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- -1 LITERATURA PORTUGUESA CAPÍTULO 3 - DA PROSA REALISTA DE EÇA DE QUEIRÓS AO MODERNISMO DE PESSOA Gabriela Manduca Ferreira - -2 Introdução Vamos começar o capítulo compreendendo os períodos literários do Realismo e do Modernismo na Literatura Portuguesa? Para isso, é interessante refletir sobre alguns pontos: o que caracteriza o Realismo na Literatura Portuguesa? Como Eça de Queirós se destaca no Realismo português? Quais são as características do Modernismo português? De que modo a obra de Fernando Pessoa compõe o Modernismo na literatura portuguesa? Inicialmente, cabe observarmos que o Realismo e o Naturalismo apresentam características que, contrapondo-se à geração anterior, expressam-se na produção literária de diferentes literaturas, inclusive na literatura portuguesa, tendo origem na França. No Realismo português, abordaremos o romance de Eça de Queirós, com destaque para a obra “O primo Basílio”, aprendendo sobre o romance naturalista e o romance de tese. Seguindo esses quesitos, contextualizaremos a literatura do Modernismo português e o contexto e as características desse período, com destaque para a produção ortônima e heterônima (Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos) do grande poeta Fernando Pessoa. Abordaremos o modo como as características do Modernismo português de ousadia e revolução se expressam na obra de Fernando Pessoa e a singularidade desse poeta tão múltiplo, que se tornou um dos maiores escritores na literatura mundial. Nossos estudos abordam, também, a poesia de Florbela Espanca, destacando sua relevância para a literatura portuguesa em suas características pós-românticas e de autoria feminina, a partir da análise do livro “Charneca em flor”. Vamos lá? Acompanhe o conteúdo com atenção! 3.1 O romance de Eça de Queirós A partir da década de 1860, o Romantismo entra em decadência em Portugal, tendo Coimbra como centro dessa mudança na literatura, que ganha projeção com as discussões estéticas que se contrapuseram na disputa entre Antero de Quental e Antônio Feliciano de Castilho, sendo conhecida como “Questão Coimbrã”, um marco de posicionamento dos jovens estudantes da Escola de Coimbra e o início do Realismo na Literatura Portuguesa. O Realismo em Portugal consistiu em um movimento ocorrido no fim do século XIX, que buscava transformar Portugal em um país moderno, próximo às nações europeias de maior destaque, como a França (SARAIVA, 2005). Para isso, os realistas buscavam discutir em Portugal as grandes teorias formuladas ao longo do século XIX, como a teoria evolucionista de Darwin e a teoria positivista de Comte. Trata-se, portanto, do afastamento da arte pela arte, do convencional e do enfático que prevaleciam no VOCÊ QUER LER? A “Questão Coimbrã” é uma importante polêmica da literatura portuguesa, capaz de mobilizar intelectuais portugueses em posições opostas de defesa. Por um lado, dos padrões convencionais do romantismo e, por outro lado, da nova arte realista. Para conhecer mais sobre essa polêmica, leia o artigo “’Questão Coimbrã’: a problematização sobre Portugal através de uma polêmica literária pela geração de 70 (1865-1866)”, de Rômulo de Jesus Farias Brito, disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficinadohistoriador ./article/view/20124/0 - -3 Trata-se, portanto, do afastamento da arte pela arte, do convencional e do enfático que prevaleciam no romantismo, numa defesa da abordagem da realidade nua e sem ilusões. De origem francesa, o Realismo e o Realismo-Naturalismo tiveram como maiores expoentes na França, Gustave Flaubert e Emile Zola, em várias ocasiões apresentados pelos realistas portugueses, principalmente por Eça de Queirós, como precursores do Realismo, com destaque para o romance “Madame Bovary”, de Flaubert. Figura 1 - A cidade portuguesa de Coimbra foi o centro do nascimento do Realismo em Portugal Fonte: A&J Fotos, iStock, 2020. Desse modo, a geração de 1870 em Portugal modifica o gênero romance, abandonando o romantismo, e passa a construir o romance como um trabalho científico, como explica Moisés (2008, p. 190): “O romance passa a ser, no Realismo, obra de combate, arma de ação transformadora da sociedade burguesa dos fins do século XIX. Torna-se instrumento de ataque e demolição, por um lado, e de defesa de ideais filosóficos e científicos, por outro”. Nesse ponto, cabe diferenciar o romance realista do romance naturalista. De acordo com Moisés (2010), o romance realista preocupa-se com a abordagem estética dos problemas sociais, enquanto o romance naturalista se aproxima cientificamente desses problemas sociais, investigando suas causas. 