a formação do professor de história na sociedade do século XXI, caracterizada pela aceleração da produção do conhecimento em bases tecnológicas informatizadas. Parte-se do pressuposto de que, na sociedade do conhecimento, a formação inicial e continuada de qualidade é condição inerente à profissão de professor, por constatar que esta condição não é a rea- lidade da maioria dosprofessores, especialmente quando se trata de uma formação continuada que lhes capacite a refletir de forma siste- mática sobre a natureza de sua profissão e sobre elementos importan- tes e fundamentais de sua prática. Com o objetivo de contribuir para a formação inicial e conti- nua da de professores de história, buscaremos responder algumas questões norteadoras sobre o seu ensino na sociedade do conheci- mento, por meio de um diálogo com os textos oficiais e com os estudos mais recentes em torno das temáticas que abordam, para conhecer seus fundamentos e apontar os caminhos que eles nos su- gerem, alicerçados em suas pesquisas. As questões norteadoras sobre os fundamentos do ensino de his- tória, que se buscará analisar neste trabalho, tratam de assuntos como: os desafios que o ensino de história enfrenta na sociedade do conhe- cimento; os objetivos do ensino de história para crianças, jovens e prefácio 10 adultos na sociedade do conhecimento; quem são as crianças, os jo- vens e os adultos e que tipo de relação estabelecem com a escola e o saber na sociedade do conhecimento; quais as ideias que essas crian- ças, jovens e adultos têm sobre a história e seus conteúdos; qual a na- tureza dos conteúdos de história; quais critérios utilizar para definir os conteú dos e conhecimentos históricos a serem trabalhados com crianças, jovens e adultos. Em relação à metodologia do ensino de história, serão abordadas as seguintes questões: se existe uma didática específica da história; onde buscar os conteúdos e conhecimentos históricos a serem tra- balhados; qual a melhor forma para trabalhar esses conteúdos com crianças e jovens; como a criança, o jovem e o adulto vão comunicar o que aprenderam; como avaliar a aprendizagem histórica de crian- ças, jovens e adultos. O ponto de partida para embasar respostas a essas questões são alguns documentos oficiais: os Parâmetros Curriculares Nacionais de História – PCN, de 1998, o Currículo Nacional de História de Portugal, de 2001, e as Diretrizes Municipais de Ensino de História de Araucária, de 2004. Esses documentos propõem encaminhamentos sob perspectivas diferentes e incorporam de forma distinta os resulta- dos das pesquisas em andamento neste campo. Os documentos oficiais serão confrontados com análises de estu- diosos e com resultados de pesquisas sobre as temáticas das questões, optando-se especialmente pelas pesquisas no campo da educação histórica. Por meio de investigações sistemáticas das ideias históricas de crianças, jovens e professores em diversos países, a educação prefácio prefácio 11 prefácio histórica vem construindo uma forma de intervenção pedagógica es- pecífica, alicerçada na ciência histórica, visando qualificar a produção do conhecimento histórico escolar de crianças e jovens em situações de aprendizagem escolar. As pesquisas em educação histórica almejam a formação de uma consciência histórica, ou seja, possibilitar ao sujeito apropriar-se das ideias e conhecimentos históricos nas suas diversas perspectivas, para orientar seu agir no tempo, por meio do desenvolvimento da literacia histórica, que é o domínio das ferramentas de compreensão do passa- do e do pensar histórico. O autor.* * Henrique Rodolfo Theobald é mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como professor da rede municipal de ensino de Araucária e da Faculdade Educacional de Araucária – Facear, e é pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica – LAPEDUH/UFPR. prefácio 13 O ensino e a formação do professor de história na sociedade do século XXI – caracterizada pela aceleração da produção do conhe- cimento em bases tecnológicas informatizadas – passam por transfor- mações. De um lado, a produção do conhecimento histórico, como todo conhecimento, está muito dinamizada. De outro lado, os alunos chegam à escola com uma gama cada vez maior de informações, muitas vezes fragmentadas e desconexas. Essa realidade torna a formação inicial e continuada de qualidade condição inerente à profissão de professor, principalmente por consta- tar que essa formação que capacita e instrumentaliza para uma reflexão sistemática sobre a natureza de sua profissão e sobre elementos funda- mentais de sua prática, não estão ao alcance da maioria dos professo res e sistemas de ensino. Isso acontece mesmo estando a formação conti- nuada apontada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e reafir- mada nas metas do Plano Nacional de Educação (2001). Esse professor mais qualificado tem características de professor/ pesquisador, produtor de saberes, que desenvolve nos alunos compe- tências específicas da natureza da história. Desafios do ensino de história e da formação do professor A tarefa de ensinar história para crianças, jovens e adultos, em tem- pos de uma sociedade em transição do capitalismo industrial para um ca- pitalismo pós-industrial ainda emergente, apresenta-se como um desafio para professores com formação e licenciatura na área de história, pois, em tese, dominam os fundamentos, as metodologias e a ciência históricas. O ensino de história e a formação do professor 1 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 14 As mudanças que ocorrem em nossa sociedade e na vida das pessoas que nela vivem são históricas, e têm recebido diversas deno- minações de pesquisadores e pensadores: sociedade pós-industrial ou pós-moderna (LYOTARD, 1989), sociedade informática (SCHAFF, 1995), sociedade do conhecimento (TOFFLER, 1990), sociedade tecnizada (MACHADO, 1993) e sociedade em rede (CASTELLS, 1999). Nesta obra optamos por se referir a essa sociedade como socie- dade do conhecimento. Sobre as origens das dificuldades com que se deparam os profes- sores recém-formados na sociedade do conhecimento, Fonseca tece a seguinte consideração: [...] a postura de perplexidade dos recém-formados diante da complexidade da educação escolar é atual e não exclusiva da área de história. É resultado da concepção de formação docen- te, consagrada na literatura da área como modelo de raciona‑ lidade técnica e científica ou aplicacionista (2005, p. 62). Fonseca refere-se ao modelo de formação que privilegia a teoria, com pouca formação teórico-prática, como sendo um dos responsáveis pelas dificuldades que os professores enfrentam quando assumem a sala de aula. Para professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, com for‑ mação generalista, sem licenciatura específica em história, ensinar histó- ria parece ser uma tarefa ainda mais desafiadora. Segundo Talamini, Os cursos que formam pedagogos têm em sua grade curricular, em geral, disciplinas que se preocupam em instrumentalizar os professores para trabalhar com o conhecimento histórico; no entanto, essa formação pode ser considerada como insuficiente, já que a carga horária é bastante limitada para abranger a com- plexidade da formação para o ensino das disciplinas específicas. Além disso, os professores generalistas precisam se preocupar também com os conteúdos e metodologias das outras áreas de conhecimento, já que são responsáveis pelo desenvolvimento das aulas em todas as disciplinas escolares (2009, p. 4-5). Se de um lado existe a questão da formação generalista, de outro o dia a dia da sala de aula traz outras preocupações que dificultam o trabalho com as disciplinas específicas, como a história. Outra questão a ser destacada é o fato de que, nesse nível de ensino, os professores estão demasiadamente preocupados – e Capítulo 1 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 15 não sem motivo – com a alfabetização em língua materna e, como consequência, trabalham pouco com as outras áreas do conhecimento, dentre elas a história, como observei muitas vezes nas minhas experiências como professora e informal- mente na relação com muitos colegas em diferentes escolas (TALAMINI, 2009, p. 5). A experiência de Talamini pode ser tomada como parâmetro de que ensinar a ensinar históriapor meio de um livro pode ser uma tarefa em que o desafio toma proporções exponenciais, diante do exposto asso- ciado a pouca produção de bibliografia na área, que pode estar ligado à tradição da racionalidade técnica e científica já apontada por Fonseca. Outro problema a ser superado pelo ensino de história é a presença de certo conservadorismo, como constata Rocha Não se pode, por outro lado, dissociar o professor do espaço onde exerce suas atividades. Tanto na rede pública quanto na rede privada de ensino de 1º e 2º graus observa-se a predomi- nância de atitudes conservadoras em relação à história e seu ensino. Pela insistência na repetição dos mesmos conteúdos