Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Autores: Prof. Maurício Felippe Manzalli Profa. Ivy Judensnaider Profa. Ana Maria Belavenuto Colaboradores: Profa. Maria José da Silva Dias Prof. André Galhardo Fernandes Fundamentos de Economia para as Ciências Sociais Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Professores conteudistas: Maurício Felippe Manzalli / Ivy Judensnaider / Ana Maria Belavenuto Maurício Felippe Manzalli Economista pela Universidade Paulista – UNIP e mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professor da UNIP nos cursos de Ciências Econômicas e Administração e também é coordenador do curso de Ciências Econômicas na mesma universidade. Ivy Judensnaider Economista pela Fundação Armando Álvares Penteado e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência. Atualmente é professora da Universidade Paulista – UNIP nos cursos de Ciências Econômicas e Administração, no qual coordena o curso de Ciências Econômicas no campus Marquês (SP). Também atua no setor de publicações, dirigindo a editora eletrônica arScientia, e é autora de inúmeros textos de divulgação científica publicados na web. Ana Maria Belavenuto Mestre pelo Programa em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (2003). Atualmente é técnica IIII do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos e professora da Faculdade Oswaldo Cruz, além de professora-adjunta da Universidade Paulista – UNIP. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia do Bem-estar Social, contribuindo principalmente com os seguintes temas: Flexibilização e Negociação Coletiva. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M296f Manzalli, Maurício Felippe Fundamentos de Economia para as Ciências Sociais. / Maurício Felippe Manzall, Ivy Judensnaider, Ana Maria Belavenuto. – São Paulo: Editora Sol, 2019. 176 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-184/19, ISSN 1517-9230 1. Fundamentações teóricas da economia. 2. Principais conceitos econômicos. 3. Processo de globalização. I. Título. CDU 33 U502.02 – 19 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Cristina Alves Virgínia Billato Juliana Mendes Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Sumário Fundamentos de Economia para as Ciências Sociais APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 ABORDAGENS INICIAIS: FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DA ECONOMIA ....................................9 1.1 Antiguidade e Idade Média .............................................................................................................. 12 2 MERCANTILISMO E FISIOCRACIA .............................................................................................................. 17 3 DA ESCOLA CLÁSSICA AO MARXISMO ................................................................................................... 18 4 A SÍNTESE NEOCLÁSSICA, A REVOLUÇÃO KEYNESIANA E O PENSAMENTO ECONÔMICO CONTEMPORÂNEO .................................................................................................................. 33 Unidade II 5 PRINCIPAIS CONCEITOS ECONÔMICOS .................................................................................................. 59 5.1 Conceitos gerais .................................................................................................................................... 59 5.1.1 Problema econômico fundamental ................................................................................................. 61 5.1.2 O fluxo circular da renda e do produto ......................................................................................... 63 5.2 Sistemas econômicos ...........................................................................................................................71 6 POLÍTICA ECONÔMICA E O PAPEL DO ESTADO .................................................................................... 74 6.1 Política econômica ............................................................................................................................... 74 6.1.1 Política monetária .................................................................................................................................. 75 6.2 O papel do Estado ................................................................................................................................ 87 6.2.1 O desemprego e suas causas .............................................................................................................. 91 6.2.2 Economia brasileira: da estabilização da inflação aos dias atuais...................................... 93 6.2.3 Desenvolvimento econômico ...........................................................................................................106 Unidade III 7 O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO ............................................................................................................ 115 7.1 A dimensão econômica da globalização ................................................................................... 116 7.2 A economia brasileira e a globalização .....................................................................................123 8 A QUESTÃO SOCIAL NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO ...............................................................137 8.1 Objetivos do desenvolvimento do milênio (ODM) ................................................................149 7 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 APRESENTAÇÃO Prezado aluno, O livro-texto que aqui apresentamos servirá de apoio ao estudo da disciplina Princípios Gerais de Economia. Note que ele está dividido em três unidades. Na Unidade I, você entrará em contato com os primórdios do pensamento econômico. A partir desses conceitos, o aluno será convidado a refletir sobre a importância do conhecimento econômico e sobre a construção histórica do mundo em que vivemos. O conteúdo dessa unidadeinclui os conceitos relacionados às ciências econômicas e à economia de mercado, a transição do feudalismo para a economia de mercado, o mercantilismo e a fisiocracia, a revolução industrial e os pensadores clássicos (Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus, J. S. Mill e Marx), o pensamento neoclássico e a revolução keynesiana e, finalmente, o pensamento econômico atual e os desafios a serem enfrentados. A Unidade II tratará da economia e do mundo real, pela abordagem de temas como os referentes ao problema econômico fundamental, aos sistemas econômicos, à política econômica e ao papel do Estado na economia. Ainda nessa unidade, serão discutidas questões relacionadas ao desemprego e suas causas e a estabilização monetário-financeira da economia brasileira no período recente. A Unidade III analisa a inserção do Brasil no comércio internacional, no contexto da globalização, e os avanços sociais obtidos dessa experiência, uma vez que as promessas de transformação vieram atreladas às ideias de modernidade, transferência tecnológica e progresso econômico. Por fim, um esclarecimento se faz importante: nossa proposta não é a de tão somente transferirmos um conjunto predeterminado de saberes. As escolhas metodológicas e didáticas a partir das quais o livro-texto foi confeccionado incluem o aperfeiçoamento do espírito crítico e o desenvolvimento das capacidades e habilidades de produção e geração de conhecimento. Dessa forma, o aluno poderá notar que os conteúdos estão sempre entrelaçados aos contextos sócio-históricos que os geraram, bem como aos problemas do cotidiano e do ambiente do Serviço Social. Esperamos que aprecie o texto. Bom trabalho! INTRODUÇÃO As necessidades da vida cotidiana tornam obrigatório o conhecimento sobre economia, independentemente da área profissional ou da formação acadêmica. Assim, qualquer indivíduo tem noções de microeconomia e de macroeconomia, mesmo que não saiba exatamente do que tratam esses saberes. Em outras palavras, todos nós nos deparamos com aspectos relacionados à formação de preços, às estruturas de mercado, às questões de escassez de bens e serviços, à 8 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 inflação, ao desempenho de determinados setores da economia e aos níveis de desenvolvimento e crescimento das nações. No caso particular dos assistentes sociais, a necessidade de operarem a partir de conceitos econômicos é mais premente. Afinal, são esses os profissionais que devem compreender, como ação preventiva: a situação criada pela proposição do empreendimento que gerará novas condições de vida para a população, [...] os expropriados, os espoliados e os explorados. Entendendo-se como expropriados urbanos e rurais os diretamente atingidos (lavradores e índios) que são removidos compulsoriamente de suas terras ou moradias, para dar lugar a construção; os espoliados urbanos – aqueles indiretamente atingidos tanto na zona rural como na urbana e que sofrerão não só os efeitos ambientais como também esses efeitos sobre o seu sistema de produção; e na zona urbana cujos efeitos serão sentidos na infraestrutura de serviços existentes no local de moradia; e por fim os explorados – representados pelos trabalhadores não qualificados que são recrutados para o trabalho nos canteiros de obras e que, terminada a construção, se veem desempregados (COLITO; PAGANI, 1999). Assim, é claro que, para efeito desta disciplina, nossa expectativa vai além do conhecimento genérico que a população tem sobre o tema econômico. Por isso, vamos às transformações da sociedade que criaram o ambiente econômico tal como o conhecemos, título dado ao capítulo inicial deste livro-texto. 