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INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS “A Faculdade Católica Paulista tem por missão exercer uma ação integrada de suas atividades educacionais, visando à geração, sistematização e disseminação do conhecimento, para formar profissionais empreendedores que promovam a transformação e o desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade em que está inserida. Missão da Faculdade Católica Paulista Av. Cristo Rei, 305 - Banzato, CEP 17515-200 Marília - São Paulo. www.uca.edu.br Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. Todos os gráficos, tabelas e elementos são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência, sendo de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Diretor Geral | Valdir Carrenho Junior Professor | Luiz Alberto Neves Filho Sumário UNIDADE 1 – O PENSAMENTO CIENTÍFICO E O CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS INTRODUÇÃO ................................................................ 7 1. O conceito de sociedade e os objetivos das Ciências Sociais ...................................................................... 7 1.1 Sociedade ................................................................ 7 1.1.1 Revoluções econômicas e sociais .............................. 9 1.2 Objetivos das Ciências Sociais ................................. 10 2. O que é ser cientista social hoje? ............................. 11 3. O histórico da consolidação das Ciências Sociais como campo de pesquisa e conhecimento ................ 13 4. Os desafios para a compreensão do mundo contemporâneo ....................................................... 18 CONCLUSÃO ............................................................... 20 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ................................... 21 REFERÊNCIAS ................................................................ 22 UNIDADE 2 – A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL: RELAÇÃO ENTRE INDIVÍDUO E SOCIEDADE INTRODUÇÃO .............................................................. 24 1. O social no indivíduo: as marcas sociais que exibimos nas formas de agir e pensar ..................................... 24 2. Memória e identidade social .................................... 27 3. Cultura e ideologia ................................................. 29 3.1 Conceito de cultura .................................................. 29 3.1.1 Cultura, Nação e Identidade Nacional .................... 31 3.2 Ideologia ................................................................ 31 4. A divisão social do trabalho ..................................... 32 5. Força, legitimidade, normas e poder ......................... 35 CONCLUSÃO ............................................................... 37 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ................................... 38 REFERÊNCIAS ................................................................ 39 UNIDADE 3 – COMO A SOCIEDADE SE TRANSFORMA: O MUNDO DA POLÍTICA INTRODUÇÃO .............................................................. 41 1. Da noção grega de pólis a Maquiavel: a construção do pensamento político ........................................... 41 2. O Contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau ....... 44 2.1 Estado de Natureza em Hobbes, Locke e Rousseau .... 44 2.2 Propriedade Privada em Hobbes, Locke e Rousseau .. 45 3. Perspectivas e formas de poder ................................. 47 3.1 Aristocracia ............................................................. 47 3.2 Ditadura ................................................................. 48 3.3 Democracia ............................................................ 48 3.4 Revolucionária ........................................................ 50 4. O poder, a sociedade civil e o Estado .......................... 50 4.1 Poder ..................................................................... 50 4.2 Sociedade civil e Estado ........................................... 51 CONCLUSÃO ............................................................... 53 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ................................... 53 REFERÊNCIAS ................................................................ 54 UNIDADE 4 – ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS INTRODUÇÃO .............................................................. 57 1. Metodologia em Ciências Sociais ............................. 57 2. Metodologia científica de caráter qualitativo: esforços e proposições ......................................................... 60 3. Metodologia científica de caráter quantitativo: esforços e proposições ......................................................... 62 CONCLUSÃO ............................................................... 