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1 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 1. Entender anemia e descrever os principais parâmetros do hemograma no seu diagnóstico. Anemia é definida como a diminuição da concentração de hemoglobina do sangue abaixo dos valores de referência para a idade e o sexo. Frequentemente é acompanhado de queda do hematócrito e da contagem de hemácias no sangue. É importante ressaltar que a anemia não é uma doença, e sim um sinal de que existe doença. A concentração de hemoglobina considerada normal é entre 12-15g/dl nas mulheres e entre 13,5-17 g/dl nos homens. Os valores normais do hematócrito são: 36- 44% nas mulheres e 39-50% nos homens. De uma forma geral, o hematócrito está em torno de três vezes o valor da hemoglobina. A contagem de hemácias normalmente varia entre 3,8-5 milhões/mm3 nas mulheres e 4,3- 5,6 milhões/mm3 nos homens Obs.: Nas crianças de um a dois anos, de ambos os sexos, o limite inferior de hemoglobina sérica é de 9,5 g/dl (anemia fisiológica da infância). O diagnóstico de anemia pode ser feita por qualquer um dos 3 componentes da série vermelha: hemoglobina (Hb), Hematócrito (Ht) ou número de glóbulos vermelhos. As causas da anemia podem ser: 1. Por deficientes de vários nutrientes (Anemias carências como ferropriva e megaloblástica – como ferro, zinco, vitamina B12 e proteínas). 2. Por ativação imune aguda ou crônica (Anemias Inflamatórias ou de Doenças crônicas); 3. Por defeito quantitativo na produção de cadeias de globina (Talassemias). 4. Por falha na ativação do grupo Heme (Anemia Sideroblástica – hereditária ou adquirida); 5. Por substituição do tecido hematopoiético por gordura (Anemia Aplásica); 6. Por sangramento agudo (Anemias hemolíticas); 7. Por desregulação endócrina (anemia das doenças endócrinas) 8. Por defeito na síntese de DNA (anemia megalobástica). A hemoglobina e o hematócrito dependem do volume plasmático, assim, em gravidez e esplenomegalia em que há aumento do volume, esses podem se diluir caracterizando uma falsa anemia. HEMATOPOESE A hematopoese é o processo fisiológico responsável pela produção de células presentes no sangue periférico. Essas células são geradas a partir de progenitores pluripotentes na medula óssea: as células- tronco (stem cells) hematopoiéticas. Assim, a medula óssea é o órgão responsável pela hematopoese em um ser humano adulto. Na vida intra-uterina, a hematopoese ocorre sequencialmente no saco vitelínico, Problema 05 – Anemia? Mas eu me alimento tão bem 2 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 na região mesodérmica do feto, na placenta, no fígado, no baço e na medula óssea. A proliferação e a sobrevida das células hematopoiéticas são governadas por dois mecanismos associados: o padrão de expressão genética da célula e o equilíbrio entre sinais externos do meio ambiente. ERITROPOESE Já a eritropoese é a produção de eritrócitos a partir de células progenitoras. Após o período embrionário e fetal, a eritropoese pode ocorrer fora da medula óssea em duas circunstancias: resposta a um estimulo proliferativo (como nas anemias hemolíticas) ou como parte de um quadro de proliferação neoplásica do tecido mieloide. Assim, os níveis elevados de eritropoietina podem levar a substituição da medula gordurosa por medula ativa, inclusive nos ossos longos. O proeritroblasto é o tipo celular mais imaturo. Logo depois temos os eritroblastos que possuem um acumulo de RNAm no seu citoplasma, dando a ele uma característica basófila, sendo então chamados de eritroblastos basófilos. À medida que vai amadurecendo a hemoglobina vai sendo acumulada no interior da célula e nesse processo passam a ser chamados de eritroblastos policromáticos. Ao acumular hemoglobina suficiente para alterar a tonalidade do citoplasma para mais acidófila, transforma-se então em eritroblastos ortocromáticos. Essas células por sua vez, não apresentam mais capacidade de se dividir, perdendo o núcleo e dando origem aos reticulócitos. Esse processo vai depender da presença de receptores para duas substancias essenciais: a eritropoietina (EPO) e a transferina. Após 3 dias da formação do reticulócito, a medula libera-o na sua corrente sanguínea e após dois dias acaba perdendo o resto das organelas, transformando-se na hemácia. A determinação da porcentagem de reticulócitos no sangue periférico constitui um importante indicador da capacidade