9 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS 1 ABORDAGENS INICIAIS: FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DA ECONOMIA Em outubro de 2008, todos se chocaram com as notícias que anunciavam uma crise econômica de proporções tão imensas quanto a da quebra da Bolsa americana em 1929. Segundo Judensnaider (2009), Delfin Netto, economista que em vários momentos da história econômica brasileira desempenhou papel de fundamental importância na formulação e na coordenação de políticas econômicas, em palestra proferida na Universidade Paulista, “opinou que estaríamos vivendo mais uma das tantas crises da história do capitalismo. ‘O mundo não vai acabar’, nas suas palavras”. Do ponto de vista da economia de mercado, [...] [isto é] absolutamente correto. Analisemos a história econômica mundial: desde o século XVIII, o mundo vem caminhando lentamente no sentido de se organizar sob estruturas básicas que são conhecidas como sendo de economias de mercado. De forma simplificada, e considerando o período dos Setecentos até o século XXI, poderíamos identificar três grandes momentos de inflexão do Capital, a saber, a primeira Grande Depressão do final do século XIX, a Grande Depressão dos anos [19]30 e as crises do final da década de [19]70. Em cada uma delas, o sistema de mercado deu um jeito de resolver a situação: inicialmente, “avançou” em direção a novos mercados por meio de estratégias imperialistas, e que isso tenha acabado em guerra é assunto com o qual economistas do mainstream não costumam se preocupar. Na de [19]30, entre as duas Grandes Guerras Mundiais, o capital, reconhecendo a inabilidade das suas mãos invisíveis, atribuiu ao Estado o papel de tirar a economia de mercado do imenso buraco em que havia se metido. Depois, cansado da imobilidade à qual estava sujeito por força da mão visível do Estado, arquitetou o grande discurso da globalização, sedimentando, ao longo do caminho, os caminhos para a liberdade do capital através de incursões militares em países estrangeiros e a institucionalização de organismos financeiros internacionais (JUDENSNAIDER, 2009). A constatação de que o mundo econômico opera por meio de falhas e de forma cíclica nos leva a indagar: afinal, que mundo é esse? Que instrumental teórico temos à nossa disposição que nos permitirá conhecê-lo e nele operar? Vejamos, inicialmente, do que trata a Economia. Os economistas, em geral, admitem que a discussão sobre economia surge no mesmo período em que ocorre a revolução industrial e com o desenvolvimento dos mecanismos de mercado de formação de preço e alocação dos recursos de produção. Assim, a Unidade I 10 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I Economia é percebida como uma ciência já no século XIX, e, desde então, seus especialistas debatem incansavelmente sobre seu campo de atuação e seus limites. Do ponto de vista antropológico, o ser humano vem estabelecendo relações de troca com seu grupo e com a natureza desde sempre, assim o fazendo, em parte, para garantir as condições materiais necessárias para a sua sobrevivência. Em período anterior ao século XVIII, havia atividade econômica, e sobre ela foram escritas obras e realizados estudos. Saiba mais Sugerimos que você assista à belíssima obra A Guerra do Fogo (direção: Jean-Jacques Annaud, 97 minutos, 1981). O filme mostra os diferentes estágios do desenvolvimento social da espécie humana. Embora o diretor tenha tomado a liberdade de colocar todos os estágios como se tivessem ocorrido simultaneamente, pode-se perceber o valor e a importância de cada transformação e o quanto a sociedade e nosso modo de viver foram historicamente construídos ao longo do tempo. No entanto, consideramos a gênese da ciência econômica aquela relacionada à investigação de uma determinada forma de organização econômica, qual seja, aquela que resulta das relações existentes nomercado. Uma explicação possível é que, apenas a partir do nascimento da economia de mercado, tornou-se possível falar em atos econômicos com interesses e objetivos essencialmente econômicos; que apenas a partir do advento da economia de mercado as relações sociais passaram a ser explicadas em função de um sistema econômico organizado. Como estava organizada a produção de bens e serviços antes da economia de mercado? Naquele tempo, o chefe de família provia sua prole porque isso era o que a sociedade esperava dele. As trocas se realizavam não para o lucro, mas para a sobrevivência material. Produzia-se comida não para vendê-la e, a partir da venda, obter lucro. Produzia-se para consumir. Quando passou a existir governo, ele distribuía a riqueza para os cidadãos, porque esse era seu papel. Foi apenas com o advento do capitalismo que os fatores de produção (mão de obra, terra, conhecimento técnico, capacidade empresarial e dinheiro, entre outros) não apenas se dirigiram ao mercado, mas fizeram mesmo parte dele. Comprava-se e vendia-se mão de obra. Comprava-se e vendia-se conhecimento. O dinheiro passou a ter um custo, mensurado por meio dos juros que os bancos cobravam para fornecê-lo sob a forma de crédito. Trabalhava-se não para produzir os bens necessários, mas para obter recursos que pudessem ser trocados pelos bens necessários. Essa é uma diferença fundamental que marca um momento de transição nas formas de organização da sociedade. Normalmente, os atos econômicos anteriores às sociedades capitalistas, ou que nelas não estejam inseridos, são objeto de estudo dos antropólogos econômicos. Considerando nossos objetivos, basta não confundirmos a Economia (ciência) com o próprio sistema de mercado. Entende-se por ciência 11 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS econômica a ciência que investiga como fatores escassos de produção são alocados para a produção de bens e serviços que se destinam a saciar necessidades ilimitadas. Em contrapartida, economia de mercado representa a forma pela qual, nas sociedades capitalistas, a reprodução material das sociedades passou a acontecer por meio de instituições orientadas para objetivos econômicos, como os mercados (CERQUEIRA, 2001). Assim, nos mercados, as trocas produzem preços, sendo essas “trocas realizadas como resultado de barganha, de uma negociação, onde cada parte é livre para buscar sua vantagem e não tem que se submeter, por exemplo, a preços preestabelecidos por algum agente regulador externo” (CERQUEIRA, 2001, p. 400). Portanto, compreenderemos que, na economia de mercado: toda a organização da produção é confiada aos mercados, que compõem um sistema autorregulado: indivíduos perseguindo apenas seu interesse pessoal ofertam e demandam mercadorias, fazendo com que estes bens alcancem um preço determinado. As decisões sobre o que e quanto produzir serão tomadas como base apenas nos preços informados pelos mercados, que sinalizam as expectativas de ganho em cada processo produtivo. Da mesma maneira, a distribuição do produto depende apenas de preços, já que eles formam os rendimentos de cada indivíduo: aluguel e salários são os preços do uso da terra e da força de trabalho; o lucro é a diferença entre o preço do produto e os preços dos insumos necessários para sua produção. Em resumo, a reprodução material da sociedade depende de que tudo alcance um preço, ou seja, se comporte como uma mercadoria, inclusive a terra e o trabalho (CERQUEIRA, 2001, p. 402). Seria possível haver Economia sem economia de mercado? Os economistas não respondem de forma consensual e unânime à questão. Para nós, e para efeito desta disciplina, consideraremos que o surgimento da Economia ocorre não apenas porque a estrutura econômica passa a ser a de mercado (finalmente havendo o que se investigar), mas porque as condições do pensamento científico daquele momento permitem que ela, enquanto saber, se organize enfim de forma sistemática e autônoma. Também é importante ressaltar que naquele momento (e, de forma hegemônica, até os dias de hoje), o que se para investigar são justamente as relações que se estabelecem no mercado. Considerar como seu objeto de análise única e simplesmente a economia de mercado significa represá-la de forma tautológica à imutabilidade das estruturas e relações materiais tais como desenvolvidas no Ocidente a partir do século XVIII: a Economia, sob essa ótica, seria tão somente o estudo das maneiras pelas quais o Ocidente se organizou no que se refere a determinada estrutura econômica. Saiba mais É interessante, nos tempos atuais, a produção de uma grande quantidade de estudos relacionados a outras