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De espelho a Janela Curando a psicanálise do seu narcisismo James Hillman ... O conflito aparentemente individual do paciente é revelado como um conflito universal do seu ambiente e época. Assim, a neurose é nada menos do que uma tentativa individual, ainda que malsucedida, de resolver um problema universal... C. G. Jung, CW 7, § 438 (1912) O narcisismo agora é moda, o diagnóstico universal. No mundo de Freud, a nova atenção estava na histeria de conversão; no de Bleuler, a dementia praecox. Em períodos anteriores, todos os males eram atribuídos à Doença Inglesa*, ao Spleen†, à hipocondria, à melancolia, à clorose; em Paris, uma infinidade de phobies e delires. Tempos e locais diferentes, síndromes distintas. O narcisismo tem seus teóricos – Kohut, Kernberg, Lacan – e os junguianos modernos estão seguindo a moda. A consciência coletiva da psicologia nos torna coletivamente inconscientes, do modo como Jung mencionou quando estava escrevendo sobre as ideias coletivas na sua época. Estar “por dentro” significa estar dentro dessas ideias. O diagnóstico epidêmico de “narcisismo” declara que a condição já é endêmica para a psicologia que faz o diagnóstico. Ela vê narcisismo porque vê narcisicamente. Então não levemos esse diagnóstico de modo tão literal, coloquemo-lo no seu lugar dentro da parada histórica dos diagnósticos ocidentais. Eminentes críticos culturais – Thomas Szasz, Philip Rieff, Christopher Lasch, Paul Zweig, e o notório Dr. Jeffrey Masson – todos eles notaram que a psicanálise gera um subjetivismo narcisista, infligindo na cultura um transtorno iatrogênico, isto é, uma doença causada pelos métodos dos médicos que desejavam curá-la. Vou continuar a linha de pensamento deles, mas usarei um método que Wolfgang Giegerich expôs de modo tão brilhante em seus textos. Se a própria psicologia profunda sofre de um transtorno narcísico, então o que nós, analistas, precisamos sondar primeiro é o narcisismo inconsciente da própria análise. Nosso primeiro paciente não é o paciente nem nós mesmos, mas o fenômeno chamado de “análise” que levou ambos ao consultório. O termo “narcisismo” é provavelmente britânico. Havelock Ellis o teria inventado, embora Freud tenha fornecido o seu significado psicanalítico. O que disse Freud? Enquanto revejo algumas das suas descrições, vamos ouvi-las narcisicamente, como autorreferentes, descritivas da psicologia e de nós mesmos na psicologia. 1917: “Utilizamos o temo narcisismo em relação a crianças pequenas e é ao excessivo narcisismo do homem primitivo que atribuímos sua crença na onipotência de seus pensamentos consequentes tentativas de influenciar o curso de eventos no mundo primitivo através de práticas mágicas”. A análise não tem essa fantasia de onipotência primitiva de influenciar eventos no mundo externo através das suas práticas mágicas? A onipotência da reflexão subjetiva é atestada por muitos junguianos clássicos como Harding, Bernhard, Meier, von Franz, Baumann, etc. Como o próprio Jung afirma, cada um de nós é um peso na balança que determina o resultado da história do mundo (CW * A expressão English Malady, “doença inglesa”, surgiu no século XVII no livro do mesmo nome de George Cheyne, representando uma classificação abrangente que cobria histeria, hipocondria, depressão, ansiedade. A doença inglesa estaria associada à “sensibilidade nervosa”. † Literalmente “baço”, ligado ao “humor melancólico”, e usado nesse sentido na obra de Baudelaire, O Spleen de Paris. 10, §§ 586-88). Os rituais de autoengajamento removem projeções do mundo, de modo que, supostamente, o próprio mundo é transformado pela psicanálise. 