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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SANTOS ESDRAS GARCIA CAJAÍBA AS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE A FALA E A ESCRITA VISTAS SOBRE SUAS PRINCIPAIS PERSPECTIVAS SANTOS – 2019 ESDRAS GARCIA CAJAÍBA AS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE A FALA E A ESCRITA VISTAS SOBRE SUAS PRINCIPAIS PERSPECTIVAS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Católica de Santos como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Letras Orientadora: Prof.ª Mª. Valdilene Zanette Nunes Visto de autorização da professora orientadora SANTOS – 2019 ESDRAS GARCIA CAJAÍBA AS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE A FALA E A ESCRITA VISTAS SOBRE SUAS PRINCIPAIS PERSPECTIVAS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Católica de Santos como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Letras. Orientadora: Profª Mª. Valdilene Zanette Nunes BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Profª M.ª Valdilene Zanette Nunes Universidade Católica de Santos - UNISANTOS ________________________________________ Profª Dra. Graziela Pigatto Bohn Universidade Católica de Santos - UNISANTOS Data da aprovação _____________________ Santos – 2019 Dedico este trabalho primeiramente a Deus, por ter me feito Seu objeto de misericórdia, ter me dado o dom da vida e ter me sustentado durante toda esta jornada de estudos. Em segundo lugar dedico este trabalho à minha amada esposa, Amanda Martins Azevedo, e à minha querida mãe, Luci Garcia Cajaíba. AGRADECIMENTO A Deus por ter me dado saúde e força para superar as dificuldades. A esta universidade, seu corpo docente, direção e administração que oportunizaram a janela que hoje vislumbro um horizonte superior, eivado pela acendrada confiança no mérito e ética aqui presentes. À minha orientadora Valdilene Zanette Nunes, pelo suporte, pelas suas correções e incentivos. Aos meus pais Isaac da Conceição Cajaíba e Luci Garcia Cajaíba, pelo amor, incentivo e apoio incondicional. À minha esposa Amanda Martins Azevedo pelo suporte, cuidado e amor para comigo. E a todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formação, o meu muito obrigado. CAJAÍBA, Esdras Garcia. As complexas relações entre a fala e a escrita vistas sobre suas principais perspectivas. Santos, 2019, 52 páginas. Trabalho de Conclusão de Curso. Letras. Universidade Católica de Santos. RESUMO O presente trabalho objetiva apresentar as diversas perspectivas no tocante ao estudo das correlações entre a fala e a escrita, analisar como desenvolve-se esta relação, desmistificar a tendência que aponta para supremacia da escrita em comparação à fala e propor uma perspectiva adequada para observação desta relação. A partir da revisão da literatura, pôde-se observar um considerável grau de complexidade e variedade na relação oral/escrito e não uma simples relação dicotômica como outrora se imaginava. Além disso, observou-se uma interrelação gradual de continuidade, interdependência e efeito mútuo entre essas duas modalidades, com as quais uma série de elementos se interpenetram com o intuito de promover uma comunicação eficaz no âmbito das práticas sociais. Palavras-chave: Fala; Escrita; Complexidade; Relação oral e escrito. LISTA DE TABELAS Tabela 1: Perspectiva Imanentista ............................................................................31 Tabela 2: Perspectiva Culturalista .............................................................................32 Tabela 3: Perspectiva Variacionista ..........................................................................34 Tabela 4: Perspectiva Sociointeracionista..................................................................35 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Representação do contínuo dos gêneros textuais na fala e na escrita.......39 LISTA DE IMAGENS Imagem 1: A estrutura do signo...............................................................................13 Imagem 2: Piratas do Tietê......................................................................................17 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................10 1 A LINGUAGEM.......................................................................................................12 1.1 LINGUAGEM VERBAL, NÃO VERBAL E MISTA...............................................15 1.2 A FALA...............................................................................................................18 1.3 A ESCRITA.........................................................................................................20 2 O MITO DA SUPREMACIA.....................................................................................23 3 AS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE A FALA E A ESCRITA VISTA SOBRE SUAS PRINCIPAIS PERSPECTIVAS........................................................................30 3.1 A PERSPECTIVA IMANENTISTA......................................................................30 3.2 A PERSPECTIVA CULTURALISTA...................................................................32 3.3 A PERSPECTIVA VARIACIONISTA...................................................................34 3.4 A PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONISTA.....................................................35 3.5 A PERSPECTIVA DO CONTINUUM..................................................................38 4 UM NOVO OLHAR SOBRE ESSA RELAÇÃO.......................................................43 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................48 REFERÊNCIAS..........................................................................................................50 BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................52 10 INTRODUÇÃO Muitas vezes, pensa-se, erroneamente, que a escrita seja uma simples transcrição da fala, uma mera materialização do som em código. Na verdade, as relações entre elas são muito mais amplas do que podemos imaginar. Nos últimos anos, intensificaram-se os estudos sobre as relações entre língua falada e língua escrita e não são poucas as tendências que estudam essas correlações. Os resultados dessas investigações, embora ainda limitados e bastante dispersos, vêm mostrando que a questão é complexa e variada. Nossa hipótese principal é a de que a fala e a escrita estão envolvidas em um continuum, pois, por mais que existam distinções entre elas, não dá para serem concebidas como dicotômicas, pois apresentam elementos que se mesclam com o intuito de promover uma comunicação eficaz. Por isso, a importância de analisarmos as diversas perspectivas de tratamento da questão, para que não venhamos a incorrer no erro de tratar as relações entre fala e escrita de maneira estanque ou dicotômica ou considerar a supremacia cognitiva da escrita em relação à fala. Apesar deste aspecto de continuidade e interdependência, é importante salientar que tanto a fala como a escrita são modalidades distintas de uso da língua. Na fala, fazemos uso de recursos muitas vezes não disponíveis no código escrito, tais como a gestualidade, o tom de voz, os traços prosódicos, as expressões faciais e até mesmo o silêncio. A escrita, por sua vez, também apresenta recursos próprios, como o planejamento, a reescrita e a pontuação gráfica, além de permitir a releitura do texto para melhor entendimento. Compreendemos, portanto, que a línguaoral e a escrita constroem a informação de formas distintas, mas com o mesmo intuito, o de promover a comunicação eficaz no âmbito das práticas sociais. Vale lembrar também que ambas são sistemáticas e apresentam uma organização textual-discursiva. Portando, no trabalho que se segue, procuramos, a partir da revisão da literatura, descobrir como ocorre esta relação, averiguar se realmente há uma supremacia entre estas modalidades e apresentar a possibilidade que melhor explica esta correlação. Para isso, no primeiro capítulo buscaremos voltar à gênese da linguagem, definindo-a a partir de Saussure (1969) e outros importantes teóricos da linguagem. No capítulo subsequente buscaremos desvendar o mito da supremacia que ronda essa relação. No terceiro capítulo apresentaremos as tendências mais 11 relevantes que abordam esse tema como a de Marcuschi (2001), Tannen (1982a) e Street (1995). Por fim, no último capítulo, buscaremos propor uma hipótese que supra as carências deixadas pelas perspectivas anteriores. 