culturas, particularmente, em relação às respostas dadas por elas aos problemas de produção de bens e serviços 12 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I capazes de satisfazer as necessidades da comunidade. Nesse sentido, recomenda-se a visita ao site da Associação Brasileira de Antropologia, disponível em: <http://www.abant.org.br/>. Embora isso acrescente dificuldade à investigação econômica, há de se considerar que o sistema de mercado foi historicamente construído, não sendo uma entidade acima do tempo e do espaço. Da mesma forma, os pressupostos comportamentais de racionalidade econômica (autointeresse e propensão para o lucro) não são “naturais”, mas socialmente construídos. Há economia sem mercado? Apesar de a antropologia ter demonstrado a existência de outras racionalidades socioeconômicas, “é intrínseca à racionalidade econômica moderna, como uma espécie de monopólio epistemológico e moral, a desvalorização dos outros modos de vida diferentes do conduzido pela lei do valor” (LISBOA, 2008, p. 8). Os economistas ainda estão a debater possíveis respostas a essa pergunta, e, embora esse debate seja extremamente interessante, ele extrapola os limites da nossa disciplina. Assim, assumiremos que, segundo os parâmetros científicos da modernidade, a Economia nascerá à época de Adam Smith, no século XVIII, sendo A Riqueza das Nações (1983, 1996) um texto fundador, obra que marca uma mudança na natureza da reflexão sobre os temas econômicos, não tanto pela criação de novos conceitos, mas pelo estabelecimento de um novo arranjo dos conceitos, de um novo ponto de vista. Não se trata apenas do fato de que a reflexão sobre assuntos econômicos tenha deixado de ser tópica, fragmentada e guiada por interesses essencialmente práticos, como nos escritos mercantilistas. Importa, sobretudo, que ela tenha ganhado a forma de uma disciplina autônoma, desligada da ética e da filosofia política, no interior das quais a escolástica e as doutrinas do direito natural ainda a enquadravam (CERQUEIRA, 2001, p. 397). 1.1 Antiguidade e Idade Média É evidente que a compreensão do contexto histórico que irá ensejar o nascimento das ciências econômicas traz à tona uma questão de fundamental importância: afinal, se a Economia surge por meio do esforço de se distinguir da História, da Sociologia, da Ética, da Filosofia Moral e da Política, poderíamos ser levados a crer na existência de uma distância entre ela e essas outras áreas, especialmente do ponto de vista da delimitação do seu objeto de estudo ou da determinação de sua metodologia de investigação. Esse é um problema que economistas da atualidade vêm buscando trabalhar e equacionar, e aqui, nesta disciplina, serão debatidas não apenas as condições necessárias para o surgimento da economia de mercado, mas também, os desafios que esse sistema e sua investigação têm a enfrentar no tempo presente. 13 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão: M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Nesse período de asfixiante domínio conservador, forte desarticulação das forças de esquerda e virtual ausência de um projeto alternativo de sociedade, trabalha-se sempre dentro de condições preestabelecidas (sociedade capitalista globalizada), raramente questionando-se sua origem e seu caráter histórico, o tipo de hierarquia e a desigualdade que produz e o tipo de ilusão (comumente veiculada pela teoria econômica) que necessita para sobreviver (BONENTE; CORRÊA, 2009, P37). Façamos então uma viagem no tempo. Na Europa do medievo, o mundo era bem diferente daquele que hoje conhecemos: em vez de trabalhadores livres, políticos, organizações não governamentais, supermercados e shopping centers, havia reis, senhores feudais, cavaleiros, servos e clérigos. Assim estava organizada a sociedade durante o feudalismo, e essa estrutura iria sofrer abalos contínuos até a degradação total, num processo que levaria alguns séculos para se completar. Sobre o período medieval, a imagem mais comumente lembrada é a do feudo, grande propriedade trabalhada por camponeses que aravam não apenas a terra arrendada, mas também a terra do senhor. Nesse sistema, que sobreviveria na Europa até o século XVIII, o castelo era o centro do mundo: era nele que moravam o senhor e sua família. O feudo, unidade autossuficiente, era o espaço em que ocorriam as relações de vassalagem entre o servo e o seu senhor. O servo não era um escravo: não podia ser vendido ou ter sua família desmembrada. Por mais incrível que possa parecer aos nossos olhos do século XXI, o servo fazia parte da propriedade e só passaria a ter outro patrão se a terra fosse vendida. Se imaginarmos que, naquele tempo, não eram comuns as transações imobiliárias, poderemos alcançar a real dimensão do relacionamento entre servo e senhor. O servo muda de senhor, mas não de terra e, portanto, não pode ser expulso e dela não pode escapar. O senhor do feudo, como o servo, não possuía a terra, mas era, ele próprio, arrendatário de outro senhor, mais acima na escala. O servo, aldeão ou cidadão “arrendava” sua terra do senhor do feudo que, por sua vez, “arrendava” a terra de um conde, que já a “arrendara” de um duque, que, por seu lado, a “arrendara” do rei. E, às vezes, ia ainda mais além, e um rei “arrendava” a terra a outro rei! A relação de vassalagem, inclusive, é transferida hereditariamente, de pai para filho: o filho será servo daquele [de] quem seu pai e seu avô também foram servos (HUBERMAN, 1986, p. 10). O feudo tinha suas próprias regras e leis, e elas serviam para reger tudo e todos. O senhor feudal era quem decidia sobre casamentos, litígios e conflitos. Ele resolvia o que é como plantar, bem como quanto colher. Em algumas regiões da Europa, o senhor feudal tinha o direito “da primeira noite”, ou seja, podia desvirginar a noiva que morasse em sua propriedade, ou que fosse esposa de alguém que morasse nas suas terras. Longe de ser mero capricho, esse direito selava seu papel de senhor absoluto e também consagrava a continuidade da vassalagem por meio da suspeita em relação à paternidade dos filhos do servo. 14 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I Saiba mais Sugerimos, sobre o assunto, o filme Coração Valente. (direção: Mel Gibson, 177 minutos, 1995). O enredo, apesar de algumas imprecisões históricas, retrata bem a relação de vassalagem. Aborda, ainda, as lutas e os conflitos na Escócia do século XIII. Tudo o que era necessário para a sobrevivência podia ser produzido dentro do próprio feudo. O comércio era inexistente e, quando ocorria, era baseado no escambo, ou seja, na troca de mercadorias sem que nenhum dinheiro fosse utilizado, necessariamente, como meio de pagamento ou padrão de referência. Havia moedas, claro. Elas existiam, e sua variedade era imensa: cada uma delas tinha valor apenas numa determinada região, e não havia referência cambial com outras moedas de outras regiões. Por que haveria de existir referência, afinal? A vida econômica ocorria dentro dos muros do próprio feudo, não havendo relações comerciais com o que era exterior. É provável que, essa altura, haja um questionamento: como, a partir dessa organização econômica, poderia ter surgido algo como o sistema de mercado? Quais foram os caminhos percorridos para que esse modelo (o feudal) fosse substituído por outro (o mercado), em que tudo era mercadoria e tinha um preço? Como o feudo, afinal, tornou-se pequeno demais para as necessidades da sociedade e como seus muros acabaram por ruir? Foram vários os fatores que, com o tempo, criaram rachaduras e fissuras irreversíveis no sistema feudal e, agora, os investigaremos de forma resumida. Um deles foi a realização das Cruzadas, expedições armadas que tinham como objetivo a reconquista da Terra Santa para os cristãos. Os cruzados precisavam de provisões, e, ao longo do trajeto que percorriam em direção ao Oriente, foram sendo criados entrepostos comerciais e feiras. Ao longo dos séculos, esse comércio cresceria cada vez mais, surgindo, em torno dele, as primeiras cidades. Os senhores feudais, donos das terras onde se realizavam as feiras, tinham direito a receber comissões pelos negócios ali efetuados; assim, eles eram receptivos às atividades comerciais porque elas traziam lucro e prosperidade. Esse comércio também ensejaria o surgimento de uma figura muito importante: o trocador de dinheiro, responsável pelo câmbio entre as várias unidades monetárias. Já se pode perceber: lentamente, a economia sem mercado transformava-se em economia de vários mercados, já bem distante do sistema autossuficiente dos feudos. Devagar, apareciam pequenas aberturas na estrutura feudal de imobilidade social: surgiam comerciantes e “banqueiros”; e crescia uma população urbana que não se encontrava aprisionada pela vassalagem, tampouco tinha uma relação visceral com a terra. 