funcional da medula óssea diante da anemia. HEMOGLOBINA A hemoglobina tem a função primordial de carrear oxigênio para os diversos tecidos do organismo. A hemácia nada mais é do que um “pacote” de hemoglobina. A hemoglobina é uma macromolécula constituída por quatro cadeias polipeptídicas denominadas globinas, cada uma combinada a uma porção heme. O heme é uma molécula formada por quatro anéis aromáticos (protoporfirina) com um átomo de ferro no centro, no seu estado de íon ferroso (Fe+2), capaz de ligar o O2. Portanto, cada molécula de hemoglobina é capaz de ligar quatro moléculas de O2, pois contém quatro grupamentos heme. ADAPTAÇÕES FISIOLÓGICAS À ANEMIA Nosso organismo possui alguns mecanismos que amenizam a hipóxia tecidual decorrente da anemia. O primeiro deles seria o aumento do debito cardíaco, pois o maior fluxo sanguíneo conseguiria manter a oxigenação tecidual mesmo com menos conteúdo de O2. O segundo mecanismo seria o aumento da 2,3 DPG (glicose disfosfato) na hemácia, já que esse metabolito reduz a afinidade da hemoglobina pelo O2, facilitando assim, a extração do oxigênio pelos tecidos. 3 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 INTERPRETAÇÃO DO HEMOGRAMA 1. Concentração de hemoglobina: sua contagem é fundamental, pois é a partir dela que determinamos se um paciente apresenta anemia ou não. 2. Hematócrito: é uma razão entre o volume ocupado pelos eritrócitos e o volume ocupado pelo sangue capilar, ou seja, é a porcentagem de volume total do sangue que é composta por eritrócitos. Valores abaixo do valor de referência podem traduzir uma anemia ou uma hemodiluição, enquanto valores acima traduz uma policitemia ou desidratação. Ht: eritrócitos x VCM/10 ou HT:HBx3 3. Número de eritrócitos; é o número de hemácias encontradas por litro de sangue. 4. Volume Corpuscular Médio (VCM): é o volume médio do tamanho das hemácias que vai determinar a classificação das anemias em macro/normo/microcítica. 5. Hemoglobina Corpuscular Média (HCM): é a quantidade de hemoglobina dentro da hemácia. HMC = Hb x 10 / eritrócitos 6. Concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM): é a concentração média de hemoglobina em 100ml de eritrócitos. Ela vai traduzir a cor do eritrócito. Ajuda a classificar em hipo/normo/hipercrõmica. CHCM = Hb x 100/ Ht O CHCM difere do HCM pelo fato de que a concentração leva em conta o volume celular e o HCM apenas relaciona a hemoglobina total com o número de eritrócitos. 7.Índice de anisiocitose (RDW): serve para traduzir a variação de tamanho das hemácias. A elevação do RDW se dá quando há defeitos na maturação ou na fragmentação eritrocitária (anemias carenciais). Vários tipos de anemia podem elevar o RDW, porém uma causa comum de anemia cursa com este parâmetro caracteristicamente normal: beta-talassemia minor. 8. Contagem de reticulócitos: os reticulócitos são as células percursosas ou jovens dos eritrócitos. O reticulócito presente em valores aumentados durante uma anemia traduz que a medula desse individuo está normal ou funciona adequadamente. Isso porque, o organismo desse individuo entende que há uma baixa concentração de eritrócitos e envia estímulos a fim de aumentar essa concentração (resposta esperada – reticulocitose). Essa resposta normal vai aparecer em dois tipos deanemia: 1. Anemias hemolíticas e 2. Anemias por hemorragia aguda, pois são entidades que 4 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 não apresentam mecanismos diretos sobre a medula óssea. Por outro lado, quando a contagem de reticulocitos está abaixo do esperado, isso nos diz que a medula do indivíduo não está respondendo bem (seja por falta de substrato, falta de estimulo ou por infiltração medular). Através da contagem de reticulocitos, obtemos dois tipos de anemias: a. Hipoproliferativas ou por deficiência de produção: contagem de reticulócitos abaixo de 0,5%. Ocorre por acometimento primário ou secundário da medula óssea ou por falta de estimulo à eritropoese (ex:eritropoietina), falta de ferro, vit.B12 ou ácido fólico. Podem acompanhar doenças inflamatórias, infecciosas e neoplásicas. INDICE DE RETICULÓCITOS: 0,5 A 2% b. Hiperproliferativa ou por excesso de destruição: típica das anemias hemolíticas, mas também pode ocorrer após perdas agudas de sangue. Sob estimulação máxima, a medula pode aumentar sua produção de 6 a 8 vezes, entretanto a sobrevida dos glóbulos vermelhos pode encurtar 15-20 