12 1 A LINGUAGEM Antes de entrarmos nas principais tendências que classificam as relações entre a fala e a escrita, devemos, primeiramente, classificar e definir ambas as modalidades. Como sabemos, tanto uma como a outra estão na esfera da linguagem, que nada mais é do que a capacidade da espécie humana de se comunicar por meio de signos e que, segundo Chomsky (1986), é um objeto natural, um componente da mente humana, biologicamente determinado pela dotação genética da espécie. Entre as ferramentas culturais do ser humano, a linguagem ocupa um lugar à parte, pois, naturalmente, o homem não está programado para aprender matemática, química ou biologia e sim para falar, para aprender línguas, quaisquer que elas sejam. Portanto, todos os seres humanos, independentemente de sua escolaridade ou de sua condição social, a menos que tenham graves problemas psíquicos ou neurológicos, estão aptos a falar. A linguagem responde a uma necessidade natural da espécie humana, a de comunicar-se. Mas, diferentemente de outras necessidades naturais, como comer, dormir e respirar, ela necessita ser adquirida. A aptidão para a linguagem é um traço genético, sua realização, no entanto deve passar por todo um processo de aquisição. No caso da linguagem verbal, ela deve ser adquirida sob a forma de uma língua, a fim de manifestar-se por meio da fala e, posteriormente, da escrita. Para Saussure (1969), a língua é um sistema supraindividual de signos utilizado como meio de comunicação entre os membros de uma comunidade, um conjunto de unidades que se relacionam organizadamente dentro de um todo. É a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo; não pode ser modificada pelo falante e obedece às leis estabelecidas pelos membros da comunidade. É perfeitamente perceptível que a sociedade atual organiza-se em torno de um grande e poderoso universo de signos, diga-se de passagem, bastante complexo. De igual modo, é também perceptível o estado absoluto em que se portam a linguagem humana e seus signos de valor incondicional. Mas, de maneira prática, o que seriam esses signos? É possível dizer que qualquer objeto, som, palavra capaz de representar uma outra coisa constitui signo. Na vida moderna, todos nós dependemos do signo para vivermos e interagirmos no meio no qual estamos inseridos. Para o homem comum, 13 a noção de signo e suas relações não são importantes do ponto de vista teórico, mas ele os entende de maneira prática e precisa. A utilidade do signo vai além do que imaginamos: ao dirigirmos, por exemplo, precisamos constantemente ler e analisar discursos transmitidos pelas placas de trânsito, pelas luzes do semáforo, pelas reações do veículo ao meio ambiente etc. O homem intelectualizado não vive sem o signo, precisa dele para entender o mundo, a si mesmo e as pessoas com as quais mantêm relações humanas. Para Saussure (1969, p. 80), “o signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces”, é ainda “a combinação do conceito e da imagem acústica”. Embora as palavras conceito e imagem possam designar oposição, Saussure resolveu substituí-las por significado e significante, acreditando que tais palavras pudessem expressar com maior clareza a ideia de oposição entre os principais elementos do signo: conceito e imagem. Para facilitar a compreensão, ilustraremos com a imagem abaixo: Imagem 1: A estrutura do signo. Fonte: Alves (2016) O significante é a apresentação física do signo, de forma sonora e/ou imagética. Se considerarmos o exemplo dado na ilustração anterior, diremos que a imagem acústica da palavra “árvore” é o significante para todos os fins. O significado é o conceito que permite a formação da imagem na mente de um indivíduo quando ele entra em contato com o significante; portanto, a representação da árvore na figura é o que podemos chamar de significado. Com isso, é possível dizer que o signo é o resultado de um conjunto de relações mentais. Há em cada signo uma ideia ou várias ideias, de acordo com o contexto, com a leitura ou com o leitor e seu estado emocional. Contudo, como essa ideia 14 representada por um signo não é concebida de maneira natural e sim por uma convenção social, podemos dizer que esse signo é arbitrário. Portanto, a língua em si é arbitrária, pois temos uma mudança de significado e significante toda vez que mudamos de sociedade. Por exemplo, no Brasil, a imagem acústica de uma árvore nos remete ao significante “árvore”, já nos Estados Unidos nos leva ao significante “tree” e na Espanha “árbol” e assim por diante. É por isso que enfatizamos anteriormente que, apesar de ser inata, a linguagem deve ser adquirida em forma de uma língua, ou seja, da convenção pré-estabelecida pela sociedade do indivíduo. Essa é a magia da nossa capacidade linguística, ter a predisposição para aprender e adaptar-se a qualquer convenção de signos linguísticos. Esta capacidade inata da linguagem pode manifestar-se de diversas maneiras: por meio de sons como no caso da fala, por meio de imagens, como na pintura, por meio de gestos, como na linguagem de sinais. Assim, a linguagem pode ser considerada como a capacidade estritamente humana capaz de manifestar algo, visando à expressão de sentimentos, à manifestação de desejos e opiniões, à troca de informações entre diferentes culturas, dentre outros procedimentos. A linguagem é o ponto central dos seres humanos, pois é a partir da linguagem que os homens se fazem presentes e possuem a capacidade de agirem no mundo e de interagirem entre si mesmo. Hjelmslev (1975, p. 1-2) de maneira poética e concisa consegue exprimir em sua obra o esplêndido papel da linguagem na vida da espécie humana: A linguagem é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seus pensamentos, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças a qual ele influencia e é influenciado, a base da última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento: para o indivíduo,ela é tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é 15 possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento dessas coisas. Em posse desse panorama o qual a linguagem abrange, devemos, agora, avançar mais e focar especificamente no ramo da linguagem que compreende nosso objeto de estudo, a fala e a escrita, e que se encontra na seção da linguagem denominada de linguagem verbal. Embora a linguagem também possua um ramo não- -verbalizado e outro que mescla as duas modalidades, iremos dar mais foco no segmento que compreende nossos objetos de estudo 1.1 A LINGUAGEM VERBAL, NÃO VERBAL E MISTA A linguagem verbal e não-verbal utiliza recursos diferentes para referenciar-se em uma mensagem. Enquanto a linguagem verbal utiliza de palavras para inferir significado, a não-verbal usufrui de imagens, gestos, sons e uma gama de signos visuais para ser efetivada. De uma forma bastante básica, o conceito é esse. Apesar de essa ser uma definição bastante simplória, a conceitualização que pondera a linguagem verbal e não-verbal segue uma ordem. A linguagem verbal, como o próprio nome pressupõe, abrange as palavras, sejam elas escritas ou faladas. Assim sendo, resume-se em linguagem verbalizada aquela em que há uma mensagem sendo representada por palavras. Enquanto isso, a linguagem não-verbal usufrui de signos visuais. Um exemplo são placas de trânsito, de avisos ou com separação de cores da reciclagem, além de outras. É imprescindível ressaltar, antes, que a linguagem verbal e não-verbal abrange tipos de modalidades comunicativas. Sendo assim, a comunicação será percebida quando houver entendimento entre emissor e receptor; ou seja, uma troca de informações com significado e sentido. A finalidade será a de transmissão da mensagem pelo emissor. A finalidade será a recepção e compreensão desta pelo receptor. Dessa forma, seja a linguagem verbal ou não-verbal a ser utilizada, o importante será a compreensão. Ambas as modalidades comunicativas são essenciais e comumente utilizadas no cotidiano. Contudo, a linguagem verbal costuma ser muito mais empregada. Isso se deve ao fato de estabelecer e delimitar a mensagem a ser passada. Seja em uma 16 conversa entre amigos, uma reunião ou ainda quando se escreve um e-mail. De todas as formas, a linguagem verbal está sendo empregada. Expressa constantemente, seja por escrita, seja por fala, para Sapir (1980, p.14), linguagem verbal é um método puramente humano e não-instintivo de comunicação de ideias, emoções e desejos por meio de um sistema de símbolos voluntariamente produzidos. Entre eles, avultam primacialmente os símbolos auditivos, emitidos pelos chamados “órgãos da fala”. Não há uma base discernível de instinto na fala humana considerada como tal, embora muitas expressões instintivas e a própria natureza ambiente sirvam de estímulo ao desenvolvimento de certos elementos linguísticos, e embora muitas tendências instintivas, motrizes e outras, ofereçam um teor ou molde predeterminado à expressão linguística. Tendo como base Sapir (1980), podemos afirmar que a linguagem verbal se define como uma atividade inicialmente criada pelo homem, uma utilização humana da faculdade de exprimir por palavras estados mentais, de se comunicar com outros indivíduos, mas que deve invariavelmente ser adquirida em forma de uma língua. Mas o que seria uma língua? Para o pai da linguística, a língua é “um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (SAUSSURE, 1969, p.17). Ela consiste num conjunto específico de códigos e palavras diversas, usados sob regras e leis de combinação que, na verdade, é o que permite que a mensagem seja passada de maneira compreensível. É muito provável que a mensagem não seja compreendida totalmente caso seja passada de forma incomum às regras previamente estabelecidas. É como escrever uma frase na qual as palavras estão fora de ordem e esperar que a outra pessoa entenda exatamente o que se quis dizer. A língua é, portanto, uma descoberta dos linguistas que entendem a linguagem verbal como um sistema de signos, atribuindo-lhe a denominação de “língua”, em referência ao órgão do corpo humano responsável pela articulação e realização sonora da própria linguagem. Urbano (2006, p.23) define a língua da seguinte forma: A língua é, pois, um sistema de signos; na realidade, um sistema de sons vocais específicos (os chamados fonemas), organizados num sistema de formas (como é o caso dos padrões frasais...), que estabelece entre si oposições, fundamentais ou primárias, específicas, entendida, a língua, como abstração em relação à fala (=parole) ou discurso, o qual representa o nível concreto de utilização da língua. 