15 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Essa população, de outro tecido social que não aquele costurado pelo feudal, exerceria pressão por leis menos arbitrárias do que as do senhor feudal: afinal, era preciso liberdade para se mover, para comerciar, para vender e comprar. Da mesma forma, o camponês se distanciava do senhor feudal, já que o seu excedente agora podia ser negociado e transformado em dinheiro. Sua sobrevivência não dependia mais da vassalagem, mas podia ser providenciada com o uso do talento para produzir o que outros necessitassem ou com o talento para comerciar o que outros desejassem consumir. A riqueza agora não era medida pela propriedade possuída, mas pelo dinheiro possível de ser ganho com a atividade comercial. Aliás, o golpe de morte no sistema feudal ocorre justamente no momento em que se percebe ser a terra também uma mercadoria. Os mercadores se reúnem em corporações. Eles se intitulam possuidores de direitos monopolistas que normatizarão as atividades comerciais (nas feiras) ou profissionais: às suas leis, seus membros se sujeitam, sob pena de expulsão. Os artesãos e outros profissionais também se organizarão em corporações, chamadas de guildas. Lembrete As guildas funcionavam como centros onde o aprendiz era treinado no ofício, segundo as normas e tradições da categoria. Esse treinamento, que chegava a durar mais de uma década, lhe assegurava o conhecimento das artes secretas do seu ofício, além do direito de exercer sua profissão e ter proteção em caso de necessidade. Nas guildas, os meios de produção (ferramentas e utensílios necessários para a fabricação das mercadorias) pertencem aos artesãos, queproduzem e comercializam o fruto do seu trabalho. O espírito é de fraternidade, e não de concorrência: se algum membro introduzir alguma inovação, todos devem ter acesso à mudança. “Patentes” ou “diferenciais produtivos” são práticas desleais e passíveis de punição. Nas guildas, reunir-se-ão padeiros, pintores, curtidores de couro, ferreiros, açougueiros, fruteiros, cirurgiões, jornaleiros, entalhadores, costureiros, sapateiros e supervisores das corporações [que] faziam viagens regulares de inspeção, nas quais examinavam os pesos e medidas usados pelos membros, os tipos de matérias-primas e o caráter do produto acabado. Todo artigo era cuidadosamente inspecionado e selado. Essa fiscalização rigorosa era considerada necessária para que a honra da corporação não fosse manchada, prejudicando com isso os negócios de todos os seus membros. As autoridades municipais, por sua vez, a exigiam como proteção ao público. Para maior proteção desse público, algumas corporações marcavam seus produtos com o “justo preço” (HUBERMAN, 1986, p. 68). 16 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I Saiba mais Rembrandt, pintor holandês do século XVII, retratou alguns membros dessas corporações: • Na tela A ronda noturna, ele mostra a corporação dos oficiais bacamartes. Disponível em: <http://www.abcgallery.com/R/ rembrandt/rembrandt27>. • Na obra Lição de anatomia do professor Tulp, a corporação dos cirurgiões. Disponível em: <http://www.biol.unlp.edu.ar/images/ anatomia/anatomia-rembrandt.jpg>. • No quadro Os membros da guilda dos alfaiates, como sugere o título, vemos os alfaiates reunidos em seu sindicato. Disponível em: <http:// www.abcgallery.com/R/rembrandt/rembrandt121.html>. O próprio Rembrandt foi membro de uma guilda, a dos pintores. Aos nossos olhos, estruturas como as das guildas podem parecer muito estranhas. Afinal, no mundo em que vivemos, as competências relacionadas à competitividade são atributos positivos e desejados, em se tratando seja de um empresário, seja de um trabalhador. No entanto, é importante entender as regras da guilda no seu contexto específico, ou seja, o da transição de um sistema autossuficiente e fechado para outro, aberto aos negócios e à participação de todos. É claro que o tempo também se encarregaria de provocar a desintegração das guildas e a substituição do justo preço pelo de mercado. No entanto, naquele momento, a existência das corporações era o que permitia o exercício da atividade artesanal, a sobrevivência dos artesãos nos centros urbanos e a regulação de uma atividade que se distanciava, pouco a pouco, das tradições e dos costumes feudais. O surgimento das nações também teria sua participação ativa no processo de deterioração do sistema feudal. O senhor feudal já não conseguia proteger a população (e seu poder havia diminuído com a perda de terras, servos e recursos gastos em expedições ao Oriente), tampouco funcionar como autoridade central. Dessa forma, era necessário que alguém ocupasse esse vácuo, chamando para si a tarefa de centralizar o poder. Quem o faria seria o Rei, aliado das cidades na luta contra os senhores feudais. Será ele quem arregimentará um exército profissional, quem tratará de armá-lo e treiná-lo usando os recursos obtidos pela cobrança de impostos. O mais importante é compreender que esse exercício de poder se faria em subtração ao poder das próprias cidades e dos comerciantes. [...] os camponeses que desejavam cultivar seus campos, os artesãos que pretendiam praticar seu ofício e os mercadores que ambicionavam realizar 17 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS seu comércio – pacificamente – saudaram essa formação de um governo central forte, bastante poderoso para substituir os numerosos regulamentos locais por um regulamento único, de transformar a desunião em unidade (HUBERMAN, 1986, p. 86). O Rei representará a unidade nacional, e a Nação (o conjunto de pessoas que acreditam compartilhar entre si um passado e um futuro em comum) passara a lutar por seus territórios e pela formação de sua identidade: língua, moeda e legislação nacionais. Todas essas serão conquistas que, guiadas pela unidade central de poder, construirão um novo mundo. Não à toa, será o Rei também o responsável pelo empreendimento ultramarino, de descoberta, povoamento e exploração do que se acreditava ser realmente um novo mundo, mundo esse que fornecerá a matéria-prima, depois, para as indústrias nascentes e que consumirá as mercadorias produzidas nas metrópoles. Os muros dos feudos haviam ruído, e, agora, as fronteiras avançavam em direção a terras desconhecidas. Saiba mais Os filmes Elizabeth (direção: Shekhar Kapur, 125 minutos, 1998) e Elizabeth, a Era de Ouro (direção: Shekhar Kapur, 114 minutos, 2007) são sugestões excelentes sobre o assunto. Em ambos é tratada a questão religiosa na Inglaterra, bem como são retratados os esforços para que o país alcançasse o crescimento e a riqueza por meio das ações de um poder central: a rainha. 2 MERCANTILISMO E FISIOCRACIA Em termos do pensamento econômico desse período, duas são as principais vertentes. • Mercantilismo Para os mercantilistas, a origem da riqueza estava relacionada ao acúmulo de ouro e prata. O metal era obtido com as exportações; de forma contrária, as importações representavam o envio de metal para outras nações. Como uma determinada nação deveria proceder para obter esse superávit? Quanto mais poderosa ela fosse, quanto mais numerosas fossem suas rotas comerciais, quanto maior a dependência de suas colônias em relação à metrópole, maiores seriam as possibilidades de acumular ouro e prata (BRUE, 2006). Para isso, é evidente que se fazia necessário um Estado forte. O espírito nacionalista associado a um conjunto de instituições militares capazes de dar conta da ação expansionista também seria fundamental. Um governo centralizado bastante forte era outra exigência, e o controle governamental bastante rigoroso deveria dar conta das políticas e das metas mercantilistas, com esse controle tornando-se visível por meio da concessão de monopólios, da edição de leis protecionistas, e da elaboração e fiscalização de normas que regulamentassem a produção e a distribuição de mercadorias. O controle das importações era rigoroso, quando não proibido, e a fixação de preços dos produtos nacionais no mercado interno obedecia às exigências da política mercantilista. 18 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I • Fisiocracia A fisiocracia francesa, representada pelas obras de Quesnay e Turgot, pode ser considerada como uma reação às antecessoras práticas mercantilistas. A oposição se dá, principalmente, em relação ao excesso de regulamentação e de normatização da ação governamental. Os fisiocratas introduzirão (ao menos no campo econômico) a ideia de ordem natural, até por influência da mecânica newtoniana e do desenvolvimento da medicina: acreditava-se numa ordem da natureza que se responsabilizaria por manter tudo em equilíbrio. A mesma ordem natural seria responsável por manter os planetas no céu, realizar o movimento circular do sangue, e também cuidaria da harmonia econômica terrestre. A oposição à regulamentação e à intervenção do Estado na economia explica o lema fisiocrata: laissez-faire, laissez-passer (deixe fazer, deixe passar). Finalmente, é importante salientar a importância que a agricultura tem no pensamento fisiocrático: é ela a responsável pela produção de riqueza por meio da geração de excedentes, sendo o comércio e a indústria estéreis, apesarde úteis. 