e formas de transmiti-los se produziu um modelo escolar de história, difícil de ser superado. As inovações produzidas no conhecimento histórico que poderiam contribuir para oxi- genar a prática docente encontram uma barreira constituída, juntamente, por esse modelo tradicionalmente aceito como sendo “a história” (2004, p. 48). A trajetória do ensino de história no Brasil1 “evidencia o embate entre o que foi chamado de ‘aprendizagem tradicional’ e ‘aprendiza- gem crítica’ da história” (SCHMIDT, 2009, p. 22). Essas aprendiza- gens não têm conseguido suprir os anseios das crianças, dos jovens e dos adultos da sociedade do conhecimento, lançando novos desafios ao ensino de história, extensivos ao ensino como um todo. Três desafios apresentam-se como fundamentais, o primeiro, específico do ensino de história, refere-se aos avanços das pesquisas em torno do ensino de his- tória. O segundo desafio refere-se às contribuições dessas pesquisas para a formação inicial e continuada dos professores de história do Ensino Fundamental. E o terceiro desafio refere-se às condições materiais para 1 Para aprofundar sobre a trajetória do ensino de história de forma breve, consultar as obras Didática e prática do ensino de história: experiências, reflexões e aprendizados (FONSECA, 2005) e Ensino de história: fundamentos e métodos (BITTENCOURT, 2008). Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 16 uma formação continuada de qualidade. Essa qualidade relaciona-se à capacitação e instrumentalização para a reflexão sistemática sobre a na- tureza de sua profissão e sobre elementos fundamentais de sua prática. O ensino de história tem sido objeto de diversas pesquisas, tanto no Brasil2 quanto em outros países. Essas pesquisas buscam investigar e obter respostas às dúvidas e angústias com que convivem os professores formados e em formação, quanto à eficácia de sua prática educativa em sala de aula. Sendo assim, são pesquisas voltadas ao domínio dos resul- tados de sua intervenção pedagógica, bem como buscam proporcionar a eles uma aproximação de fundamentos e metodologias de ensino de história, desenvolvidos a partir da natureza da própria história, visan- do uma cognição histórica situada na ciência histórica. Schmidt (2009), ao fazer uma análise dos PCN de história, aponta para a pedagogização e psicologização dos pressupostos didáticos do ensino de história, o que provoca uma dicotomia, ou seja, um distan- ciamento entre a ciência histórica e o ensino de história, dificultando sua aprendizagem. Dessa forma, propõe a sistematização de “referen- ciais teóricos que indiquem os caminhos possíveis de uma cognição his- tórica situada na racionalidade da história (p. 32)”. A pesquisadora vai além da constatação dessa necessidade e, junto com Garcia, coordena o Laboratório de Pesquisas em Educação Histórica, na linha de pesquisa cultura, escola e ensino, do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Paraná3. Essas pesquisas em educação histórica buscam tomar o ensino de história, seus fundamentos e metodologias, como um saber especí- fico que se situa entre – no sentido de meio do caminho – os saberes 2 Em uma pesquisa feita na base de dados de dissertações e teses da Capes, em 13/03/2010, utilizando as palavras-chave “fundamentos e metodologia do ensino de história”, nenhuma dissertação ou tese foi localizada. Com as palavras-chave “ensino de história”, foram loca- lizadas 52 dissertações ou teses. Já com as palavras-chave “educação histórica” foram localizadas dez dissertações ou teses, sendo que metade destas foram localizadas com as palavras-chave “ensino de história”. Finalmente, com as palavras-chave “didática da histó- ria”, foram encontradas três dissertações ou teses, sendo que duas haviam sido localizadas pelos diretórios anteriores. 3 O Laboratório de Pesquisas em Educação Histórica é coordenado pelas doutoras Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia Maria F. Braga Garcia, e pode ser acessado pelo site <http:// www.lapeduh.ufpr.br>. Capítulo 1 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 17 específicos da ciência histórica, do saber histórico escolar e dos saberes pedagógicos e curriculares. Nesse sentido, o ensino de história vem se constituindo como ciência específica no diálogo entre a ciência histó- rica, o saber histórico escolar e o saber pedagógico, desenvolvendo ob- jetivos, fundamentos e metodologias específicos do ensino de história, alicerçados em pesquisas que privilegiam a natureza da própria história, como veremos nos capítulos que se seguem. Essa mudança de enfoque nas pesquisas sobre o ensino de história provoca alterações nos seus objetivos, na forma de considerar as ideias históricas de crianças, jovens e adultos e suas relações com elas. Isso ocorre na forma de ver os conteúdos e nos critérios de sua seleção, no interesse em compreender como o passado é reconstruído pela ciência histórica, no desenvolvimento de uma didática específica da história, na compreensão da importância da comunicação e da avaliação da aprendizagem histórica, buscando uma educação histórica, ou seja, que crianças, jovens e adultos pensem historicamente. Quanto à formação do professor, em tempos recentes, vislumbrou-se uma sociedade futura com o temor de que, no processo educativo, os pro- fessores fossem substituídos gradativamente pela tecnologia, especialmente a informatização. A realidade, porém, tem demonstrado que a tecnologia da informação está modificando tempos, espaços, relações de produção, relações de comunicação, relações interpessoais e a própria organização do ensino. Mudanças reais e virtuais que atingem da vida material às formas de pensar e as ideias das pessoas, mas, além de não substituir o professor, têm evidenciado a necessidade de que este profissional esteja cada vez mais preparado para trabalhar com educação e que lance mão dessa tecnologia como meio, integrando-a em sua prática educativa. As exigências de qualificação se fazem tanto na especificidade quanto na pluralidade, no domínio de um conjunto de saberes, que incluem sa- beres específicos das disciplinas, saberes pedagógicos, saberes curriculares, saberes práticos da experiência de sala de aula, saberes escolares e saberes da tecnologia da informação, entre outros (FONSECA, 2005, p. 63). A sociedade do conhecimento exige um profissional mais qualifi- cado, um professor/pesquisador, um “professor de história produtor de saberes, capaz de assumir o ensino como descoberta, investigação, refle- xão e produção” (FONSECA, 2005, p. 62), que possa desenvolver nos alunos competências específicas da natureza da história. Um professor Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 18 que, por meio de um ensino alicerçado em elementos específicos da ciência histórica, contribua para que crianças, jovens e adultos consi- gam se situar e se orientar nessa sociedade em constante transformação, sem perder o referencial de suas raízes e sua identidade familiar, cultural e social, e sentindo-se sujeito partícipe do processo histórico. O professor, que essa realidade exige, está em formação em alguns lugares do Brasil e do mundo, em processos de formação continuada localizadas ou em parceria com instituições de Ensino Superior, como ocorre e foi constatadona cidade de Araucária, no Paraná: A participação de professores de história de Araucária, “Grupo Araucária”, em 2003, do seminário Investigar em Ensino de História, do curso de Mestrado em Educação da UFPR, defla- grou um processo de reflexão sistemática sobre elementos da prática docente, a partir dos trabalhos sobre os conhecimentos prévios de conceitos históricos dos alunos, planejamento da intervenção pedagógica sobre os conceitos investigados e ree- laboração dos mesmos para verificar as mudanças provocadas pela intervenção pedagógica (THEOBALD, 2007b, p. 1). Esse professor do Ensino Fundamental, que desenvolve um pro- cesso de investigação, produção e publicação organizada, coletiva e situada sobre elementos de sua prática, [...] pode ser tomado na dimensão do intelectual, que inves- tiga, produz e transforma por meio de experiências organi- zadas, coletivas e situadas, as relações sociais e as relações de saber em que está inserido. Investiga e transforma as concep- ções que tem em relação a si próprio, à sua função, aos alunos em suas relações com o saber, à sua formação e em relação ao conhecimento com o qual trabalha, sua produção e seu ensino (THEOBALD, 2007b, p. 2). Uma formação inicial e continuada por meio do conhecimento e apropriação dos meios de produção na prática investigativa, produ- ção de conhecimento sobre elementos de sua prática, publicação dos resultados e reconhecimento da produção por encontros científicos de áreas nacionais e internacionais, seria o ideal para que os professores pudessem estar em constante processo de mudança estrutural na cons- ciência e na formação de sua identidade. A formação inicial busca despertar