17 Nesse sentido, a linguagem verbal é a soma da língua e do discurso. Esse discurso concreto recebe, na prática, diversas rotulagens e está sujeito a diversas concepções nem sempre muito convergentes, como língua, linguagem (verbal), fala, escrita etc. Vistas essas definições, passemos agora para o ramo da linguagem que mescla as duas seções anteriores e que denominaremos de linguagem mista ou híbrida. A linguagem mista ou híbrida consiste em uma combinação de ambas as modalidades representadas. Dessa maneira, combina a linguagem verbal e não verbal em uma única forma de emissão de mensagem. Exemplo claro são as histórias em quadrinhos, além de emitirem a linguagem não verbal com a expressão das personagens, há o acompanhamento de uma linguagem verbal com as falas, assim como um filme (com áudio e vídeo), uma matéria de jornal ou revista, uma imagem com legendas. Todos eles, ao mesmo tempo, utilizam-se de imagens e palavras para se comunicar, sendo assim, é considerada uma linguagem mista. É importante salientar que em muitos casos se faz necessário o uso da linguagem híbrida para compreensão adequada da informação. Podemos citar os gráficos que expõem dados estatísticos por meio de linguagem verbal e não verbal. Sem essa mescla, as informações não estariam completas e ficariam incompreensíveis. Existem casos cuja mescla da linguagem serve para chamar atenção do observador. Ao avistar uma placa escrita “PARE” em letras garrafais com um fundo vermelho, o motorista tem a atenção completamente tomada para o signo e imediatamente reduz a velocidade do veículo até parar. Este é um uso estratégico da linguagem mista. Podemos ir mais além e citar as situações de comunicação nas quais são observadas a mescla. Observemos o quadrinho que se segue: Imagem 2: Piratas do Tietê Fonte: Laerte (2003) 18 Nesse diálogo, a linguagem verbalizada, assim como a gestual, é imprescindível para o entendimento. A partir de um texto verbalizado se faz uma indagação (– Que estrela é aquela?), mas é por meio do gesto (apontar) que se dá conhecido ao interlocutor do objeto do questionamento. A partir desses exemplos podemos compreender a importância dessa modalidade. Mais adiante, quando entrarmos na perspectiva do continuum, voltaremos à linguagem híbrida. 1.2 A FALA A fala como parte da linguagem verbal é adquirida naturalmente no convívio diário com outros falantes da língua. Como já foi mencionado, a fala é natural ao ser humano, que já vem com uma disposição biogenética para a aquisição e uso da língua materna. A fala é o modo como o indivíduo se insere em um determinado meio social, econômico e cultural. Portanto, podemos considerá-lacomo uma prática social1. Para Marcuschi (2001, p.25), a fala seria Uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano. Caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de sons sistematicamente articulados e significativos, bem como os aspectos prosódicos, envolvendo, ainda, uma série de recursos expressivos de outra ordem, tal como a gestualidade, os movimentos do corpo e a mímica.2 Dessa forma, podemos introduzir a fala em uma das modalidades do uso da língua. Ela seria a forma pessoal de expressão de cada indivíduo que possui uma organização própria de pensamentos, ideias e opiniões. Em tese, essa modalidade segue as regras gramaticais da língua, mas, pelo fato de possuir a subjetividade humana, ela deixa margem para a criatividade e diferenciação na comunicação em função de quem fala pelo fato de ser influenciada pelo contexto, vivências, personalidade e conhecimentos linguísticos do falante, apresentando diversos níveis, desde o mais coloquial até o mais culto. 1 Abordaremos o tema com mais exatidão no próximo capítulo. 2 “Não há dúvida de que a linguagem dos sinais constitui um tipo de fala, embora não se verifique ali o componente sonoro como decisivo. Contudo, temos uma língua articulada e completamente eficiente no processo comunicativo.” (MARCUSCHI, 2001, p.25) 19 Na fala temos também algumas características peculiares que não encontramos em outras modalidades do uso da língua. Nesta modalidade, a recepção ocorre no interior de uma situação de interlocução, dentro de uma cena que compreende dois participantes, além de se passar em um determinado tempo e espaço. Dessa forma, é desnecessário explanar sobre o espaço de onde se fala, do momento em que se fala e para quem se fala, pois os interlocutores já estão inseridos nesse contexto. Podemos observar também uma alternância nos papéis de falante e ouvinte. O receptor pode a qualquer momento interromper o emissor para perguntar algo que não entendeu, para acrescentar alguma informação e até mesmo para discordar do que foi dito. Por isso é comum observarmos na fala as expressões como: (diz, por exemplo, né?, certo?, você não acha?, não é bem assim!, como é mesmo que se diz?) Outro aspecto observável da fala é que não há um planejamento prévio e a execução do texto ocorre de maneira simultânea ao planejamento. Por isso, é comum observarmos um grande número de pausas, frases truncadas, repetições, correções, períodos que começam, mas não se concluem, desvios, voltas e acelerações. Outra característica da fala é que ela emprega períodos mais curtos e mais simples comparados com a escrita que faz uso de períodos mais longos e complexos por meio das orações subordinadas. Além disso, temos uma diferenciação quanto às unidades de sentido do texto falado e do texto escrito. Enquanto este faz uso dos parágrafos e capítulos, aquele se usa dos turnos (intervenção de cada falante) e dos tópicos (assuntos de que se fala). Podemos, então, observar que o texto falado vai muito além da vocalização, ele apresenta uma certa complexidade na conjuntura de seus elementos, que vão além da sonorização e da linguagem verbal, ele depende intrinsecamente de outros objetos, como elementos da linguagem não verbal (gestos, mímicas, expressões), contexto, tempo, interação adequada com o receptor dentre outros. O professor Hudinilson Urbano (2006, p.159) em uma de suas contribuições para o compilado “Projetos Paralelos - Fala e Escrita em Questão”, organizado por Dino Preti, conceitua desta forma o texto falado: Preliminarmente levamos em conta que o texto falado é um texto oral, não só no sentido de língua falada, mas também num sentido mais amplo, como vimos considerando em nossos estudos. Tomando num sentido mais amplo, oralidade diz respeito não só ao aspecto verbal ou vocal da língua falada, 20 mas também a todo contorno necessário à produção da fala na conversa face a face, ou seja, tudo o que provoca, propicia, favorece e possibilita a produção, transmissão e recepção da fala como material verbal e oral, como canal de interação: portanto a expressão linguística, a expressão paralinguística; a manifestação mímica e gestual; o contexto situacional, e até o conhecimento partilhado próximo e remoto, atualizado durante o evento. Nesse sentido, levamos em conta em particular o material sonoro, sígnico ou não, com todas as implicações de sua produção e transmissão, como a entonação, intensidade, duração, velocidade, riso; a personalidade dos interlocutores; seus estados emocionais e etc., abstração feita à informação referencial que interesse especificamente à mensagem; os gestos, mímica; enfim, qualquer meio concretamente unido a situação “local”, a que se recorre para precisar o sentido da expressão propriamente dita. Tendo esses princípios como base, passemos agora para a outra modalidade do uso da língua que, por vezes, equivocadamente, sobressai sobre a modalidade anterior, criando certa supremacia, supremacia essa que procuremos desmistificar nos capítulos subsequentes. 1.3 A ESCRITA Como vimos nos itens anteriores, o meio básico de expressão da linguagem verbal é a fala, ou seja, a expressão articulada de sons produzidos pelo aparelho fonador e que representa uma faculdade natural de todo ser humano saudável inserido em uma sociedade com outros falantes de determinada língua. Por muito tempo, essa capacidade foi a única modalidade possível do uso da língua. Até que no final do quarto milênio a.C. surge a escrita na Mesopotâmia. Esse evento veio revolucionar completamente a sociedade humana. A partir daquele momento, o homem descobrira uma segunda maneira de se expressar, de se comunicar, de informar e de ver o mundo. Os ideias e pensamentos saem do campo da abstração e ganham concretude. Aquilo que era pensado ou falado agora pode ser documentado para as próximas gerações e passados de maneira fiel a outros3. Mas de maneira prática, como poderíamos definir a escrita? No livro “Da Fala para Escrita Atividades de Retextualização”, Marcuschi (2001, p.26) nos dá uma direção, definindo a escrita dessa forma: 3 Embora os pensamentos e ideais de determinada sociedade fossem passados oralmente de geração em geração, eles sofriam muitas interferências e acréscimos do caminho entre a fonte e o último receptor. Com o advento da escrita a sociedade mais contemporânea tinha acesso à fonte original do pensamento e podia fazer uso dele de maneira fiel. 21 A escrita seria um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracteriza por sua constituição gráfica, embora envolva também recursos de ordem pictórica e outros (situa-se no plano dos letramentos). Pode manifestar-se, do ponto de vista de sua tecnologia, por unidades alfabéticas (escrita alfabética), ideogramas (escrita ideográfica) ou unidades iconográficas, sendo que no geral não temos uma dessas escritas puras. Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar à fala. A partir dessa definição, podemos observar que, assim como a fala, a escrita também possui suas características e especificidades e, claramente, como definida erroneamente no passado, não é simplesmente a transcrição da fala ou o simbolismo visual desta, mas se constitui de uma outra modalidade do uso da língua que é complementar a fala e que se desenvolve no âmbito da linguagem verbal. Uma das características da escrita que se distancia da fala é que essa modalidade se desenvolve fora da situação de interlocução. É preciso, para a adequada compreensão, recriar a cena enunciativa, a situação, para que quem está lendo compreenda quem está falando, quando foi falado e quais são as referências situacionais de sentido.É por isso que em uma carta é imprescindível que se mencionem o lugar e a data em que o texto foi escrito e que se assine para uma adequada compreensão de sentido. Outro fator que devemos destacar é que na escrita não ocorre a alternância de papéis. Mesmo quando nela se cria um diálogo, trata-se de uma simulação e não de um diálogo real, pois não temos a presença das superposições de vozes, tentativa de segurar a palavra, marcas da presença de outro etc. O texto escrito também não apresenta marcas de planejamento e execução. O texto é apresentado pronto ao leitor. Na versão final do texto escrito, são abandonadas as marcas da construção do texto, nele, não aparecem hesitação, truncamentos, correções etc. Além do mais, em um texto escrito, é inadequado o uso de variantes lexicais (salvo em alguns gêneros)4 com o risco da não compreensão adequada da informação. Na maioria das vezes, será exigida a norma padrão da língua para elaboração de textos dessa modalidade. Podemos, então, caracterizar a escrita como uma produção textual-discursiva descontextualizada que se apresenta como autônoma e que busca a explicitude, 4 Nos romances, por exemplo, as variedades dão uma identidade para os personagens. Criando uma característica psicológica e social que os vão identificar por toda a trama. 22 sendo condensada, planejada e precisa. E que em sua elaboração busca a normatização e completude. 23 2 O MITO DA SUPREMACIA Como vimos no capítulo anterior, o meio básico de expressão da linguagem verbal é a oralidade, ou seja, a expressão articulada de sons produzidos pelo aparelho fonador. Porém, com o passar do tempo, a humanidade criou um segundo meio de expressão, a escrita, que é um modo de produção textual-discursiva que se manifesta por meio de signos gráficos. Se comparada ao meio oral, o meio escrito é recentíssimo, foi desenvolvido apenas há aproximadamente cinco mil anos. Apesar de ter se inserido tardiamente na sociedade, a escrita cativou quase todos os corpos sociais ao redor do globo e permeia quase todas as práticas sociais dos povos em que penetrou. A escrita é usada em contextos sociais básicos da vida cotidiana, em paralelo direto com a oralidade. Entre estes contextos estão o trabalho, a escola, a família, a vida burocrática, a atividade intelectual, cultural e política. Sendo de comum acordo que essas duas modalidades têm papéis importantes nas sociedades, vale ressaltar que, do ponto de vista cronológico, a fala tem uma grande precedência sobre a escrita, mas, do ponto de vista do prestígio social, a escrita é vista como mais prestigiosa que a fala. Não se trata, porém, de critérios intrínsecos nem de parâmetros linguísticos e sim de uma postura ideológica frente a essas duas modalidades. Como ressalta Marcuschi (2001, p.35), Na perspectiva aqui defendida, seria útil ter presente que, assim como a fala não apresenta propriedades intrínsecas negativas, também a escrita não tem propriedades intrínsecas privilegiadas. São modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas específicas. Postular algum tipo de supremacia ou superioridade de algumas das duas modalidades seria uma visão equivocada, pois não se pode afirmar que a fala é superior à escrita ou vice-versa. Em primeiro lugar, deve-se considerar que esta relação não é homogênea nem constante. Por exemplo, há quem equipare a alfabetização (domínio ativo da escrita e da leitura) com desenvolvimento5. Apesar de reconhecermos a sua importância nesse processo, não podemos concordar categoricamente com essa afirmação, tendo em 5 Em seu discurso, realizado em 8 de setembro de 2018, por ocasião do dia internacional da alfabetização a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay fez a seguinte afirmação: “A alfabetização é o primeiro passo para a liberdade, para a libertação das restrições sociais e econômicas. É o pré- -requisito para o desenvolvimento, individual e coletivo. Ela reduz a pobreza e a desigualdade, promove a prosperidade e ajuda a erradicar problemas de nutrição e de saúde pública”. (AZOULAY, 2018) 24 vista que muitos movimentos sociais que resultaram em desenvolvimento partiram de classes iletradas como no caso da primeira revolução industrial da Inglaterra que mostrou índices regressivos de alfabetização. Outros sugerem que a entrada da escrita representa a entrada do raciocínio lógico e abstrato. Outra falácia, tendo em vista que o sistema de escrita original dos mesopotâmicos era derivado do seu método de contabilidade. Quanto ao raciocínio abstrato, esse já era presente nas artes rupestres desde as eras mais primitivas da terra. Nessa linha, Jean Piaget (1971, p.43) discorre que O raciocínio matemático contém o ato pelo qual a mente humana se distancia do mundo externo, um ato que ocorre em si mesmo ou por si mesmo, de modo que, não são os objetos presentes no mundo físico que permeiam o raciocínio, mas a maneira de organizá-los, categorizá-los ou mesmo de entender sua estrutura em relação a si e ao ambiente, formando com tais característica, a engenharia do pensamento humano. A verdade é que todos os povos, com todos seus feitos intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento da humanidade, não necessariamente possuíam uma tradição escrita. Se é bem verdade que todos os povos, indistintamente, têm ou tiveram uma tradição oral, isso não torna a oralidade mais ou menos importante ou mais ou menos prestigiosa que a escrita como defende Marcuschi (2001, p.17): Não obstante isso, sob o ponto de vista central da realidade humana, seria possível definir o homem como um ser que fala e não como um ser que escreve. Entretanto, isto não significa que a oralidade seja superior à escrita, nem traduz a convicção, hoje tão generalizada quanto equivocada, de que a escrita é derivada e a fala primária. Entretanto, o que ocorre, hoje, é que a escrita em nossa sociedade passou a ser um bem social indispensável para viver e enfrentar o dia a dia, sendo vista como essencial à própria sobrevivência do mundo, principalmente nos centros urbanos, não por virtudes que lhe são iminentes, mas pela forma como se impôs nas sociedades modernas e impregnou as culturas. Sua prática e avaliação social a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar educação, status e poder. Em sua dissertação, a professora Lucélia Nobre (2011, p. 3) nos remete a gênese dessa imprecisão: 25 Com a invenção do alfabeto pelos fenícios e a evolução da escrita através dos tempos, acabou-se por dar mais importância à escrita do que à fala, pois a escrita tornou-se sinônimo de poder e conquista das grandes nações que impunham ao povo conquistado sua língua e cultura, proibindo-os de se comunicar em sua língua materna. Por isso devemos ser cuidadosos com a supervalorização da escrita, pois esse ato pode levar a uma posição de supremacia das culturas escritas e dos grupos que dominam a escrita dentro de uma sociedade desigualmente desenvolvida, gerando uma separação entre as culturas “civilizadas” e “primitivas” e o respectivo domínio ideológico, cultural, social e político de uma classe letrada sobre uma classe iletrada. Essa teoria concorda com a proposta em relação à linguagem do sociólogo francês Pierre Bourdieu (2008, p.34): A linguagem não é usada somente para veicular informações, isto é, a função referencial denotativa da linguagem não é senão uma entre outras; entre estas ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive. As pessoas falam para serem “ouvidas”, às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma influência no ambiente em que realizam os atos linguísticos. O poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulado pelo falante e concentrá-la num ato linguístico. Isso é o que ocorre na maioria das sociedadesmodernas, o uso da linguagem como meio de segregação, segmentação de discursos, diferenciação de criação de identidade com o fim de promover a exclusão e o domínio. Essa relação entre poder e linguagem é que determina o modo de uso da língua que será valorizado. Esse subterfúgio ideológico materializa-se de forma plena na sociedade a partir do pensamento linguístico grego que apontou o caminho da elaboração ideológica de legitimação6 de uma variedade linguística de prestígio. Desde o legislador platônico que impõe os nomes apropriados dos objetos, até chegar à tradição gramatical que foi estruturada na época alexandrina, a elaboração da ideologia e da reflexão relativas à linguagem como forma de dominação foi constante. As elites e os impérios, com o passar do tempo, aperfeiçoaram-se em usar as “armas linguísticas” para manterem afastados das suas redomas sociais as classes mais populares e, por meio da linguagem, exercerem domínio sobre elas. O Estado e o poder são apresentados como entidades superiores e “neutras”, também o código 6 “A legitimação é o processo de dar idoneidade ou dignidade a uma ordem de natureza política, para que seja reconhecida e aceita.” (HABERNAS, 1976, p.14). 