3.1.1 O primo Basílio Eça de Queirós (1845-1900) foi o maior escritor realista de Portugal, tendo escrito romances, contos, jornalismo e literatura de viagens, embora destacando-se pelos importantes romances realistas, como: “O crime do Padre Amaro” (1876), “O primo Basílio” (1876), “Os Maias” (1888), “A ilustre casa de Ramires” (1900), “A cidade e as serras” (1901) (MOISÉS, 2008). Moisés (2008, p. 194) o destacou como um dos maiores escritores em língua portuguesa: Reunindo condições pessoais e históricas propiciadoras do trabalho intelectual, Eça de Queirós tornou-se dos maiores prosadores, alcançando ser, na esteira de Garrett, uma espécie de divisor de águas linguístico entre a tradição e a modernidade. Tem exercido considerável influência em Portugal e no Brasil, até os nossos dias. Nos romances de Eça de Queirós é relevante observar as características próprias do romance realista, como a mudança na sintaxe, com o uso de palavras simples e neologismos, e com temáticas que abordam ironicamente a sociedade portuguesa. Enquanto "O crime do Padre Amaro” realiza uma crítica à província por meio da figura do - -4 sociedade portuguesa. Enquanto "O crime do Padre Amaro” realiza uma crítica à província por meio da figura do corrupto padre Amaro, em “O primo Basílio” a crítica volta-se contra a cidade, desvendando a deterioração da família burguesa. Vejamos um trecho de “O primo Basílio” que transparece a mentalidade romântica de Luísa que é alvo da crítica do realismo: Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de- rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu a chinelinha: esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: — em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera... (QUEIRÓS, 2015, p. 29) Observe o cotidiano entediante e monótono da vida de Luísa e Jorge, descritos por Eça de Queirós para criticar a condição da família burguesa por meio desse casal típico. Com uma viagem a trabalho de seu marido Jorge, a sonhadora e romântica Luísa envolve-se com o sedutor primo Basílio. Trata-se, como elucidou Moisés (2008, p. 195), “[…] formado o banal trio amoroso, o núcleo da organização burguesa, o casamento, deixava-se atingir mortalmente pelo adultério”. Figura 2 - O casamento e o adultério foram temáticas frequentes nos romances realistas e naturalistas Fonte: solidcolours, iStock, 2020. VOCÊ QUER VER? O filme brasileiro “Primo Basílio”, lançado em 2007, dirigido por Daniel, foi inspirado no romance “O primo Basílio”, de Eça de Queirós, que aborda o adultério de Luísa e Basílio, porém ambientado em São Paulo. Outra diferença significativa entre o filme brasileiro e o romance de Queirós é a explicitação dos diálogos de homossexualidade, que na obra original eram apenas entrevistos. Vale a pena conferir! - -5 Fonte: solidcolours, iStock, 2020. O enredo de “O primo Basílio” constrói o adultério de Luísa e Basílio de modo que o leitor desvende o quanto a mentalidade previsível e tradicional de Luísa possibilita facilmente sua sedução por Basílio, uma figura cosmopolita (que vivia em Paris) e que correspondia ao ideal romântico de Luísa. É interessante,ainda, observar que a carga dramática do romance não está na questão moral do adultério ou na culpa que eventualmente os envolvidos poderiam sentir, mas no obstáculo em que consiste a empregada Juliana, que rouba as cartas trocadas entre os amantes para chantagear a patroa. 