esse espírito por meio dos trabalhos de conclusão de curso, mas na formação continuada, na maioria das vezes, não são criadas as condições para que esse processo possa ter continuidade. Capítulo 1 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 19 As condições materiais necessárias estão sendo forjadas, de um lado pelo clamor dos professores e do “chão da escola”, sintetizados nas reivindicações sindicais dos trabalhadores em educação do Brasil afora, representadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE. Por outro lado, pelo clamor da sociedade por uma educação de qualidade, contraposta pelas resistências dos que gover- nam, decidem e fazem a gestão dos recursos, que ainda estão aquém dos necessários para implementar as condições necessárias. Para que seja possível uma formação continuada de qualidade, faz-se necessária a implementação de algumas condições materiais míni mas: de um piso salarial digno que permita aos professores uma jornada de trabalho equilibrada; da hora-atividade de, no mínimo, um terço, como previsto em legislação federal e ainda não efetivada devi- do a resistências de governantes e sub judice; de programas de forma- ção continuada nos sistemas de ensino em parceria com universidades que lhes deem suporte; e licenças periódicas para estudos. A título de ilustração, na Finlândia, país com o melhor índice de aproveitamento escolar nos últimos anos, os professores trabalham quatro anos e no quinto ano licenciam-se para estudar. Essas licenças são custeadas pelo sistema previdenciário, em uma espécie de adiantamento fragmentado da aposentadoria que, além de oxigenar o processo pedagógico, possi- bilita prolongar a vida produtiva do professor. Da teoria para a prática O estudante, o professor e o profissional de educação, que tiverem interesse em aprofundar seus estudos sobre o ensino de história, podem acessar vários laboratórios, revistas e livros específicos que apresentam artigos, resultados de pesquisas e atividades que podem ser consultados como suporte. ● UFPR – Universidade Federal do Paraná – Laboratório de Pes- quisa em Educação Histórica: <http://www.lapeduh.ufpr.br/>. ● UEL – Universidade Estadual de Londrina: <http://www.uel. br/laboratorios/labhis/>. ● UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais: <http:// www.labepeh.com.br/>. Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 20 ● Educar em Revista – Dossiê: educação histórica, da Universi- dade Federal do Paraná: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index. php/educar/issue/view/251>. ● Livro Didática e prática de ensino de história, de Selva Guimarães Fonseca (2005): <http://books.google.com.br/ books>. Para acessar, basta digitar o título do livro. ● Livro O saber histórico na sala de aula, de Circe Bittencourt (2006): <http://books.google.com.br/books>. ● Teses e dissertações sobre o ensino de história: <http://www. dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaPeriodicoForm. jsp>. Entrar com os diretórios ou palavras-chave “ensino de história”, “educação histórica” ou “didática da história”. Além do aprofundamento dos estudos, na vida prática, cabe ao professor integrar-se nos movimentos que buscam melhorar as condi- ções materiais da ação educativa. Síntese Este capítulo procurou destacar os desafios do ensino de história e da formação dos professores na sociedade do conhecimento. O ensino de história vem se firmando como uma ciência específica, desenvol- vendo, por meio de pesquisas, formas de ensinar alicerçadas na própria natureza da história. A formação inicial e continuada dos professores de história exige atualização constante, apropriação dos meios de produção do conheci- mento histórico escolar e a incorporação da investigação contínua de elementos de sua prática. Esses elementos vão desde as ideias históricas dos alunos, passando pela relação que estabelecem com o saber histó- rico por meio das narrativas do professor, contidas nos manuais didá- ticos e na mídia, à elaboração e comunicação do que aprenderam por meio da produção de narrativas e outras formas de semiose. A formação continuada exige, ainda, condições materiais mínimas que envolvem salário digno, jornada de trabalho equilibrada, progra- mas de formação continuada dos sistemas de ensino e licenças periódi- cas para aprofundamento dos estudos. 21 Neste capítulo pretende-se fazer uma análise da abordagem que os PCN do Brasil fazem dos objetivos do ensino de história, com contrapontos de pesquisadores como Schmidt e Fonseca, e de outros documentos como o Currículo Nacional de História de Portugal e as Dire trizes Municipais de Ensino de História de Araucária. Com isso, que- remos definir um objetivo fundamental: a contribuição do ensino de história para a construção da consciência histórica de crianças, jovens e adultos e como dotá-los de ferramentas de análise do passado e orien- tação no presente, na perspectiva de uma literacia histórica. Para desenvolver essa análise, faremos o seguinte movimento: os objetivos do ensino de história nos PCN, uma análise desses objetivos à luz de pesquisadores e de pesquisas no campo do ensino de história e o que essas pesquisas propõem de avanços aos PCN. Os objetivos do ensino de história nos PCN Os PCN (BRASIL, 1998, p. 33) estabelecem os seguintes objeti- vos gerais para o ensino de história no Ensino Fundamental: • identificar o próprio grupo de convívio e as relações que estabelecem com outros tempos e espaços; • organizar alguns repertórios histórico-culturais que lhes permitam localizar acontecimentos numa multiplicidade de tempo, de modo a formular explicações para algumas questões do presente e do passado; • conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos sociais, em diversos tempos e espaços, em suas manifesta- ções culturais, econômicas, políticas e sociais, reconhecen- do semelhanças e diferenças entre eles; Objetivos do ensino de história 2 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 22 • reconhecer mudanças e permanências nas vivências humanas, presentes na sua realidade e em outras comuni- dades, próximas ou distantes no tempo e no espaço; • questionar sua realidade, identificando alguns de seus problemas e refletindo sobre algumas de suas possíveis soluções, reconhecendo formasde atuação política insti- tucionais e organizações coletivas da sociedade civil; • utilizar métodos de pesquisa e de produção de textos de conteúdo histórico, aprendendo a ler diferentes registros escritos, iconográficos, sonoros; • valorizar o patrimônio sociocultural e respeitar a diversi dade, reconhecendo-a como um direito dos povos e indivíduos e como um elemento de fortalecimento da democracia. Além desses objetivos gerais, os PCN estabelecem objetivos especí- ficos para cada um dos ciclos do Ensino Fundamental. Organizados a partir de verbos, característicos da taxionomia de Bloom, esses objetivos acompanham a vertente de fundamentação psicológica dos PCN, destacando-se as contribuições da psicologia do desenvolvimento de Piaget, da teoria da atividade de Vigotsky, Luria e Leontiev, da psicologia da cultura e da teoria da aprendizagem verbal significativa de Ausubel. Incorporando esses pressupostos, os PCN utilizam, ainda, as referências da psicologia construtivista, que estavam em voga na última década do século XX (SCHMIDT, 2009). A recorrência aos pressupostos da psicologia construtivista é com- preensível quando analisada como parte das necessidades da escola em responder aos indicadores de fracasso escolar. Indicadores esses que evidenciavam os problemas que o ensino enfrentava ao não conseguir acompanhar os reflexos das mudanças sociais provocadas pelos avanços tecnológicos (foi a década da popularização do celular e do acesso à in- ternet) e pela busca de novos pontos de equilíbrio entre os relativismos e fundamentalismos, que se confrontaram no final do século passado. Esses confrontos eram expressos pelas crises em diversos setores. Pa ra exemplificar: na economia entre a intervenção do estado (estado máxi- mo) e a privatização (estado mínimo); na educação pelos embates em torno das reformulações curriculares; na axiologia pela crise dos valores éticos na família, na política, na religião e na sociedade, em que “o ho- mem moderno não é mais o homem que sofre a ruptura entre o passado e o presente, o antes e o depois, mas o homem que carrega em si a rup- tura como o objeto mesmo de sua vontade” (FONSECA, 2005, p. 29), Capítulo 2 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 23 ou seja, o homem que vive a mudança. Essas mudanças e a necessidade de reorientação diante delas, por si só, impõem a adoção de novos obje- tivos para o ensino de história. O Currículo Nacional de História de Portugal (PORTUGAL, 2001, p. 87) propõe objetivos fundamentados em pesquisas sobre cognição histórica situada, ou seja, pesquisas alicerçadas na natureza da ciência histórica, acerca das ideias sobre história de crianças e jovens