3 DA ESCOLA CLÁSSICA AO MARXISMO Para que dessas vertentes pudesse surgir um pensamento econômico que desse conta da análise da atividade econômica, era necessária uma mudança nos valores morais e nas atitudes em relação ao lucro e ao trabalho: faltava agora uma nova ética que norteasse e conduzisse os agentes em direção à acumulação do capital. Afinal, a moderna noção de que qualquer transação comercial é lícita desde que seja possível realizá-la não fazia parte do pensamento medieval. O homem de negócios bem-sucedido de hoje, que compra pelo mínimo e vende pelo máximo, teria sido duas vezes excomungado na Idade Média. O comerciante, porque exercia um serviço público necessário, tinha direito a uma boa recompensa e a nada mais do que isso (HUBERMAN, 1986, p. 47). Portanto, se quisermos compreender como nos transformamos em seres sedentos de sucesso e lucro, deveremos retroceder à transição de uma sociedade que se baseava na noção do justo preço para outra que perseguia o sucesso econômico. Teremos de supor que tal transição requereria uma mudança drástica na maneira de pensar e agir: seria necessária uma nova ética. “A suspeita e o constrangimento que cercavam as ideias de lucro, mudança e mobilidade social devem dar lugar a novas ideias que encorajem essas mesmas atitudes e atividades” (HEILBRONER, 1987, p. 64). Vamos tratar, então, de compreender como surge essa ética e como ela passa a conduzir o comportamento da sociedade que a ela se submete. Vamos pensar e refazer esse caminho: até o final da Idade Média, a Igreja Católica era a responsável pela difusão e pela manutenção dos valores morais. Com base no texto sagrado, ela defendia a vida como mera passagem transitória pela Terra, anterior à ida para o Paraíso, destino daqueles que haviam cumprido seu papel aqui. 19 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Conforme afirma Huberman (1986, p. 47): A Igreja ensinava que, se o lucro do bolso representava a ruína da alma, o bem-estar espiritual é que estava em primeiro lugar. “Que lucro terá o homem, se ganhar todo o mundo e perder sua alma?” Se alguém obtivesse, numa transação, mais do que o devido, estaria prejudicando a outrem, e isso estava errado. São Tomás de Aquino, o maior pensador religioso da Idade Média, condenou a “ambição do ganho”. Embora se admitisse, com relutância, que o comércio era útil, os comerciantes não tinham o direito de obter numa transação mais do que o justo pelo seu trabalho. O que era considerado pecaminoso? Por exemplo, a busca do lucro ou do ganho pessoal e o trabalho (além do necessário para satisfazer as necessidades mais básicas). Quem tivesse o suficiente para viver e, apesar disso, continuasse a trabalhar incessantemente, “seja para conseguir uma posição social melhor, seja para viver mais tarde sem trabalhar, ou para que seus filhos se tornassem homens de riqueza e importância – todos esses estavam dominados por uma avareza, sensualidade ou orgulho condenáveis” (HUBERMAN, 1986, p. 47). A ética católica pregava o conformismo e abominava qualquer tentativa de romper com o que estava dado e acertado. Mais: obter qualquer vantagem em relação ao seu concorrente (se é que existia esse conceito) era simplesmente inimaginável. Como novamente aponta Huberman (1986, p. 67): Assim como se precaviam da interferência estrangeira em seu “monopólio”, as corporações tinham também o cuidado de evitar, entre si, práticas desonestas que pudessem causar prejuízos a terceiros. Nada de competição mortal entre amigos, é o que realmente significa o item 3 dos estatutos dos curtidores. O membro da corporação não podia furtar um jornaleiro ou o aprendiz de seu mestre. Também era tabu a prática comercial, hoje muito difundida, de obsequiar o cliente ou suborná-lo para conseguir realizar um negócio. Em 1443, a corporação dos padeiros de Corbie, na França, determinou que ninguém daria bebidas ou faria qualquer outra gentileza a fim de vender seu pão, sob pena de pagar uma multa de 60 soldos. Como se pode perceber, a mudança capaz de introduzir uma nova forma de pensar deveria ser ampla e irreversível. O que se sabe é que o calvinismo e a Reforma transformaram, à sua época, a forma de ver o mundo, trazendo em seu bojo uma nova ética e uma nova moral. Em contraste com os teólogos católicos, propensos a considerar a atividade humana como coisa fútil e vã, os calvinistas santificavam e aprovavam o esforço humano como uma espécie de indicador de valor espiritual. De fato, cresceu entre os calvinistas a ideia de um homem dedicado ao seu trabalho: “vocacionado” para ele, por assim dizer. Daí, a fervorosa entrega de cada um à sua própria vocação, muito ao contrário de evidenciar um afastamento dos fins religiosos, passou a ser considerada uma evidência da dedicação à vida religiosa. O comerciante enérgico e empreendedor era, aos olhos 20 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I calvinistas, um homem piedoso, não um ímpio; e desta identificação de trabalho e virtude não foi necessário mais que um passo para se desenvolver a noção de que, quanto mais bem-sucedido um homem fosse na vida, mais virtuoso [ele era] e mais valor ele tinha (HEILBRONER, 1987, p. 79). Trabalhar, especialmente além do necessário, era virtuoso. A conquista da riqueza não era imoral, especialmente se a piedade e a virtude direcionassem o uso dessa riqueza: nada de luxo, jogos e hábitos faustosos. O trabalho era sagrado, e sagrado também era o seu fruto. Os homens deveriam viver com simplicidade, com economia e com humildade: [o calvinismo] fez da poupança, da abstinência consciente do usufruto da renda, uma virtude. Fez do investimento, do uso da poupança para fins produtivos, um instrumento tanto de devoção como de lucro. Justificou até, com vários quids e quos, o pagamento de juros. De fato, o calvinismo estimulou uma nova concepção de vida econômica. Em lugar do antigo ideal de estabilidade social e econômica, de se conhecer e manter o “lugar” de cada um, conferiu respeitabilidade a um ideal de luta, de aperfeiçoamento e progresso material, de crescimento econômico (HEILBRONER, 1987, p. 80). Essa moral criaria o que Max Weber, no século XIX, ao estudar a fundo a relação entre a religião e o capitalismo, identificou como o espírito do capitalismo: De fato, o summum bonum dessa ética, o ganhar mais e mais dinheiro, combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista, para não dizer hedonista; é pensado tão puramente como um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como um meio para a satisfação de suas necessidades materiais. Essa inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio-guia do capitalismo, tanto quanto soa estranha para todas as pessoas que não estão sob a influência capitalista (WEBER, 1996, p. 21). Assim, em algum momento do passado, o processo de industrialização foi ganhando o espaço antes reservado à agricultura e às outras atividades extrativas. O período em que esse processo efetivamente teve início, e a partir do qual se desenvolveu, é aquele que compreende o final do século XVIII até o século XIX. Nesse momento, as velhas estruturas fabris ainda continuavam a conviver com modernas técnicas produtivas (e isso aconteceriapor um bom tempo); grandes invenções transformavam a indústria: máquina de fiar, tear mecânico, máquina a vapor, lançadeira volante, patentes para técnicas diversas de fundição, bombeamento de minas e obras hidráulicas. 21 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Todas essas inovações seriam responsáveis por profundo desenvolvimento em relação às atividades das indústrias de lã e siderurgia, embora ainda existissem pequenas firmas que empregavam poucos trabalhadores (nessas, o empregador não era o grande capitalista, mas o empreiteiro intermediário). A manutenção desses padrões de indústria domiciliar, inclusive, representaria um obstáculo na consagração de um caráter homogêneo da classe trabalhadora, umas vezes envolvida nos processos produtivos das grandes indústrias, outras ainda vinculada aos sistemas dos ofícios e pequenas unidades produtoras. O uso intensivo de maquinário nas fábricas – fruto de um incessante processo de inovação tecnológica –, e a expansão de uma classe trabalhadora, explorada e assalariada, caracterizavam uma crescente atividade econômica já bem distante da economia comercial e mercantil dos séculos XVII e XVIII. Saiba mais Sugerimos a leitura das obras de Charles Dickens. O autor, de forma magnífica, soube mostrar a Inglaterra pobre e miserável do século XIX. Entre seus livros recomendamos Tempos Difíceis e Oliver Twist. Este último foi transformado em filme com o mesmo nome (direção: Roman Polanski, 130 minutos, 2005). Nada parecia se traduzir em algo além de um intenso pessimismo em relação ao “progresso” da sociedade e à “evolução” da humanidade (pessimismo esse visível nas obras de Malthus e Ricardo), mas alguns viam nos Oitocentos razões para otimismo e esperança de dias melhores e de um futuro mais promissor. As degradadas e sujas cidades inglesas viam circular trabalhadores esfomeados e que viviam em condições totalmente inadequadas; ao mesmo tempo, os pensadores e a elite empresarial discutiam o terrível destino que aguardava a humanidade (em especial, a fome resultante da explosão populacional e da escassez de terras aráveis e produtivas); outros pensadores e capitalistas buscavam alternativas que pudessem criar um sistema social justo dentro (e a partir) do contexto de industrialização e da economia de mercado. Num período em que a crença na ideia do progresso era hegemônica, essas alternativas incluíam sonhos extravagantes e projetos – umas vezes mais, outras menos – mirabolantes. Saint-Simon e seus seguidores pretendiam construir uma pirâmide social na qual se ganharia em função do trabalho útil para a sociedade. Fourier escreveria sobre as falanges, locais parecidos com hotéis, onde todos viveriam e “todos teriam que trabalhar, é claro, porém poucas horas por dia. Mas ninguém tentaria escapar do trabalho, porque cada qual estaria fazendo o que mais gostava” (HEILBRONER, 1996, p. 118). 