26 aceito “oficialmente” pelo poder é apontado como neutro e superior, e todos os cidadãos têm de produzi-lo e entendê-lo nas relações com o poder, caso contrário são automaticamente excluídos de funções sociais que se ligam ao Estado. Atualmente, a escrita tem sido a arma mais letal neste sentido. A pessoa que não domina esse recurso está automaticamente excluída do mercado formal de trabalho. Assim também como de qualquer cargo político ou público, pois, em ambos os casos, a condição mínima para o ingresso é ser alfabetizado. Por mais irrisório que pareça, até mesmo o direito de operar um veículo automotor é cerceado para quem não dispõe desse mecanismo linguístico. Devido a estes fatos, uma grande camada popular é excluída e marginalizada, enquanto outra domina de maneira tenaz todas as brechas deixadas na sociedade. Com o Estado e seu respectivo poder nas mãos dos letrados, cabe apenas à camada iletrada sujeitar-se de maneira passiva ao domínio intelectual e linguístico imposto e aceitar como certo tudo o que vem da camada dominadora. Vale ressaltar que, apesar de toda essa tentativa de imposição ideológica, não há nenhum outro mecanismo capaz de substituir a fala na vida do ser humano, pois é por meio dela que chegamos à racionalidade, além de possuir a função de identificação social de cada indivíduo na sociedade, no meio regional etc. A escrita, por sua vez, não consegue fazer essa caracterização de identidade dos indivíduos no meio social, já que ela é baseada em um padrão e não é estigmatizadora. Ou seja, a escrita, por possuir um modelo a ser seguido, requer que aqueles que a utilizam obedeçam às regras exigidas; sendo assim, ela não permite que traços peculiares de cada indivíduo fiquem evidentes no texto. Vale ressaltar aqui a apreciação feito por Maurizio Gnerre (1994, p.8): A associação entre uma determinada variedade linguística e a escrita é o resultado histórico indireto de oposições entre grupos sociais que eram e são “usuários” (não necessariamente falantes nativos) das diferentes variedades. Com a emergência política e econômica de grupos de determinada região a variedade por eles usada chega mais ou menos rapidamente a ser associada de modo estável com a escrita. Associar a uma variedade linguística a comunicação escrita implica iniciar um processo de “elaboração” da mesma. Escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: é uma operação que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos conteúdos referenciais. É oportuno memorar a distinção feita por Ginzburg (1987) em sua obra “O Queijo e os Vermes” na qual ele diz que a cultura popular é transmitida essencialmente 27 pela oralidade o que causa um grande problema aos historiadores, já que eles estão relegados à análise de textos escritos. Para ele, existe uma cultura produzida pelas classes populares e uma imposta às classes populares. Antes de entramos na questão da produção e transmissão cultural, é válido definirmos o que é a cultura. O antropólogo Edward B. Taylor (2010, p.11) a define como: "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade" (tradução nossa)7. A partir dessa definição, podemos afirmar que todo e qualquer grupo que esteja inserido em uma sociedade é capaz de contribuir para produção desse complexo, seja esse grupo letrado ou não, pois as crenças, a arte, a moral, a lei e os costumes e hábitos independem da linguagem gráfica para existirem. Por outro lado, não negamos que a escrita tem sido umas das grandes matérias primas de criação cultural e de sua divulgação, mas devemos salientar que foi por meio da oralidade que todo esse processo foi sustentado, transmitido e perpetuado até os dias de hoje. Portanto, o que Ginzburg (1987) quis dizer quando associou a cultura popular à oralidade é que pelo fato de a oralidade, em detrimento da escrita, conseguir caracterizar o indivíduo no meio social e não estigmatizar sua produção e transmissão, aquela foi escolhida instintivamente como meio de divulgação da cultura popular estando intrinsicamente ligado a ela. Outro aspecto com o qual concordamos com o historiador italiano é o da imposição cultural por parte de uma “elite intelectual” às classes populares. Um grupo seleto que tem o domínio do estado e que exerce influência sobre as camadas mais altas da sociedade ditam os padrões culturais a serem seguidos, desclassificando todas as produções que fogem às suas regras. Hegemonicamente, a tendência a ser seguida será encontrada quase sempre ligada à escrita e quase nunca à oralidade. Vemos nisso uma tática ideológica de valorização do que a elite é capaz de criar, ou seja, “o escrito”, frente àquilo a que a classe popular pode criar, ou seja, “o oral”. Destarte, podemos afirmar que há uma dualidade na cultura: a produzida pelas classes populares e uma imposta às classes dominantes. Esta sempre será prestigiada e supervalorizada. Aquela, porém, será 7 “All that complex that includes knowledge, beliefs, art, morality, law, customs and all other habits and capacities acquired by man as a member of society.” Edward B. Taylor (2010, p.11) 28 alvo de descrédito e marginalização. Assim como observado por Gnerre (1994, p.6) em sua obra sobre os contrastes entre a linguagem, a escrita e o poder: “Uma variedade linguística ‘vale’ o que valem na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo de poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais.” Dentro desse panorama podemos ficar cônscios do real motivo da supervalorização da escrita e do porquê a ela foram atribuídos valores cognitivos intrínsecos no uso da língua e não a viram apenas como uma das diversas práticas sociais. Devido a isso, a oralidade e a escrita, há muito tempo, carregam a característica de serem duas atividades muitas vezes opostas, considerando-se a supremacia da escrita em detrimento da oralidade. Todavia, é inegável que tanto por meio da fala como da escrita é possível construirmos textos coesos e coerentes, cada um com suas próprias características de usos e práticas, embora façam parte do mesmo sistema linguístico. E é por isso que fala e escrita talvez não possam constituir uma dicotomia, já que podemos observar características que antes eram atribuídas a apenas uma das modalidades e hoje podemos encontrar em ambas. Dessa forma, não podemos simplesmente fazer distinções dicotômicas, pois fala e escrita constituem processos usados nas atividades comunicativas, e não simplesmente produtos da língua. O que pode aconteceré observarmos as variedades linguísticas que são diferentes e termos consciência de que tanto na fala quanto na escrita poucas dessas variedades chegam a ser consideradas como padrão, ou seja, corretas. Sendo assim, tanto a variedade escrita quanto a falada apresentam: língua padrão/variedades não padrão; língua culta/língua coloquial; norma padrão/normas não padrão. Isso ocorre porque a língua em si é heterogênea e repleta de variação, e não um sistema único e abstrato. Portanto, a supremacia cognitiva da escrita não passa de um mito e se deve a questões políticas e sociais de prestígio, e que tanto a fala quanto a escrita são imprescindíveis na sociedade atual, e tanto uma quanto a outra não são sistemas cognitivos paralelos e sim modos complementares de ver e compreender o mundo, em que as duas modalidades devem ser examinadas na perspectiva de sua organização textual-discursiva e em que há entre fala e escrita graus ou posições intermediárias de variação. 29 Por conseguinte, no momento em que observarmos tanto a fala como a escrita como práticas sociais e culturais de interação e comunicação e admitimos que por meio de ambas é possível construirmos textos coesos e coerentes, cada uma com suas próprias características de usos e práticas, levando em consideração o modo como seus usos são distribuídos na vida cotidiana dos usuários da língua, essas diferenças caem e passamos a recusar qualquer supremacia imposta e começamos a valorizar os dois modos de uso da língua. 30 3 AS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE A FALA E A ESCRITA VISTA SOBRE SUAS PRINCIPAIS PERSPECTIVAS Houve uma época, mais precisamente até a metade do século XX, em que não se tinha um interesse maior por compreender as relações entre a fala e a escrita, pois as ideias estabelecidas por Saussure, Bloomfield e ainda hoje por Chomsky não oferecia a menor sensibilidade para as questões envolvidas nos usos sociais da língua, limitando-se apenas à observação sistemática do código, ignorando que a língua e seus usos estão intrinsicamente ligados à sociedade. Porém, a partir do final dos anos 50, particularmente entre sociólogos, antropólogos e psicólogos sociais, surgiu certo interesse em estudar essa relação. Chegaram a uma posição muito comum, que foi prontamente assumida pelos linguistas, de que a invenção da escrita trazia uma “grande divisão” a ponto de ter introduzido uma nova forma de conhecimento e ampliação da capacidade cognitiva (em especial a escrita alfabética). Era a supremacia da escrita e sua condição de tecnologia autônoma, percebida como diferença da oralidade do ponto de vista do sistema, da cognição e dos usos. Ciente do panorama da época e tendo como superado o mito da supremacia da escrita frente à fala, passemos agora a analisar de maneira mais específica as principais perspectivas que colaboraram para os estudos dessa relação e que compreendem o cerne do nosso estudo. 