dias, levando a presença de reticulocitose, sem presença de anemia. O estado de anemia hemolítica se estabelece quando a produção medular não é capaz de superar a taxa de destruição. Para podemos classificar, devemos corrigir o valor de reticulocitos presente no exame. A primeira correção é denominada de: HT PADRÃO HOMEM = 45 e MULHER = 40 e IRC 0,5 a 2% Maior que 2%- Hiperproliferativa Menor que 0,5% - Hipoproliferativa 4. Diferenciar os vários tipos de anemias baseados nos exames laboratoriais disponíveis. CLASSIFICAÇÃO MORFOLÓGICA Microcítica e hipocrômica A microcitose é definida por um VCM < 80 fL, e a hipocromia por um HCM < 28 pg e/ou CHCM < 32 g/dl. As anemias microciticas constituem um grupo de doenças caracterizadas pela redução do volume corpuscular médio das hemácias (VCM). A produção de hemácias com VCM normal depende, sobretudo, da síntese de hemoglobina e esse processo requer mecanismos metabólicos intactos de formação das moléculas heme e de globina. Qualquer interferência no processo de hemoglobinização causa redução da concentração de hemoglobina corspuscular media. Na pratica clínica, as três causas mais frequentes de microcitose são a DEFICIÊNCIA DE FERRO, AS TALASSEMIAS (redução na produção de globinas) e as ANEMIAS SIDEROBLÁSTICAS (redução na síntese de moléculas heme). Basicamente a hemoglobina é o principal componente da hemácia. Se eu não fabrico hemoglobina eu não consigo encher a hemácia e ela fica vazia, pequena e quase IRC: % reticulócitos do exame x HT do paciente / HT padrão 5 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 translucida, sendo caracterizada como microcítica/hipocrômica. Normocítica e normocrômica Caracteriza-se quando apresenta cor normal e tamanho normal. A primeira causa ocorre quando estamos diante da FASE INICIAL DA ANEMIA CARENCIAL (deficiência de ferro, B12 ou folato) sem que haja a alteração da síntese de hemoglobina morfológica. A segunda causa ocorre quando estamos diante de uma ANEMIA CARENCIAL MISTA (deficiência de ferro – microcitose - e B12 ou ácido fólico - macrocitose). Quando se estabelece a média através do VCM temos uma anemia normo/normo. A terceira causa desse tipo de anemia é a presença de ANEMIA DE DOENÇA CRÔNICA (insuficiência renal – redução de EPO) e ANEMIA POR INFILTRAÇÃO MEDULAR. Macrocítica e Normocrômica Uma anemia macrocítica é definida quando temos VCM > 100 fL. A causa clássica de anemia macrocítica é a ANEMIA MEGALOBLÁSTICA (carência de folato e/ou B12). É nela que observamos os maiores níveis de VCM, frequentemente na faixa entre 110-140 fL. Existem diversas outras causas de macrocitose, todas elas “leves” (100-110 fL). São elas: (1) síndromes mielodisplásicas, incluindo a forma adquirida da anemia sideroblástica; (2) anemia aplásica; (3) etilismo; (4) drogas do tipo AZT e metotrexate; (5) anemia da hepatopatia crônica; (6) anemia do hipotireoidismo; (7) anemias hemolíticas (excetuando-se as talassemias); (8) anemia da hemorragia aguda. Estas duas últimas cursam com reticulocitose importante. Como os reticulócitos são hemácias de tamanho maior, o aparelho “pensa” que elas são macrocíticas. 9. Realizar o diagnóstico diferencial de anemias não carenciais. ANEMIA FERROPRIVA A deficiência de ferro instala-se por mecanismos diversos: (1) aumento do consumo, (2) excesso de perda (hemorragias) ou (3) má absorção. Quando o organismo está em balanço negativo de ferro o primeiro evento é a depleção dos estoques de ferro para a produção de hemoglobina. 6 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 A eritropoese nesses indivíduos resulta em células com conteúdo reduzido de hemoglobina, tornando-a HIPOCRÔMICA e MICROCÍTICA e por redução dos índices hematimétricos (VCM < 80 fL e CHCM < 32 g/dL). Além disso, as dosagens de ferro sérico e transferrina saturada de ferro são baixas. A contagem de reticulócitos também é reduzida. A observação do RDW é um importante no diagnóstico diferencial da anemia ferropriva com talassemias. Na anemia ferropriva o RDW está aumentado com os eritroblastos medulares picnóticos e irregulares. ANEMIA MEGALOBLÁSTICA A causa mais comum desse tipo de anemia é a carência de folato e/ou cianocobalamina (vit. B12). O quadro clínico desses pacientes varia desde assintomáticos à sintomas clássicos de anemia associados a anorexia, emagrecimento, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), glossite, queilite