22 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I Outras iniciativas ocorreriam de forma mais pragmática, por exemplo, a fábrica de Nova Lanark, localizada nas redondezas de Glasgow, de propriedade de Robert Owen (1771-1858). Em Nova Lanark havia duas perfeitas fileiras de casas de trabalhadores com dois quartos em todas elas; havia ruas com o lixo cuidadosamente empilhado, à espera de remoção, em vez de estar espalhado em asquerosa imundície. E, nas fábricas, uma cena ainda mais incrível apresentava-se aos olhos dos visitantes. [...] Outra surpresa se impunha: não havia crianças na fábrica — pelo menos, nenhuma com menos de dez ou onze anos —, e as que lá se encontravam trabalhavam duro apenas dez horas e quinze minutos por dia. Além disso, nunca eram castigadas; na verdade, ninguém era castigado e, a não ser poucos adultos incorrigíveis que tinham sido despedidos por embriaguez crônica ou algum outro vício, a disciplina parecia basear-se na bondade, e não no medo. A porta da sala do capataz da fábrica permanecia aberta e quem quer que fosse podia (e o fazia) apresentar suas objeções a qualquer regra ou regulamento. Todos podiam consultar o livro que continha o relatório detalhado do próprio comportamento, que servia para que cada qual recebesse seu cubo, e quem se julgasse injustamente tratado podia reclamar. O mais notável de tudo eram as crianças pequenas. Em vez de viverem correndo e fazendo diabruras pelas ruas, os visitantes as encontravam na escola enorme, estudando ou brincando (HEILBRONER, 1996, p. 103). Owen, apesar de capitalista, mostrava sentimentos bastante negativos em relação ao uso do dinheiro e à propriedade privada; em função disso, proporia a criação de aldeias de cooperação, comunidade de pobres onde estes poderiam se tornar “produtores de riqueza se tivessem chance de trabalhar e [...] seus hábitos sociais deploráveis podiam se transformar com facilidade em hábitos virtuosos sob a influência de um ambiente decente” (HEILBRONER, 1996, p. 118). No entanto, aquele era um tempo de exploração humana, das crianças, em particular. Em uma passagem do livro História da Riqueza do Homem (1986), de Leo Huberman, podemos ver o que era considerado normal, no século XIX, em termos de duração de um dia de trabalho em uma fábrica inglesa: As crianças agora trabalhavam em fábricas, sob a direção de um supervisor cujo emprego dependia da produção que pudesse arrancar de seus pequenos corpos, com horários e condições estabelecidos pelo dono da fábrica, ansioso por lucros. Até mesmo um senhor de escravos das Índias Ocidentais poderia surpreender-se com o longo dia de trabalho das crianças. Um deles, falando a três industriais de Bradford, disse: “Sempre me considerei infeliz pelo fato de ser dono de escravos, mas nunca, nas Índias Ocidentais, pensamos ser possível haver ser humano tão cruel que exigisse de uma criança de 9 anos trabalhar 12 horas e meia por dia, e isso, como os senhores reconhecem, como hábito normal” (HUBERMAN, 1986, p. 192). 23 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Heilbroner (1996) também se espanta com a miséria e a exploração infantil. Conforme o autor, em 1828, The Lion, uma revista radical para a época, publicou a incrível história de Robert Blincoe, uma das oito paupérrimas crianças que haviam sido enviadas para uma fábrica em Lowdham. Os meninos e as meninas — tinham todos cerca de dez anos — eram chicoteados dia e noite, não apenas pela menor falta, mas também para desestimular seu comportamento preguiçoso. E comparadas com as de uma fábrica em Litton, para onde Blincoe foi transferido a seguir, as condições de Lowdham eram quase humanas. Em Litton, as crianças disputavam com os porcos a lavagem que era jogada na lama para os bichos comerem; eram chutadas, socadas e abusadas sexualmente; o patrão delas, um tal de Ellice Needham, tinha o horrível hábito de beliscar as orelhas dos pequenos até que suas unhas se encontrassem através da carne. O capataz da fábrica era ainda pior. Pendurava Blincoe pelos pulsos por cima de uma máquina até que seus joelhos se dobrassem e então colocava pesos sobre seus ombros. A criança e seus pequenos companheiros de trabalho viviam quase nus durante o gélido inverno e (aparentemente apenas por pura e gratuita brincadeira sádica) os dentes deles eram limados! (HEILBRONER, 1996, p. 101). Saiba mais O trabalho infantil ainda é uma tragédia nos nossos tempos. Se você quiser saber mais sobre o combate ao trabalho infantil, leia o conteúdo do site do Ministério do Trabalho e Emprego, e, em particular, as publicaçõesque ali estão sobre o assunto. Disponível em: <http://www2.mte.gov.br/ trab_infantil/default.asp>. Aquele era um tempo em que mudanças ocorreriam não apenas sob a forma do livre-pensamento de políticos e capitalistas, mas também sob a forma de teorias que buscassem explicitar uma ordem racional na história da humanidade, ordem essa sempre no sentido do avanço e da melhoria. A documentação sobre esse período é farta: “o século da imprensa ao alcance de todos e da disseminação quase universal da alfabetização nos legou fontes documentárias de uma abundância até agora superior à de qualquer outro século anterior” (DOBB, 1987, p. 257). Aquele seria o momento em que se organizariam estruturas sociais bastante específicas. O aumento populacional (principalmente em função da queda da mortalidade causada pelas melhorias nas técnicas de saúde pública), a expansão do mercado (por meio da divisão do trabalho e dos acréscimos na produtividade) e as invenções modificariam as cidades e a produção. Entre 1775 e 1875, o mundo passaria por um intenso progresso econômico, embora desigual, se comparados países, ou mesmo se comparados diferentes setores industriais. Os trabalhadores 24 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I concentram-se num só lugar, a fábrica. O processo de produção agora é coletivo, e, do operário, não é mais esperada vontade própria ou aptidão especial, mas apenas destreza e obediência às exigências das máquinas. Também, era agora necessário capital para financiar o equipamento complexo requerido pelo novo tipo de unidade de produção; e criara-se um papel para um tipo novo de capitalista, não mais apenas como usurário ou comerciante em sua loja ou armazém, mas como capitão de indústria, organizador e planejador das operações da unidade de produção, corporificação de uma disciplina autoritária sobre um exército de trabalhadores que, destituídos de sua cidadania econômica, tinham de ser coagidos ao cumprimento de seus deveres onerosos a serviço alheio pelo açoite alternado da fome e do supervisor do patrão (DOBB, 1987, p. 262). Nesses termos, a revolução industrial pode ser descrita como “uma série contínua de transformações que perdurou além mesmo do século XIX, em vez de como uma modificação feita de uma só vez” (DOBB, 1987, p. 269). No entanto, “uma vez vinda a transformação crucial, o sistema industrial embarcou em toda uma série de revoluções na técnica de produção, como traço notável de uma época do capitalismo amadurecido” (DOBB, 1987, p. 270). As invenções provocavam a especialização do trabalho, que, assim dividido, facilitava a introdução de novas inovações, caracterizando um processo cumulativo e irreversível em termos do aumento da produtividade, da concentração da produção e da acumulação. Essa última tendência, filha da complexidade crescente do equipamento técnico, é que iria preparar o terreno para outra transformação crucial na estrutura da indústria capitalista, e gerar o “capitalismo de corporação” monopolista (ou semimonopolista ou quase monopolista) em grande escala da era atual (DOBB, 1987, p. 270). As invenções surgiam em função das necessidades prementes das indústrias e, com o auxílio do espírito prático e comercial dos capitalistas, mudavam a face da economia e das estruturas sociais. A força de trabalho não apenas era uma mercadoria, mas uma mercadoria disponível e disposta a se empregar em troca de salários extremamente baixos. Os cercamentos de terra e o êxodo da população rural disso resultante também fariam aumentar o número de trabalhadores dispostos a trabalhar em troca de qualquer salário. A acumulação do capital, portanto, excedia o crescimento da oferta de trabalho. São os pensadores clássicos que irão consagrar uma forma de “ler” esse novo mundo. As preocupações desses primeiros teóricos resumem-se em três categorias: produção, distribuição e circulação de riqueza, esta última vista como consequência da consolidação do Estado burguês na Europa oitocentista. Os principais pensadores dessa escola foram Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus e John Stuart Mill. Essa doutrina, a do liberalismo econômico, terá em suas bases a liberdade pessoal, a propriedade privada, a iniciativa individual, a empresa privada e a interferência mínima do governo: as ideias clássicas eram liberais, em contraste com as restrições feudais e mercantilistas sobre a escolha de profissões, as transferências de terra e o comércio. 