3.1.2 Romance de tese Os romances criados sob a perspectiva do Naturalismo são chamados de “romances de tese”, pois procuram provar uma tese a partir de um enredo. O Naturalismo foi ainda mais fortemente influenciado pelo cientificismo do que o Realismo, sobretudo pelas teorias científicas do evolucionismo de Charles Darwin, e do positivismo, de Auguste Comte. Por esse motivo, os romances naturalistas costumam ter um caráter determinista, em que determinado problema social é abordado a fim de investigar as causas, que geralmente são explicadas por fatores relacionados à etnia, à ascendência ou ao ambiente. O grande escritor de romances naturalistas foi o romancista francês Emile Zola, autor de romances como “Thérèse Raquin” (1867) e “Germinal” (1885). Como explica Moisés (2008, p. 191), “[…] o romance naturalista é cronológica e esteticamente, posterior ao realista. [...] O pormenor cronológico, embora não condicione o outro, está-lhe intimamente ligado”. Zola influenciou romancistas do mundo todo e, embora Eça de Queirós tenha forte influência do Naturalismo e de Zola, Moisés (2008) o considera um romancista realista, elegendo outro escritor, Abel Botelho, como o principal representante do naturalismo português. CASO Imaginemos um caso hipotético em que um sociólogo desenvolva uma pesquisa sobre a instituição do casamento e o adultério na sociedade contemporânea. O sociólogo, ao percorrer historicamente tal instituição, percebe que é somente com o advento da propriedade privada e, mais fortemente, a partir da sociedade capitalista que a organização em família monogâmica instituída pelo casamento se estabelece como central. Ao estudar a Literatura Realista e Naturalista, o sociólogo identifica em romances como Madame Bovary, de Flaubert, e O primo Basílio, de Eça de Queirós, a temática do adultério abordada para a crítica à instituição do casamento e à família burguesa. Ao continuar sua pesquisa, chegando à atualidade, o sociólogo identifica que, embora a visão conservadora do casamento e da família ainda se apresentem como norma, as críticas (inclusive do Realismo e do Naturalismo) a essa instituição contribuíram para que hoje a sociedade reconheça novas organizações familiares (como, por exemplo, as famílias homoafetivas) e novas organizações de relacionamento (como, por exemplo, o poli-amor). - -6 3.2 Heteronímia de Fernando Pessoa Ao pensar sobre a obra de Fernando Pessoa, precisamos, incialmente, nos perguntar: qual é o contexto sócio- histórico de produção da obra de Pessoa? De que modo as características do Modernismo Português se expressam na obra de Fernando Pessoa? O início do século XX em Portugal foi marcado por profundas transformações sociais e culturais, que impactaram na Literatura Portuguesa, pois em 1910, com a queda da Monarquia, instaura-se a República em Portugal (SARAIVA, 2005). A isso se somava o momento conturbado mundialmente de pós-Primeira Guerra (1914 a 1918) e os eventos que ocasionariam o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Figura 3 - O período entre guerras é o momento de surgimento do Modernismo em Portugal Fonte: Johncairns, iStock, 2020. Também é relevante observar que teorias científicas desse período alteraram significativamente o modo como a humanidade pensava e explicava sua realidade. São desse período: a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, a Teoria Psicanalítica, de Sigmund Freud, e grandes inovações tecnológicas. Nasce desse período de transformações o Modernismo em Portugal, que tem marco inicial em 1915, com a criação da revista “Orpheu” por artistas como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada-Negreiros. VOCÊ O CONHECE? Mário de Sá-Carneiro nasceu em 1890 e suicidou-se aos 26 anos, em 1916. A poesia de Mário de Sá-Carneiro ocupa um lugar importante na Literatura Portuguesa, não apenas da sua relação de proximidade com Fernando Pessoa, mas também porque é na poesia de Sá-Carneiro que está mais fortemente presente um traço característico da geração de “Orpheu: o sentimento de desajuste e de inadaptação ao mundo”. Saiba mais sobre a vida e as obras de Mário de Sá-Carneiro em: .https://www.ebiografia.com/mario_de_sa_carneiro/ - -7 Esse primeiro momento do Modernismo português, que recebeu o nome de Orfismo, caracterizou-se pela crítica à burguesia, pelo apelo cosmopolita e pela busca do universal e do esotérico. A segunda geração modernista em Portugal foi chamada de Presencismo, pois teve como marco inicial, no ano de 1927, a publicação da revista “Presença”, fundada por José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca (MOISÉS, 2008). O Presencismo tinha como principal característica a defesa da literatura guiada pelo mistério, em uma concepção de arte metafísica, além da variedade de obras produzidas em diferentes gêneros. Por fim, a terceira geração modernista foi o Neorrealismo, produzido a partir de 1940, formado por artistas que discordavam da prevalência da estética na geração do Presencismo e voltaram sua atenção para a preocupação com a realidade, influenciados principalmente pela ficção norte-americana (John dos Passos e Ernest Hemingway, por exemplo) e pela prosa brasileira modernista da Geração de 30 (Graciliano Ramos e José Lins do Rego, por exemplo) (MOISÉS, 2008). 