1922: “... transtornos narcísicos são caracterizados por uma remoção da libido objetal.” A remoção da libido objetal – peço que guardem essa afirmação. Nós vamos voltar a ela. 1925: Freud descreve três golpes históricos no narcisismo da humanidade. Estes seriam: o golpe cosmológico de Copérnico, o golpe da teoria darwinista da evolução, e o golpe psicanalítico (de Freud) que feriu a fantasia da onipotência, ou narcisismo, do ego como único senhor com vontade própria. Aqui, a própria psicanálise tornou-se uma gigantesca fantasia de onipotência, um mito de criação da nossa cultura equivalente à astronomia e a biologia, declarando sua autoridade com grandiosidade narcísica. Esse pronunciamento aparece no texto de Freud sobre a “Resistência à Psicanálise”. Por meio dessa ideia, a resistência, a análise brilhantemente manteve sua invulnerabilidade a críticas. A intenção de duvidar a validade da análise é impugnada, assim como sua resistência a ela. Ainda mais: os próprios ataques demonstravam resistência e, portanto, ajudavam a validar a teoria analítica. Como disse Freud (1928, “Humor”, CP, 5: 216), “... o triunfo do narcisismo, a asserção vitoriosa do ego da sua própria invulnerabilidade. Ele se recusa a ser ferido pelas flechas da realidade... Ele insiste que é invulnerável às feridas causadas pelo mundo exterior...” Mais tarde, Freud considerou que o narcisismo não estava realmente enraizado no amor, isto é, no amor-próprio, mas antes era uma defesa contra impulsos agressivos. Vamos considerar por um momento o valor de “impulsos agressivos”; no mínimo e na melhor das hipóteses eles levam em conta o objeto, o mundo lá fora: sinto raiva da injustiça social, do perigo nuclear, das baboseiras da mídia, da ambição da indústria, da mente corporativa, ideólogos políticos, a horrível arquitetura, etc. Mas, devido às minhas defesas narcísicas contra o chamado envolvente da agressão, eu vou ao spa, malho, medito, faço cooper, dieta, reduzo meu estresse, relaxo minhas couraças corporais, aprimoro meus orgasmos, arranjo um novo corte de cabelo e tiro férias. E – visito meu terapeuta: muito caro, muito bom para mim, porque ele(a) devota sua atenção total ao s meus problemas, especialmente nosso quadro transferencial. Em vez do mundo e da minha raiva, eu trabalho na minha análise, em mim mesmo, no meu Self. Esse Self, também, cabe numa definição narcisista: “a incorporação de imagens objetais grandiosas como defesa contra a ansiedade e a culpa” (Lasch, 36) ou, como Fenichel (1945, 40) colocou, o indivíduo sente que “se reúne com uma força onipotente”, seja essa força um arquétipo, um Deus ou Deusa, o unus mundus, ou a numinosidade da própria análise. O texto de Freud, “Sobre o Narcisismo” (1914, 52-54) declara que a introspecção e a consciência de “ser vigiado” derivam do e servem o narcisismo. Contudo, a psicoterapia pratica o autoescrutínio como principal método no seu tratamento e tem “ser vigiado”, ou a supervisão, como o principal componente do seu treinamento. Um candidato passa por horas e mais horas de narcisismo institucionalizado de vigiar e ser vigiado. A institucionalização do narcisismo na nossa profissão – no ideal da resistência, na idealização do Self, nas práticas da introspecção e da supervisão, nas fantasias de onipotência sobre sua própria importância na história mundial, na sua técnica de referir todos os eventos de volta a si mesma como o vaso, o espelho, o temenos, a moldura – cai imediatamente numa obsessão central da análise atual, a transferência. II Por transferência, quero dizer o hábito analítico autocongratulatório que se refere às emoções da vida na análise. A transferência habitualmente desvia a libido objetal, isto é, amor por qualquer coisa fora da análise, em um reflexo narcísico sobre a análise. Nós alimentamos a análise com vida. O espelho que caminha pela estrada da vida (Flaubert) substitui a estrada real, e o espelho não reflete mais o mundo, apenas os companheiros de viagem. Eles podiam muito bem ter ficado em casa, sem a distração das árvores e do tráfego. O principal conteúdo do reflexo narcísico ou transferência é