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História Medieval Oriental A religião cristã: do império de Constantino ao de Teodósio – migrações germânicas, eslavas e dos povos da estepe Texto 5A: As leis das nações – Peter Brown Texto 5B: O Cristianismo e o império – Peter Brown As leis das nações • “Qualquer que seja o local onde se encontram, as leis locais nunca os poderão obrigar a esquecer as leis do messias” – Bardaisan • Tratado sobre o determinismo e o livre arbítrio • O tratado tinha um nome bastante apropriado: Livro das leis das nações • Qualquer livro sobre o papel do cristianismo na formação da Europa ocidental entre 200 e 800 deve começar por uma visão tão vasta quanto a de Bardaisan • O que se estuda nesse livro é apenas a emergência de um cristianismo, dos muitos que se difundiram pelo imenso arco delineado no tratado de Bardaisan • O capítulo em si utiliza-se desse termo para caracterizar as mudanças na civilização romana, e na civilização “bárbara” quando se dá o endurecimento das fronteiras • O principal objetivo do livro de Peter Brown é caracterizar o cristianismo na Europa ocidental diferente das muitas outras variantes contemporâneas. As leis das nações • Os governantes do mundo civilizado vigiavam com ansiedade o mundo nómada que se estendia para o norte • No entanto, por muito aterrorizadores que os impérios nómadas das estepes pudessem ser, constituíam apenas um fenômeno intermitente • Passar da condução de rebanhos espalhados por um vasto território à condução de seres humanos, através da conquista e da invasão e sob a direção de um único chefe, era uma experiência anormal para os nómadas e, geralmente, de curta duração • Mesmo um poderoso senhor da guerra como Átila (434 – 453) acabava por descobrir que as suas possibilidades de aterrorizar os habitantes das terras civilizadas estavam sujeitas a um “corte” automático; à medida que se afastavam das estepes nativas, os nómadas passavam a ter menos acesso aos pastos que lhes permitiam dispor desse excesso de cavalos de que a sua superioridade militar dependia • Por isso, as confederações nómadas dos Hunos, no século V, e dos Álvaros nos séculos VII e VIII, tenderam a debandar ao fim de apenas algumas décadas de forte ameaça militar • Os nómadas mantiveram-se como uma espécie de nevoeiro no horizonte oriental da Europa; a longo prazo não trouxeram o fim do mundo, como muitos temiam, mas uma indicação dos espaços imensos que existiam para além dele As leis das nações • A ideologia do mundo civilizado sugeria um abismo entre as populações do interior do império Romano e os Bárbaros existentes para além de suas fronteiras • A vida destes era retratada como não tendo qualquer relação com as pessoas civilizadas, como se fosse igual à vida dos nómadas das estepes e dos desertos. Mas essas populações não eram de fato nómadas • O noroeste europeu não apresentava esse forte contraste ambiental entre o deserto e os terrenos de cultivo que levava as populações sedentárias do Norte da África e do Médio Oriente a sentirem- se tão diferentes dos seus vizinhos “bárbaros” • Pelo contrário, as paisagem romanas e não-romanas fundiam-se suavemente umas nas outras, formando uma única zona temperada As leis das nações • Segundo um médico de Constantinopla que escreveu no século V, os Alemães comiam grandes quantidades de carne. Teriam, por isso, mais sangue nas veias e, obviamente, menos medo de perder; não admirava, portanto, que fossem guerreiros tão admiráveis • Quando os Visigodos da Moldávia e os habitantes da Ucrânia se viram sujeitos às incursões dos Hunos, em 374, a sua primeira reação foi pedir autorização de entrada no Império Romano • Aquilo que tem sido grosseiramente designado por “invasão barbara” foi, de fato, uma migração controlada de camponeses amedrontados, que apenas procuravam juntar-se a outros seus iguais que viviam a sul da fronteira • A conhecida história do Império Romano do ocidente foi acompanhada de uma história alternativa: a lenta criação de um “novo” mundo bárbaro • No século V, este novo mundo viria a dominar essas zonas fronteiriças que tinham sido concebidas, de acordo com a ideologia romana, para marcas os limites exteriores do mundo civilizado • Nos séculos II e III, o estacionamento de grandes exércitos romanos nas fronteiras e a fundação de cidades por detrás deles trouxe riqueza e necessidades de alimentação e trabalho que revolucionaram os campos da Gália, da Britânia e das províncias do Danúbio • Para satisfazer as novas exigências foi necessário desenvolver toda uma nova sociedade “romanizada” As leis das nações • A unidade básica da sociedade bárbara era a família e a terra, fechadas numa fazendo individual • No lado romano da fronteira, pelo contrário, as novas cidades concentravam um número de pessoas até então inigualável • A fronteira romana, definida em parte para separar o mundo romano das terras esquálidas do norte, acabou por formar o eixo para