angular, púrpuras, icterícia leve e hiperpigmentação cutânea. As alterações laboratoriais encontradas na anemia megaloblástica são: Hemácias MACROCÍTICAS; Reticulócitos diminuídos; Leucopenia/trombocitopenia, B12 ou folato diminuído. ANEMIA DAS DOENÇAS CRÔNICAS É a anemia mais comum em pacientes com doença inflamatória crônica ou nos portadores de neoplasia. Comumente NORMO/NORMO. Ocorre em doenças sistêmicas de evolução prolongada e é caracterizada pela redução do ferro sérico e da capacidade de ligação do ferro e pela ferritina sérica normal ou aumentada, com presença de estoques de ferro normal (nos macrófagos). A patogênese chave nesse tipo de anemia é a produção de hepcidina pelo fígado, associado a processos infecciosos ou inflamatórios, que impede a absorção de ferro no intestino e aumenta o seu sequestro por macrófagos. Além disso, a hepcidina atua inibindo a liberação de ferro nos seus depósitos (fígado e baço), diminuindo a transferrina e a eritropoietina. ANEMIA SIDEROBLÁSTICA Anemias sideroblásticas: formam um grupo que pode ser dividido por causas congênitas (ligadas ao cromossomo X) ou adquiridas (alcoolismo, toxicidade por drogas, intoxicação por chumbo, deficiência de cobre e mielodisplasia). Ambas lembram ao comprometimento da síntese de Hb, devido uma falha na produção de protoporfirina. ANEMIAS HEMOLÍTICAS Quando a hemólise é patológica, diminui a vida média dos eritrócitos. A hemólise pode ser intravascular, quando a hemoglobina é liberada no plasma, ou extravasular, quando ocorre principalmente no baço. Quando a sobrevida dos eritrócitos está diminuída, a medula óssea aumenta o número de precursores eritroides, a fim de compensar a hemólise. A anemia só ocorre quando a hiperprodução medular não consegue se igualar ao ritmo da destruição. Assim, a medula pode acabar entrando em crise aplásica da anemia hemolítica, que corresponde a sua falência. As anemias hemolíticas podem ser congênitas (defeito corpuscular) ou adquiridas (defeitos extracorpusculares). TALASSEMIAS As talassemias são um grupo heterogêneo de causasque interferem na síntese de cadeias globinas formadoras do grupo heme. A síntese reduzida leva um a diminuição do conteúdo eritrocitário de Hb, ocasionando um a anemia HIPOCRÔMICA E MICROCÍTICA de intensidade variada. 7 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 ABORDAGEM DAS ANEMIAS MICROCÍTICAS: São causadas pela diminuição de hemoglobina no interior do eritrócito, o que torna a hemácia hipocrômica e microcítica (VCM < 80). A molécula de hemoglobina é constituída por grupos heme e cadeias globinicas. E a diminuição da síntese dos grupos heme ou das cadeias globinicas leva a diminuição da hemoglobina nos glóbulos vermelhos. Na maioria dos casos, a diminuição da síntese do heme é decorrente da deficiência de ferro, que é a causa mais comum de anemia hipocrômica e microcítica. Outras condições que causam alterações morfológicas semelhantes são as talassemias, nas quais, pela redução da síntese de uma ou mais cadeias globinicas, é formada menos hemoglobina. As anemias das doenças crônicas podem ser discretamente microcíticas e hipocrômicas, o que condiz com a fisiopatologia de indisponibilidade do ferro para a eritropoese, mas a maioria é normocítica e normocrômica. São as anemias mais frequentes em pacientes internados, acompanham muitas doenças comumente encontradas em pacientes ambulatoriais, sendo um importante diagnóstico a ser considerado na prática clínica de modo geral. As anemias sideroblásticas congênitas são doenças raras causadas por defeitos hereditários da síntese do heme. Em todos os casos de anemia sideroblástica, independentemente da etiologia específica, a diminuição de síntese do heme leva ao acúmulo de ferro nas mitocôndrias. ABORDAGEM DAS ANEMIAS MACROCÍTICAS As anemias macrocíticas, por critérios morfológicos e bioquímicos, podem ser divididas em dois grupos: as megaloblásticas e as não-megaloblásticas. As anemias megaloblásticas são, em geral, decorrentes da deficiência de vitamina B12 e/ou ácido fólico18. As anemias macrocíticas não megaloblásticas podem ser decorrentes de reticulocitose. Como os reticulócitos são maiores do que as hemácias maduras, a reticulocitose que ocorre nas anemias hemolíticas ou após hemorragias pode ser causa de macrocitose. ABORDAGEM DAS ANEMIAS NORMOCÍTICAS As anemias normocíticas caracterizam-se por VCM dentro dos limites normais (80 a 100 fl). As