3.1 A PERSPECTIVA IMANENTISTA Dentro desses pensamentos retrógrados de análise, surge a primeira perspectiva que estudou a relação entre a fala e a escrita e que foi nomeada de perspectiva imanentista. Essa perspectiva está ligada à das dicotomias estritas. A perspectiva imanentista foi a primeira e a de maior tradição entre os linguistas. Ela se dedica, como mencionado anteriormente, à análise das relações entre a fala e a escrita no âmbito da perspectiva dicotômica, com ênfase no código e permanência na imanência do fato linguístico. Essa posição, na sua forma mais 31 arbitrária e restritiva, tal como vista pelos gramáticos, deu origem ao prescritivismo8 de uma única norma linguística tida como padrão e que é expressa na denominada norma culta. Essa visão divide as dicotomias da língua falada e da língua escrita, atribuindo-lhes características típicas, como as que se seguem na tabela abaixo: Tabela 1: Perspectiva Imanentista. FALA VERSUS ESCRITA contextualizada x descontextualizada dependente x autônoma implícita x explícita redundante x condensada não planejada x planejada imprecisa x precisa não normatizada x normatizada fragmentária x completa Fonte: Adaptado de Marcuschi (2001, p.27) Esta dicotomia é fruto de uma observação baseada nas condições empíricas de uso da língua e não de características dos textos produzidos. Não há preocupação alguma com os usos discursivos nem com a produção textual. A partir dessa compreensão dá-se origem à grande parte das gramáticas pedagógicas que se acham em uso nos manuais escolares nos dias atuais e que sugere dicotomias estanques com separação entre forma e conteúdo, separação entre língua e uso e toma a língua como sistemas de regras, o que conduz a aquisição de uma língua ao ensino de regras gramaticais. Quanto a essa posição, Marcuschi (2001, p.28) afirma que Esta visão, de caráter estritamente formal, embora dê bons resultados na descrição estritamente empírica, manifesta enorme insensibilidade para os fenômenos dialógicos e discursivos. Sua tendência é restritiva e a própria noção de regra por ela proposta é demasiado rígida. Uma de suas conclusões mais conhecidas é a que postula para a fala uma menor complexidade e uma maior complexidade para a escrita. De resto, trata-se de uma alternativa que conduz a seleções aparentemente fundadas em algum valor intrínseco aos 8 Na linguística, prescritivismo ou normativismo é um conceito que descreve a imposição de normas arbitrárias à língua, frequentemente contrárias ao uso corrente desta. 32 signos linguísticos, mas, na realidade, as decisões fundam-se em critérios e mecanismos socioculturais não explícitos. Podemos avaliar, a partir dessas características, que essa perspectiva erroneamente considera a fala como um lugar do erro e do caos gramatical, tendo a escrita como o lugar da ordem e do correto uso da língua. Portanto, devemos rejeitar esse tipo de visão que nos conduz para o caminho da discriminação e do preconceito linguístico. 3.2 A PERSPECTIVA CULTURALISTA A segunda perspectiva a ser apresentada é a de caráter culturalista. Essa tendência observa muito mais a natureza das práticas da oralidade versus escrita, faz análises de cunho cognitivo, antropológico, psicológico ou social e desenvolve uma fenomenologia da escrita e seus efeitos na forma e produção do conhecimento. Vejamos na tabela abaixo algumas características desse movimento: Tabela 2: Perspectiva culturalista CULTURA ORAL VERSUS CULTURA LETRADA pensamento concreto x pensamento abstrato raciocínio prático x raciocínio lógico atividade artesanal x atividade tecnológica cultivo da tradição x inovação constante ritualismo x analiticidade Fonte: Adaptado de Marcushi (2001, p.59) Nota-se, a partir de suas peculiaridades, que essa visão não serve para tratar relações linguísticas, já que vê a questão em sua estrutura macro (visão global) e com tendência a uma análise da formação da mentalidade dentro das atividades psicológicas, socioeconômicas e culturais de um modo amplo. Para os representantes desta perspectiva, a escrita representa um avanço na capacidade cognitiva dos indivíduos e, como tal, uma evolução nos processos relativos ao pensamento em geral que perpassam entre a fala e a escrita. 33 Esta perspectiva, por conseguinte, remete-nos ao capítulo dois deste trabalho e ressuscita o mito da supremacia da escrita frente à fala. Nessa visão há uma valorização exacerbada da modalidade escrita, sobretudo a escrita alfabética, levando a uma posição de supremacia das culturas que utilizam a escrita e dos grupos que a dominam, criando na sociedade uma segregação que compreendem dois grupos: “os civilizados” ou os que dominam a escrita e sua respectiva cultura e “os primitivos” que não dominam a escrita e fazem uso da oralidade e de sua respectiva cultura. Como resultado dessa ideologia nociva,temos uma dominação da camada letrada sobre a camada iletrada. Sobre isso Marcuschi (2001, p.30-31) discorre que Essa forma globalizante de ver a escrita ressente-se da desatenção para o fato de que não existem “sociedades letradas”, mas sim grupos letrados, elites que detêm o poder social, já que as sociedades não são fenômenos homogêneos, globais, mas apresentam diferenças internas. Não é necessária uma análise minuciosa; basta dar uma olhada em nosso entorno para constatar que a “sociedade brasileira” não é homogênea em relação ao letramento. Por outro lado, várias das postulações acima não passam de crenças já desmontadas pela investigação contemporânea na área. Quanto a essa tendência, cremos que já a superamos no capítulo dois deste trabalho, mas seria razoável fazer uma observação equilibrada neste momento e expor de maneira lúcida nosso ponto de vista para que não seja deixada nenhuma brecha para o extremismo. Admitimos de forma contundente que a escrita é um valioso recurso em nossa sociedade, admitimos também que a escrita permitiu tornar a língua um objeto de estudo sistemático. Com a escrita, criaram-se novas formas de expressão, deu-se surgimento às formas literárias e surgiu a institucionalização rigorosa do ensino formal da língua como objetivo básico de toda formação individual para enfrentar as demandas das sociedades letradas. E o que falar da comunicação nos tempos atuais, a fusão da escrita com a tecnologia trouxe imensas vantagens e avanços. Todavia, seria forçoso admitir que a escrita possui algum valor intrínseco absoluto e remetê-la a grupos cognitivamente mais evoluídos ou a um único meio possível de produção e transmissão cultural seria o ápice da ignorância. Neste ponto seria mais sensato admitirmos a suprema importância tanto da modalidade oral como da modalidade escrita da língua, sem inferirmos posições de superioridade ou inferioridade de uma frente a outra. 34 3.3 A PERSPECTIVA VARIACIONISTA A terceira tendência a ser apresentada tem caráter mais intermediário e se isenta da maioria dos problemas das perspectivas outrora apontadas. Essa tendência trata do papel da escrita e da fala sob o ponto de vista dos processos educacionais, fazendo propostas específicas a respeito do tratamento da variação entre padrão e não padrão linguístico nos contextos de ensino formal. Neste modelo se situam os padrões teóricos que se preocupam com o denominado currículo bidialetal. São estudos que se dedicam a detectar as variações de usos da língua sob uma forma dialetal e socioletal. Essa tendência é uma variante da primeira visão, todavia, mais sensível para os conhecimentos dos indivíduos que enfrentam o ensino formal. Aqui não se fazem distinções dicotômicas ou caracterizações estanques, mas procura-se verificar as regularidades e as variações do uso da língua, tendo a mesma uma observação com rigor metodológico mais adequado que em ambos os casos anteriores, como mostra a tabela abaixo: Tabela 3: Perspectiva variacionista FALA E ESCRITA APRESENTAM língua padrão variedade não padrão língua culta língua coloquial norma padrão normas não padrão Fonte: Adaptado de Marcuschi (2001, p.31) O que vale ressaltar nessa teoria é o fato de ela não fazer distinção entre a fala e a escrita, mas sim uma observação de variedades linguísticas distintas. Ela observa que todas as variedades submetem-se a algum tipo de norma, mas como nem todas as normas podem ser padrão, uma ou outra delas será tida como norma padrão, nesse caso, a decisão será menos linguística e mais ideológica. Apesar de essa posição sofrer críticas de alguns sociolinguistas como Trudgill (1975) e Labov (1972), que apontam para uma impossibilidade de um desempenho bidialetal, o professor Marcuschi (2001, p.32) sugere que “o que se pode fazer é imaginar a possibilidade de um domínio do dialeto padrão na atividade da escrita e continuar no dialeto não padrão no desempenho oral.” E continua citando: 35 Stubbs (1986) também sugere que poderíamos ver as relações entre fala e escrita, em contextos educacionais, como um problema de variação linguística. Na verdade, trata-se de um aspecto amplamente admitido hoje, já que as línguas não são homogêneas nem uniformes sob o ponto de vista de seu uso. E as relações fala e escrita dizem respeito a questão de uso da língua. O interessante nesta perspectiva é que a variação se daria tanto na fala como na escrita, o que evitaria o equívoco de identificar a língua escrita com a padronização da língua, ou seja, impediria identificar a escrita como equivalente à língua padrão, como fazem os autores situados na perspectiva da dicotomia estrita. Luiz Antônio Marcuschi (2001, p.32) finaliza então sua avaliação sobre essa perspectiva da seguinte forma: Minha posição é a de que a fala e escrita não são propriamente dois dialetos, mas sim duas modalidades de uso da língua, de maneira que o aluno, ao dominar a escrita, se torna bimodal. Fluente em dois modos de uso e não simplesmente em dois dialetos. Inteirados das características mais equilibras dessa tendência e conhecendo a posição de alguns especialistas sobre ela, passemos agora a analisar mais uma tendência que, diferentemente dessa, focará mais a questão dialógica da linguagem na relação da oralidade com a escrita. A relação que veremos a seguir é denominada de visão sociointeracional. 