3.2.1 Poesia ortônima Fernando Pessoa (1888-1935) ocupa, ao lado de Camões, um lugar de destaque na Literatura Portuguesa, pois sua produção poética tem influência e repercussão em Portugal e na literatura mundial. Seu único livro publicado em vida em língua portuguesa foi o livro de poemas “Mensagem” (1934), tendo o autor escrito, também, ensaios, contos, peças teatrais e crítica literária. Fernando Pessoa participou do Modernismo português ao liderar a geração do Orfismo e, posteriormente, ao ser adotado como um mestre da geração do Presencismo. Moisés (2008) atribui a grandiosidade da obra de Fernando Pessoa à sua capacidade de mobilizar os aprendizados da lírica portuguesa anterior a ele, integrando poetas como Camões, Bocage, Antero de Quental e Camilo Pessanha, mas não somente para retomar seus predecessores, pois Fernando Pessoa foi capaz de avançar na lírica portuguesa. Como explica Moisés (2008, p. 241): Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, [...], conseguiu superar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: [...] em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando, seja de conteúdo, seja de forma poética. Há, portanto, um conjunto de procedimentos inovadores criados ou aprofundados por Fernando Pessoa que modifica profundamente a literatura portuguesa e cria procedimentos que marcam e influenciam os poetas posteriores de modo único. Quanto às inovações temáticas, Fernando Pessoa captou com sensibilidade as incertezas humanas próprias do início do século XX, numa sociedade em crise. Mais do que isso, buscou ordenar o caos e resistir à inconstância. O processo é descrito por Moisés (2008, p. 242) do seguinte modo: “Tudo se passa como se ele, [...] colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes sofridos pelos homens no curso da História”. Formalmente, a poesia de Pessoa inovou ao adotar linguagem usual e se opor às normas de composição poética. O caráter metalinguístico de sua poesia também é uma característica marcante de sua obra, que discute o quanto a criação poética é complexa. A metalinguagem se expressa em um dos mais conhecidos poemas de Fernando Pessoa, “Autopsicografia”: O poeta é um fingidor. Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, - -8 Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. (PESSOA, 2002, p. 23) Trata-se de um poeta singular, não somente por sua rica obra, mas também por sua criação artística se expandir para além da criação dos poemas, contudo, operar também a criação de poetas, isto é, a criação de personalidades e identidades distintas que, por consequência, produziram obras com características distintas. Nesse sentido, uma primeira análise da obra de Fernando Pessoa leva a diferenciar a poesia ortônima, ou seja, a criação poética em que o autor declarado é o próprio Fernando Pessoa; e a poesia heterônima, aquela em que o autor é um dos heterônimos criados por Fernando Pessoa. Desse modo, a poesia ortônima de Fernando Pessoa é considerada a poesia de Fernando Pessoa, ele mesmo, excluídos os heterônimos e se caracteriza pela temática relacionada à Portugal e ao sebastianismo. 3.2.2 Poesia heterônima Inicialmente, é necessário observar que um heterônimo se diferencia de um pseudônimo, pois o pseudônimo é simplesmente um nome diferente do seu próprio que o autor utiliza para assinar os poemas. No caso de Fernando Pessoa, o poeta criou não apenas nomes de personalidades distintas — que tinham até mesmo data de nascimento —, com trajetórias de vida e posicionamentos poéticos distintos. Assim, parte da riqueza da obra de Fernando Pessoa está na característica singular de ter realizado uma multiplicação do poeta, como explica Moisés (2008, p. 243): Nada tendo que ver com pseudônimos, [os heterônimos] querem referir a existência de outros nomes, isto é, outros poetas, com identidade, “vida” e sentido autônomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. [...] Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão. Os principais heterônimos de Fernando Pessoa são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Alberto Caeiro, a quem o poeta atribui como data de nascimento 8 de março de 1914, é considerado o mestre dos outros heterônimos. Caeiro vive no campo, tendo cursado somente a escola primária e sua poesia busca a simplicidade da natureza. Vejamos um trecho do poema “O Guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro ( MOISÉS, 2008, p. 244):apud Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho. - -9 Observe a busca da simplicidade na linguagem e a recusa ao pensamento, à filosofia e à intelectualidade, traços característicos da poesia de Alberto Caeiro. Já Ricardo Reis é médico e apresenta forte influência clássica nas temáticas e na linguagem. A obra dele é perpassada pela herança clássica que é não apenas retomada, reproduzida, mas transformada. A cultura antiga é aplainada por Reis, que a valoriza e reúne em bloco visto sempre como positivo. Deste modo, aproxima-se especialmente do gênero lírico por compor na forma fixa da ode, elegendo como modelo as odes horacianas. Observe um trecho a seguir do poema “Tão cedo passa tudo quanto passa!”, de Ricardo Reis (1946, p. 92): Tão cedo passa tudo quanto passa! Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco! Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada. Nesse poema a temática da vida e da morte é perpassada pelo tema do Carpe diem, abordado a partir da afirmação de que a única atitude possível diante da inevitabilidade da morte é a de gozar os prazeres da vida enquanto é oportuno (MOISÉS, 2008). Álvaro de Campos é um engenheiro que leva à poesia um traço moderno, contestador e pessimista. Vejamos um trecho de um de seus poemas mais conhecidos, “Tabacaria” (PESSOA, 1944, p. 252): Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Nesse poema, destaca-se o pessimismo de Álvaro de Campos, em que se expressa o teor de revolta característico desse heterônimo. Observe que versos como “Não sou nada / Nunca serei nada” se referem à negação de tudo, inclusive da própria existência do eu-lírico, negando, desse modo, a adesão a qualquer comportamento que não seja o pessimista. 3.3 Relevante contribuição da lírica de Florbela Espanca Abordar a poesia de Florbela Espanca (1894-1930) implica o cuidado necessário para que o estudo literário não seja encoberto pelo estudo da biografia da poetisa e que sua obra não seja simplesmente explicada pelos acontecimentos de sua vida — dramaticamente — atribulada (MOISÉS, 2008). Um fator que talvez contribua para tal linha de estudo é o caso de Florbela ser uma mulher. Não pretendemos aqui excluir a questão de que os acontecimentos de sua vida possam ter impulsionado sua obra e nem tampouco ignorar que seja a matéria de nosso estudo, uma mulher. Pelo contrário, admitimos que, sendo uma elaboração - -10 ignorar que seja a matéria de nosso estudo, uma mulher. Pelo contrário, admitimos que, sendo uma elaboração cultural, as formas de se representar ou de constituir-se como sujeitos femininos e masculinos sempre serão diferentes, dependendo das sociedades ou do momento histórico, ou ainda, dos grupos aos quais possam pertencer (TOLEDO, 2001). A dificuldade — ou impossibilidade — de enquadrar Florbela Espanca em uma corrente literária portuguesa é outra questão com a qual se tem de trabalhar. Embora alguns críticos a enquadrem na categoria do pós- romantismo, é necessário reconhecer que ela não se integra em nenhuma escola. Moisés (2010, p. 436) aponta que Florbela, juntamente com Aquilino Ribeiro, “[…] embora modernos na sua sintaxe estética, ainda refletiam valores culturais dos começos do século”. Suas principais obras são “Livro de Mágoas” (1919), “Livro de Sóror Saudade” (1923) e “Charneca em flor” (1931). Desse modo, o estudo da obra de Florbela Espanca suscita inúmeras questões e, para conhecermos algumas delas, nos deteremos no estudo dos poemas “Amar!” e “Ambiciosa”, publicados em 1930, com o incentivo de Guido Batteli, no livro “Charneca em flor”. Moisés (2008, p. 253) destaca a importância de Florbela Espanca ao afirmar: Florbela Espanca tem sido considerada muito justamente a figura feminina mais importante da Literatura Portuguesa. Sua poesia [...] corresponde a um verdadeiro diário íntimo onde a autora extravasa as lutas que travam dentro dela tendências e sentimentos opostos. Trata-se de uma poesia- confissão, através da qual ganha relevo eloquente, cálido e sincero toda a desesperante experiência sentimental duma mulher superior por seus dotes naturais, fadada a uma espécie de donjuanismo feminino. A epígrafe de “Charneca em flor”, um poema de Rúben Darío, está intimamente ligada ao poema “Amar!”