e como se relacionam com elas; sobre a relação entre as ideias históricas, sua complexidade e a idade de crianças e jovens; sobre a relação que crianças e jovens estabelecem com as múltiplas narrativas históricas e como pro- duzem narrativas e comunicam o que aprenderam. Os objetivos do currículo português são de natureza palpável, ou seja, visam incorporar a história ao pensamento e à prática cotidiana, e resumem-se nos seguintes: • estabelecer referenciais históricos fundamentais que possibili- tem a tomada de consciência social das crianças e dos jovens; • estimular a construção do saber histórico por meio da expressão de “ideias históricas” em sua linguagem, desde os primeiros anos de escolaridade; • construir um pensamento histórico progressivo e gradual contextualizado e relacionado com as experiências vividas (PORTUGAL, 2001, p. 87). As Diretrizes Municipais de Ensino de História de Arau cária propõem que “a finali- dade do ensino de história é ensinar o aluno a pensar his- toricamente para a formação da consciência histórica”. Para que essa tarefa seja possível, entende que o ensino de his- tória deve considerar “o aluno como sujeito da própria histó- ria”, e encaminhar o ensino a partir “daquilo que é significa- tivo para sua vida em socie- dade”, e levar em consideração Circe Bittencourt (2008) analisou diversas propostas curriculares do final do século XX e apontou características comuns: implementação dos currículos legitimada junto aos professores; professor com autonomia pedagógica; pressupostos teóricos e metodológicos do conhecimento histórico; fundamentação construtivista: aluno sujeito do processo de aprendizagem; aluno possui conhecimentos históricos prévios; ensino de história nos anos iniciais. Saiba mais Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 24 “o que ele pensa, sabe e se preocupa, bem como a sua participação na realidade social” (ARAUCÁRIA, 2004, p. 76). Essas diretrizes foram elaboradas por professores em fase inicial de um processo de pesquisas sobre elementos de sua prática, mais especi- ficamente sobre as ideias históricas prévias das crianças e jovens com que trabalham. As pesquisas já influenciaram a formulação do objetivo de levar o aluno a pensar historicamente e contribuir para o aprimora- mento de sua consciência histórica. A educação histórica como objetivo do ensino de história As pesquisas em educação histórica apontam como objetivo fun- damental do ensino de história a contribuição com a criança, o jovem e o adulto no aprimoramento de sua consciência histórica. E o que se entende por consciência histórica? O pesquisador alemão Jorn Rüsen (1992a, p. 28-29) explica a apren- dizagem da história como sendo um processo de mudança estrutural na consciência histórica, que opera como um modo específico de orientação em situações reais da vida presente. Essa orientação só é possível median- te a compreensão das experiências passadas, mas não significa permane- cer no passado. A compreensão do passado deve “iluminar” a realidade e os movimentos de mudança do presente. Os movimentos e mudanças do presente também sofrem as influências das expectativas de futuro, que por sua vez são balizadas e sinalizadas pelas mudanças e permanências da vida prática diária, dotando o presente de uma marca e matriz temporal. O historiador alemão afirma, ainda, que é possível observar a mu- dança estrutural da consciência histórica. De que forma? Observando o desenvolvimento de suas competências narrativas: as competências da experiência, de interpretação e de orientação (RÜSEN, 1992a, p. 30). E como podemos conhecer as competências narrativas de uma pessoa, de uma criança, de um jovem? A competência narrativa da experiência se manifesta pela habili- dade com que a pessoa resgata a qualidade e a importância das experiên- cias vividas no passado e as diferencia do presente. Uma pessoa é tanto mais experiente quanto mais apurada for a sua sensibilidade histórica. Capítulo 2 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 25 A competência narrativa de interpretação se manifesta pela habi- lidade que uma pessoa desenvolveu em diferenciar os tempos: passado, presente e futuro, suas dimensões e mudanças, sem perder a perspectiva de totalidade da temporalidade. É a habilidade que uma pessoa tem de ver e perceber as mudanças e as permanências. A competência narrativa da orientação se manifesta pela habi- lidade em utilizar o conteúdo da experiência e da interpretação para guiar as ações na vida presente, articulando a identidade humana com o conhecimento histórico em uma realidade de mudança temporal. A formação da consciência histórica não está dissociada da necessi- dade de uma literacia histórica. O que é a literacia histórica? A partir dos estudos de Rüsen sobre consciência histórica, o pesquisador inglês Peter Lee (2006), fundamentado em pesquisas com crianças e jovens sobre suas ideias históricas e sobre como se orientam no tempo, consta- tou a necessidade de instrumentalizá-los para orientarem-se no tempo. Nesse sentido, propõe equipar os estudantes com dois tipos de ferra- mentas: “uma compreensão da disciplina de história e uma estrutura utilizável do passado” (2006, p. 145). A compreensão da disciplinade história passa por uma compreen- são de como a história é construída a partir das evidências do passado, e essa construção é feita sempre distanciada do passado. A história não é o passado, mas a sua reconstrução a partir das evidências, balizada pelas compreensões possíveis e pelos interesses do momento da reconstrução. Para ilustrar essa compreensão vejamos o que escreve Lee: Em 1920 não podíamos [...] dizer “O Tratado de Versalhes lan- çou as sementes para regras nazistas na Alemanha”, enquanto que em 1940 tal descrição era ao menos uma das possíveis. A in- vasão do Iraque não pode agora ser descrita como uma abertura de um longo período de estabilidade no meio-leste ( Oriente Médio) ou o início do declínio do poder mundial dos EUA, mas ambas poderão ser uma descrição válida daqui a cem anos. A gama de descrições válidas aplicáveis ao passado muda com a ocorrência de novos eventos e processos. As considerações histó- ricas são construções, não cópias do passado (2006, p. 140). Alcançar a literacia histórica caracteriza-se, ainda, pela superação das ideias históricas fragmentadas e eventificadas do passado, restri- tas ao relato de poucos eventos – geralmente anacrônicos – e mui- to comum em crianças, jovens e adultos, processo que Lee denomina Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 26 de “ontologia restrita ou limitada” (2006), bem como a dificuldade que crianças, jovens e adultos têm de compreender as mudanças que ocorre ram no passado e estão em processo no presente. Para essa superação, Lee propõe instrumentalizar os estudantes com uma estrutura utilizável do passado. Essa estrutura é assim descrita por ele: Uma estrutura permitirá aos alunos elaborá-la e diferenciá-la no encontro com novas passagens da história, consolidando sua coerência interna, fazendo conexões mais complexas entre os temas e subdividindo e recombinando temas para propó- sitos diferentes. [...] deve ser uma estrutura aberta, capaz de ser modificada, testada, aperfeiçoada e mesmo abandonada, em favor de algo mais, de forma que os alunos sejam encorajados a pensar e refletir sobre as suposições que fazem ao testar e desenvolver sua estrutura. Diferentes alunos sairão da escola com diferentes estruturas (2006, p. 147). As pesquisas em educação histórica buscam contribuir para o desenvolvimento desses instrumentos de leitura do passado e orienta- ção no presente. Nesse sentido, Barca, na esteira da proposta de Lee, propõe que um dos componentes da literacia histórica seja o desenvol- vimento da competência de “leitura contextualizada do passado a par- tir de evidências fornecidas por variadíssimas fontes” (2006, p. 95). Além de contribuir para a compreensão de que o passado não é estático e não está dado como certo, por ser constantemente suplan- tado por novas descobertas e releituras com enfoques diferentes, Barca também aponta para a necessidade de compreender que não é possível “aceitar apenas ‘uma grande narrativa’ acerca do passado, já que historia- dores podem produzir narrativas divergentes, fruto de perspectivas dife- renciadas sobre as mesmas fontes ou situações” (2006, p. 95). Trata-se do desenvolvimento de um olhar multiperspectivado do passado. No sentido prático, os estudos de Lee e Barca apontam para a necessidade de que o ensino de história contribua com o aprimoramen- to da consciência histórica e o desenvolvimento da literacia histórica de crianças, jovens e adultos. Para tanto, é fundamental a utilização de diversos tipos de fontes históricas e diferentes narrativas históricas para proporcionar um estudo multiperspectivado, bem como desenvolver uma identidade que transite entre o local, o nacional e o global, entre o familiar, o social e o cultural, e