3.4 A PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONISTA A perspectiva que se segue, a rigor, não forma um conjunto sistemático e coerente, mas representa uma série de postulados um tanto desconexos e difusos. Essa teoria vai tratar, como dito a pouco, das relações entre a fala e escrita dentro da perspectiva dialógica. Seus fundamentos centrais baseiam-se na percepção traçada a seguir: Tabela 4: Perspectiva sociointeracionista. FALA E ESCRITA APRESENTAM dialogicidade usos estratégicos funções interacionais envolvimento 36 negociação situacionalidade coerência dinamicidade Fonte: Adaptado de Marcushi (2001, p.33) A vantagem que esse modelo apresenta é de perceber com maior clareza a língua como fenômeno dinâmico e interativo, voltado para as atividades dialógicas que marcam as características mais evidentes da fala, como as estratégias de formulação em tempo real. Essa tendência vinculada à análise do discurso e unida à investigação etnográfica, na visão de alguns linguistas poderia ser uma das melhores saídas para observação do letramento e da oralidade como práticas sociais. Essa tendência tem grande sensibilidade para as estratégias de organização textual-discursiva e preocupa-se com os processos de produção de sentido tomando- -os sempre como situados em contextos sociais e historicamente marcados por atividades de negociação ou por processos inferenciais, não tomando as categorias linguísticas como dadas a priori, mas como construídas interativamente e sensíveis aos fatos culturais. Preocupa-se com a análise dos gêneros textuais e seus usos em sociedade e tem muita sensibilidade para fenômenos cognitivos e processos de textualização na oralidade e na escrita, que permitem a produção de coerência como uma atividade do leitor e do ouvinte sobre o texto recebido. Marcushi (2001, p.33) analisa desta forma essa perspectiva: Nesta visão interacionista cabem análises de grande relevância que se dedicam a perceber as diversidades das formas textuais produzidas em co- -autoria (conversações) e formas textuais monoautoria (monólogos), que até certo ponto determinam as preferências básicas numa das perspectivas da relação fala e escrita. Além disso, tem-se, aqui, a possibilidade de tratar fenômenos de compreensão na interação facea face e na interação entre leitor e texto escrito, de maneira a detectar especificidades na própria atividade de construção dos sentidos. Como se observa, esta perspectiva orienta-se numa linha discursiva e interpretativa. Todavia, mesmo que livre de problemas ideológicos e preconceituoso como as perspectivas vistas anteriormente, essa tendência carece de um potencial explicativo e descritivo dos fenômenos sintáticos e fonológicos da língua, bem como das estratégias de produção e compreensão textual. Essa tendência limita-se muito ao campo do discurso, ignorando outros aspectos da língua. Entende-se que, nesse 37 caso, uma fusão com visão variacionista acrescida de certas análises linguísticas fecharia as lacunas deixadas por essa tendência. Como observa Marcuschi (2001, 33), Por isso, a proposta geral se concebida na fusão com a visão variacionista e com postulados da análise da conversação etnográfica aliados à linguística de texto, poderia dar resultados mais seguros e com maior adequação empírica e teórica. Talvez seja esse o caminho mais seguro e sensato no tratamento das correlações entre formas linguísticas (dimensões linguísticas), contextualidade (dimensão funcional), interação (dimensão interpessoal) e cognição no tratamento das semelhanças e diferenças entre fala e escrita nas atividades de formulação textual-discursiva. Até aqui, tivemos a oportunidade de conhecer quatro perspectivas que tratam da relação entre o oral e o escrito. A partir dessa investigação pode-se perceber que as tendências que analisam essa relação não são nem um pouco consensual, pelo contrário, divergem em vários aspectos, principalmente quanto ao cerne da análise. Enquanto uma visão foca na esfera estrutural, sem reconhecer a dualidade constitutiva da linguagem, isto é, do seu caráter ao mesmo tempo formal e atravessado por entradas subjetivas e sociais, outra visão foca na questão cultural da linguagem, tem uma leitura macro da relação oral/escrito, valorizando as questões cognitivas e abstratas que invariavelmente nos conduzem a um processo segregacionista. A tendência que segue à última, apesar de não fazer distinções dicotômicas ou caracterizações estanques, prende-se muito nas questões linguísticas, deixando de lado o caráter ideológico da língua. E a última perspectiva apresentada é capaz de perceber com maior clareza a língua como fenômeno dinâmico e interativo, estando mais voltado para as atividades dialógicas. Porém, carece de um potencial explicativo e descritivo dos fenômenos sintáticos e fonológicos da língua, bem como das estratégias de produção e compreensão textual. Como visto até agora, não foi encontrada uma perspectiva que preenche todas as lacunas para uma análise precisa da relação entre a fala e a escrita. Porém, no começo dos anos 80, Tannen (1982a), juntamente com outros linguistas, lança uma perspectiva que promete fechar as brechas deixadas, trazendo um olhar revolucionário sobre essa análise. Essa perspectiva foi nomeada de visão do continuum e será apresentada no tópico que se segue. 38 3.5 A PERSPECTIVA DO CONTINUUM A visão dicotômica e autônoma da fala e da escrita começa a ser ameaçada a partir do começo dos anos 80. Estudos nos EUA e na Inglaterra começam a sugerir uma relação contínua entre letramento e oralidade, evitando a noção de autonomia e supremacia da escrita. Essa visão sugere que a fala e a escrita mantêm relações muito mais próximas do que se admitia até então. Surge, então, uma perspectiva que permite observar a as duas modalidades mais em suas relações de semelhança do que de diferença, numa certa mistura de gêneros e estilos, evitando as dicotomias em sentido estrito. No Brasil, o grande defensor dessa tese, e em quem nos baseamos, é o professor Luiz Antônio Marcuschi (2001) que sinaliza o processo das relações entre a fala e a escrita como processos interativos que se encaixam nas práticas socias e que estão mais se complementando do que se diferenciando nessa interação. É assim que discorre o professor Marcushi (2001, p.37) sobre a presente tendência: A hipótese que defendemos supões que: as diferenças entre fala e escrita se dão dentro de um continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos. Em consequência, temos a ver com correlações em vários planos, surgindo daí um conjunto de variações e não uma simples variação linear. Uma das características dessa visão é a impossibilidade de situar a oralidade e a escrita em sistemas linguísticos diversos, de modo que ambas fazem parte do mesmo sistema da língua. São, portanto, realizações de uma gramática única, mas que do ponto de vista semiológicos podem ter peculiaridades com diferenças acentuadas, de modo que a escrita não representa a fala. Além disso, os textos orais apresentam uma realização multissistêmica com palavras, gestos, mímicas, prosódia dentre outros. Da mesma forma, os textos escritos também não se limitam ao alfabeto, pois apresentam fotos, ideogramas, planejamento e todo tipo de grafismos. Portanto, fica claro que não se postula aqui uma simetria de representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das articulações estritamente linguísticas. Sobre este aspecto, Marcushi (2001, p.43) assim discorre Em suma, partindo da noção de língua e funcionamento da língua tal como concebido aqui, surge, como hipótese forte, a suposição de que as diferenças entre fala e escrita podem ser frutiferamente vistas e analisadas na 39 perspectiva do uso e não do sistema. E, neste caso, a determinação da relação fala-escrita torna-se mais congruente levando-se em consideração não o código, mas os usos do código. Central, neste caso, é a eliminação da dicotomia estrita e sugestão de uma diferenciação gradual ou escalar. Dentro desse modelo, podemos observar que a língua não é analisada como um sistema de regras abstrato, regular e homogêneo, ao contrário, a língua pressupõe um fenômeno heterogêneo com múltiplas formas de manifestação, sendo variável, dinâmica e suscetível a mudanças, sejam