anemias normocíticas não estão relacionadas entre si por um mecanismo patogênico comum. Elas são a consequência, ou a primeira manifestação, de uma série de doenças. Uma abordagem inicial pode ser determinar se a resposta hematopoética está apropriada ao grau de anemia, pela contagem de reticulócitos. Se os reticulócitos estão aumentados, significa que a resposta medular está adequada, e a investigação deve prosseguir no sentido de identificar causas de hemólise ou de sangramento. Quando a resposta medular é inadequada, com reticulócitos baixos na presença de anemia, existe uma doença de base que, direta ou indiretamente, afeta a medula óssea. Nessas condições, devem ser pesquisadas doenças sistêmicas, como insuficiência renal, doenças da tireóide e hepatopatias, e anemia das doenças crônicas que pode ser reconhecida pela presença da doença de base e pelas alterações típicas do perfil do ferro. 10. Estudar fisiopatologia, quadro clínico e diagnóstico da anemia falciforme. A anemia falciforme é a doença hematológica hereditária mais comum no mundo, caracterizando-se pelo acometimento da cadeia beta da Hb, 8 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 originando uma Hb anormal denominada (HbS) ao invés da hemoglobina normal (HbA). Elas se caracterizam pela presença em homozigose ou dupla heterozigose da hemoglobina S (HbS), que resulta de uma mutação no sexto códon do gene da betaglobina (cromossomo 11) com substituição da adenina pela timina (GAG→GTG), codificando valina em vez de ácido glutâmico na 6a posição da cadeia beta da hemoglobina (beta6glu→val). Somente aqueles que são homozigotos para o gene βS (HbSS) desenvolvem a “doença” anemia falciforme. Indivíduos que herdam apenas uma cópia do βS em associação a outro alelo qualquer possuem o que se chama de “variante falcêmica” (heterozigotos para o gene βS). Existem diversas variantes falcêmicas possíveis, as mais comuns são: FISIOPATOLOGIA A hemoglobina S possui duas características que explicam a complexa cadeia de eventos fisiopatológicos que são: baixa solubilidade e instabilidade molecular. A substituição do ácido glutâmico pela valina na cadeia beta da hemoglobina, diminui a solubilidade da HbS no estado desoxigenado, pois torna a célula mais hidrofóbica, fazendo com que as moléculas de desoxiHbs se polimerizarem (perda de solubilidade). Essa polimerização vai ser fundamental para entender a fisiopatologia da doença. Sabe-se que o polímero é uma estrutura helicoidal, que se dispõe no eixo longitudinal do eritrócito, distorcendo a célula, a qual assume um formato de foice. Com a reoxigenação, os polímeros se desfazem e a célula reassume seu formato original. No entanto, os diversos ciclos de falcização e desfalcização levam a alterações permanentes da membrana eritrocitária, tornando a célula irreversivelmente falcizada, independente da tensão de oxigênio. Esse afoiçamento das hemácias ocorre de forma espontânea, mas sabemos que esse processo pode se exacerbar na vigência de alguns fatores como: hipóxia, acidose e desidratação celular. Além disso, a HbFetal tem um certo efeito sobre a polimerização, já que ela possui uma alta afinidade pelo oxigênio. Logo, quanto mais HbF dentro da hemácia, maior a quantidade de oxigênio. Na presença de altos níveis intracelulares de HbF (ex: primeiros 6 meses de vida), a formação de polímeros de HbS e o afoiçamento das hemácias se reduzem, o que ameniza ou mesmo previne as manifestações clinicas da anemia falciforme. A segunda característica envolvida na fisiopatologia é a instabilidade molecular. A HbS é uma molécula instável, no sentindo de que ela tende a sofrer oxidação com mais facilidade do que a hemoglobina normal. A HbS possui uma taxa de auto-oxidação espontânea moderadamente alta. No entanto, o que chama atenção é a capacidade de aumentar essa instabilidade quando essa hemoglobina entra em contato com os fosfolipídios da membrana celular, levando a formação de macromoléculas “desnaturadas” composta de fragmentos de globina, ferro e fosfolipídios. Na hemácia do portador de anemia falciforme, tais produtos são gerados incessantemente, e permanecem ancorados na face interna da membrana (o que 9 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 acarreta uma serie de prejuízos que vamos explicar no quadro clinico). CONSEQUENCIAS PARA O ORGANISMO Primeiro, temos que ter em mente que as hemácias ricas em HbS são verdadeiros