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HISTÓRIA CULTURAL Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autores: Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes Daniela Fernanda Sbravati CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Ozinil Martins de Souza Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald Profa. Jociane Stolf Revisão de Conteúdo: Prof. Evandro André de Souza Revisão Gramatical: Profa. Marli Helena Faust Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI 306.09 F156h Fagundes, Marcelo Gonzalez Brasil. História Cultural / Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes [e] Daniela Fernanda Sbravati.Centro Universitário Leonardo. da Vinci – Indaial:Grupo UNIASSELVI, 2009.x ; 91 p.: il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-222-1 1. História 2. História Social e Cultural 3. Cultura I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título Copyright © UNIASSELVI 2009 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes Graduado em História pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) e graduado em Ciências Sociais e mestre em História Cultural pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), cursando atualmente especialização em História do Mundo Hispânico pela Universitat Jaume I da Espanha. Possuí experiência na área de História do Brasil Colonial e História da América Latina. Entre as principais publicações está um capítulo no livro dedicado à História de Santa Catarina, intitulado “Pelas veredas do paraíso: Hans Staden e a expedição Sanabria”, além de comunicações sobre a vida e a obra do escritor cubano Alejo Carpentier. Daniela Fernanda Sbravati Graduada em História pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) e mestre em História Cultural pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Atualmente é professora de História do Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Tem experiência na área de História do Brasil Colonial e Imperial. Entre as principais produções, consta o livro Dialogando com a História, destinado ao sexto ano do Ensino Fundamental (SBRAVATI, D. F., DANTAS, J. Dialogando com a História. Florianópolis: Sophos, 2009, v.1) Sumário APRESENTAÇÃO ..................................................................... 7 CAPÍTULO 1 Origens da História Cultural ............................................... 9 CAPÍTULO 2 Estudos Culturais e a Escrita da História ...................... 33 CAPÍTULO 3 A Nova História Cultural ..................................................... 57 CAPÍTULO 4 História Cultural no Brasil ................................................ 79 APRESENTAÇÃO Prezado pós-graduando, é com muita satisfação que apresentamos a você este caderno de estudos. É um material constituído a partir da tentativa de definir o que é História Cultural e seus principais autores e temas. Compreendemos ser a História Cultural uma área do conhecimento que cada vez mais ganha espaço no Brasil e no mundo. Por essa razão, para tratar da temática, fizemos uma viagem no tempo e no espaço, contextualizando seu surgimento, seu desenvolvimento, processo de transformação até chegar a suas produções e discussões atuais. No primeiro capítulo apresentamos uma linha de desenvolvimento dos debates que definiram, em termos gerais, os campos de atuação da história cultural, tratando a historicidade dos conceitos de “cultura”, “tradição” e “popular”. O segundo capítulo inicia com uma discussão acerca da Antropologia cultural, seus principais autores e fases, considerando sua contribuição para os estudos culturais na área da História. A antropologia contribuiu inclusive para a constituição do que conhecemos como Annales, assunto abordado posteriormente nesse mesmo capítulo. Seguimos com uma discussão sobre micro-história, uma metodologia adotada pela história cultural que dá ênfase ao micro, ou seja, a história das pessoas comuns. Finalizamos o capítulo com uma discussão sobre os estudos pós-coloniais na perspectiva cultural, objetivando uma reflexão acerca da história das populações colonizadas. No terceiro capítulo observamos a grande renovação da História Cultural ocorrida no final da década de 1980, quando houve questionamento dos pressupostos teóricos predominantes na historiografia da cultura. Essa renovação resultou na reflexão acerca de alguns conceitos presentes em nossa sociedade, com conotação política e social. Trata-se das discussões acerca da identidade, etnicidade e diversidade étnica. Finalizamos esse capítulo fazendo um breve apontamento sobre o papel da escola, da educação nas questões da diversidade cultural. No quarto e último capítulo apresentamos os caminhos da História Cultural no Brasil em suas dimensões históricas e contemporâneas. Analisamos alguns autores e temas de modo especial, por compreendermos serem fundamentais para a forma como olhamos e pensamos a sociedade brasileira. Esperamos que você embarque nessa viagem e que, ao final dela, traga em sua bagagem conhecimento teórico e prático que possa ser aplicado em seus estudos presentes e futuros. Bons estudos para você! Os autores. CAPÍTULO 1 Origens da História Cultural A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: 3 Identificar os debates que forjaram o desenvolvimento da história cultural. 3 Definir o significado dos conceitos de cultura popular, tradição e cultura e sua relação com o processo de construção do conhecimento histórico. 3 Analisar a aplicação dos termos de “cultura popular” e “tradição” em reflexões sobre o seu cotidiano. 3 Debater o significado da “cultura” no saber historiográfico e sua aplicação no ambiente escolar, com o intuito de valorizar os saberes dos alunos. 10 História Cultural 11 Origens da História Cultural Capítulo 1 Contextualização A história cultural é entendida muitas vezes como uma ramificação do estudo da História. No entanto, ela engloba uma grande variedade de temas e métodos, não existindo um consenso entre os historiadores sobre os seus limites e suas fronteiras. Como afirma o historiador britânico Peter Burke, definir a história cultural é “como tentar prender uma nuvem em uma rede de caçar borboletas” (BURKE, 2000, p. 233.). A história cultural não deve ser vista como mais uma entre as diversas disciplinas históricas especializadas. O cultural constitui um campo multidisciplinar capaz de articular temas e questões mais ou menos dispersos pelas disciplinas especializadas. Há os que definem a história cultural como algo que pode estar relacionado entre o econômico, o mental e o social. Dessa forma, a história cultural não deve ser vista como uma denominação ou campo da história, mas percebida como constituinte de diversas dimensões do saber historiográfico. Apresentaremos neste capítulo uma linha de desenvolvimento dos debates que definiram, em termos gerais, os campos de atuação da história cultural. Apesar das dificuldades, podemos enfrentar o problema de caracterizar o estudo da cultura na História e ampliar nossas ferramentas pedagógicas para a transmissão de um conhecimento histórico que seja amplo e plural. Nosso primeiro passo nesse caminho será o de definir os conceitos básicos que envolvem o estudo da cultura na História. Os problemas encontradospelos historiadores para delimitar a história cultural estão, principalmente, na amplitude do atual conceito de “cultura” adotado pela historiografia. Contudo, para traçar linhas gerais dos estudos que englobam a história cultural se torna necessário observar a historicidade dos conceitos adotados por ela, como “cultura”, “tradição” e “popular”. A Historicidade do Conceito de Cultura A grande dificuldade de definir a história cultural deriva das diversas denominações dadas ao termo “cultura”. Muitas vezes não conseguimos ter precisão no significado dessa palavra aparentemente tão simples. Habitualmente no senso comum a palavra cultura está associada à ideia de educação formal ou conhecimento, a atividade intelectual de um indivíduo. “Aquela pessoa tem cultura”, ou seja, aquela pessoa teve uma boa formação educacional. A história cultural não deve ser vista como uma denominação ou campo da história, mas percebida como constituinte de diversas dimensões do saber historiográfico. 