a criança que fomos antes, um fato que está de acordo com a observação de Freudque a escolha de objeto do narcisista é “alguém que ele foi antes” (1914, 58). Isso ajuda a explicar porque os escritos de Alice Miller estão na moda. Suas crianças idealizadas exibem o que Freud disse: o narcisista “não está disposto a deixar de lado a perfeição narcísica da sua infância” e “procura recuperar a perfeição anterior” (ibid., 51). O foco na infância prende a libido ainda mais na subjetividade e, portanto, precisamos reconhecer que as compulsões eróticas na análise são produzidas primariamente pela análise, em vez de pelas pessoas. A análise age através delas de modo bastante impessoal, de modo muitas vezes sentem-se traídas e envergonhadas pela impessoalidade das emoções que sentem, e são incapazes de reconhecer que o que estão sofrendo é a libido objetal tentando encontrar uma saída para fora da análise. Em vez disso, a crueldade narcísica da nossa teoria diz que as emoções transferenciais estão compelindo as pessoas a irem mais fundo na análise. Vamos reconhecer que a outra pessoa – paciente ou analista – incorpora a única possibilidade dentro da análise para onde a libido objetal pode fluir. A pessoa na outra cadeira representa a cura do narcisismo analítico simplesmente sendo um Outro. Além disso, o paciente para o analista e o analista para o paciente se tornam objetos tão numinosos porque são tabus em termos de possibilidade libidinal. O analista e o paciente não podem expressão seu desejo um pelo outro. O narcisismo da situação faz com que eles sejam absolutamente necessários um para o outro, enquanto o tabu os coloca absolutamente fora um do outro. Esse objeto externo, contudo, também está dentro da análise. Assim, o paciente pelo terapeuta e o terapeuta pelo paciente tornam- se o modo simbólico de terminar a análise por meio do amor. Naturalmente, as pessoas frequentemente são divididas pelo que Freud chama de “dilema amoroso do paciente narcísico: cura pelo amor em vez de cura pela análise” (1914, 59). Contudo, devemos nos perguntar se essa escolha neurótica, como Freud a chama, surge do narcisismo do paciente ou do narcisismo do sistema analítico onde o paciente está situado. Afinal de contas, a fantasia da oposição entre o amor e análise ocorre dentro da fantasia anterior da cura que juntou as pessoas em primeiro lugar. Ao elaborar códigos éticos, seguro contra negligência profissional e expulsões que culpam os participantes, a análise se protege dos insights dolorosos sobre seu próprio narcisismo. A vulnerabilidade da análise – que a sua eficácia está sempre em questão, que ela não é ciência ou medicina, que ela está envelhecendo na mediocridade profissional e pode ter perdido sua alma para o poder anos atrás apesar da sua linguagem idealizada de crescimento e criatividade (uma linguagem, aliás, nunca usada pelos seus fundadores) – essa vulnerabilidade é vencida pela idealização da transferência. Assim como há o amor transferencial, também existe ódio. Talvez o ódio do cliente pelo analista e o ódio do analista pelo cliente também não sejam pessoais; talvez esses intensos sentimentos opressivos contra os quais surgem em ambos para apresentar o fato de que estão numa situação odiosa: a libido objetal odeia a conexão da transferência. A análise odeia a si mesma para romper o receptáculo narcisista que está aprisionando a libido que quer sair para a alma no mundo. Os dilemas da transferência, incluindo o olhar do analista no espelho da sua própria contratransferência, os sentimentos de amor e ódio, essa agonia e êxtase e tortura romântica, convencem os participantes de que o que está acontecendo é extremamente importante: primeiro, porque esses fenômenos são esperados pela teoria e fornecem prova dela, e segundo, porque esses fenômenos reproduzem o que a analise foi um dia, na sua própria infância em Viena e Zurique, análise