entre o passado, o presente e o futuro. Capítulo 2 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 27 Os tipos de fontes históricas vão desde documentos em estado de arquivo familiar, passam pelos documentos em arquivos oficiais ou expostos em museus, ao patrimônio material e imaterial das diversas culturas, respeitados os critérios específicos da história para o tratamen- to e a seleção das fontes como evidências históricas do passado. As diferentes narrativas englobam desde a narrativa do professor, passam pelas narrativas dos manuais didáticos e paradidáticos, pelas narrativas da linguagem fílmica e dos documentários veiculados pelos meios de comunicação e informação, pelas narrativas em forma de memórias relatadas pelos mais velhos às protonarrativas. Ainda, en- globam as narrativas expressadas e construídas pelas próprias crianças, jovens e adultos, quando colocados em contato direto com as fontes, na comunicação do aprendizado. Tanto as fontes quanto as narrativas históricas serão objetos de análise dos capítulos 7 e 8, quando serão aprofundados elementos da metodologia do ensino de história. Da teoria para a prática Na elaboração dos planejamentos anuais, bimestrais, de unida- de e de aula de história, o professor pode incluir objetivos na pers- pectiva da contribuição para a formação da consciência histórica de seus alunos. Esses objetivos devem auxiliar os alunos a conhecerem e compreenderem o seu passado, de sua família e comunidade, contri- buindo para que possam orientar-se no presente, balizados por suas expectativas de futuro. No desenvolvimento das aulas de história, cabe ao professor incluir atividades que instrumentalizem os alunos na leitura sobre o passado, apresentando fontes e narrativas diversas sobre o passado a ser estuda- do, para que o estudante amplie sua compreensão sobre a forma como o passado é reconstruído, bem como que se permita ao aluno que, a partir de diversas fontes, construa a sua narrativa sobre o passado em questão. Essas atividades permitem aos alunos que desenvolvam uma literacia histórica. Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 28 Síntese Neste capítulo foi possível constatar que os objetivos do ensino de história dos PCN são de fundamentação psicológica, de recorrên- cia construtivista. O Currículo Nacional de História de Portugal e as Diretrizes Municipais de Ensino de História de Araucária apontam para objetivos fundamentados na natureza da história, convergindo com as pesquisas em educação histórica, que apontam para a contribuição com o aprimoramento da consciência histórica como objetivo fundamental do ensino de história. A consciência histórica é compreendida como um modo específico de compreensão do passado e de orientação em situações reais da vida presente, balizada e sinalizada pelas expectativas de futuro. A consciên- cia histórica sofre mudanças estruturais a partir dos conhecimentos e manifesta-se por meio das competências narrativas das experiências vi- vidas, de interpretação dessas experiências e da utilização dessa inter- pretação na orientação da vida presente. A formação da consciência histórica está associada à necessi dade de uma literacia histórica, ou seja, do desenvolvimento da compe- tência de leitura contextualizada do passado a partir de evidências fornecidas por diversas fontes, do desenvolvimento de um olhar pers- pectivado sobre o passado, da não aceitação de apenas uma narrativa acerca do passado e da apropriação de uma estrutura flexível, adaptá- vel e utilizável do passado. O desenvolvimento da literacia histórica e a formação da cons- ciência histórica estão vinculados ao trabalho com fontes históricas e narrativas diversificadas, que permitam o crescimento de um olhar multiperspectivado sobre o passado e o desenvolvimento de uma iden- tidade histórica. 29 Neste capítulo buscaremos compreender as crianças, jovens e adultos como categorias históricas e sociológicas, desenvolvidas para compreender o ser humano nas diversas fases de desenvolvimento físico, psicológico e sociológico, bem como em seu processo de escola- rização, mais especificamente na sua relação com a escola como lugar privilegiado de experiência de relaçãocom o saber. Pretende-se aprofundar essa relação que os atores do processo de ensino estabelecem com o saber na escola, relação entendida como ex- periência humana, a partir das concepções de criança, jovem e adulto expressas nos PCN, no Currículo Nacional de História de Portugal e nas Diretrizes Municipais de Ensino de História de Araucária, confrontadas com estudos da filosofia da história e estudos da sociologia da educação. Concepções de criança, jovem e adulto Criança e infância, jovem e adulto são categorias sociais construí das historicamente para designar uma fase da vida das pessoas, hoje consoli- dadas nas legislações de vários países e declarações de organismos inter- nacionais ligados à Organização das Nações Unidas – ONU. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente define a infância como sendo o período que vai do nascimento aos 12 anos e a adolescência dos 12 anos à maioridade, atingida legalmente aos 18 anos (BRASIL, 1990). No período do Renascimento começam a surgir diferenciações entre a infância e as outras fases da vida. A criança deixou de ser vista como um adulto em “miniatura” ou um ser sem conhecimento para ser educada de acordo com as vontades do adulto. A juventude também é uma construção Crianças, jovens e adultos e a experiência de relação com o saber na escola 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 30 social e historicamente situada, mas não teve um percurso de evolução linear, sendo vista de forma particular e diferenciada nas diversas sociedades e nos diversos contextos históricos (SCHMIDT, 2002, p. 10-11). Os PCN do Brasil não se constituem fonte para compreender o que se entende por criança, jovem ou adulto em sua relação com o saber na escola. As questões: quem é essa criança; quem é esse jovem; quem é esse adulto; e que tipo de relação estabelecem com o saber na escola, não encon- tram referência nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998). No livro introdutório, os PCN referem-se aos alunos em uma pers- pectiva psicológica, como alguém que deve ter uma motivação intrínseca e ser motivado para a aprendizagem, contraponto aos que estudam “apenas para passar de ano ou para tirar notas” (BRASIL, 1998, p. 64-65), que pode ser expressão de uma constatação superficial e aligeirada da realidade. Outra perspectiva, também de vertente psicológica, refere-se aos alu- nos com uma autoimagem problematizada pelas relações com professores e colegas, que se reflete em repetências crônicas, fracasso escolar e evasão. O aluno com um autoconceito negativo, que se considera fra- cassado na escola, ou admite que a culpa é sua e se convence de que é um incapaz, ou vai buscar ao seu redor outros cul- pados: o professor é chato, as lições não servem para nada. Acaba por desenvolver comportamentos problemáticos e de indisciplina (BRASIL, 1998, Introdução, p. 65-66). Quanto à relação com o saber, os PCN consideram o aluno em seus “níveis de organização do pensamento como os conhecimentos e experiências prévias” (BRASIL, 1998, Introdução, p. 38) e pela sua relação com os demais agentes do processo educativo, fundamentados na teoria interacionista de realidade real e proximal de Vigotski. Para a estruturação da intervenção educativa é fundamental distinguir o nível de desenvolvimento real do potencial. O ní- vel de desenvolvimento real se determina como aquilo que o aluno pode fazer sozinho em uma situação determinada, sem ajuda de ninguém. O nível de desenvolvimento potencial é de- terminado pelo que o aluno pode fazer ou aprender mediante a interação com outras pessoas, conforme as observa, imitando, trocando ideias com elas, ouvindo suas explicações, sendo de- safiado por elas ou contrapondo-se a elas, sejam essas pessoas o professor ou seus colegas. Existe uma zona de desenvolvimento próximo, dada pela diferença existente entre o que um aluno Capítulo 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 31 pode fazer sozinho e o que pode fazer ou aprender com a ajuda dos outros. De acordo com essa concepção, falar dos mecanis- mos de intervenção educativa equivale a falar dos mecanismos interativos pelos quais professores e colegas conseguem ajustar sua ajuda aos processos de construção de significados realizados pelos alunos no decorrer das atividades escolares de ensino e aprendizagem (BRASIL, 1998, Introdução, p. 38). O Currículo Nacional de História de Portugal, em seus pressupostos, refere-se ao aluno como sujeito ativo que deve ser auxiliado pela escola no processo de desenvolvimento de sua relação com o saber histórico: [...] a partir das vivências dentro e fora da escola: o meio fa- miliar e os media fornecem aos alunos ideias mais ou menos adequadas, mais ou menos fragmentadas, sobre a história. Compete