12 História Cultural Segundo Alfredo Bosi, a palavra “Cultura” deriva do verbo latino colo, que significa ocupar a terra, cultivar o campo. O vocábulo cultus, de onde vem cultura, está associado ao campo já ocupado e plantado por gerações de lavradores. (BOSI, 1992, p. 11 – 16.) A partir do século XVIII, com a revolução iluminista, começou a se configurar a ideia moderna de cultura, e esta passa a designar o “estado do espírito cultivado pela instrução, estado do indivíduo que tem cultura”. Dessa forma, “cultura” se opunha a “natureza” e se aproximava da ideia de “progresso” e “civilização”. Somente com o desenvolvimento das ciências sociais no século XIX e XX é que “cultura” começa a ser empregada como o conjunto de práticas e símbolos de determinada sociedade. (CUCHE, 2002, p. 18 – 19). Como vimos na definição de Alfredo Bosi, originalmente cultura estava relacionada à ação de cultivar o campo, ou seja, da atividade agrícola. Se prestarmos atenção à historicidade do significado de cultura, podemos perceber que essas mudanças são frutos das crenças correntes em determinado tempo histórico. As palavras têm história. Dessa forma, ao estudar o desenvolvimento da história cultural, notamos que a noção de cultura responde a certos problemas e reflexões de determinada sociedade em determinado tempo histórico. Assim, para entender as origens da história cultural é necessário observar o contexto em que se forma e o significado assumido pela palavra “cultura”. Atualmente existem ideias diferentes sobre o que constitui a “cultura”. A ampliação do interesse dado pelos historiadores a essa temática diversificou as noções e suas aplicações no entendimento das práticas sociais. No século XIX, período de “surgimento” da história cultural, o termo referia- se a arte, literatura ou manifestações da ciência e da filosofia. Hoje, no entanto, influenciados pelos estudos antropológicos, os historiadores utilizam o termo de forma mais ampla, associando-o a qualquer manifestação social. Poderíamos perceber também a utilização de duas visões gerais sobre cultura que distinguem os princípios da história cultural dos novos debates historiográficos. Nas origens da história cultural o conceito de “cultura” carregava um forte teor etnocentrista que relacionava a cultura à ideia de Para entender as origens da história cultural é necessário observar o contexto em que se forma e o significado assumido pela palavra “cultura”. 13 Origens da História Cultural Capítulo 1 civilização. Nessa visão, a cultura apresentava-se como algo unitário, ou seja, a civilização referia-se ao modelo europeu Ocidental. De outra forma, com a aproximação da história aos estudos antropológicos, houve o desenvolvimento de uma noção mais ampla do conceito. As “culturas” eram pensadas agora no plural. A noção difundida nos círculos intelectuais europeus em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX estiveram intimamente ligadas à concepção adotada pelos primeiros historiadores culturais. Durante o movimento iluminista francês, no século XVIII, a palavra “cultura” ganha um sentido figurado. Ela vinha normalmente acompanhada de adjetivos como “cultura das letras”, do “espírito”, das “artes” e das “ciências”. A partir desse momento o significado se afasta da ideia de “ação de cultivar o intelecto” e se aproxima da noção moderna de “estado do intelecto cultivado”, ou seja, do “indivíduo que tem cultura”. A disseminação dessa concepção através da Europa Ocidental se insere no contexto do surgimento da ideia de progresso, evolução, educação e razão. Cultura, escrita no singular, reflete a ideologia do iluminismo. Na França a palavra se aproximou da ideia de civilização, entendida como o refinamento dos costumes que retira a humanidade da ignorância e da irracionalidade. No entanto, a civilização não se estende a todos os povos da humanidade. Existem sociedades mais avançadas, que podem ser consideradas “civilizadas”, e outros povos, “selvagens”, em estágios inferiores de desenvolvimento cultural. Ainda no século XVIII, nos territórios que virão a configurar o Estado alemão, a palavra Kultur assumiu uma denominação bastante similar à adotada na França. No entanto, na Alemanha, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, a “cultura – civilização” perdeu sua conotação aristocrática e se converteu em símbolo de distinção das diferenças nacionais. A “cultura” se aproxima da noção de “nação”. Segundo Cuche: O conceito francês continua marcado pela ideia de unidade do gênero humano. Entre os séculos XVIII e XIX na França, há uma continuidade do pensamento universalista. A cultura, no sentido coletivo, é antes de tudo a “cultura da humanidade”. Apesar da influência alemã, a ideia de unidade suplanta a consciência da diversidade: além das diferenças que se pode observar entre a “cultura alemã” e a “cultura francesa”, há a unidade da “cultura humana”. [...] No século XX, a rivalidade dos nacionalismos francês e alemão e seu enfrentamento brutal na guerra de 1914 – 1918 vão exacerbar o debate ideológico entre as duas concepções de cultura. As palavras tornam-se slogans utilizados como armas. [...] O debate 14 História Cultural franco-alemão do século XVIII ao século XIX é arquetípico das duas concepções de cultura, uma particularista, a outra universalista, que estão na base das duas maneiras de definir o conceito de cultura nas ciências sociais contemporâneas (CUCHE, 2002, p. 30). Através do debate franco-alemão em torno do conceito de cultura podemos observar que a definição e a utilização de determinada noção possui uma forte conexão com a conjuntura histórica. É importante destacar essa relação para compreendermos as concepções adotadas pela historiografia durante o desenvolvimento da história cultural. Destacamos que durante um primeiro momento de surgimento da problemática cultural no estudo da história, o conceito de cultura traz uma forte carga ideológica que distingue as civilizações de cultura avançadas, das culturas primitivas em estágios inferiores de cultura. A ciência que estuda a cultura, a antropologia, desenvolveu no século XIX teorias para embasar o estudo das sociedades humanas. As primeiras correntes antropológicas, qualificadas de evolucionistas, observavam que o homem possuía uma unidade bio-psicológica, que o faz responder igualmente aos mesmos desafios. A diferença é explicada através de um eixo temporal, ou seja, através de estágios de evolução da cultura. A cultura é uma só, a do homem civilizado do século XIX. O restante eram estágios inferiores de civilização. Para os evolucionistas, assim como para os primeiros historiadores culturais, a “cultura” está associada ao progresso e ao desenvolvimento tecnológico. Devemos observar que essas ideias se vinculam ao momento do expansionismo e colonialismo europeu na África e Ásia do século XIX. Inserido nesse contextoestá o etnólogo inglês Edward Tylor, que, em 1871, disse sobre a cultura: “tomado em seu amplo sentido etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TYLOR, 1975, p. 29). Na definição de Tylor, cultura assumia uma dimensão ampla de todas as possibilidades de realizações humanas, fossem elas materiais ou mentais. O texto completo de Edward Tylor (1832 – 1917), em espanhol, pode ser baixando na página virtual da Universidade de Guadalajara do México – TYLOR, Edward. B. La ciencia de la cultura. In: Kahn, J. S. (Comp.), El concepto de cultura. Barcelona: Anagrama, 1975. (p. 29-46). Disponível em: <http://mail.udgvirtual.udg.mx/biblioteca/ handle/20050101/890?mode=simple>. Acesso em: 30 abr. 2009. 15 Origens da História Cultural Capítulo 1 Em fins do século XIX, uma das primeiras críticas aos métodos evolucionistas de análise da cultura veio do alemão Franz Boas (1858 – 1942). Para Boas, o método comparativo adotado por Tylor pecava na tentativa de estabelecer leis de evolução histórica da cultura. Segundo ele, “o objetivo de nossa investigação é descobrir processos pelos quais certos estágios culturais se desenvolveram. Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem a finalidade última da pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e crenças existem – em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento” (BOAS, 2004, p. 33). No entanto, a aproximação entre a antropologia e a história só ocorreu, mais intimamente, a partir da década de 1960, com a influência mais direta de antropólogos como Bronislaw Malinowiski, Marcel Mauss, Claude Levi-Strauss e Cliffort Geerts, para referir-nos somente aos mais destacados. A “nova história cultural” surgida dessa aproximação revisitou os historiadores culturais “clássicos” para abandonar as concepções reducionistas de “cultura”. Embora busquemos algumas definições a respeito do conceito de cultura, não é nosso objetivo engessá-la num significado fechado, colocando-a a como uma categoria de análise histórica imutável. Considerando que para a história os conceitos são elásticos e podem se transformar de acordo com a conjuntura da qual fazem parte, não nos interessa tanto definir com exatidão o conceito de cultura, mas sim compreender as diferentes formas pelas quais foi apropriado e as implicações sociais em decorrência disso. Ou ainda compreender de que maneira os contextos sociais possibilitaram a mudança da concepção de cultura em nossa sociedade. Afinal, o conceito ou a categoria de análise estão diretamente relacionados às demandas de um tempo histórico, você não acha? Para saber mais sobre as categorias de análise da história, ver: THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 16 História Cultural Atividade de Estudos: Caro pós-graduando, Algumas das atividades propostas ao longo dos capítulos deste caderno deverão ser realizadas por você, com a possibilidade de serem aplicadas, em sala de aula, aos seus alunos. Ao fazer a atividade o professor poderá analisar as dificuldades práticas de sua aplicabilidade e, se necessário, implementar alterações ou reconstruí- la, tendo como base o objetivo de proporcionar uma compreensão menos teórica do tema discutido. Nessa direção, propomos: 1) ____________________________________________________ Elabore um texto discutindo o conceito de cultura a partir do tema: “O (des)encontro entre indígenas e europeus no Brasil no século XVI”. Escreva a partir de dois enfoques diferentes, um deles aproximando o conceito de cultura da ideia de civilidade, o outro, da perspectiva da cultura constituída a partir de diferentes manifestações sociais. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ A História Cultural “Clássica” É importante notar que o desenvolvimento da história cultural foi influenciado em grande medida pelos debates que ocorriam em outras ciências, como a antropologia e a sociologia. O termo “cultura” começou a ser empregado no estudo da história a partir do século XIX. Nesse momento, o termo carregava ainda uma noção pejorativa de povos em estágios “inferiores” de desenvolvimento. No século XIX, a historiografia entendia cultura como as expressões 17 Origens da História Cultural Capítulo 1 da arte, da literatura e das ideias filosóficas. Assim, os primeiros historiadores culturais viam nas culturas grega e romana a evolução de uma expressão artística e filosófica “superiores” a outros povos da antiguidade. Na história da história cultural, Burke aponta que o período entre 1800 e 1950 é uma fase que pode ser chamada de “clássica”. Nesse contexto, dois autores se destacam: o historiador suíço Jacob Burckhardt, que escreveu A cultura do Renascimento na Itália (1860); e o historiador holandês Johan Huizinga, com O declínio da Idade Média (1919). Para esses autores, a preocupação central da história cultural residia em estabelecer um retrato de uma época através do estudo de diferentes manifestações artísticas. Burckhardt elaborou uma história da cultura em que a obra de arte ocupava lugar essencial no seio dos diferentes componentes da civilização. Para ele, a civilização é considerada como um todo que se encontra dividido em elementos ou, como denomina ele, “potências”. Em sua principal obra, A cultura do Renascimento na Itália (1860), Burckhardt “descreveu o que chamou de individualismo, competitividade, autoconsciência e modernidade na arte, na filosofia e até na política da Itália renascentista” (BURKE, 2008, p. 18.). Para saber mais sobre as contribuições de Jacob Burckhardt para a história da cultura, leia: FERNADES, Cássio da Silva. Jacob Burckhardt e a preparação para a cultura do Renascimento na Itália. In: Fênix - Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, Vol. 3, Ano III, no. 3, Jul/ago/set – 2006. Disponível em: <www.revistafenix.pro.br/ PDF8/ARTIGO2-Cassioda.Silva.Fernandes.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2009. FERNADES, Cássio da Silva. As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte de Franz Kugler (1848). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 49, p. 99-124 – 2005. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/rbh/v25n49/a06v2549.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2009. Para melhor compreendermos as idéias de Burckhardt, podemos retomar É importante notar que o desenvolvimento da história cultural foi influenciado em grande medida pelos debates que ocorriam em outras ciências, como a antropologia e a sociologia. O termo “cultura” começou a ser empregado no estudo da história a partir do século XIX. 18 História Cultural suas Reflexões sobre a História, em que ele aponta para o estudo das “três potências” que compõem a civilização: o Estado, a religião e a cultura. Nesse contexto, cultura, para Burckhardt, incluía todas as congregações, artes, técnica, expressões literárias e ciências. Ela constitui o mundo de tudo o que é dinâmico, livre, não sendo necessariamente universal e nunca impondo pela força a sua aceitação. [...] Chamamos de cultura a soma total de criações espontâneas do espírito. Dessa forma, a cultura se contrapunha a um estado de barbárie em que viviam determinadas sociedades. Ela constituía: O processo pelo qual se transformava as ações espontâneas e instintivas de uma determinada raça num conhecimento inteligente, conduzindo-a, no seu verdadeiro e mais elevado estágio, à ciência e particularmenteà filosofia e à reflexão pura. Sua forma global externa, porém relacionada com o Estado e a Religião, constitui a sociedade em seu sentido mais amplo. (BURCKHARDT, 1961, p. 62 – 63.) Burckhardt utilizou a ideia de “cultura” superior para diferenciar estágios de desenvolvimento das ideias filosóficas. Em suas preocupações estavam temas como a cultura grega, o pensamento cristão medieval e o renascimento italiano, mostrando uma preocupação de traçar uma linha evolutiva do pensamento dito “universal”. Como afirma ele: ao considerarmos agora a cultura do século XIX como uma cultura universal, verificamos que ela possui as tradições de todos os tempos e culturas, do mesmo modo que a literatura do nosso tempo é uma literatura eminentemente cosmopolita, universal. (BURCKHARDT, 1961, p. 73). Já em princípios do século XX, outro historiador assumiu um papel de destaque no que se refere à história cultural. Johan Huizinga estudou sobre a Índia antiga, a França medieval e a cultura holandesa do renascimento, tendo, em alguns aspectos, proximidades e divergências com Jacob Burckhardt. Em 1929, em ensaio intitulado A tarefa da história cultural, “retratava que o principal objetivo do historiador cultural era de retratar padrões de cultura, em outras palavras, descrever os pensamentos e sentimentos característicos de uma época e suas expressões ou incorporações nas obras de literatura e arte” (BURKE, 2008, p. 19). Sua principal obra, O declínio da Idade Média, trazia no original um subtítulo que expressava sua concepção de cultura: um estudo sobre as formas de vida, pensamento e arte na França e na Holanda no século XIV e XV. De forma geral, o livro tratava do simbolismo e ritualização da arte em fins do período medieval. 19 Origens da História Cultural Capítulo 1 Está claro que, dado o desenvolvimento que o estudo da cultura havia assumido nas primeiras décadas do século XX, as concepções de Huizinga se aproximavam mais da noção plural adotada na antropologia. Em 1938, ele publicou um livro intitulado Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, no qual afirma que “o jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana”. E mais adiante prossegue: O fato de apontarmos a presença de um elemento lúdico na cultura não quer dizer que atribuamos aos jogos um lugar de primeiro plano, entre as diversas atividades da vida civilizada. [...] Não queremos dizer que o jogo se transforma em cultura, e sim que em suas faces mais primitivas da cultura possuí um caráter lúdico. (HUIZINGA, 1993, p. 53.) Nessa obra, Huizinga utiliza os estudos dos antropólogos Marcel Mauss e Bronislaw Malinowiski, trazendo uma reflexão sobre “cultura” através de suas dimensões simbólicas. No entanto, persistem as distinções entre o que ele qualifica de “a vida civilizada” e as “faces mais primitivas da cultura”. Para saber mais sobre Huizinga, leia: PAULA, João Antônio. Para lembrar Huizinga: 1872 – 1945. In: Nova Economia: revista do departamento de economia da UFMG. Belo Horizonte: n. 15 (1) janeiro-abril de 2005. p. 141-148. Disponível em: <www.face.ufmg.br/novaeconomia/sumarios/v15n1/150106.