elas históricas ou sociais. A língua aqui é fruto de práticas sociais e históricas que não pode ser determinada sob o ponto de vista semântico e sintático. Desse modo, indeterminação e heterogeneidade encontram-se na base dessa perspectiva. O gráfico apresentado a seguir nos ajudará a entender um pouco mais dessa relação. Gráfico 1: Representação do contínuo dos gêneros textuais na fala e na escrita. Fonte: Marcuschi (2001, p.41) 40 Como vemos, no gráfico anterior, a fala e a escrita apresentam-se num continuum que abrange vários gêneros textuais. Há uns que se aproximam mais da fala, outros, mais amplos no contexto, estão mais próximos da escrita. Não há padrão fechado. Os gêneros oscilam em manifestações orais ou escritas e seu maior ou menor planejamento da linguagem dependerá das intenções do falante. É lógico que há situações nas práticas sociais que exigem a presença de um determinado gênero textual, mas há casos em que as proximidades entre fala e escrita são tão estreitas que parece haver uma mescla, ou quase uma fusão entre ambas tanto nas estratégias textuais como nos contextos de realização. Há outros, entretanto, em que a distância é marcada, mas não a ponto de se ter dois sistemas linguísticos. É interessante observar que uma carta pessoal escrita num estilo descontraído pode ser comparada a uma narrativa oral espontânea, enquanto se constata muita diferença entre uma narrativa oral e um texto acadêmico escrito. Assim, em uma conferência científica escrita, o autor preocupa-se com a elaboração de um texto consistente e defensável, o qual pode se assemelhar mais a um texto escrito do que a uma conversação espontânea. Como lembra Marcuschi (2001, p.42), O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlacionaos textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determina o contínuo das características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos. Até aqui, pôde-se observar que a presente perspectiva é a mais adequada para uma análise das relações entre a fala e a escrita, tendo em vista que nela há uma fuga das observações dicotômicas, estanques e segregacionistas como as vistas nas perspectivas anteriores. Mesmo assim, essa visão não pôde evitar as críticas que começaram a se acentuar no começo da década de 90, principalmente na pessoa de Brain Street (1995). O teórico inglês observou que, apesar de muitos linguistas postularem a ideia do continuum como a mais adequada, essa visão não passa de uma utopia e é mais retórica do que real. Para ele, as posições que propõem a noção do continuum não deixaram de ser tributárias dos pressupostos teóricos e analíticos 41 das teorias que sustentam a “grande divisão”9. Quanto a isso, Street (1995, p.160) defende que A persistência implícita de postulados que os próprios praticantes pretendem com frequência explicitamente rejeitar pode ser explanada com referência às suposições metodológicas e teóricas que subjazem ao seu trabalho: particularmente uma definição estreita de contexto social, relacionada à distinção, na linguística, entre a pragmática e semântica; a reificação do letramento em si mesmo às expensas do reconhecimento de sua localização em estrutura de poder ideológico, portanto relacionada a suposições linguísticas gerais sobre “neutralidade” de seu objeto de estudo; e a restrição da “significação”, dentro da linguística tradicional, no nível da sintaxe. Na visão de Street (1995), entre os mitos da relação fala-escrita contidos nas teses dicotômicas estritas, ainda persistiam na visão do continuum as ideias de que a escrita codifica lexical e sintaticamente os conteúdos, enquanto a fala usa os elementos paralinguísticos como centrais. Ele acredita também que permanece a ideia de que o texto escrito é mais coesivo e coerente do que o oral, sendo a fala fragmentária e sem conexão ou com uma conexão marcadamente interacional. Além da noção de que a escrita conduz os sentidos diretamente a partir da página impressa, sendo que a fala se serve do contexto e das condições da relação face a face. Para defender sua crítica, Street (1995) nos remete à obra publicada por Tannen (1982b) na qual, apesar de sugerir uma fuga das dicotomias estritas, estabelecendo uma visão do continuum, ela se contradiz ao defender a fala como contextualizada e a escrita com descontextualizada, afirmando que a fala é voltada para o envolvimento enquanto a escrita, para o conteúdo, introduzindo, assim, de maneira sutil, a teoria da grande divisão. Além de tudo, na referida obra de Tannen (1982b), a defensora da perspectiva do continuum acaba por usar termos que nos remetem à visão dicotômica como “literace-like” (“como na escrita”) referindo-se à explicitude e conectividade e “oral-like” (“como na fala”) referindo-se à implicitude, interrupção e correção. Esses termos denotam uma distinção entre as modalidades. Enfim, para Street (1995), pelo fato de os defensores do contínuo negarem que a escrita tenha elementos paralinguísticos e não verbais e pela noção estreita que têm de contexto social, eles acabam por sucumbir ao paradigma da grande divisão. 9 Grupo de teorias que defendem uma divisão entre a modalidade oral e escrita tendo como base observações dicotômicas e estanques, sugerindo um afastamento das duas modalidades. As dicotomias estritas se encaixam nesse grupo. 42 Admitindo-se, no entanto, uma visão mais larga de contexto em que etnografia e análise do discurso se recobrem e admitindo a face ideológica da linguagem como relação de poder, além de tomar a língua como essencialmente social. Portanto, para o linguista inglês, a visão da relação da fala e da escrita pelo continuum também parece ser inadequada tendo em vista que as atividades de letramento e oralidade diferem entre si de maneira muito complexa e de forma multidimensional, seja de uma comunidade para outra ou de uma modalidade para outra , o que impede que se estabeleça uma relação de continuidade. 43 4 UM NOVO OLHAR SOBRE ESSA RELAÇÃO A partir da análise das principais perspectivas que estudam a relação entre a fala e a escrita, seria possível acatarmos a tese do continuum postulada na década de 80 por Tannen (1982a) e por seus respectivos sucessores como a mais adequada para observarmos essa relação. Entretanto, Tannen (1982a) e seus seguidores incorreram em um erro crasso, uma vez que cometeram o desvio que mais criticavam, de maneira inconsciente, praticaram a dicotomia estrita. Ao sugerirem a ideia de que a escrita codifica lexical e sintaticamente os conteúdos, enquanto a fala usa os elementos paralinguísticos como centrais; que o texto escrito é mais coerente do que o oral e a fala fragmentária e sem conexão ou com uma conexão marcadamente interacional; além da ideia de que a escrita conduz os sentidos diretamente a partir da página impressa e a fala se serve do contexto e das condições da relação face a face, os defensores do continuum tornaram os seus discursos mais retóricos do que reais. In speaking, everything that is said must be said in some way: at some pitch, in some tone of voice, at some rate of speed, with some expression or lack of expression in the voice and on the face. All these nonverbal and paralinguistic features reveal the speaker´s attitude toward the message and establish cohesion -- that is, show relationships among ideas, highlight relative importance, foreground and background information, and so on. Just as Bateson (1972) observes that in a social setting one cannot not communicate (the act of keeping silent is a communication within the frame of interaction), just so, one cannot speak without showing one´s attitude toward the message and the speech activity. In contrast, in writing, the features of nonverbal and paralinguistic channels are not available. A person may wrinkle his or her face up until it cracks while he or she writes, but this will not show up on the written page. He or she may yell or whisper or sing while composing sentences, but the words as they fall on the page will not reflect this. Therefore, in writing, the relationships between ideas and writer´s attitude toward them must be lexicalized. This can be done by stating outright (one thinks of the contrast between laughing while saying something, or writing "humorously" by winking while speaking, or writing "I don´t mean this literally"), by careful choice of words with just the rigt connotation, by complex syntactic construtions and transitional phrases, and so on. Thus, a number of linguistics have found that in spoken narrative (and I think the genre narrative is important), most ideas are strung together with no conjunctions or with the minimal conjuction "and" (Chafe, 1982; Kroll, 1977; Ochs, 1979). In contrast, in written narrative, conjuctions are chosen which show the relationship between ideas ("so", "because"), and subordinate construction are used which do some of the work of foregrounding and bachgroundind which would be done paralingistically in speaking. Thus, we have the second hypothesis: that typically spoken discourse relies on paralinguistic and nonverbal channels, 44 whereas written discourse relies on lexicalization for the establishment of cohesion. (TANNEN, 1982a, p.41)10 A partir do momento em que a defensora da perspectiva do continuum postula a tese de que a escrita é descontextualizada e a fala contextualizada; que a escrita é voltada para o conteúdo e a fala
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