na fusão primária com suas origens em Breuer, Freud e Jung, em Dora, Anna e Sabina. Os sentimentos são moldados numa aparência terapêutica porque essa é a ficção curativa (healing fiction) da situação analítica. Em outras palavras, a transferência é menos necessária ao analista e ao paciente do que é para a análise, por meio da qual esta intensifica sua idealização narcisista, permanecendo apaixonada por si mesma. Nós não nos sentamos em nossos consultórios tantas horas por dia apenas pelo dinheiro, ou pelo poder, mas porque somos viciados no narcisismo analítico. Nosso narcisismo individual é obscurecido e reforçado pelo narcisismo aprovado da profissão analítica. Quando um parceiro imagina um flerte ou o outro imagina resistir à sedução, ou quando qualquer um imagina que o amor é uma solução para o sofrimento, então estão sendo enquadrados nos conflitos românticos de Madame Bovary, O Morro dos Ventos Uivantes e Anna Karenina, reconstituindo o Romantismo do século dezenove e as origens da psicanálise, não na sua ou na minha infância pessoal, mas na sua própria infância cultural. Isso significa que temos que localizar o narcisismo da análise contemporânea dentro de um narcisismo muito mais vasto: o Movimento Romântico. III. A tradição literária diferencia pelo menos quatro traços principais desse gênero. Já falamos de um: a “idealização do objeto amoroso”. E, de fato, a análise idealiza o paciente como um “caso interessante”, “paciente difícil”, “bom paciente”, “personalidade borderline”. Ou considerem todas as fabulações literárias que tornaram pacientes em figuras literárias eternas – Dora, Ellen West, Babette, Miss Miller, o Homem-Lobo, o Homem-Rato, o Pequeno Hans, até os próprios Freud e Jung em romances como O Hotel Branco e A Casa de Vidro. Pensem no Romantismo em nossos construtos teóricos - Amor e Morte, empatia, Transformação, Crescimento, a Criança, a Grande Mãe, o Espelho, Desejo e Jouissance. No paciente ocorrem eventos idealizados como um hieros gamos, uma busca de autodescoberta e uma jornada rumo à totalidade, sincronicidades fora das leis causais, funções transcendentes, integração da sombra e a realização do Self, sobre a qual o futuro da civilização depende. Nós gravamos nossa idealização do objeto amoroso, isto é, a análise, em sessões analíticas gravadas e filmadas, prestando atenção meticulosa e dispendiosa em conversas e gestos triviais. A análise está apaixonada pela sua própria imagem idealizada. Um segundo traço essencial do Romantismo seria a oposição entre a sociedade burguesa e o eu interior que, com seus sonhos, desejos e inspirações, tende a opor, ou até contradizer o mundo exterior das coisas comuns. A psicanálise desde o seu início imagina-se fundamentalmente oposta à civilização e às instituições da religião, família, medicina e a comunidade política, desprezadas como “o coletivo”. A ênfase de Freud em si mesmo como um judeu e, consequentemente, marginal, assim como a posição favorita de Jung como um velho eremita herege (apesar das vidas burguesas que levavam e de seus valores), ainda forma a imaginação da profissão e distorce sua relação com o mundo ordinário. Em terceiro lugar, o aprisionamento, outro tema básico no Romantismo, especialmente o francês e o russo. Em Os Possuídos de Dostoievsky, a canção de Maria diz: “essa pequena cela me basta, aqui ficarei para salvar minh’alma”. O consultório fornece o espaço físico confinante para o aprisionamento psíquico da análise como tal: sua devoção aos recantos mais escondidos do mundo privado, decorando-o com rococó reconstrutivo (isto é, complexidades psicodinâmicas) a cela narcísica da personalidade. Em quarto lugar, o gênero romântico foi definido como um que simultaneamente procura e adia um propósito particular. Isso convém à terapia. Todo o seu procedimento busca restaurar a pessoa ao mundo, mas adia esse retorno indefinidamente. (Enquanto