agentes do caos dentro do corpo do paciente. A primeira repercussão orgânica que vamos explicar é a Anemia hemolítica. E para isso, é importante entender que os dois mecanismos de hemólise (intravascular e extravascular) vão estar acontecendo ao mesmo tempo na anemia falciforme. A hemólise intravascular apesar de representar a menor parcela da taxa hemolítica total é superimportante para entendermos a disfunção endotelial. Isso porque, quando as hemácias falcêmicas são destruídas no interior da corrente circulatória, ocorre liberação de seus conteúdos para o sangue. A hemoglobina S (que é instável e tem tendências a provocar reações oxidativas), exerce uma série de efeitos negativos sobre a camada interna da parede vascular. Uma das principais consequências é a inativação do Oxido nítrico, que é uma substância com propriedades vasodilatadoras, antitrombóticas e anti-inflamatórias.Além de todos esses efeitos tóxicos diretos, ocorre ainda um efeito indireto, no qual o conteúdo das hemácias também estimula as células da imunidade inata, como os macrófagos e monócitos a produzirem e secretarem citocinas pró-inflamatorias, como TNF-alfa e interleucinas. Assim, na anemia falciforme, ocorre um estado de inflamação sistêmica crônica, que por usa vez, potencializa a disfunção endotelial. O que ajuda a confirmar a noção de que existe uma inflamação sistêmica crônica nessa doença é a presença de alterações persistentes nos exames de sangue, como leucocitose e elevação dos marcadores de fase aguda (Proteína C reativa). Ou seja, o falcemico é um paciente constantemente inflamado. Aliado a isso, vamos ter um processo de hiperplasia e fibrose na parede dos vasos de maior calibre, com obstrução progressiva do lúmen e inflamação sistêmica crônica, que produz uma hipercoagulabilidade, facilitando a ocorrência de tromboses. O resultado final desses processos é um endotélio totalmente comprometido, no qual suas células vão adquirir um fenótipo ativado, com exposição de fatores adesiogênicos na superfície, o que explica o fenômeno da vaso-oculsão capilar, que caracteriza as crises falcemicas agudas. VASO-OCLUSÃO CAPILAR A vasooclusao da microcirculação capilar é o evento fisiopatológico mais clássico da anemia falciforme. Como já comentei, essa vaso-oclusão aguda justifica as crises álgicas, mas também ocorre de forma crônica em baixa escala, levando a disfunção orgânica lentamente progressiva (pequenos infartos teciduais acumulativos). E para isso ocorre duas etapas sucessivas: 1. Adesão de hemácias ao endotélio, lentificando o fluxo sanguíneo local. 2. Impactação e empilhamento de hemácias. Essa estase sanguínea subsequente produziria hipóxia e acidose, o que faria o afoiçamento se generalizar, criando a obstrução microvascular propriamente dita, que culminaria em isquemia tecidual. Essa adesão de hemácias ao endotélio pode ocorrer espontaneamente, mas também pode ser modulada por fatores como infecção, desidratação, exposição ao frio e outras formas de estresse. Tais formas não só aumentariam a chance de polimerização da HbS, como também estimulam diretamente a resposta inflamatória. 10 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 E a consequência dessa vaso-oclusão seria a isquemia tecidual, que irá produzir focos de necrose nos órgãos envolvidos. E curiosamente, a isquemia localizada também estimula a disfunção endotelial sistêmica, com mediadores inflamatórios liberados pelos tecidos infartados. Portando, podemos dizer que a vaso-oclusão repetida da microvasculatura é um fator adjuvante que junto com a hemólise intravascular, produz inflamação sistêmica e disfunção endotelial. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A anemia falciforme se manifesta essencialmente como um quadro de hemólise crônica associada a múltiplas disfunções orgânicas progressivas. A maioria dos pacientes apresentam uma evolução pontuada por crises álgicas recorrentes (crises vaso-oclusivas), que se iniciam a partir do momento em que os níveis de HbF fisiologicamente aumentado nos primeiros meses de vida começam a reduzir. Os principais “órgãos-alvo” da doença são: (1) baço; (2) ossos; (3) rins; (4) cérebro; (5) pulmões; (6) pele; e (7) coração. A expectativa de vida dos falcêmicos é inferior à da população geral, girando em torno de 42 anos para os homens e 48 anos para as mulheres CRISE ÁLGICA A dor aguda é o sintoma inicial da AF em > 25% dos