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2009. Atividade de Estudos: 1) Caro(a) pós-graduando(a), reflita sobre as origens da História Cultural e desenvolva uma síntese da concepção de “cultura” para Jacob Burkhardt e Johann Huizinga: ____________________________________________________ ____________________________________________________ 20 História Cultural ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ A Cultura Popular e a Invenção da Tradição Apesar de trilharem caminhos distintos, uma ideia que acompanhou o desenvolvimento da história cultural foi o conceito de cultura popular. Segundo Burke, a idéia de “cultura popular” ou Volkskultur se originou no mesmo lugar e momento que a “história cultural”: na Alemanha do final do século XVIII. Canções e contos populares, danças, rituais, artes e ofício foram descobertos pelos intelectuais de classe média. (BURKE, 2008, 29.). No entanto, esse conceito foi abandonado pelos historiadores pelo menos até a década de 1960, sendo utilizado somente por folcloristas e antropólogos. Uma dos primeiros estudos historiográficos que tiveram uma preocupação mais direta com a ideia de cultura popular foi a obra do historiador inglês Edward Thompson, A formação da classe operária inglesa (1963). Neste livro, Thompson analisa a formação de uma consciência de “classe” através da continuidade de certas “tradições populares” do século XVIII. O impacto da obra de Thompson se estendeu para além das fronteiras da Grã-Bretanha, levando-o a ser considerado como uma das principais referências da história das classes populares. Outra obra que teve grande impacto sobre os historiadores foi A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965), do teórico cultural russo Mikhail Bakthin. Analisando a literatura do escritor francês François Rebelais e outras “fontes populares”, o autor propõe desvendar a “cultura popular” cômica europeia em fins do período medieval. Em conceitos como o de “carnavalização”, Bakthin aborda as interações e transgressões dos limites entre a “cultura da elite” e as “culturas do povo”. Seguindo a mesma linha, Peter Burke escreveu, em 1978, A cultura popular na Idade Moderna. Ao abordar “o problema do ‘popular’”, Burke prefere utilizar o conceito no plural em virtude de sua heterogeneidade ou “substituí-la por “a cultura das classes populares”” (BURKE, 1989, p. 17). 21 Origens da História Cultural Capítulo 1 Para ambos os autores, existe uma ambiguidade que divide de forma fluída a “cultura popular” da “cultura da elite”. Apesar das precauções dos autores Bakthin e Burke em qualificar a “cultura popular” como heterogênea, suas visões são criticadas por Roger Chartier. [...] Peter Burke assim descreve os dois movimentos que desenraizam a cultura popular tradicional: de um lado, o esforço sistemático das elites e particularmente dos cleros protestantes e católicos, “para mudar as atitudes e valores do resto da população” e “para suprimir, ou ao menos purificar, vários elementos da cultura tradicional”; de outro, o abandono, pelas classes superiores, de uma cultura até então comum a todos. O resultado é claro: “Em 1500, a cultura popular era a cultura de todo mundo; uma segunda cultura para os instruídos e a única para os demais”. Existem várias razões para só se retomar com mais prudência essa periodização e esse diagnóstico que concluem pela desqualificação da cultura popular ou pelo seu desaparecimento. (CHARTIER, 1995, p. 181.) Para Chartier, o conceito de “cultura popular” é uma categoria erudita, que ora é qualificada como um sistema simbólico e autônomo, funcionando de maneira alheia à cultura letrada, ora é percebida em sua dependência e carência em relação à cultura das elites. Essas distinções têm sido utilizadas por historiadores para criar modelos cronológicos, tal como Peter Burke, para uma suposta idade do ouro da cultura popular. Assim, teríamos duas teses sobre a cultura popular: uma que estabelece sua marginalidade ante a cultura letrada; outra que lhe concede uma imagem mítica, quase que de oposição à cultura dominante. Essas visões podem, às vezes, estar presentes em uma mesma análise, ou obra historiográfica. Para saber mais sobre o conceito de “cultura popular”, leia: CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192. Disponível em: <www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172. pdf>. Acesso em: 22 mai. 2009. Um dos problemas que derivam dessas distinções entre a cultura popular e da elite é o estabelecimento de um limite entreelas. O que é povo? Em geral, Duas teses sobre a cultura popular: uma que estabelece sua marginalidade ante a cultura letrada; outra que lhe concede uma imagem mítica, quase que de oposição à cultura dominante. Essas visões podem, às vezes, estar presentes em uma mesma análise, ou obra historiográfica. 22 História Cultural como nos alerta Burke, é designar o popular por aquilo que não é a elite, ou seja, o emprego de uma “categoria residual” que em muitos casos enrijece esses termos e perde a abrangência das manifestações culturais. Em estudos historiográficos mais recentes esses termos são já utilizados de forma mais ampla e plural. Através dessas duas diferentes concepções de cultura popular podemos observar diferentes formas de compreender a transmissão da “tradição”. Tal como afirma Martha Abreu, a variedade de concepções dadas ao conceito de “cultura popular”, quase sempre imbuídas de juízos de valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas, equivale, para alguns, ao “folclore” (folk, em inglês, significa pessoas, povo) entendido como o conjunto das “tradições culturais”. O estudo da “cultura” se vincula à ideia da “tradição”, entendida como conhecimentos e habilidades transmitidas de geração para geração. A “cultura” unitária dos princípios da história cultural pode conter diversas manifestações da “tradição”. (ABREU, 2003, p. 83). Dessa forma, assim como observado na análise de Edward Thompson sobre as classes populares inglesas, a “tradição” é um elemento constituinte da cultura popular. A ideia da tradição esteve presente, mesmo que de forma indireta, nas reflexões dos historiadores culturais “clássicos” e persistiu nas análises de muitos historiadores que se seguiram a eles. A ideia essencial na história positivista era a noção de tradição e seu oposto complementar de “recepção” (como legado, herança). Esta concepção de tradição acarretava o problema de determinação do padrão cultural que persiste e do que se inova. Assim, como na discussão acerca da circularidade entre a “cultura popular” e a “cultura da elite”, torna-se difícil diferenciar aquilo que é “tradicional” do que é uma “inovação”. Seguindo essa linha, a ideia de tradição sofreu uma crítica mais enfática de Eric Hobsbawn e Terence Ranger, com A Invenção da tradição. A adoção do termo “invenção” vinha com o intuito de demonstrar que as tradições eram deliberadamente construídas e formalmente institucionalizadas. Uma característica inerente à tradição é que, embasada no passado real ou forjado, ela é invariável, fixa. Para os autores: Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWN; RANGER, 1997, p. 9). Peter Burke defende o estudo da tradição, mas alerta que deve ser redefinida, levando em consideração a teoria da recepção cultural, a adaptação e o reconhecimento. Dessa forma, o questionamento dos 23 Origens da História Cultural Capítulo 1 conceitos amplamente utilizados em nosso cotidiano nos serve para perceber as invenções intencionais ou não do que se entende como “cultura”. A cultura legitimada normalmente recebe o crivo de “tradição” como aquilo que deve ser preservado e transmitido. Atividades de Estudos: Sobre os assuntos desenvolvidos neste tópico responda: 1) Qual foi a polêmica estabelecida pelos historiadores Peter Burke e Roger Chartier sobre a ideia de “cultura popular”? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Como a noção de “tradição” foi vista pelos historiadores da cultura? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ A História Cultural e sua Aplicação no Ambiente Escolar O ofício do historiador é uma atividade eminentemente política. Em sua atividade de pesquisa ou na transmissão do conhecimento em sala de aula o historiador reconstrói a vida coletiva, estabelece conexões entre o passado e o presente e busca compreender os processos de desenvolvimento das sociedades humanas. Através da eleição consciente ou inconsciente de determinados conteúdos e métodos de compreensão do conhecimento histórico estamos agindo politicamente. 