isso, não realize grandes mudanças na sua vida atual. Não passe ao ato. A cura da análise torna-se mais análise – outroanalista, outra escola – e o aperfeiçoamento do treinamento torna-se ainda mais horas.) A simultaneidade de buscar e adiar um propósito ocorre no dilema básico de toda análise, seus dois mandamentos contraditórios: encorajar o desejo do inconsciente (Não Reprimirás) e proibir a gratificação (Não Passarás ao Ato). Nosso trabalho é com o libidinoso, e nosso método passa pela via da abstenção. O fim é imprevisível; não há conclusão. A análise é interminável, como disse Freud. Esse é o Romantismo do anseio eterno. Não há como sair do consultório do Romantismo e do subjetivismo do seu Eros, a menos que nos voltemos para aquilo que está além do seu alcance, aquilo que o narcisismo e o romantismo deixam de fora: os objetos, o não-idealizado, o mundo real e imediato das coisas tediosas e urbanas. Ao direcionar a atenção psicológica do espelho da autorreflexão para o mundo através da janela, liberamos a “libido objetal” para que busque sua meta além do confinamento narcísico da análise. Pois “libido objetal” é apenas um nome psicanalítico para o impulso que ama o mundo, o desejo erótico pela anima mundi, pela alma do mundo. Talvez fique mais claro por que tenho enfatizado a admirável frase de John Keats: “Chame o mundo... de vale da Criação da Alma. Então irá descobrir para que serve o mundo...” Além disso, poderão compreender porque me mantive distante do lado de Jung que trata do significado, do Self, individuação, unus mundus, unidade, mandalas, etc. Essas ideias grandes e introvertidas me envolvem, e geralmente também meus pacientes, dentro de uma aura grandiosa e invulnerável. Também mantenho distância da atual mania por Kohut. Embora reconhecendo o narcisismo como síndrome dos tempos (mesmo se a base para isso foi preparada anos atrás na catástrofe metafísica do subjetivismo agostiniano e cartesiano), Kohut tenta curá-lo pelos mesmos meios da obsessão narcísica: uma observação ainda mais detalhada da subjetividade, e uma subjetividade dentro dos confins opressivos de uma infância reconstruída negativamente. O arquétipo da criança domina a terapia contemporânea, mantendo os pacientes (e analistas) protegidos do mundo. Pois esse arquétipo sente-se sempre ameaçado pelo mundo real, não livre no presente, mas no futuro, e é viciado no seu próprio infantilismo impotente. Ao focalizar desse modo a criança, a análise abdica ao reino mais amplo da criação da alma na comunidade adulta da pólis. Contudo, devo confessar um erro sério e antigo da minha parte em relação à frase de Keats. Sempre considerei o mundo lá fora útil para criar a própria alma – narcisismo de novo. Minha alma, sua alma – não a alma do mundo. Mas para os Românticos, colocar a alma no próprio mundo era uma parte crucial do seu programa. Eles reconheciam as armadilhas da subjetividade narcísica na sua visão. Assim, buscavam o espírito na natureza física, a irmandade de toda a humanidade ou Gemeinschaftgefuehl, revolução política e um retorno aos deuses e deusas clássicos, tentando reviver a alma do mundo com panteísmo. Assim, precisamos ler Keats como se dissesse que atravessamos o mundo pela criação da alma dele, e a partir daí da nossa. Essa leitura sugere uma verdadeira libido objetal, além do narcisismo, seguindo a definição de amor de Otto Feichel. O amor só pode ser chamado assim quando “a satisfação do indivíduo é impossível sem satisfazer também o objeto”. Se o mundo não está satisfeito com a nossa passagem por ele, independente de quanta beleza e prazer nossas almas recebam dele, então vivemos no seu vale sem amor. IV. Há uma saída, ou eu não estaria aqui. Pois o meu estilo específico de narcisismo, minha pose diante do espelho, atualmente é heroico. Meu estilo insiste na resolução das questões levantadas. O método que usarei aqui segue