à escola explorar estas ideias tácitas e ajudar o aluno a desenvolvê-las numa perspectiva de conhecimento histórico (PORTUGAL, 2001, p. 87). Outro pressuposto do currículo português refere-se à compreen- são de que a aprendizagem ocorre em uma progressão nem linear nem invariante, fundamentada na teoria dos constructos. Assim, pode ha- ver graus de elaboração mental da aprendizagem diferenciados em crianças e jovens de uma mesma faixa etária e graus de elaboração mental da aprendizagem similares em crianças e jovens de faixas etá- rias diversas: Não existe uma progressão linear e invariante da aprendiza- gem: embora o pensamento histórico tenda a evoluir com a idade, há crianças de 7 anos que, em contextos específicos, manifestam um grau de elaboração mental semelhante às de 14 anos, e vice-versa (PORTUGAL, 2001, p. 87). Essa compreensão de que os estágios de desenvolvimento não são estanques, mas que pode haver uma variação dos níveis e manifestações de aprendizagem dentro da mesma faixa etária ou similares em faixas etárias diversas, supera a visão estagnada da psicologia do desenvol- vimento, é fruto de pesquisas sobre as ideias históricas de crianças e jovens e será aprofundada ao se tratar das narrativas, especialmente de sua produção pelos alunos, no capítulo 7. As Diretrizes Municipais de Ensino de História de Araucária par- tem do pressuposto de que, para o ensino de história, o aluno deve ser entendido “como sujeito da própria história, partindo daquilo que é Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 32 significativo para sua vida em sociedade, levando-se em consideração o que ele pensa, sabe e se preocupa, bem como a sua participação na realidade social” (ARAUCÁRIA, 2004, p. 78). As concepções de criança, jovem e adulto no processo ensi- no-aprendizagem dos documentos oficiais citados transitam entre uma visão depreciativa de sujeitado a uma visão, até certo ponto, romantiza- da de “sujeito da própria história”. Qual seria então a concepção mais aproximada do real possível? Não é pretensão responder a esta questão, mas é necessário apresentar algumas pistas de reflexão sobre essa crian- ça, esse jovem e esse adulto e suas experiências de relação com o saber na escola e com o processo ensino-aprendizagem. Crianças, jovens e adultos como sujeitos de experiências humanas no tempo Para fundamentar a compreensão dessa criança, desse jovem e desse adulto, estudante ou aluno, recorre-se aos estudos da filosofia da história e da sociologia da educação. Mais especificamente de Thompson (1981) com a categoria histórica da experiência humana no tempo, de Dubet (1994) com a categoria da experiência de escolarização, de Dubet e Martuccelli (1997) com a categoria da experiência da ação e de Charlot (2000) com a categoria da experiência de relação com o saber. Thompson (1981) nos auxilia a compreender a criança, o jovem e o adulto como pessoas que vivenciam experiências cotidianas, em suas famí- lias, na rua, no bairro, no trabalho, na escola, na igreja, na internet e nos mais diversos grupos sociais de que participam. Ele define a experiência como sendo humana, em que homens e mulheres são sujeitos que: [...] experimentamsuas situações e relações produtivas deter- minadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] das mais complexas maneiras [...] e em segui- da [...] agem, por sua vez, sobre a sua situação determinada (THOMPSON, 1981, p. 182). Todas as experiências são “tratadas”, elaboradas, na consciência e na cultura. Portanto, a experiência das crianças, jovens e adultos na es- cola também é elaborada em sua consciência, seja essa experiência boa, ruim, de sucesso, de fracasso, individual ou grupal, de aceitação ou de Capítulo 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 33 rejeição, prazerosa ou sofrida. Thompson também nos ensina que essa experiência é singular ou de grupo. Quando de grupo, é singular dentro do grupo e deve ser tomada dentro de seus limites, diferenciados para cada pessoa (1981, p. 16). Sobre a elaboração da experiência na consciência, Thompson afir- ma que ela surge espontaneamente nas relações sociais de homens e mulheres, no caso, na experiência escolar de crianças, jovens e adultos, mas não sem a intencionalidade deles, que reflete sobre o que acontece a eles e ao seu mundo, ou seja, é racionalizada por eles. Essa reflexão das crianças, jovens e adultos sobre a sua realidade, e notadamente sobre a realidade escolar, provoca mudanças que origi- nam a experiência modificada, que é determinante, pois exerce pressões sobre a consciência social existente e sobre suas relações sociais, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. No caso, os exercícios intelectuais mais racionalizados sobre o ensino, a escola e a educação que exercem pressão sobre a família, a comunidade escolar, o bairro e a sociedade como um todo (THOMPSON, 1981, p. 16). Os estudos de Thompson, ao considerarem a “experiência hu- mana”, gerada na “vida material”, contribuem para avançar no en- tendimento de que há uma relação dinâmica entre o “ser social” e a “ consciência social”, superando a visão da determinação unilateral da estrutura sobre o sujeito. Para exemplificar essa relação dinâmica entre sujeito e estrutura, ele recorre à relação entre o sujeito e sua cultura e aos valores culturais em que está inserido (1981, p. 189). Esse conceito nos permite inferir que crianças, jovens e adultos, em sua relação com a escola, não são nem sujeitos totalmente passivos, nem totalmente ati- vos. Estabelecem uma relação histórica, situada, cultural e dinâmica com a escola, por vezes como sujeitos, outras como sujeitados. A escola como lugar privilegiado de experiência de crianças, jovens e adultos com o conhecimento A categoria da experiência de Thompson – quando relacionada aos estudos de Dubet (1994) sobre a sociologia da experiência, e aos estu- dos de Dubet e Martuccelli (1997) sobre a sociologia da experiência Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 34 escolar – auxilia a compreender a escola como lugar privilegiado de ex- periência de crianças, jovens e adultos com o conhecimento. Desenvolvendo estudos em comunidades de jovens, de trabalha- dores e em escolas, com o auxílio de categorias da antropologia e da his- tória, Dubet (1994) constatou uma heterogeneidade de manifestações de princípios e de fenômenos culturais, que formam uma unidade na diversidade. Isso porque a experiência humana se constitui nas relações com as outras pessoas por meio do trabalho, do estudo, do lazer, da convivência familiar, das relações com a natureza e o meio. Essa experiência, para Dubet (1994), é complexa, individual e coletiva, e ocorre dentro das relações sociais de produção material e imaterial, que se manifestam simbolicamente na consciência e se ex- pressam a partir de fenômenos culturais. Fenômenos esses em que o sujeito estabelece uma separação entre ele e o sistema social, construin- do historicamente um conjunto de imagens, linguagens, significados, símbolos e elementos à luz da cultura da sociedade e do tempo em que vive. Assim, a experiência constitui-se na construção, por meio de ope- rações cognitivas, de códigos de conduta social próprios, que ele chama de lógicas de ação. Em relação aos alunos, um exemplo de lógica de ação é a manei- ra com que eles lidam com a realização das atividades escolares, tanto em sala de aula, quanto àquelas direcionadas para serem realizadas em casa. O professor, ao acompanhar sistematicamente esse processo, logo identifica a lógica de ação que seus alunos desenvolvem no campo da execução dessas tarefas. E mais, adaptam sua lógica de ação às lógicas de ação dos colegas – recorrendo-lhes nas dificuldades – e às do profes- sor, percebendo rapidamente seu modus operandi no encaminhamento, no acompanhamento e na valoração das atividades propostas. Segundo Dubet (1994), a criança, o jovem e o adulto realizam essa experiência de construção de códigos de conduta social em uma relação com a cultura, pois dela eles incorporam – pela consciência – uma série de códigos, símbolos, palavras e ideias para identificar objetos e sentir emoções que nela preexistem. Essa é a porta de entrada do autor para estudar a experiência escolar, já que aqueles elementos que a cultura disponibiliza dentro da escola constituem-se na cultura escolarizada e permitem a experiência escolar. Capítulo 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 35 E a escola? Como Dubet entende a escola? Para Dubet (1994), a escola não é mais uma instituição com uma função social definida de educar, selecionar e socializar, como constata- do pela sociologia funcionalista. Tampouco é uma instituição ajustada para reproduzir as expectativas da sociedade como compreendia a socio- logia da reprodução social. A massificação da escolarização desajustou a escola, relativizou o seu valor. Trata-se da sucumbência do modelo de organização da escola com a função de institucionalizar