24 História Cultural Há muitas décadas que o ensino da História se pautou na exaltação dos grandes personagens históricos, em geral, os heróis nacionais. A visão positivista de uma verdade formada no encadeamento cronológico dos fatos históricos era a forma de transmitir o conhecimento. Segundo os defensores dessa ideia, existiria uma noção de evolução dos acontecimentos que só pode ser entendida através da ordenação cronológica do conteúdo. Essa forma de ensinar a história provocou um distanciamento com a realidade do aluno, causando desinteresse e incompreensão por parte destes. Ela impede os educandos de perceber semelhanças e diferenças, permanências e rupturas dos processos históricos. A partir das últimas décadas, no entanto, observou-se uma transformação nas metodologias da pesquisa histórica e consequentemente no ensino da história. Mais recentemente ainda, pela percepção da ineficácia e limitação do método tradicional, novas perspectivas educacionais foram adotadas. A adoção de materiais didático-pedagógicos alinhados a essas novas perspectivas inseriu o trabalho com diferentes fontes e documentos históricos (imagens, documentos escritos, objetos, etc.) relativos aos conteúdos propostos. Além disso, a multiplicação e a fragmentação das pesquisas históricas provocaram uma diversificação, tornando mais complexo o ensino da História. A diluição das fronteiras entre os campos de interpretação histórica (economia, sociedade, cultura) tornou imprescindível a utilização de ferramentas interdisciplinares. Frente a esses enormes e complexos desafios o historiador se encontrou desabilitado e despreparado para trabalhar essas novas perspectivas. A utilização dos conceitos é feita, muitas vezes, nos livros e pelos professores, sem nenhum critério. Tradição, mentalidades, cultura e representação são concepções amplamente difundidas nos livros didáticos, mas como devemos trabalhar esses conceitos em sala de aula? O desenvolvimento da história cultural proporcionou uma ampliação das reflexões sobre a nossa realidade imediata e a possibilidade de utilização de novas ferramentas que aproximem o universo do aluno da compreensão dos processos históricos. Para tanto, partimos da perspectiva da história como interpretação, possibilitando ao aluno contato com as várias construções existentes em torno dos processos históricos, sem desconsiderar sua própria realidade. Com uma proposta metodológica baseada nos acontecimentos do dia a dia, abordando temas como saúde, moradia, sexualidade, relações interétnicas, ou seja, a vida cotidiana, é possível mostrar que a história é feita por todos os homens e em todos os momentos de sua vida. Através da vida das pessoas comuns ou de grupos é possível compreender algumas situações vividas pela sociedade (até mesmo relacionadas à economia e à política). O desenvolvi- mento da história cultural proporcio- nou uma amplia- ção das reflexões sobre a nossa realidade imediata e a possibilidade de utilização de novas ferramentas que aproximem o universo do aluno da compreensão dos processos históricos. 25 Origensda História Cultural Capítulo 1 Ao lembrarmos nossos alunos de que somos sujeitos históricos, reforçamos a ideia de que a história não se constrói somente a partir dos grandes feitos e grandes homens, fatos e datas, mas sim do cotidiano das pessoas comuns como nós. Pessoas que se vestiam, moravam, relacionavam-se umas com as outras... Compreender como isso acontecia em diferentes grupos sociais nos permite fazer comparações e aproximações com nossa realidade atual. A lei de diretrizes e bases para a educação nacional, elaborada em 1996, trata de questões acerca da utilização de debates sobre a cultura na educação fundamental e média. Vejamos o que diz a lei: LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. [...] Art. 26º. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. [...] § 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia. [...] Brasília, 20 de dezembro de 1996. As perspectivas educacionais da lei preveem a adoção de um ensino diversificado e que leve em consideração a variedade da vida social. Como no 26 História Cultural parágrafo 4o do artigo 26, a História do Brasil deve levar “em conta a contribuição de diferentes culturas e etnias [...] especialmente das matrizes indígenas, africana e europeia” (BRASIL, 1996). Dessa definição podemos observar que a noção adotada de cultura leva em consideração a existência de diferentes grupos. No entanto, ela é reducionista quando delimita e enrijece as culturas e etnias em “indígena”, “africana” e “europeia”. Dessa forma, podemos perceber as limitações acerca da noção de cultura nas leis e diretrizes da educação nacional, bem como nos livros didáticos utilizados nas escolas brasileiras. Ainda que se tenha avançado nas discussões acerca da diversidade cultural em nosso país, e a legislação vigente é um exemplo disso, é necessário um olhar mais atento para os estereótipos criados em torno de determinados grupos. Na intenção de firmar uma identidade a fim de conquistar um espaço, esquecemos que uma mesma etnia contempla diferenças em termos culturais, relacionadas ao seu tempo e contexto. Trata-se de analisar determinados aspectos culturais a partir de especificidades decorrentes da história do indivíduo. As pessoas se apropriam e absorvem a cultura de modo diferente, resultando em múltiplas experiências de vida. A disciplina de história é fundamental para trabalhar a questão da diversidade cultural na escola, partindo do pressuposto de que devemos questionar certas concepções tradicionais que privilegiavam alguns povos em detrimento de outros. Possibilitar ao aluno a percepção de que sua história de vida, seu cotidiano, seus hábitos e seus costumes são tão importantes quanto o de qualquer outra pessoa em qualquer tempo e espaço é nosso trabalho. Partindo disso, damos um grande passo em direção a uma história composta por sujeitos conscientes de sua atuação e participação social. Você já parou para pensar no quanto os conteúdos presentes nos livros didáticos apontam para uma mudança cultural no modo de vida das populações indígenas, a partir do contato com os europeus? O contrário também ocorre? Para nos auxiliar nessa reflexão recorremos a um conceito elaborado pela antropologia, o de aculturação. Esse termo foi criado aproximadamente em 1880 por J. W. Powell, antropólogo americano, e era utilizado para denominar “a transformação dos modos de vida e de pensamento dos imigrantes ao contato com a sociedade americana”. Ainda que estudos mais recentes procurem imprimir um caráter dinâmico a esse conceito, a expressão por vezes é utilizada no senso comum de modo negativo, ressaltando a ideia de uma perda irreparável. Ou seja, no contato de dois grupos com culturas diferentes, 27 Origens da História Cultural Capítulo 1 uma prevalece sobre a outra e para o indivíduo ou sociedade aculturada há uma conversão à outra cultura. Na história do Brasil, de modo específico, esse termo foi utilizado em favor da cultura europeia, desconsiderando o fato de que através do contato com os indígenas o modo de vida dos portugueses também se transformou. Utilizamos aqui a concepção de Serge Gruzinski, quando, em sua obra “O pensamento mestiço”, destaca que do encontro de duas culturas diferentes surge uma terceira cultura, que é resultado da mestiçagem. Nem mesmo a violência com a qual foram tratadas as populações indígenas seria capaz de anular seus traços culturais. Sobre aculturação, leia a obra de: CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2a ed. Bauru: EDUSC, 2002. Sobre “O pensamento mestiço”, leia a obra de: GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. É importante lembrar que, embora nos utilizemos dos termos índios ou indígenas, há que se considerar que essa foi uma denominação dada pelos europeus a esses povos e deve ser questionada. Essas populações são compostas por diferentes grupos étnicos. São eles: Guarani, Kaigang, Xokleng, Caiapó, Carajá, Tupinambá, Ianomâmi, Pataxó, etc. Uma das grandes contribuições do ensino de história focado na concepção cultural é procurar compreender o outro a partir do seu tempo e do seu contexto. Embora seja difícil nos desprendermos de nosso modo de pensar e agir hoje, é necessário tentarmos nos colocar no lugar do outro, isentos de julgamentos ou valores de nosso tempo. Para Ruth Benedict, “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (LARAIA, 1999, p. 69) e não é incomum estranharmos o que desconhecemos. Problemático é quando nos utilizamos como parâmetro, acreditando que nosso modo de vida é mais correto e natural, sem a compreensão de que, para o outro, o mesmo outro sou eu. 28 História Cultural Atividades de Estudos: Para trabalhar a concepção de estranhamento, propomos a seguinte atividade (esta é uma sugestão de atividade que pode ser feita em sala de aula com seus alunos): • Dividir os alunos em duplas. • Pedir que se identifiquem como seres de outro planeta, que desconhecem a existência dos humanos – portanto o aluno terá a sua frente algo que nuca viu. • Solicitar que as duplas se olhem atentamente, prestando atenção em cada detalhe do outro. • Descrever por escrito o que viu, na condição de que é algo desconhecido. • Socializar e discutir sobre o que foi realizado, como os alunos se sentiram ao serem descritos e ao descreverem o outro. Para finalizar este capítulo, propomos uma atividade de leitura de imagens que possibilitem pensar um pouco mais sobre o conceito de cultura. Analise atentamente essas imagens e responda às questões que seguem: Figura 1 - Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles Fonte: Disponível em: <www.moderna.com.br/.../datas/ images/indio1.jpg>. Acesso em: 18 out. 2009. 29 Origens da História Cultural Capítulo 1 Figura 2 - Theodoro De Bry. Hans Staden assiste à preparação do corpo. Ameriacae Tertia Pars, gravura 1592. Fonte: Disponível em: <www.scielo.br/img/revistas/his/ v25n2/01f4.gif>. Acesso em: 18 out. 2009. 