. Vejamos, primeiramente, a epígrafe de “Charneca em flor”, para, então, compará-la ao poema “Amar”, de Florbela Espanca: Amar, amar, amar, amar siempre, con todo el ser con la tierra y con el cielo, con lo claro del sol y lo obscuro del lodo. Amar por ciencia y amar por todo anhelo. Y cuando la montaña de la vida nos sea dura y larga y alta y llena de abismos, amarla inmensidad, que es de amor encendida, ¡y arder en la fusión de nuestros pechos mismos! (DARÍO, 2011, p. 427) Agora, compare o poema de Darío ao poema de Espanca e analise o modo como a epígrafe do livro inspirou especificamente esse poema, não somente pela temática amorosa, mas, também, pela construção poética, por exemplo, com a repetição do verbo “Amar”. O vigésimo quarto poema do livro traz o tema do donjuanismo feminino. Veja o um trecho do poema “Amar”: Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui… além… Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!… - -11 Recordar? Esquecer? Indiferente!… Prender ou desprender? É mal? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente! (ESPANCA, 1996, p. 232) O primeiro verso expressa o desejo de amar “perdidamente” no sentido de perdição e não de profundidade. Perdição e descompromisso explicitados nos versos seguintes (“Amar só por amar”; “E não amar ninguém!”). Uma estrofe repleta de exclamações em que os amantes elencados estão em letra maiúscula (“Mais Este e Aquele, ou Outro e toda a gente...”) talvez já um anúncio do Deus que será buscado em “Ambiciosa”. É interessante notar que, por na sociedade capitalista as relações de gênero serem marcadas por uma forte assimetria e a mulher estar sob a dominação masculina, ela costuma ser expressa em relação ao homem como “a outra”, como um complemento e não como o principal. Isso é subvertido por Florbela Espanca, que coloca o ser humano — e consequentemente Deus — como o outro. Na segunda estrofe se mostra a tentativa de refutar concepções dogmáticas (“É mal? É bem?”) e de quebrar o paradigma amoroso baseado na fidelidade (“Quem disser que se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente!”). A terceira estrofe funciona como uma defesa das proposições anteriores trazendo o tema do Carpe diem como ponto central da necessidade — estabelecida por Deus — de viver intensamente. Tal argumento continua sendo usado na última estrofe em que se nota o descrédito do eu-lírico numa existência pós-mortal. Com isso, Florbela mostra que não há por que se perder nos detalhes de uma existência sem arrebatamento. VOCÊ SABIA? “ ” é uma expressão em latim que significa “colha o dia”, “aproveite o dia”. Trata-seCarpe diem de um trecho de uma ode de Horácio que se tornou uma tópica lírica. Na poesia, essa expressão foi mobilizada como tema por muitos poetas, como Florbela Espanca, que abordaram a importância de aproveitar a vida e o momento presente. - -12 Figura 4 - A temática do (aproveite o dia) está presente na poesia de Florbela Espancacarpe diem Fonte: Jasmina007, iStock, 2020. É interessante observar que o último verso do poema “Amar” se liga ao primeiro pela ideia de perdição – inclusive com o mesmo radical em “perdidamente” e “perder” — aqui o binômio perder/encontrar não é excludente, tendo suporte em uma série de passagens bíblicas. Nesse mesmo viés de busca por um amor divino, encontra-se “Ambiciosa”. O título alude aos pecados, tanto da cobiça como da luxúria. Pode-se interpretar, também, como a ambição, não só por uma outra maneira de se expressar como mulher, mas também como um outro modo de desejar — mais carnal e menos divino, embora busque o divino — que se afasta do protótipo convencionalmente