casos, e representa o principal motivo que leva esses doentes a procurar auxílio médico. A forma mais comum de crise 11 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 álgica é a “crise esquelética”, sendo seu mecanismo causal a vaso-oclusão no interior da medula óssea produzindo infarto ósseo. Em crianças com menos de dois anos de idade a primeira crise álgica costuma ser a síndrome mão-pé (dactilite falcêmica). Ocorre dor e edema nas extremidades, em consequência à isquemia/infarto dos pequenos ossos das mãos e pés. A dor pode ser desencadeada por fatores como frio, desidratação, infecções, estresse emocional, menstruação e libação alcoólica. Muitas vezes, entretanto, nenhum fator desencadeante pode ser identificado, e a crise é dita “espontânea”. Qualquer parte do corpo pode ser afetada, mas as topografias onde a dor geralmente incide são: (1) região dorso-lombar; (2) tórax; (3) extremidades; e (4) abdome. Vale ressaltar que a “crise abdominal” é causada por isquemia/microinfartos no território mesentérico, geralmente evoluindo com resolução espontânea e sem maiores complicações... O quadro clínico é de dor abdominal intensa acompanhada de sinais de irritação do peritônio (ex.: descompressão brusca dolorosa), o que pode simular abdome agudo cirúrgico e levar o médico a indicar uma laparotomia exploradora DOR CRÔNICA Na maioria das vezes, os portadores de AF que se queixam de dor crônica possuem um substrato anatômico para tal, por exemplo: fraturas vertebrais, osteonecrose da cabeça do fêmur e/ ou úmero, úlceras cutâneas persistentes. CRISES ANÊMICAS Falcêmicos vivem sob um estado de constante “estresse hematopoiético”. Devido à meia-vida extremamente curta de suas hemácias (média de 17 dias, bem abaixo do valor normal de 120 dias), a produção eritrocitária da medula óssea se aproxima de sua capacidade máxima... Logo, qualquer distúrbio que interfira nos componentes dessa resposta adaptativa pode desencadear as chamadas “crises anêmicas”, episódios de súbito agravamento da anemia que acarretam risco imediato à vida. INFECÇÕES As infecções estão entre as principais causas de morbimortalidade na AF. Sabe-se que portadores dessa doença possuem imunodeficiência significativa, devido à perda precoce da função esplênica. Tal processo é secundário à ocorrência de infartos cumulativos no parênquima, que por sua vez são ocasionados pela maior tendência ao afoiçamento de hemácias na polpa vermelha do órgão. Por volta dos 5 anos a maioria doa falcemicos se encontram com baços atróficos e fibrosados. O resultado final é a perda da habilidade em remover bactérias que atingem a circulação sistêmica, além de uma queda na capacidade de sintetizar e secretar opsoninas. ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO Diversas formas de Acidente Vascular Encefálico (AVE) podem acometer os falcêmicos. A mais comum é o AVE isquêmico por oclusão trombótica de um grande vaso intracerebral (70-80% dos casos), que tem na disfunção endotelial crônica (e consequente vasculopatia macroscópica) seu mecanismo etiopatogênico básico. É importante ter em mente que a AF também predispõe ao AVE hemorrágico (que pode cursar como hemorragia subaracnoide, intraparenquimatosa e/ou intraventricular). O mecanismo costuma ser a ruptura de aneurismas, os quais têm incidência aumentada na AF. COMPLICAÇÕES PULMONARES As complicações pulmonares constituem a principal causa de óbito em falcemicos na atualidade. Os principais responsáveis por isso 12 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 seria a Síndrome Torácica aguda e a hipertensão pulmonar. SÍNDROME TORÁCICA AGUDA. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma SÍNDROME, isto é, um conjunto de sinais e sintomas sem causa conhecida num primeiro momento, mas que tem diversas etiologias possíveis (que podem ocorrer em conjunto ou não). A definição formal de STA é: “Infiltrados pulmonares novos nos exames de imagem, que se associam a pelo menos um dos seguintes achados: febre, tosse, dor torácica, secreção purulenta, dispneia e/ou hipoxemia” PRIAPISMO Definido como uma ereção peniana sustentada e não relacionada ao desejo sexual, afeta até 42% dos homens falcêmicos. Isso ocorre pelo baixo fluxodevido ao afoicamento de hemácias e consequente vaso-oclusão nas veias de drenagem dos corpos cavernosos. DIAGNÓSTICO Por ser uma anemia hemolítica crônica, a anemia falciforme cursa com alterações