1) Descreva detalhadamente o que você vê em cada uma das imagens. ____________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Quais símbolos são utilizados pelo artista para identificar um personagem do outro? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 3) Qual era a visão dos europeus sobre o “novo mundo” a partir do que as imagens representam? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 4) De qual concepção de cultura essas representações se aproximam? ____________________________________________________ 30 História Cultural ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Algumas Considerações Sendo a história a disciplina que estuda o processo, interessa-nos mais procurar identificar os caminhos que nos levam a determinadas concepções atuais do que sejam cultura e história cultural. Considerando a amplitude dos temas discutidos ao longo desse capítulo, nosso objetivo não é atingir uma verdade acerca dos conceitos e muito menos acomodar você, pós-graduando, com uma explicação reducionista de algo que é amplo e complexo. Na esteira desse raciocínio, procuramos apresentar análises de diferentes autores, considerando o tempo e espaço em que construíram suas teorias, possibilitando uma reflexão sobre as transformações pelas quais passou e tem passado o conceito de cultura sem, no entanto, esgotar suas possibilidades de abordagem. Para a história cultural o fato deixa de ser o foco central de análise, considerando que o político também está no âmbito do cotidiano, a partir do questionamento sobre as transformações da sociedade, o funcionamento da família, o papel da disciplina e das mulheres, o significado dos fatos, gestos e sentimentos. A busca por novas perspectivas para a História abriu também um campo mais amplo para a interdisciplinaridade. O diálogo com outras áreas do conhecimento, como a antropologia, por exemplo, favoreceu a ampliação das áreas de investigação histórica. A partir dessas novas perspectivas há uma reorientação do enfoque histórico, contrapondo a linearidade, a abordagem universalizante e uma história baseada no estudo das elites. Referências ABREU, Martha. “Cultura Popular: um conceito e várias histórias”. In: Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologias. Martha Abreu e Rachel Soihet (organizadores). Rio de Janeiro: FAPERJ. Casa da Palavra, 2003. 31 Origens da História Cultural Capítulo 1 BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1987. BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. 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(p. 29-46) CAPÍTULO 2 Estudos Culturais e a Escrita da História A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: 3 Apresentar as relações interdisciplinares da história com a antropologia. 3 Relatar a conjuntura histórica que propiciou a ampliação temática da história cultural. 3 Comparar a relação entre a natureza da investigação histórica e antropológica. 3 Articular reflexões interdisciplinares na transmissão do saber historiográfico relacionado à História cultural. 3 Apreender a importância de uma história micro para compreensão de contextos culturais. 3 Analisar o papel do contexto histórico na transformação do processo de escrita da história. 34 História Cultural 35 Estudos Culturais e a Escrita da História Capítulo 2 Contextualização Considerando que os estudos culturais se constituíram a partir de diferentes áreas do conhecimento, percebemos ser de fundamental importância situar o papel da Antropologia nesse contexto, bem como suas contribuições para o campo da história. Portanto, este capítulo se inicia com uma discussão acerca da Antropologia cultural, seus principais autores e fases. Esperamos que ao final dessa seção seja possível perceber o quanto os estudos antropológicos influenciaram a história cultural e a noção de cultura adotada pelos historiadores. A antropologia contribuiu inclusive para a constituição do que conhecemos como Annales, assunto abordado posteriormente neste capítulo. É importante estudar os Annales, seu surgimento, principais autores e fases, para que compreendamos o papel desse movimento como uma das fases mais importante da historiografia cultural. A seguir apresentamos uma discussão sobre micro-história, uma metodologia adotada pela história cultural, que dá ênfase ao micro, ou seja, a história das pessoas comuns, para então compreender o macro, o geral. Saímos do particular para compreender o contexto da sociedadeestudada. Ao adotar essa metodologia devemos ficar atentos aos mínimos detalhes, pois ali se concentra o universal. Finalizamos o capítulo com uma discussão sobre os estudos pós-coloniais na perspectiva cultural, objetivando uma reflexão acerca da história das populações colonizadas, e a perspectiva de um reescrever a história a partir da crítica de um olhar puramente eurocêntrico. Esperamos que os apontamentos presentes neste texto possibilitem a você, caro pós-graduando, apropriar-se das ferramentas da história cultural para interferência direta no seu cotidiano, percebendo que a sua história de vida pode dizer muito a respeito de um contexto mais amplo no qual você está inserido. Portanto, esperamos que você tenha na prática a confirmação de que todos somos e fazemos história. 36 História Cultural A Aproximação da Antropologia Cultural com Novas Possibilidades de Escrita da História O que define o campo da Antropologia é o conceito de cultura, que pode ser compreendido como sendo um código simbólico, que possui uma dinâmica e uma coerência interna. É compartilhado pelos membros de uma determinada sociedade ou grupo social e, mediante um procedimento antropológico, pode ser decifrado e traduzido para membros que não pertencem a esse grupo. À antropologia, portanto, cabe a interpretação dos diferentes códigos simbólicos que constituem as diversas culturas. (THOMAZ, 1995, p. 427-428). A palavra Antropologia é composta por dois vocábulos gregos: anthropos (que significa homem) e logos (que significa conhecimento, estudo). Portanto, a antropologia é a ciência que estuda o homem em seus aspectos gerais. A fim de decifrar os significados atribuídos por diferentes sociedades ou agrupamentos humanos nas suas próprias ações, o antropólogo deve relativizar os seus próprios valores culturais, procurando fugir do etnocentrismo (THOMAZ, 1995, p. 434). “A antropologia foi impossível enquanto as distinções entre nós próprios e o primitivo, nós próprios e o bárbaro, nós próprios e o pagão, nos dominaram o espírito” (BENEDICT, 1983, p. 16). A preocupação da Antropologia está centrada nos seres humanos como produtos da vida em sociedade. O que a diferencia das outras ciências sociais é a inclusão no seu campo de estudos de sociedades que não são a nossa sociedade. Interessam ao antropólogo os costumes existentes em culturas diferentes, e o seu objetivo é “compreender o modo como essas culturas se transformam e se diferenciam, as formas diferentes por que se exprimem, e a maneira como os costumes de quaisquer povos funcionam na vida dos indivíduos que os compõem”. 37 Estudos Culturais e a Escrita da História Capítulo 2 Caro pós-graduando, você sabe o que significa a palavra etnocentrismo? Partindo de uma definição mais geral, podemos considerar como sendo o termo que define uma visão de mundo em que nosso próprio grupo é o centro de todas as coisas e todos os outros grupos são medidos e avaliados em relação a ele (CUCHE, 2002, p. 46). Atividade de Estudos: 1) Ao refletir um pouco mais sobre a definição desta palavra, liste um ou mais processos que marcaram a história da humanidade por estarem carregados de valores etnocêntricos. Em seguida procure pensar em seu cotidiano e mais uma vez liste situações em que você percebe a aplicação do termo etnocentrismo. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Você sabia? “A antropologia nasceu no século XIX, sob a égide do evolucionismo cultural, que supunha a existência de uma única marcha no progresso da humanidade, à qual todos os povos estariam condenados. O final desta marcha seria, evidentemente, a civilização Ocidental”. (THOMAZ, 1995, p. 437). Que tal fazer uma breve pesquisa sobre a origem da antropologia cultural? Procure fazer relações com o contexto vivido na época em que surgiu esse tipo de estudo. 