onde os mundos romano e bárbaro convergiam involuntariamente • Acabou por construir uma área de atração para onde tendia a vida económica e cultural das terras que se encontravam para além da fronteira • Esse mundo bárbaro muda lentamente devido a ação gravítica exercida pela enorme massa do Império Romano • Aquilo que se tem chamado de “invasões bárbaras” não foi o esmagamento das fronteiras que guardavam a civilização romana por primitivos vindo de um outro mundo • Pelo contrário, o que ocorreu na época foi um aumento progressivo da importância das regiões onde os romanos e não-romanos estavam habituados a tratar-se como iguais, para formarem um terreno intermediário de compromissos em termos culturais e sociais • Essa evolução não se verificou, porém, sem sofrimento e derramamento de sangue Cristianismo e Império • No século II houve significativas transformações no cenário romano • No mundo oriental, a dinastia sassânida (que governou a Pérsia entre 224 e 651) formou um império poderoso. Na região do império romano, após a crise do século III (235-284), houve uma recuperação que engendrou profundas mudanças. • No período de crise, ocorreram falências, fragmentação política, grandes derrotas militares. Mas a ação de Diocleciano entre 284 e 305 trouxe a superação. A sua política garantiu maior controle sobre as regiões por causa do sistema de co-imperadores, chamado de “Tetrarquia” • Dessa forma, o imperador e os seus agentes passaram ter as funções que, durante muito tempo, eram delegadas às elites locais. • Os poderes locais perderam os privilégios; apenas a corte imperial passou a ser fonte de privilégios honoríficos, as cidades que se desenvolveram, a partir de então, foram aquelas transformadas em centros administrativos • O exemplo mais visível desse novo tipo de cidade foi o de Constantinopla, criada em 327, pelo imperador Constantino. • Tratava-se da “nova Roma” oriental. Assim, foram criadas em cada região uma metrópoles, ou seja, uma cidade cuja função era a de centralizar a administração, levando as demais cidades a uma condição menor. Cristianismo e Império • Outro indício de alterações no império romano diz respeito à função da religião • As sociedades, mesmo aquelas que estão a passar por tensões, mantêm-se conformadas se pelo menos um aspecto da vida social permanecer inalterado. Os habitantes do império sentiam que poderiam manter a contemplação aos seus deuses. O conhecimento sobre o sagrado era perpetuado por meio de ritos e gestos do passado. • Assim, a religio – a forma mais adequada de venerar cada deus servia de suporte social e de coesão de famílias ou mesmo de comunidades inteiras • Nesse sistema, a religio que os deuses recebiam estava relacionada à imagem que os próprios homens tinham de si mesmos. • Por exemplo, os filósofos místicos buscavam os deuses mais elevados e pela ação deles almejavam unir-se ao Uno – a fonte plena e intoxicante e ainda metafisicamente necessária a qualquer indivíduo. No entanto, apesar de privilegiar um determinadotipo de divindade, isso não implicava na negação dos outros deuses Cristianismo e Império • Em 325, em Niceia, cidade de Iznik da atual Turquia, Constantino promoveu um concílio com todos os bispos cristãos do seu império • A sua ação ofereceu uma situação única para a Igreja cristã, pois pode ver-se a si mesma e, pela primeira vez, teve a elaboração de uma lei universal. A • A escolha desse imperador pelo Deus cristão não poderia ter sido prevista em 300 do mesmo modo que não se poderiam prever os seus êxitos como imperador • Segundo Peter Brown, para compreender o significado da medida adotada por Constantino, torna-se fundamental entender a situação da Igreja cristã anterior ao ano de 312. Nessa data, a Igreja cristã não era mais uma religião nova no império • Em 303, houve a última perseguição oficial a instituição, trata-se das leis imperiais de Diocleciano, conhecidas pelos cristãos como “Grande Perseguição” • As medidas foram aplicadas durante 11 anos em partes da Ásia Menor, da Síria e do Egito. • Essa perseguição assinalou a maturidade da Igreja cristã • Desde o seu surgimento até as perseguições do início do século IV, a própria Igreja havia passado por modificações. Em 303, já contava com uma hierarquia bem definida, aliás, desde as perseguições de 250 e de 257, o império havia perseguido os bispos, padres e os diáconos da Igreja Cristianismo e Império • Peter Brown criticou os autores que reproduziram imagens equivocadas sobre a Igreja, que conheceu a paz com Constantino, em 312 • Primeiramente, seria impossível determinar o número de cristãos no império • Segundo a estimativa apresentada, representavam certa de 10% da população cuja maioria estava na região da Síria e da Ásia Menor e nas mais importantes cidades do Mediterrâneo • No obstante, o mito, desenvolvido posteriormente, segundo o qual os cristãos eram uma minoria constantemente perseguida que foram levados à