o método que costumo utilizar para resolver problemas. Em primeiro lugar, vamos procurar um modelo na história da psicanálise; em segundo lugar, vamos nos voltar para algum tipo peculiar de patologia em busca de pistas; e em terceiro lugar, resolveremos os problemas dissolvendo-os em imagens e metáforas. Então, vamos voltar ao primeiro caso psicanalítico, Anna O., e seu terapeuta, Josef Breuer, que escreveu junto com Freud Estudos sobre Histeria. Como devem se lembrar, depois de um ano de sessões quase diárias, frequentemente com várias horas de duração, ele subitamente encerrou o tratamento. Também devem se lembrar da intensidade da transferência dela, como ela desenvolveu uma gravidez e parto histéricos, depois que Breuer tento terminar o tratamento. Ele, de acordo com Jones, depois de visitá-la pela última vez, “fugiu da casa suando frio. No dia seguinte ele e sua esposa partiram para Veneza para uma segunda lua de mel, que resultou na concepção de uma filha.” Seja isso um fato ou não, e Ellenberger diz que não, a fantasia mostra um patrono fundador do nosso trabalho escapando tanto a cura pela análise e a cura pelo amor rumo à beleza veneziana e a concepção de uma filha. Sua libido objetal retorna do narcisismo opressivo da psicanálise para o romantismo do mundo mais amplo. Esse mundo amplo permanece sendo exatamente isso, apenas um lugar para escapar ou passar à ação, enquanto o mundo “fora da janela” for imaginado apenas no modelo cartesiano como pura res extensa, simples matéria morta. Para mostrar de modo mais vívido como o mundo é, como Keats dizia, um lugar de alma, vamos passar direto pela janela até o mundo. Vamos caminhar por um jardim japonês, em particular o jardim de passeio, aquele com água, colinas, árvores e flores. Enquanto caminhamos, vamos imaginar o jardim como um emblema para o professor peripatético ou para guia terapêutico (psicopompo), o próprio mundo como um psicanalista nos mostrando alma, nos mostrando como podemos existir nele com alma. Voltei-me para o jardim e para o Japão devido aos insights que tive nos jardins de Quioto vários anos atrás, e também porque o jardim como metáfora expressa alguns dos anseios mais profundos, das Hespérides ao paraíso do Éden, e ao hortus inclusus de Maria – o mundo como lugar da alma. Assim, ao entrarmos no jardim japonês, estaremos agora passando pela janela para a anima mundi. Primeiro: devemos notar que o jardim não tem um lugar central onde possamos vê-lo inteiramente; só podemos fitar uma parte de cada vez. Em vez de visão geral e totalidade, há perspectiva e particularidade (eachness). O mundo muda à medida que nos movemos. Eis aqui um arbusto de íris, ali uma pedra coberta de musgo. Em vez de um centro (com suas raízes etimológicas no grego kentron, “aguilhão”, “espinho”, e de ser compelido rumo a uma meta por meio de um distanciamento geométrico), há mudanças de foco em relação ao local do corpo e da atitude. Segundo: enquanto passeamos, cada vista é percebida novamente de uma outra perspectiva. O salgueiro se inclinando até a borda do lago, as folhas flutuantes, tudo parece menos melancólico depois da curva do caminho. São essas mudanças ao visualizar novamente o significado da palavra “respeito” (respect). Olhar novamente é “re-spect”. Toda vez que olhamos novamente a mesma coisa, ganhamos respeito por ela e acrescentamos respeito a ela, curiosamente descobrindo a relação inata das “aparências” (looks, que também significa olhares) – de considerar (regard) e ser considerado (regarded), palavras em inglês que se referem à dignidade. Terceiro: quando o jardim, em vez do sonho ou do sintoma do inconsciente, torna-se a via regia da psique, então somos forçados a pensar novamente sobre a palavra “em” (in). “Em” é a preposição dominante de toda a psicanálise – não com, não de, não para, mas “em”. Nós olhamos dentro de nossas almas (in our souls), nós nos