valores, pois a educação escolar não é apenas um espaço de reprodução, mas também de produção, apontando para os atores da escola como construtores de sua própria experiência (p. 170-181). Dubet e Martuccelli (1997) questionam o que a escola fabrica (produz) e constatam que esta se parece cada vez mais com um mer- cado do que com uma instituição, em que há uma competição entre os diversos atores, os quais, por meio de diversas estratégias, estão em busca de qualificações cada vez mais raras, submetendo a importân- cia social das filosofias e valores educativos às expectativas e promes- sas advindas do êxito escolar. Quanto ao “produto” da escola, ela não fabrica mais, de forma harmônica, atores e sujeitos que desempenham papéis preestabelecidos e predefinidos na sociedade. Os papéis a serem desempenhados – e a própria noção de papel – passam a ser redefini- dos, construídos a partir da experiência, pois os estudantes buscam uma formação que os capacite a programar e conduzir suas experiên- cias de aprendizado, não mais se submetendo à aprendizagem de pa- péis definidos e sucessivos (p. 13-14). É possível cruzar essa visão dos sociólogos franceses com a concep- ção de literacia histórica de Lee que, ao propor dotar os alunos de uma estrutura utilizável do passado, conclui que “diferentes alunos sairão da escola com diferentes estruturas” (2006, p. 147), pois a experiência de escolarização é singular, mesmo que em grupo. Dubet e Martuccelli (1997) constatam que a escola era considera- da como uma instituição que transformava valores coletivos em perso- nalidades individuais, a socialização podia ser essencialmente concebi- da como um processo de interiorização de normas e valores. Assim foi considerada pela sociologia clássica, que postulava a identidade do ator e do sistema. Se, no entanto, se admite que a integração das diversas Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 36 “funções” da escola já não serve, o processo de socialização, especial- mente em suadimensão de subjetivação, deve ser estudado na ativi- dade dos atores que constroem sua experiência escolar e enquanto são formados por ela. Essa capacidade que os estudantes possuem de elaborar sua expe- riência faz com que as crianças, os jovens e os adultos se socializem para além de uma inculcação cultural, para além de uma visão e de uma experiência única do mundo social, mas sim diversa, sem uma regulação dos papéis e das expectativas escolares. Isso força a transformação do espaço e do tempo escolar em um lugar onde as experiências são construídas ao vivo pelos atores presentes (DUBET; MARTUCCELLI, 1997, p. 63). É a manifestação e a vazão da vertente subjetiva do sistema escolar, ou seja, a constatação de que os estudantes combinam e articulam as ló- gicas da integração da cultura escolar, as lógicas e estratégias do merca- do e o manejo subjetivo dos conhecimentos e das culturas que portam a cultura escolar e o mercado. A educação passa da inculcação da escola regulada a um processo de autoeducação, em que os atores trabalham sobre si mesmos, se socializam por meio das diversas aprendizagens e se constituem como sujeitos em sua capacidade de administrar suas experiências (DUBET; MARTUCCELLI, 1997, p. 14). Conforme Dubet e Martuccelli, por esse trabalho sobre si mesmo, a criança, o jovem e o adulto não são somente atores sociais, mas são também sujeitos: a formação desses sujeitos participa plenamente de sua socialização, o que refuta a concepção da socialização como uma clonagem (1997, p. 62-63). O processo de formação subjetiva não se realiza somente na escola, na relação pedagógica com professores e colegas, mas ocorre de forma mais ampla, envolvendo uma multiplicidade de relações e de esferas de ação. Os alunos são, ao mesmo tempo, alunos e crianças, alunos e ado- lescentes, alunos e jovens. Aprendem a crescer em todas essas dimensões de sua experiência. Esse aprendizado não se restringe somente ao am- biente escolar, amplia-se para além da escola, em que os alunos admi- nistram as amizades e os amores infantis e juvenis, os entusiasmos e as tristezas, os fracassos e os êxitos, a vida real e virtual, que são dimensões de uma mesma experiência que se transforma e que tem participação na Capítulo 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 37 formação dos indivíduos, assim como as aprendizagens escolares que são apenas parte dessa experiência. Essa formação em etapas tem modula- ções diversas, segundo a posição no sistema e segundo diversas situações sociais dos atores escolares (DUBET; MARTUCCELLI, 1997, p. 14). Para compreender o que “fabrica” e produz a escola, é necessário compreender como se constrói a subjetividade de indivíduos, como se dá esse trabalho de construção da subjetividade na experiência. Essa compreensão deve ser o mais objetiva possível para que a escola possa ampliar o entendimento sobre a subjetividade que hoje escapa de seu controle, ainda que “fabricada” em seu seio. Dubet e Martuccelli (1997, p. 14-15) chamam a atenção para um fenômeno que vem ocorrendo na construção da subjetividade dos alunos. Se antes a escola tinha certo controle e regulava essa construção, fazendo-a surgir naturalmente no processo de clonagem educativa, hoje, com a influência dos diversos públicos escolares e das diversas subjetividades presentes na escola, esta já não tem mais o domínio sobre a construção das subjetividades dos alunos, ficando cada vez mais perceptível que eles se constroem ao largo e contra a escola. Assim como a família teve sua importância diminuída na formação das subjetividades de crianças, jovens e adultos com o advento da univer- salização da escolarização e da televisão, escola e família veem diminuir ainda mais a sua importância com o advento do mundo virtual na forma- ção das subjetividades. Isso aumenta a importância das disciplinas, como história, em atualizarem seus objetivos e contribuírem com a instrumen- talização para orientação de crianças, jovens e adultos na vida presente. Experiência antropológica de relação com o saber Até aqui fica evidente que a experiência humana pode ser enten- dida como processo em que homens e mulheres tornam-se sujeitos em suas relações produtivas, afetivas, culturais e axiológicas. A escola pode ser definida como um lugar social, mas não o único, da experiência dos atores escolares: crianças, jovens e adultos. Essa experiência tem uma dimensão subjetiva na ação dos sujeitos no processo de socialização pela experiência vivida na escola e nos demais ambientes de experiência dos sujeitos. No entanto, como se dá essa experiência de relação com o co- nhecimento, ou seja, a experiência de relação de sujeitos com o saber? Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 38 Nos estudos de Charlot (2000), sobre a experiência antropológi- ca de relação com o saber, é possível buscar alguns elementos para o entendimento da experiência de relação do sujeito com o conhecimen- to ou com o saber. Nesses estudos, o autor propõe o desenvolvimento da sociologia do sujeito por meio de diálogos com a sociologia da ação, filosofia, psicologia, antropologia e linguística. Charlot (2000, p. 9) parte de questões do âmbito da experiência es- colar para investigar as relações com o saber. Parte da questão sociomidia‑ tizada e ideologizada do fracasso escolar. No entanto, diferentemente dos que o antecederam em estudos sobre essa temática, não busca enten- der o fracasso escolar em si, nem busca suas causas na reprodução social das classes sociais. Seu objetivo é compreender os alunos como sujeitos em situação de fracasso. Além disso, compreender como esses sujeitos, os alunos enquanto crianças, jovens e adultos – especialmente de classes menos favorecidas que formam a maioria dos atores da escola fundamen- tal em nosso país –, se relacionam com o saber e com a escola. O fracasso escolar é uma noção-encruzilhada que permite muitos debates: sobre o aprendizado, sobre a eficácia dos docentes, sobre o serviço público, sobre a igualdade das oportunidades sociais, sobre os modos de vida, sobre o trabalho na sociedade de amanhã e sobre as for- mas de cidadania. Não é essa a porta de entrada para investigar a ques- tão pedagógica da experiência de relação com o saber, pois seria partir da constatação ideologizada e generalizada da desigualdade social ou da ineficácia pedagógica dos docentes. A porta de entrada para entender as experiências de relação com o saber é o aluno enquanto sujeito em situação de fracasso (CHARLOT, 2000, p. 14). Existem alunos que não conseguem acompanhar o ensino que lhes é dispensado, que não adquirem os saberes que supostamente deveriam adquirir, que não constroem certas competências, que não são orientados para a habilitação que desejariam, alunos que naufragam e reagem com condutas de retração, desordem e agressão (CHARLOT, 2000, p. 16). O fracasso escolar não existe enquanto entidade concreta, como objeto de investigação. Um conjunto de