clandestinidade por causa da repressão, não condiz com a realidade histórica • Também não há qualquer base para o outro mito de que o cristianismo representasse uma religião dos menos favorecidos • Pesquisas recentes demonstraram a existência de uma pequena nobreza estabelecida na Ásia Menor • Além disso, havia cidades em que os cristãos eram reconhecidos como membros de uma instituição e o concílio de Elvira, em 300, na Andaluzia, tomou decisões sobre os seus membros que, devido às suas funções no império, eram obrigados a participar do culto imperial e presenciar os sacrifícios feitos • Na verdade, tais exemplos foram dados para demonstrar como, dificilmente, seja possível aceitar que os cristãos do período de Constantino fossem completamente desprovidos de bens, de escravos e não estivessem, de forma alguma, vinculados ao poder • A instituição da qual faziam parte açambarcava uma variedade muito grande de tipos sociais Cristianismo e Império • Por essa razão, o autor propôs compreendê-la (a religião cristã) como o império em miniatura porque os grandes e poderosos encontravam-se com os menos favorecidos como iguais. Afinal, estavam sujeitos a uma mesma lei universal e veneravam o mesmo Deus • Isso não quer dizer que as diferenças sociais desaparecessem, não, pelo contrário, nos momentos de reunião, havia lugares para todos. Porém, a condição de cristãos os igualava e isso explica o fato de que todos estavam preocupados com dois temas-chave: a salvação e o pecado • Por não negarem os deuses pagãos, mas lhes atribuir poderes maléficos, uma das práticas comuns entre os cristãos à época era a do exorcismo • Tal atitude tornava visível o poder do verdadeiro Deus, pois os possuídos, quando exorcizados, berravam os nomes dos deuses pagãos em um espetáculo que despertava a atenção de todos • Outra forma de tornar visível o poder do verdadeiro Deus era o martírio. Afinal, no mundo romano, as execuções eram um espetáculo público e violento • Era a oportunidade para o cristão dar o seu testemunho de fé e, apesar das violências sofridas, não se curvar aos deuses pagãos • A morte para o cristão tinha um significado especial, pois representava o único triunfo desejado. Na verdade, simbolizava a entrada na glória de Deus e, por isso, em última instância, o triunfo sobre o pecado capaz de levar à vitória contra a morte Cristianismo e Império • No mundo antigo já havia indícios de uma linguagem filosófica relativa ao pecado e à conversão. Os cristãos desenvolveram a tese segundo a qual a filosofia era a arte da transformação pessoal • Sustentaram que a sua religião era uma filosofia dada por Deus, aberta a todos • No sistema filosófico dessa religião o pecado era visto como um problema comum a todos. Nesse sentido, diferenciava-se dos outros sistemas presentes no império, pois esses sustentavam o melhoramento da pessoa de forma individual • Como o pecado pertencia a todos, o cristianismo desenvolveu a noção de penitência, aliás, era a própria comunidade quem decidia o tipo de penitência a ser realizada pelo pecador • Na maior parte das regiões, a chefia da luta contra o pecado foi incumbida ao bispo, que era visto como juiz e árbitro dos pecadores. Essa era a função do bispo que deveria ser auxiliado pelo seu clero • A preocupação com a salvação e a arbitragem do bispo criou uma situação nova para as religiões do período • Para a absolvição do pecado havia a necessidade do arrependimento, desenvolveu-se subjacente a essa concepção a noção de caridade, ou seja, uma espécie de reparação concreta e visível • Isso serviu com um instrumento de controle sobre a riqueza através de um novo tipo de justificação ideológico Cristianismo e Império • Esse sistema de transferência de riqueza foi importante porque fez com que a Igreja, como instituição, não precisasse da generosidade de doadores ricos • Os cristãos, através da noção de esmola, engendraram um significado importante à doação de recursos, como o pecado era ordinário, tal tipo de ação também deveria ser. Por essa razão, a Igreja do final do século III era coesa e altamente solvente • Em 251, a Igreja cristã de Roma sustentava, com base nas dádivas dos fiéis, 154 membros do clero (dos quais 52 eram exorcistas) e cuidava de 1500 viúvas, órfãos e desamparados • O clero constituía um corpo tão vasto, e consciente de si mesmo, quanto os conselhos urbanos, de qualquer pequena cidade • Foi deste ponto de vista crucial que a Igreja cristã ganhou uma proeminência desproporcionada em relação ao número pequeno de cristãos na totalidade do Império • A sociedade politeísta era constituída por um imenso número de pequenas células; apesar de apoiada nos costumes ancestrais, era tão delicada e quebradiça como uma colmeia • A Igreja cristã, pelo contrário, juntava atividades que se tinham mantido separadas no antigo sistema de religio, criando uma constelação maciça, compacta, de compromissos
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