38 História Cultural A Antropologia cultural recebeu maior ênfase e aprofundamento teórico nos Estados Unidos, talvez pelo contexto de diversidade cultural existente no país, oriundo da imigração. Aos sucessores do antropólogo Franz Boas (1858-1942) coube retomar a pesquisa sobre a dimensão histórica dos fenômenos culturais. Entre eles, Alfred Kroeber explica o processo de distribuição dos elementos culturais no espaço. A partir do estudo da repartição espacial dos traços culturais (definido pelos menores componentes de uma cultura) nas culturas próximas, analisa o processo de sua difusão - resultado dos contatos entre as diferentes culturas e da circulação dos traços culturais. Quando aparece uma grande convergência de traços semelhantes num mesmo espaço, define-se então uma área cultural. No entanto, o conceito de área cultural deve ser empregado de maneira flexível, já que, em muitas localidades, as áreas culturais só podem ser definidas de forma aproximada, não tendo limites precisos. (CUCHE, 2002, p. 68-69). Dessa corrente da antropologia surge o conceito de “modelo cultural”, que designa o conjunto estruturado dos mecanismos pelos quais uma cultura se adapta ao seu meio ambiente (Idem). Conceituando etnografia: é uma metodologia qualitativa de pesquisa que se concentra nas descrições dos grupos culturais, podendo ser definida como o método utilizado na antropologia para a coleta de dados. Para se aprofundar um pouco mais sobre esse conceito, acesse o site: http://www.antropologia.com.br/colu/colu10.html Em reação à corrente antropológica “difusionista”, surgem os estudos do antropólogo Bronislaw Malinowski (1884 – 1942). Para ele, era preciso observar as culturas em seu estado presente, sem buscar o passado. Criticava principalmente a falta de compreensão por parte dos difusionistas, dos traços culturais ligados a um sistema global. Para Malinowski, o importante era que os traços culturais exercessem, na totalidade de uma dada cultura, uma função precisa. Qualquer cultura deve ser analisada em uma perspectiva sincrônica, a partir unicamente da observação de seus dados contemporâneos. Contra o evolucionismo voltado para o futuro, contra o difusionismo voltado para o passado, 39 Estudos Culturais e a Escrita da História Capítulo 2 Malinowski propõe então o funcionalismo centrado no presente, único intervalo de tempo em que o antropólogo pode estudar objetivamente as sociedades humanas. (CUCHE, 2002, p. 71-72). Malinowski subestima as tendências à mudança interna própria de cada cultura ao dizer que constituem um todo coerente, sendo os elementos de um sistema cultural harmônicos, equilibrados e funcionais, tendendo as culturas, dessa forma, a se conservarem idênticas em si mesmas. Para ele, a mudança cultural vem do exterior, por contato cultural. “O grande mérito de Malinowski será, no entanto, demonstrar que não se pode estudar uma cultura analisando-a do exterior, e ainda menos a distância”. Propõe, assim, uma nova forma de etnografia, a da observação participante (CUCHE, 2002, p. 72-73). A antropologia cultural americana não teve muitos adeptos na França, embora tenha sido retomado o tema da totalidade cultural pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss na década de 1950. O pensamento de Strauss, embora influenciado pelo dos antropólogos americanos, diferencia-se deles ao ultrapassar a abordagem particularista das culturas. Além do estudo das variações culturais, pretende analisar a invariabilidade da cultura (CUCHE, 2002, p. 97). Trata-se, portanto, de uma antropologia estrutural que procura localizar entre culturas o que é idêntico. “No ponto preciso em que a cultura substitui a Natureza, isto é, no nível das condições muito gerais de funcionamento da vida social, é possível encontrar regras universais que também são princípiosindispensáveis da vida em sociedade” (CUCHE, 2002, p. 98). Já para Clifford Geertz, um dos mais importantes antropólogos da segunda metade do século XX, o trabalho da antropologia é o de revelar as singularidades dos modos de vida de outros povos. Uma das maiores contribuições de Geertz foi reduzir a ideia de cultura a uma dimensão mais adequada do que aquela com a qual se vinha lidando desde os anos 1950. Ao retrocedermos ao início da Antropologia, um dos mais reconhecidos autores do século XIX, Edward B. Tylor (1832 – 1917), já citado no capítulo 1, definiu cultura como o “todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade”. Trata-se de uma definição descritiva que pouco fala dos processos pelos quais a cultura se produz, nem aponta para o que “singulariza” os homens que constituem diferentes culturas. Algumas mudanças ocorreram a partir do século XX no campo da Antropologia, entre elas o aumento do interesse por culturas particulares e a consolidação da noção de que somente a partir do estudo minucioso e presencial de um modo de vida era possível entender as grandes questões da humanidade. (TORRES, 2009, p. 62). 40 História Cultural Não somente na Antropologia, mas na Filosofia, Sociologia, Psicologia e História, as mudanças foram favoráveis a uma produção de conceitos que originaram uma concepção renovada de cultura. Geertz denominaria esse acontecimento como uma virada para o sentido que, segundo ele, modificou tanto o tema investigado quanto a posição do sujeito da investigação. Surgia então a preocupação com a “produção de sentido”. Essa antropologia foi chamada por Geertz de interpretativa (TORRES, 2009, p. 63). O estudo das culturas de outros povos implica “descrever o que eles pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que finalidade pensam o que estão fazendo” (GEERTZ, 2001, p. 26). Não se trata, entretanto, de sentir como os outros ou pensar como eles, pois isso seria impossível. O que é metodologicamente esperado do pesquisador de campo é que aprenda a viver com e não como as sociedades ou grupos de culturas diferentes. O que o antropólogo busca é a ação de se situar entre aqueles que são estranhos, é a possibilidade de conversar com eles. Visto sob esse ângulo, o objetivo da Antropologia é o alargamento do universo do discurso humano (GEERTZ, 1978, p.24). Para Geertz, o conceito de cultura denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos. É um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (GEERTZ, 1978, p. 103). Como sistemas entrelaçados de símbolos, a cultura não é uma força que paira sobre os acontecimentos: é o contexto dentro do qual os signos podem ser descritos e interpretados de forma inteligível. Os antropólogos voltam seus olhares para as diferenças culturais a partir de posições particulares. Compreendem os modos de vida de outros povos considerando quem são ou aquilo em que se transformam. (TORRES, 2009, p. 63). Atividade de Estudos: 1) Faça uma lista dos antropólogos que apareceram ao longo do texto, definindo suas perspectivas de estudos. Em seguida faça comparações, destacando as diferenças em relação à concepção de cada um deles. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ O estudo das culturas de outros povos implica “descrever o que eles pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que finalidade pensam o que estão fazendo” (GEERTZ, 2001, p. 26). 41 Estudos Culturais e a Escrita da História Capítulo 2 ____________________________________________________ ____________________________________________________ Segundo Lynn Hunt, em se tratando da relação entre a Antropologia e a escrita da história cultural, Clifford Geertz é uma referência: A modalidade antropológica de história parte da premissa de que a expressão individual ocorre no âmbito de um idioma geral. Sendo assim, trata-se de uma ciência interpretativa: seu objetivo é ler “em busca do significado – o significado inscrito pelos contemporâneos”. A decifração do significado, mais do que a interferência de leis causais de explicação, é assumida como tarefa fundamental da história cultural, da mesma maneira que para Geertz, era a tarefa fundamental da Antropologia cultural. (HUNT, 1992, p.16). Nesse sentido a Antropologia Cultural se faz presente em novas formas de escrita da história. Uma implicação da adaptação dos métodos antropológicos à pesquisa histórica é a junção da preocupação com a mudança ao longo do tempo e o surgimento de uma escolha por temáticas sincrônicas. Fortaleceu-se a tendência para examinar um pedacinho do tempo. A pequena história transformou- se na base da análise da nova história cultural. Disseminaram-se produções baseadas num pequeno episódio. Assim, em vez da velha narrativa explicativa, preocupada com causas/origens e consequências, passou-se para uma nova narrativa, de curta duração, concentrada num evento que, se bem escolhido, oferece um quadro repleto de significados. A Escola Francesa dos Annales A “Escola dos Annales” foi um movimento inovador que surgiu na França, no século XX, dando origem ao que conhecemos hoje como Nova História. Tudo começou diante das insatisfações que afligiam a história tradicional e com a criação da revista Annales d’historie économique et sociale, em 1929, pelas mãos de Lucien Febvre e Marc Bloch, historiadores e demais cientistas sociais que debatiam novas metodologias e abordagens. Embora tenha surgido na França, o movimento dos Annales, ao longo do século XX, expandiu-se por todo o mundo, conquistando adeptos que contribuíram para o crescimento dessa nova abordagem historiográfica. Em 1946 recebeu seu nome atual, Annales: Economies, Sociétés, Civilisations (HUNT, 1992, p. 3). Uma das principais características dos Annales está na reflexão Uma das princi- pais característi- cas dos Annales está na reflexão dos historiadores em relação a sua área de estudos e suas formas de trabalho. Preocupa-se em tirar a história de seu isolamento disciplinar, bus- cando formas de pensar abertas a problemáticas e a metodologias exis- tentes em outras ciências sociais. 