feminino. Veja um trecho do poema “Ambiciosa”: Para aqueles fantasmas que passaram, Vagabundos a quem jurei amar, Nunca os meus braços lânguidos traçaram O vôo dum gesto para os alcançar... Se as minhas mãos em garra se cravaram Sobre um amor em sangue a palpitar... - Quantas panteras bárbaras mataram Só pelo raro gosto de matar! (ESPANCA, 1996, p. 234) A primeira estrofe vem reafirmar a postura de mulher ambicionada pelo eu-lírico, aquela postura que faz juras de amor inconsequentes e que não espera, nem faz sacrifícios por esse amor, que sabe ser fugaz e que no futuro não passará de um espectro. Na estrofe seguinte há o espelhamento entre o eu-lírico e a pantera no sentido de uma ter o coração do amante e outra o ato de matar como um “raro gosto”, um capricho. As consequências de tal postura são enunciadas na terceira estrofe em que a pedra funerária – dura, fria e solitária – é expressão do sentimento de solidão, que é condição primeira do eu-lírico. Tendo por companhia somente os céus, a quem interroga. A interrogação é expressa na última estrofe (“O amor dum homem?”), em que o amor de um homem figura como algo banal e pequeno, nada além de uma gota de chuva levada pelo vento, que se torna ainda menor quando comparado ao amor de um deus, amor desejado pela do poema.persona A insatisfação erótica que desemboca no desejo pelo amor de um deus liga-se ao estereótipo do homem perfeito, do “príncipe encantado”. Apesar do “donjuanismo” feminino ser uma superação dos valores burgueses, a persona , diante da religiosidade, beatifica tudo, encobrindo o sentimento de culpa e tornando Deus passível de ser - -13 , diante da religiosidade, beatifica tudo, encobrindo o sentimento de culpa e tornando Deus passível de ser abrigado e apreendido da forma como desejava. Assim, o ponto de convergência entre os dois poemas reside na aridez de ambos, na ausência de sequência, de consequências e de flores, fazendo referência ao título do livro. Conclusão Concluímos o capítulo relativo ao Realismo e ao Modernismo português. Agora, você já conhece o contexto e as características dos períodos do Realismo e do Modernismo na literatura portuguesa. Além disso, estudamos que esses são períodos em que as produções literárias se transformaram profundamente e se expressam nas obras de dois dos maiores escritores da literatura portuguesa: Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • refletir sobre o contexto de surgimento do Realismo em Portugal; • aprender sobre as relações entre o Realismo em Portugal e seus predecessores franceses; • identificar as diferenças entre o romance realista e o romance naturalista; • identificar a importância da obra de Eça de Queirós para a literatura portuguesa; • compreender o romance “O primo Basílio” como característico do Realismo Português; • reconhecer o romance de tese como o romance produzido a partir dos ideais do Naturalismo; • compreender o Modernismo Português em suas três gerações; • identificar a singularidade da obra de Fernando Pessoa na literatura portuguesa; • conhecer as principais características da poesia ortônima e heterônima de Fernando Pessoa; • reconhecer a importância da obra de Florbela Espanca. Bibliografia BRITO, R. de J. F. B. “Questão Coimbrã”: a problematização sobre Portugal através de uma polêmica literária pela geração de 70 (1865-1866). , Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 8, n. 2, p. 154-173, jul./dez.Oficina do Historiador 2015. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficinadohistoriador/article/view . Acesso em: 24 fev. 2020./20124/0 DARÍO, R. . Prólogo de Julio Valle Castillo e organización de ErnestoObra poética completa de Rubén Darío Mejía Sanchez. Managua: Editorial Hispamer, 2011. ESPANCA, F. . São Paulo: Martins Fontes, 1996.Poemas de Florbela Espanca FRAZÃO, D. Mário de Sá-Carneiro: poeta português. , [ .], 2019. Disponível em: E-biografia s. l https://www. . Acesso em: 24 fev. 2020.ebiografia.com/mario_de_sa_carneiro/ MOISÉS, M. . 29. ed. São Paulo: Cultrix, 2010.A literatura portuguesa através dos textos MOISÉS, M. . São Paulo: Cultrix, 2008.Literatura portuguesa NICOLA, J. : das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 1999.Literatura portuguesa PESSOA, F. 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