25 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Esse liberalismo clássico irá defender a interferência mínima do Estado na economia, bem como o comportamento econômico individual baseado no autointeresse, e buscará leis explicativas dos fatos econômicos. Para ele, não é apenas a agricultura que cria riqueza: a origem desta se encontra em todos os ramos da atividade econômica. Adam Smith (1723-1790) é o precursor dos autores clássicos, desenvolvendo um padrão de análise a ser reproduzido por seus sucessores (o sumário de A Riqueza das Nações (1983, 1996), sua principal obra, é quase o mesmo daqueles dos escritos de Malthus e Ricardo). Para Smith, a riqueza de uma nação é medida pela produção total anual de um país, que será consumida por um determinado número de pessoas. Assim, a riqueza é dada pela relação entre a produção anual e a população. A divisão do trabalho gera a riqueza, e esse processo (o de consecutivas divisões e especializações) só encontra limites no tamanho do mercado: a divisão do trabalho ocorrerá até o limite das possibilidades do tamanho do mercado. Para Smith (1983-1996), o sistema econômico tende ao equilíbrio natural, tal como observado na natureza física, e é resultado do comportamento egoísta que, direcionado ao bem-estar individual, gera o bem-estar social. Como isso ocorre? Para Smith (1983-1996), ao buscar seu próprio interesse, cada agente tem também de considerar o interesse do outro: um bom exemplo é o de um comerciante que diminui o preço de sua mercadoria caso os clientes optem por outro comerciante que venda mais barato. Será essa busca do progresso individual, busca essa motivada pelo autointeresse, que resultará no crescimento das cidades, no aumento da eficiência econômica e no acúmulo da riqueza material. Saiba mais Sobre a questão do autointeresse, sugerimos a leitura do texto A Fábula das Abelhas: vícios privados, benefícios públicos, de Eduardo Gianetti da Fonseca, disponível em: <http://pt.braudel.org.br/publicacoes/braudel- papers/05.php>. Smith tentaria, dessa forma, compreender o sistema econômico em sua totalidade, em especial no que diz respeito à alocação de recursos para os fatores de produção, aos mecanismos de autorregulação do mercado e ao modelo de crescimento. Segundo Heilbroner e Milberg (2008, p. 75), Smith mostrou que o sistema de mercado é um processo autorregulador. A bela consequência de um mercado competitivo é que ele é seu próprio guardião. Se preços ou lucros saírem de seus níveis “naturais”, determinados pelos custos, haverá forças que os reconduzirão à linha. Surge, então, um paradoxo curioso. O mercado competitivo, que tem em seu ápice a liberdade econômica individual, é ao mesmo tempo o mais rígido supervisor econômico. 26 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I O exemplo utilizado por Adam Smith em A Riqueza das Nações (1983-1996) é o da fábrica de alfinetes. Por meio das atividades observadas nessa fábrica, ele explicará como a divisão de trabalho acaba por gerar riqueza a partir do aumento da produtividade: Um operário desenrola oarame, outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se três ou quatro operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em algumas manufaturas, são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa duas ou três delas. [...] Se, porém, tivessem trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1 (SMITH, 1996, p. 66) Por seu turno, Thomas Malthus (1766-1834) está preocupado com outra coisa: o que o atormenta é a fome e a imensa miséria dos trabalhadores. Para ele, é visível que, como consequência dos desdobramentos da revolução industrial , a acumulação do capital e da renda da terra se faz a partir do arrocho do salário dos trabalhadores; Malthus escreve sob efeito dos conflitos de seu tempo, conflitos esses marcados pelo confronto dentro da elite econômica entre os interesses do capital agrário e do capital industrial, ainda nascente. Os proprietários de terra desejam impostos altos de importação para os cereais para que possam elevar os preços internos. Os industriais querem os cereais vendidos a preços menores para que não tenham de aumentar os salários. Os pobres e miseráveis perdem, aos poucos, a parca ajuda financeira das paróquias. Malthus está extremamente preocupado com o destino da espécie humana. Para ele, tem sido dito que uma grande questão está hoje em debate: se doravante o homem se lançará para frente, com velocidade acelerada, em direção a um aperfeiçoamento ilimitado e até agora inimaginável, ou se será condenado a uma permanente oscilação entre a prosperidade e a miséria e, depois de todo esforço, ainda permanecerá a uma incomensurável distância do objetivo desejado (MALTHUS, 1996, p. 243). Malthus (1996) analisa o crescimento populacional e o aumento da produção de alimentos e chega à seguinte conclusão: “não há como essa conta bater”. A população cresce a taxas geométricas, enquanto a produção de alimentos cresce a uma taxa aritmética. Malthus conclui: em pouco tempo haveria milhões de esfomeados, a não ser que se pudesse contar com o providencial auxílio das guerras, das pragas e das pestes. O modelo malthusiano pode ser representado como a seguir: 27 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Crescimento populacional Produção de alimentos Fome, doenças, crises sociais, políticas, mortes Capacidade de produção de alimentos Teoria de Malthus Figura 1 - O modelo malthusiano Para Malthus, essa era a tendência natural da humanidade: “independentemente do êxito conseguido pelos reformadores, em suas tentativas de modificar o capitalismo, a atual estrutura de proprietários ricos e trabalhadores pobres reapareceria inevitavelmente” (HUNT, 2005, p. 69). Essa divisão de classes era uma consequência inevitável da lei natural: “parecia que, pelas leis inevitáveis da natureza, alguns seres humanos teriam de passar necessidade. Essas eram as pessoas infelizes que, na grande loteria da vida, tinham tirado um bilhete em branco” (ibidem, p. 69). Malthus, apesar da rigorosa formação religiosa, é contrário a qualquer tipo de ajuda aos pobres. Em sua opinião, se a ajuda aos menos privilegiados surtisse algum efeito, eles já teriam desaparecido da face da terra. Segundo ele, “o fato de que aproximadamente 3 milhões são coletados anualmente para os pobres e, entretanto, sua miséria ainda não tenha sido eliminada, é um objeto de permanente assombro” (MALTHUS, 1996, p. 268). Sua opinião apoia-se na seguinte justificativa: As leis dos pobres da Inglaterra tendem a rebaixar a condição geral do pobre dos dois modos seguintes. Sua primeira tendência óbvia é de aumentar a população sem um aumento de alimento para sustentá-la. Um pobre pode casar com pouca ou nenhuma perspectiva de ser capaz de sustentar uma família com independência. Pode-se dizer que, de certo modo, as leis criam o pobre que mantêm; e como as provisões do país, em consequência do aumento populacional, devem ser distribuídas a cada pessoa em pequenas quantidades, é evidente que o trabalho daqueles que não são sustentados pela assistência da paróquia comprará menor quantidade de provisões do que anteriormente e, consequentemente, a maioria deles será forçada a reclamar por sustento. Em segundo lugar, a quantidade de provisões consumida em albergues por uma parcela da sociedade que não pode, em geral, ser considerada a mais importante diminui as cotas que, de outro modo, caberiam aos elementos mais operosos e mais dignos; e, então, dessa maneira, obriga muitos a se tornarem dependentes. Se os pobres dos albergues fossem viver melhor do que vivem hoje, essa nova distribuição de 28 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I dinheiro da sociedade tenderia mais evidentemente a rebaixar a condição daqueles que não estão nos albergues, por ocasionar uma elevação do preço das provisões (MALTHUS, 1996, p. 270-1). Observação Ideias não nascem sós: evidência disso é a série de estudos que vem sendo feita para investigar a relação entre as ideias de Thomas Malthus e as de Charles Darwin. Ambos partiram de uma mesma realidade, e suas obras apresentam aproximações interessantes. Afinal, ambos buscaram compreender os processos de seleção natural e de sobrevivência da espécie humana. Saiba mais Se você quiser ler mais sobre o assunto levantado na Observação anterior, sugerimos O Conceito da Natureza em A Origem das Espécies, de Anna Carolina K. P. Regner. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?pid=S0104-59702001000400010&script=sci_arttext&tlng=pt>. David Ricardo (1772-1823) tinha ideias em comum com Malthus. Discordava, porém, em uma série de fatores: apesar da enorme amizade pessoal entre os dois, eram inimigos intelectuais. Ricardo concordava com a ideia de o crescimento populacional ser responsável pela “corrosão” salarial do trabalhador, sempre levando esse salário ao nível de subsistência. No entanto, Ricardo discordava de Malthus em relação à renda da terra. Para Ricardo, “o preço dos cereais, em relação ao preço das mercadorias industrializadas, era regulado pela tendência do trabalho e do capital, quando empregados em terras cada vez menos férteis, a produzir cada vez menos cereais” (HUNT, 2005, p. 87). Quer dizer, eram as terras menos férteis que determinavam a renda das terras mais férteis. Saiba mais As ideias desses fundadores das ciências econômicas são ainda debatidas e analisadas à exaustão: do tempo em que a economia política buscava um estatuto de ciência que a diferenciasse da filosofia moral, as obras desses autores ainda trazem as marcas – indeléveis – de um período em que juízo moral e ciência podiam – e deviam – estar próximos. 29 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Figura 2 - Thomas Malthus Figura 3 - David Ricardo Apesar de oponentes nas ideias, Thomas Malthus e David Ricardo desenvolveram uma amizade que se manteve durante suas vidas. Segundo Heilbroner (1996, p. 85), “O debate sem fim dos dois prosseguiu, por cartase visitas, até 1823. Em sua última carta para Malthus, Ricardo escreveu: ‘E agora, meu querido Malthus, para mim chega. Como outros disputantes, depois de muita discussão, cada um de nós mantém as próprias opiniões. No entanto, essas discussões jamais alteraram nossa amizade; eu não gostaria mais de você, caso concordasse com minhas opiniões’. Ele morreu nesse ano, subitamente, com cinquenta e um anos; Malthus viveu até 1834. Sua opinião sobre David Ricardo: ‘Não amei ninguém tanto assim, a não ser minha família’”. Você pode ter contato com pensamentos do período consultando o livro A Era do Economista (2000), de Daniel R. Fusfeld. Outra obra interessante e que em muito o ajudará é Novas Ideias de Economistas Mortos (2000), escrito por Buchholz. Entre a perspectiva otimista de Smith e o olhar pessimista de Malthus e Ricardo, temos a obra de John Stuart Mill: nascido em Londres, em 1806, filho do filósofo James Mill, iniciou sua educação ainda muito criança. Talvez seu maior desafio tenha sido sobreviver à rotina massacrante de estudos imposta pelo pai: o estudo de grego teria começado aos três anos de idade, e aos sete os primeiros seis diálogos de Platão já eram conhecidos. Fiel defensor dos direitos das mulheres e do sufrágio universal, Mill acreditava na necessidade de dar voz às minorias como forma de legitimar a decisão majoritária. Nas suas obras, Mill indaga: como conciliar uma visão histórica do homem e da sociedade com os critérios metodológicos consagrados como verdadeiramente científicos? Forjado na herança intelectual de seu pai e de Bentham, erudito em Lógica, estudioso refinado da Economia política, socialista utópico para uns e defensor do sistema de mercado para outros, John Stuart Mill procura realizar o estudo da Economia política a partir da herança deixada por outros pensadores do passado (Adam Smith, Malthus e Ricardo, entre eles), inspirado pelo pensamento científico do século XIX, impulsionado pelos conflitos éticos e 30 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I sociais do momento histórico em que vivia, otimista e progressista, mas profundamente interessado em fazer a ciência esperada segundo os critérios da comunidade científica de seu tempo. O mundo passava por grandes transformações. De fato, entre o pessimismo e o otimismo, uma grave crise estava sendo alimentada: essa crise resultaria da expansão da produção associada à redução da lucratividade dos negócios: dificuldades para abertura de novas oportunidades, rapidez na acumulação de capital e limites para a exploração da mão de obra contribuíram para o desenvolvimento da crise que romperia ao final do século XIX, aparentemente tão promissor nos seus primórdios. A substituição crescente da mão de obra por maquinário gerava desemprego, e a revolta era tão grande que, ao final do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, eram normais as invasões de fábricas por hordas de trabalhadores. Conforme afirma Heilbroner (1996, p. 102-3), fábricas destruídas espalhavam-se pelo campo, e a cada uma o comentário era ‘Ned Ludd passou por aqui’. O boato era que um rei Ludd ou um general Ludd estava dirigindo as atividades da turba. Não era verdade, claro. Os luddites, como eles eram chamados, inflamavam- se pelo puro e espontâneo ódio às fábricas, que viam como prisões, e ao trabalho assalariado, que desprezavam. [...] Para a maior parte dos observadores [...], as classes baixas estavam escapando do controle e era preciso agir severamente para acabar com a situação. E, para as classes altas, aqueles acontecimentos pareciam indicar que um violento e terrificante Armageddon se aproximava. Ao final do século XIX, a concorrência exigia a criação de mecanismos de defesa contra a redução de preços e de margens de lucro. “Essa maior preocupação com os perigos da concorrência sem barreiras veio numa época em que a crescente concentração da produção, principalmente na indústria pesada, lançava os alicerces de uma centralização maior da propriedade e do controle da política dos negócios” (DOBB, 1987, p. 310). Esse contexto enseja a formação de trustes, de associações de produtores industriais e de cartéis. As empresas europeias (especialmente as de capital britânico), desesperadas por conquistar novos mercados, irão exportar bens de capital para a Ásia, a África e a América. Assim será com a exploração do salitre no Chile, com a construção de ferrovias e portos no Brasil, no México, no Japão, no Canadá e na Argentina: se o capital já não pode ser traduzido em acumulação nos seus locais de origem, irá ser exportado para o exterior, e de lá trará os lucros tão desejados pelos empresários. 31 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS Saiba mais Sugerimos a leitura de Santa Maria de Iquique, Há Cem Anos, de Ivy Judensnaider, em que a autora relata o ocorrido nas minas de salitre do Chile no começo do século XX. Disponível em: <http://www.arscientia.com. br/materia/ver_materia.php?id_materia=442>. Também sugerimos o filme Mauá, o Imperador e o Rei (direção: Sérgio Rezende, 134 minutos, 1999), que trata do embate entre o capital inglês e o capital nacional). Inspirados pela visão dos sucessos de levantes operários e envolvidos no trabalho de entender e resolver os problemas oriundos da acumulação capitalista, Marx e Engels buscarão a análise do capitalismo, defendendo sua inexorabilidade rumo à destruição. A concepção materialista da História, escreveu Engels, [...] origina-se do princípio [de] que a produção, e com a produção a troca de seus produtos, é a base de toda ordem social; [de] que em cada sociedade que apareceu na História a distribuição dos produtos, e com ela a divisão da sociedade em classes ou estados, é determinada pelo que é produzido, como é produzido e como o produto é trocado. De acordo com esta concepção, as causas finais das mudanças sociais e das revoluções políticas devem ser vistas, não na mente dos homens nem em seu crescente impulso em direção da eterna verdade e da justiça, mas sim nas mudanças das maneiras de produção e de troca; devem ser vistas não por meio da filosofia, mas sim da economia da época concernente (HEILBRONER, 1996, p. 138). Marx, acrescentando, fará uma previsão: o capitalismo se destruirá por si. A produção não planejada, a desorganização do sistema, as constantes oscilações de preços, tudo estaria conspirando para a inexorável crise. O sistema, simplesmente, era complexo demais; desencaixava-se de maneira constante, perdia o ritmo, produzia determinada mercadoria em excesso e outra de menos. [...] o capitalismo deveria produzir seu sucessor sem o saber. Dentro de suas grandes fábricas ele precisaria não apenas criar a base técnica para o socialismo — produção racionalmente planejada —, mas teria, além disso, que criar uma classe bem-treinada e disciplinada que viria a ser o agente do socialismo, o amargurado proletariado. Por sua própria essência dinâmica, o capitalismo iria produzir a própria queda e, no processo, alimentaria o inimigo (HEILBRONER, 1996, p. 141). 32 Re vi sã o: V irg ín ia - R ed ia gr am aç ão : M ár ci o - 28 /0 9/ 20 15 Unidade I Algumas das principais ideias de Marx podem ser assim resumidas: para ele, o capital era quem gerava lucros para uma específica e especial classe social; a relação econômica básica era a da troca e, nesse sentido, as mercadorias tinham um valor de uso (criado pelo trabalho útil) e um valor de troca (criado pelo valor abstrato); o valor de troca era expresso em termos de preço monetário; ainda, “o valor de uso não poderia ser a
Compartilhar