laboratoriais estereotipadas condizentes com este grupo de doenças: (1) queda leve a moderada da hemoglobina e do hematócrito; (2) reticulocitose (entre 3-15%); (3) hiperbilirrubinemia indireta; (4) aumento de LDH; (5) queda da haptoglobina. Devido à resposta inflamatória sistêmica que acompanha a doença esperam-se contagens de leucócitos e plaquetas aumentadas, além de elevação dos “marcadores de fase aguda” (ex.: proteína C reativa). A Velocidade de Hemossedimentação (VHS) não é útil na anemia falciforme! As hemácias falcêmicas não formam rouleaux, logo, a VHS é sempre baixa nesses doentes, mesmo quando existe inflamação sistêmica importante. Assim como acontece em outras hemoglobinopatias, o diagnóstico de AF geralmente é confirmado por meio da eletroforese de hemoglobina. Nesse método, as diferentes hemoglobinas presentes nas hemácias são separadas num gel em função do seu peso molecular e carga elétrica. Na grande maioria das vezes, o “perfil de distribuição” das hemoglobinas encontradas permite o diagnostico diferencial entre anemia falciforme e as principais variantes falcemicas. Outros exames capazes de confirmar o diagnóstico são a cromatografia líquida de alta performance (HPLC) e a análise genética. Os testes de afoiçamento e de solubilidade da hemoglobina não diferenciam entre AF e as variantes falcêmicas (apenas detectam a presença de HbS), logo, não são capazes de confirmar o diagnóstico, ainda que possam ser usados como testes de rastreio. Uma vez confirmado o diagnóstico de anemia falciforme, deve-se solicitar uma bateria de exames específicos visando o acompanhamento evolutivo da função dos múltiplos “órgãos-alvo” dessa doença 11. Caracterizar a importância do aconselhamento genético em doenças familiares e a atuação multiprofissional nas doenças falciformes. RASTREIO Pré-natal Nas gestações onde existe risco de HbSS no concepto (ex.: HbSS ou traço falcêmico em ambos os pais) pode-se realizar o diagnóstico pré-natal da doença por meio da biópsia de vilo coriônico, coletada entre 8-10 semanas 13 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2 de gestação e submetida à análise genética. Vale lembrar que, em nosso meio, o aborto de fetos HbSS (um tipo de “aborto eugênico”) é proibido. Neonatal No Brasil, TODOS os recém-nascidos, por lei, devem realizar o teste do pezinho (entre 2-30 dias de vida), a fim de detectar uma série de doenças genéticas, incluindo a anemia falciforme. Tal conduta se justifica porque a adoção precoce de medidas preventivas (como o uso diário de penicilina V oral até a idade de 5 anos) é capaz de mudar a história natural da doença, reduzindo sua morbimortalidade. ACONSELHAMENTO GENÉTICO Aconselhamento genético, também conhecido por mapeamento genético, é um processo realizado com o objetivo de identificar a probabilidade de ocorrência de determinada doença e chances de ser transmitida para os familiares. Esse exame pode ser feito pelo portador de determinada doença genética e por seus familiares e a partir da análise das características genéticas pode-se definir métodos de prevenção, riscos e alternativas de tratamento. O aconselhamento genético tem várias aplicações, podendo ser utilizado no planejamento da gravidez ou no pré-natal, para verificar se há alguma chance de alteração no feto, e no câncer, com o objetivo de avaliar as chances de ocorrer o câncer e estabelecer a possível gravidade e tratamento. A partir dessas intervenções iniciais, o paciente e/ou a família deverão ser esclarecidos e estimulados a participar do processo. Os exames complementares necessários para firmar ou descartar uma hipótese diagnóstica deverão ser explicados, assim como o significado e alcance dos resultados. Com o diagnóstico definitivo, ou não, o paciente e a família começam a ser esclarecidos dos recursos terapêuticos ou, mais frequentemente, das possibilidades de prevenção primária, secundária ou terciária. Como em qualquer outro ato médico complexo, exige uma abordagem multiprofissional e interdisciplinar. Além da competência específica que a profissão lhes atribui, todos os profissionais envolvidos devem ter recebido formação em genética médica básica e treinamento nos procedimentos e intervenções sob sua responsabilidade. Há necessidade de que estes profissionais contem com equipe de apoio psicossocial. 14 Marcela Oliveira – Medicina 2021.2
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