42 História Cultural dos historiadores em relação a sua área de estudos e suas formas de trabalho. Preocupa-se em tirar a história de seu isolamento disciplinar, buscando formas de pensar abertas a problemáticas e a metodologias existentes em outras ciências sociais. Entre as obras de maior destaque daqueles que compuseram o movimento dos Annales encontram-se os “Reis Taumaturgos”, de Marc Bloch, publicado em 1924, ou seja, antes da fundação da revista. Nessa obra o autor amplia o campo historiográfico sobre o estudo do mundo rural, fazendo comparações entre a França e a Inglaterra, algo novo do ponto de vista tradicional “acostumado” a escrever sobre temas mais restritos. BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das letras, 1993. a) Primeira fase: oposição entre história tradicional, política e de eventos De acordo com Peter Burke, os Annales foram um movimento dividido em três fases: a primeira apresenta a oposição entre a história tradicional, a história política e a história dos eventos. A contribuição historiográfica dos Annales nessa fase foi a possibilidade de um diálogo entre a história e as ciências sociais, rompendo uma barreira, legitimada por uma história tradicional, factual, excessivamente preocupada com os acontecimentos, advinda do séculoXIX (REIS, 2004). Essa nova perspectiva empreendida por Febvre e Bloch constrói o conhecimento em contraposição à história baseada nos grandes homens e fatos, que colocava à margem aspectos importantes das experiências humanas. Partindo do pressuposto de que toda vivência humana é portadora de uma história, os Annales construíram a “história total”. A primeira geração dos Annales foi o ponto de partida para as novas abordagens historiográficas, abrindo espaço para a história social e econômica. Em seu primeiro momento a revista dos Annales condensou os saberes e experiências de Bloch e Febvre, assim como suas críticas ao modelo tradicional baseado na história positivista. 43 Estudos Culturais e a Escrita da História Capítulo 2 Você sabe qual era a perspectiva dos positivistas? Eles acreditavam que, se adotassem uma atitude de distanciamento de seu objeto, obteriam um conhecimento histórico objetivo, um reflexo fiel dos fatos do passado. O historiador, para eles, narra fatos realmente acontecidos e tal como eles se passaram. Em termos historiográficos o “cientista” positivista colhe provas de suas falas, fechando suas conclusões objetiva e comprovadamente. Ou seja, trabalha com a concepção de uma história verdade. b) Segunda fase: novos conceitos e métodos Com a morte de Bloch e Febvre, Fernand Braudel (1946-1969) se tornou o sucessor dos Annales, que em sua segunda geração se aproxima de uma “escola”, com conceitos (estrutura e conjuntura) e novos métodos (história serial das mudanças na longa duração). Para Braudel, a contribuição especial do historiador às ciências sociais é a consciência de que todas as estruturas estão sujeitas a mudanças, mesmo que lentas. Foi também importante contribuição de Braudel a inovação do conceito de tempo, que para ele se distingue pela curta e longa duração, ou seja, os eventos históricos podem se dar por ampla ou restrita dimensão temporal. Para Peter Burke, Braudel realiza a combinação de um estudo de longa duração com o de uma complexa interação entre o meio, a economia, a sociedade, a política, a cultura e os acontecimentos (BURKE, 1997, p. 55). Segundo Lynn Hunt, Braudel demonstra sua aproximação com o estruturalismo ao rebatizar a “geo-história” da primeira edição de sua obra “O Mediterrâneo” de “história estrutural”, como já aparece na segunda edição. Teoricamente, a relação estabelecida por Braudel entre longa e curta duração, entre “história estrutural” e “história política”, é a semelhante à relação estabelecida por Lévi-Strauss entre “ordem de estrutura” e “ordem de evento”. Fernand Braudel e a tradição dos Annales Para Braudel, a geografia possuía um papel muito importante no estudo do passado, pois é na relação do homem com o meio, tanto físico quanto social, que a história se move. Em sua obra “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II”, valorizou as mudanças econômicas e sociais ocorridas em longo prazo, dialogando com a geografia. Postulou três níveis de análise que correspondiam a diferentes unidades de tempo: a estrutura ou longa duração, dominada pelo meio geográfico, e a conjuntura ou média duração, voltada para 44 História Cultural a vida social e o evento efêmero, que incluía a política e tudo que dizia respeito ao indivíduo. A estrutura, ou longa duração tinha prioridade, enquanto os eventos eram equiparados à poeira ou à espuma do mar. Fonte: BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 48. Atividades de Estudos: 1) Que tal refletir um pouco mais sobre as aproximações entre o estruturalismo, presente na antropologia cultural, e a segunda geração da escola dos Annales? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Veja a seguir uma passagem da aula inaugural do professor Fernand Braudel no Collège de France: A realidade do social, a realidade fundamental do homem revela-se inteiramente aos nossos olhos e, queiramos ou não, nosso velho ofício de historiador não cessa de brotar e de reflorir em nossas mãos... Sim, quantas mudanças! Todos os símbolos sociais, ou quase todos – e alguns pelos quais teríamos morrido ainda ontem, sem muita discussão - perderam o seu conteúdo ainda. (...) Todas as ciências sociais, inclusive a história, evoluíram, igualmente, de maneira espetacular, mas não menos decisiva. Um novo mundo; por que não uma nova história? Fonte: MARQUES, Ademar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História e Companhia. Belo Horizonte: Editora Lê, 1998, p. 24. 3) Como você interpreta esse trecho da fala de Braudel? ____________________________________________________ ____________________________________________________ 45 Estudos Culturais e a Escrita da História Capítulo 2 ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ c) Terceira fase: Nova História Cultural A terceira fase dos Annales talvez seja a mais difícil de definir, pois não contou com a centralidade dos estudos de Bloch e Febvre ou Braudel. Por isso, chega- se a dizer que nessa fase houve uma fragmentação. Exerceu grande influência sobre a historiografia e sobre o público leitor, em abordagens que comumente chamamos de Nova História ou História Cultural (BURKE, 1997). Portanto a Nova História, oriunda da Escola dos Annales, pode ser definida em linhas gerais como uma ciência histórica inovada, regida pelos moldes das ciências sociais, voltada para a problemática do homem enquanto objeto social. Caracterizada por uma história-problema e utilizando-se da interdisciplinaridade para se constituir, valoriza os fatos recorrentes, ao lado dos singulares, trabalhando o cotidiano, ressignificando fatos e fontes históricas. Sob essa perspectiva, a história sofreu uma mudança no campo das técnicas e dos métodos. Se antes a documentação era relativa ao evento e seu produtor, passa a ser relativa ao campo econômico- social. “Os documentos se referem à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças, às suas diversas formas de vida social” (REIS, 1994, p. 126). Os documentos podem ser arqueológicos, pictográficos, iconográficos, fotográficos, cinematográficos, numéricos, orais, enfim, de toda ordem. Todos os meios são tentados para vencer as lacunas e silêncios das fontes. O documento, para Febvre, vai além de um simples papel, abrange desde pedaços de cerâmica a documentos escritos e o importante é que haja problematização em cima da fonte. Essas novas possibilidades deixaram de priorizar perguntas e respostas, dando espaço para a construção de questionamentos e hipóteses. Deram ao historiador liberdade de ação, tanto pela A Nova História, oriunda da Escola dos Annales, pode ser definida em linhas gerais como uma ciência histórica inovada, regida pelos mol- des das ciências sociais, voltada para a problemá- tica do homem enquanto objeto social. 46 História Cultural ampliação dos fatos, como das fontes que deixaram de ser exclusivamente os documentos oficiais, abrangendo todos os vestígios deixados pelo homem social (FEBVRE, 1989). Uma das mais importantes proposições da
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