vemos em um espelho. “Em” traz os significados do incluído, empenhado (engaged), envolvido, abraçado. Ou, como Jung diz, a psique não está em nós; nós estamos na psique. Essasensação de estar na psique torna-se mais palpável quando estamos dentro das ruínas de um templo grego, da tumba egípcia de um rei, em uma dança ou ritual, e em um jardim japonês. A frase de Jung, “esse in anima” assume então um caráter concreto, como também acontece em uma floresta desmatada, uma cidade bombardeada, uma ala de tratamento de câncer, um cemitério. A ecologia, a arquitetura, o design interior são outros modos de sentir a anima mundi. De fato, a relação do corpo e da psique é invertida. Em vez da noção usual da psique no corpo, o corpo perambulando pelo jardim está na psique. O próprio mundo é um corpo psíquico; e nossos corpos, à medida que nos movemos, paramos, olhamos, fazemos uma pausa, nos viramos e sentamos estamos executando uma atividade de reflexão psíquica, uma atividade que anteriormente considerávamos mentalmente possível apenas no espelho da introspecção. Se conhecer no jardim do mundo, então, torna necessário estar fisicamente no mundo. Onde você está revela quem você é. Quarto: a ideia da individualidade também muda, pois no jardim japonês as árvores são aparadas no topo e encorajadas a crescer lateralmente. Em vez da individualidade da árvore solitária e de altura imponente (e Jung disse que árvore singular é um dos principais símbolos do Self em individuação), essas árvores estendem seus galhos umas paras as outras. A individualidade está dentro da comunidade e assume sua definição da comunidade. Além disso, cada tufo nos galhos macios dos pinheiros é removido pelos jardineiros. Eles tiram as agulhas, permitindo que o vazio individualize a forma de cada graveto. É como se nada pudesse ser individualizado antes de ser cercado pelo vazio e também muito, muito perto daquilo com que é mais parecido. A individualidade, portanto, é mais visível dentro da separação isolada e similaridade íntima, por exemplo, de um membro da família que está tentando ser “diferente” da família. Quinto: não só há árvores envelhecidas apoiadas por suportes e encorajadas a florescer – desabrochar não pertence, portanto, exclusivamente à juventude – o jardim também inclui árvores mortas. Haverá golpe mais duro para nosso narcisismo do que essas imagens da velhice, essas árvores apoiadas por estacas, dependentes, torcidas e mortas? Sexto: os jardins Karesansui, ou jardins de inspiração zen, apresentam primariamente areia branca e pedras escolhidas, raramente árvores. Nesse lugar despojado, a mente assiste a si mesma fazendo interpretações. As nove rochas na areia alinhada com ancinhos são uma família de tigres atravessando o mar a nado; as nove rochas são topos de montanhas acima do nevoeiro branco e das nuvens; as nove rochas são simplesmente rochas, posicionadas esteticamente de modo genial. Uma lenda depois da outra, uma filosofia, teoria de crítica literária ou interpretação psicológica aparece na mente e some de volta na areia branca. O jardim torna-se totalmente metáfora, tanto o que ele é quanto o que não é, presença e ausência ao mesmo tempo. O koan concreto do jardim de pedras transforma a própria mente em metáfora, seu pensamento transiente enquanto a imagem permanece, de modo que a mente não pode se identificar com seu próprio subjetivismo – o narcisismo é vencido. V. Finalmente, vou insistir que o jardim não é natural; tampouco a psique é natural. O jardim foi projetado para, e tende a manter, uma artificialidade que imita a natureza. Em Fort Worth, Texas, um grande e maravilhoso jardim japonês foi construído anos atrás. Mas como não foram separados fundos para jardineiros japoneses, a natureza está lentamente destruindo aquele jardim. Sem a perversa manipulação de cada centímetro da natureza pela poda, o jardim está declinando em apenas outra