fenômenos pode ser assim conceituado. O que é possível investigar são “alunos fracassados, situa- ções de fracasso, histórias escolares que terminam mal” (CHARLOT, 2000, p. 17), que estatística e hierarquicamente são posicionados de Capítulo 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 39 acordo com suas diferenças em relação aos alunos que têm êxito, realça- das e justificadas pelas diferenças sociais, na perspectiva de deficiências, da falta de algo. O fracasso escolar vai muito além de diferenças estatísticas e dife- renças sociais, tem várias dimensões: É também uma experiência que o aluno vive e interpreta e que pode constituir-se em objeto de pesquisa. [...] designa: as situa ções nas quais os alunos se encontram em um momento de sua história escolar, as atividades e condutas desses alunos, seus discursos. [...] que [...] traz a marca da diferença e da falta: ele encontra dificuldades em certas situações, ou orientações que lhe são impostas, ele constrói umaimagem desvalorizada de si ou, ao contrário, consegue acalmar esse sofrimento narcí- sico que é o fracasso (CHARLOT, 2000, p. 17-18). Para superar as investigações sociológicas do fracasso escolar como situação social, como diferença estatística e social e como experiência dessa diferença, Charlot (2000, p. 18-23) aponta a necessidade de su- perar as seguintes questões: ● A criança é sujeito na construção de sua posição social ao longo de sua história, que é singular. Essa posição é “objetiva” e “subje- tiva”, em que a primeira é a posição social efetivamente ocupada pelos pais e pela própria criança, e a segunda é a posição social assumida, adotada no espaço social, que pode ter lugar no pen- samento e manifestar-se no comportamento. Assim, não basta saber a posição social dos pais e dos filhos; deve-se também in- terrogar sobre o significado que eles conferem a essa posição. ● A posição social dos filhos não é “herdada”, à maneira de um bem que passa de uma geração a outra por uma vontade testamental; a posição social é produzida por um conjunto de práticas familiares que vão desde o acompanhamento e a atenção que os pais dispensam às tarefas e atividades culturais e educacionais, ao próprio esforço e trabalho como atividade prática, dispensado pelos filhos aos estudos e às atividades cul- turais e educativas. ● A posição escolar é uma posição específica, regida por regras específicas, e desenvolve-se em condições específicas de apro- priação de um saber. Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 40 Assim, para analisar o fracasso escolar, é necessário levar em con- sideração: O fato de que ele “tem alguma coisa a ver” com a posição social da família – sem por isso reduzir essa posição a um lugar em uma nomenclatura socioprofissional, nem a família a uma posição; a singularidade e a história dos indivíduos; o significado que esses sujeitos conferem à sua posição, à sua história, às situações que vivem e à sua própria singularidade; a sua atividade efetiva, suas práticas; e a especificidade dessa atividade, que se desenrola (ou não) no campo do saber (CHARLOT, 2000, p. 23). Essa constatação de Charlot, de considerar o significado que os alunos conferem à sua posição, à sua história, às situações que vivem e à sua identidade, confluem para a necessidade constatada pelas pes- quisas de considerar o que os alunos sabem e as ideias que têm sobre os conceitos e conteúdos, de forma sistemática, no encaminhamento da intervenção pedagógica, a ser aprofundado no capítulo 4. Desconsiderar esses pontos e, simplesmente, atribuir o fracasso es- colar à origem social e à deficiência sociocultural de crianças, jovens e adultos é, segundo Charlot, fazer uma [...] leitura negativa da realidade social interpretada em ter- mos de faltas ou deficiências. Faz-se necessário uma inversão nesta leitura, ou seja, a análise da relação com o saber implica [...] uma leitura positiva dessa realidade: liga-se à experiência dos alunos, à sua interpretação do mundo, à sua atividade (2000, p. 29-30). Passar da leitura negativa à leitura positiva é fundamental, pois se trata de uma “postura epistemológica e metodológica” que, ao invés de valorizar as deficiências, carências e lacunas do aluno – pensando-o como um objeto incompleto e contribuindo com o seu aniquila mento –, o trata como sujeito, por meio da valorização de sua situação, das ativida- des que desenvolve, do sentido que dá às atividades e situações de apren- dizagem e às relações com os outros (CHARLOT, 2000, p. 30). Uma maneira metodológica de valorizar a criança, o jovem e o adul- to no processo de ensino de história, como será proposto no capítulo 7, é por meio da construção de narrativas pelos alunos, para que possam compreender e articular suas experiências passadas de forma positiva, no sentido de uma orientação presente balizada pelas expectativas de um futuro melhor. Capítulo 3 Fundamentos e Metodologia do Ensino de História 41 Para fazer essa inversão de uma leitura negativa para uma leitura positiva da situação de fracasso escolar, Charlot (2000, p. 33) propõe o desenvolvimento de uma sociologia do sujeito, pois considera o aluno um sujeito, mesmo que sujeitado, já que é uma criança, um jovem, um adulto, um ser humano em relação com outros seres humanos, também sujeitos, portadores de desejos e movidos por eles. O aluno é um ser social, com família, posição social, relações so- ciais. É um ser singular, único entre a espécie humana, com sua própria história, sua visão de mundo, e que dá um sentido a esse mundo, à po- sição social que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história, à sua singularidade. Como ser humano, social e singular, e para agir no e sobre o mun- do, o aluno tem a necessidade de aprender a relacionar-se com os ob- jetos, com as pessoas e com o próprio conhecimento. Por isso, como sujeito, se produz ele mesmo, e é produzido, por meio da educação. Charlot (2000, p. 46) aponta para a necessidade de uma sociologia do sujeito dialogar com a psicologia, não apenas com a psicologia do desenvolvimento de Piaget, desenvolvida com referência na biologia e na lógica, sem ignorar o social, mas com os estudos da psicologia interacionista. É interessante ter como princípio que toda relação de “mim comigo mesmo” passa pela minha relação com o outro, ou seja, que considera a relação do sujeito com ele mesmo, com os outros, com o social e com as contribuições e efeitos que essas relações têm na cons- trução do sujeito e do outro. Toda relação consigo é também relação com o outro, e toda a rela- ção com o outro é também relação consigo próprio. Há aí um princípio essencial para a construção de uma sociologia do sujeito: é porque cada um leva em si o fantasma do outro e porque, inversamente, as relações sociais geram efeitos sobre os sujeitos e que é possível uma sociologia do sujeito. Reside aí, também, um princípio fundamental para compreender a experiência escolar e para analisar a relação com o saber: a experiência es- colar é, indissociavelmente, relação consigo, relação com os outros (profes- sores e colegas) e uma relação com o saber (CHARLOT, 2000, p. 46-47). As crianças, os jovens e os adultos são levados pelo desejo de relação com o outro e abertos para um mundo social no qual eles ocupam um lugar, uma posição, do qual são elementos ativos e só podem tornar-se Fundamentos e Metodologia do Ensino de História FAEL 42 sujeitos efetivos na relação obrigatória com o saber, pois só por meio do aprendizado da cultura poderão apropriar-se do mundo e ingressar no mundo do conhecimento (CHARLOT, 2000, p. 57-59). A relação do sujeito com o saber é mais ampla do que aquilo que o sujeito sabe. O que existe não é apenas o saber em si ou sujeitos que sabem, e sim sujeitos que estão em relação com o saber, em uma dinâmica ativi- dade de relações consigo mesmo e com os outros, em que o conhecimento é resultado: de uma experiência pessoal com primazia da subjetividade, da apropriação de informações e saberes com primazia da objetividade e no confronto com outros sujeitos em que a primazia é da intersubjetividade. O próprio saber é relação, produto e resultado da interação de conheci- mento do mundo por um sujeito (CHARLOT, 2000, p. 61-62). O saber implica, ainda, outras relações: é construído em uma his- tória coletiva, é validado por comunidades científicas, é produto de relações epistemológicas, é transmitido enquanto reconhecido pela so- ciedade, sendo, essencialmente, relações sociais. Dessa forma, o saber só é apropriado pelo sujeito, só se torna uma relação significativa com o saber se ele se instalar na relação com o mundo que a constituição desse saber supõe. Essa relação significativa com o saber o sujeito transfere para ou- tras relações com o mundo. Já o sujeito que não se situa em uma relação significativa com o saber, que não se apropria das relações e formas de construção desse saber, é levado
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