parte da floresta. A disposição elaborada de um jardim da alma-no-mundo é um opus contra naturam, como a alquimia. Como a alquimia, o jardim é uma obra de intensa cultura. Ao contrário da alquimia, sua matéria, seu corpo, está lá fora, em vez de estar no interior do vaso de vidro. Como o jardim é artificial, assim como o alquimista era chamado de artifex (artífice), todos os conceitos de alma devem ser removidos de falácias naturalistas. A alma como opus contra naturam não será servida adequadamente por comparações falaciosas com crescimento orgânico, processo cíclico e mitos de deusas da natureza. Tampouco o jardim abriga a criança da qual cresce a pessoa criativa, como a psicoterapia gosta de acreditar. Ao insistir na artificialidade do nosso trabalho com a alma, estou tentando nos proteger do erro romântico de confundir o ideal (Éden e os campos Elíseos; Horaiko, em japonês) com o natural. O jardim como metáfora oferece uma visão romântica que nos salva do Romantismo Naturalista, torcendo e sofisticando a natureza pela arte. Essa torção na natureza que fere idealizações do jardim é apresentada na nossa cultura, como na cultura romana, pelo nosso deus antigo dos jardins e jardineiros, Príapo. Príapo não é jovem nem bonito. Ao contrário do adorável Narciso, ao contrário das figuras semidivinas de Adão e Eva, Príapo é maduro, careca e barrigudo, e tão distorcido que sua mãe, Vênus, o abandonou ao nascer. A sua própria presença repele idealizações românticas e o olhar no espelho da vaidade venusiana, assim como o reflexo extático de Narciso. O reflexo priápico começa do modo inverso; sua condição absurdamente dilatada reflete a vitalidade do mundo. Nele está presente a mesma força que está nos brotos e botões germinando. Por meio da distorção que enganosamente parece “apenas natural”, Príapo convida as desproporções grotescas e patologizadas da imaginação – e a imaginação, diz Bachelard, opera pela deformação. Assim, quando invoco Príapo, não estou falando do priapismo; não estou falando do machismo; e não sou antifeminino. Que isso fique bem claro. Estou falando da artificialidade geradora que é a essência do jardim e da psique. Cada sonho, cada fantasia e cada complicação sintomática da saúde natural e da humanidade normativa presta testemunho ao prazer libidinal da psique no exagero, seu gênio fértil para a distorção imaginativa. Se esse deus dos jardins também é um deus da psicanálise – e de Charcot a Lacan o priápico foi invocado – ele traz ao seu trabalho um reflexo arcaico além do romântico ou barroco, uma urgência para mover-se para frente e para fora. (Príapo não era permitido dentro de cada, nos recintos fechados de Héstia, onde sua presença torna-se apenas violenta e obscena.) Além disso, esse deus não precisa de espelho para se conhecer, pois a sua individualidade está completamente à mostra. Sua natureza não pode ser ocultada no interior, então ele está bastante livre dos significados ocultos e dos duplos sentidos sutis que mantêm a psicanálise viciada em mais uma revelação, mais uma transformação, interminável. Príapo não conhece a metamorfose... não tem transfigurações... Príapo é sem ambiguidade... A metáfora é proibida para ele... ele exibe tudo, e não revela nada. (Olender, 387). Como o jardim, está tudo lá. As pedras são pedras. Bibliografia Ellenberger, Henri F. The Discovery of the Unconscious. Londres: Allen Lane, 1970. Fenichel, Otto. Psychoanalytic Theory of Neurosis. Nova York: Norton, 1945. Freud, Sigmund. Collected Papers. Londres: Hogarth Press, 1924-. Hillman, James. “Abandonando a Criança”. Em Loose Ends, pp. 5-48. Dallas: Spring Publications, 1975. Kerényi, Karl, e Jung, C. G. “The Myth of the Divine Child.” In Introduction to a Science of Mythology. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1951. Olender, Maurice. “Priape le mal taillé.” In Corps des Dieux. Paris: Gallimard, 1986.