65 ELEMENTOS COMPLEMENTARES ................................... 66 REFERÊNCIAS ................................................................ 67 Unidade 1 Objetivos de aprendizagem da unidade • Definir o campo das Ciências Sociais, as diferenças com as ciências naturais e os objetivos das disciplinas que buscam compreender o mundo social • Identificar os campos de atuação do cientista social e apresentar aplicações práticas e potenciais procedimentos • Compreender o contexto histórico do período da origem das Ciências Sociais e a busca de reconhecimento no interior do campo científico • Identificar vínculos entre o pensamento sociológico e questões contemporâneas Professor Mestre Luiz Alberto Neves Filho O PENSAMENTO CIENTÍFICO E O CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS O pensamento científico e o campo das ciências sociais 7 Unidade 1 INTRODUÇÃO Nesta unidade apresentaremos a constituição, o desenvolvimento do pensamento cientifico e a definição do campo de atuação das Ciências Sociais. As Ciências Sociais e Políticas representam um ramo importante da vertente científica, responsável pela realização dos estudos acerca da sociedade e dos seus movimentos ao longo da história humana. As Ciências Sociais e Políticas são compostas pelas seguintes áreas: Antropologia, Ciência Política e Sociologia. A Antropologia é a área que realiza estudos sobre o Homem no seu meio social, analisando, assim, a humanidade na sua totalidade. A Ciência Política se incumbe da realização de estudos sobre a Política e todas as suas repercussões (sistemas políticos, organizações e processos políticos). A Sociologia é a área responsável por estudos científicos relacionados às sociedades humanas, desde a sua constituição até os desdobramentos modernos (transformações), que impactam diretamente no cotidiano dos indivíduos. O desenvolvimento de métodos científicos foi necessário para a constituição das Ciências Sociais, primeiramente, como disciplina cientifica, e, posteriormente, como detentora de área de atuação própria, na realização de estudos sobre a sociedade moderna ocidental. Bons estudos! 1. O CONCEITO DE SOCIEDADE E OS ObjETIvOS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS A sociedade é o alvo de todas as pesquisas realizadas pelas Ciências Sociais – esta não existira sem a primeira. Em um primeiro momento, é necessário compreender o processo de formação das sociedades, suas características e sua face atual. Estudos que levem a definições conceituais, observações empíricas e também ao levantamento das características das sociedades constituem os objetivos das Ciências Sociais. Veremos alguns destes elementos a seguir. 1.1 Sociedade Existe grande controvérsia quanto ao conceito de sociedade, entretanto é possível afirmar que todas as definições (aceitas e reconhecidas pelas Ciências Sociais) partem de um princípio de que a sociedade é, antes de tudo, uma abstração (não acabada e em transformação). É uma abstração, que possui características complexas e que é composta por diversos agrupamentos, e também diversas configurações que merecem ser estudadas (SIMMEL, 2004). O desenvolvimento das complexidades (característicasda abstração da sociedade) se originou do processo civilizatório e teve como consequência o surgimento de um modelo de sociedade que necessita de estudos sobre a sua estrutura e o seu funcionamento. Diversos acontecimentos históricos (por exemplo, Revolução Industrial, Revolução Francesa e Revolução Científica), juntamente com fatores epistemológicos (mudança na maneira de pensar e enfrentar a realidade) trouxeram uma nova perspectiva histórico-social para os homens, culminando no surgimento do modelo de sociedade existente ainda hoje: sociedade moderna (SELL, 2001). Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 8 As diversas transformações ocorridas no decorrer da história do homem moderno levaram, a partir do século XIX, ao surgimento da necessidade de desenvolvimento de uma área científica que seria responsável pela investigação das transformações presentes na sociedade moderna, ou seja, investigação científica dos elementos geradores de transformações no meio social do homem moderno: Sociologia. A Sociologia surgiu como área científica responsável pela análise aprofundada dos desdobramentos e transformações da sociedade moderna, sendo possível também definir a Sociologia como Teoria da Modernidade (SELL, 2001). Augusto Comte, em 1839, alterou da ciência que estudava a sociedade, dando a ela o nome de Sociologia (do latim “socius” e do grego “lógos” – que significa estudo social) (SELL, 2001). A sociedade é composta por indivíduos em interação, e não uma coisa fixa ou acabada; portanto a Sociologia deve se preocupar em estudar os indivíduos em interação (SIMMEL,2004). O ser humano é, por natureza, um ser social e sua sociabilidade se sustenta na interação dos indivíduos no mesmo meio social. Segundo Simmel (apud CASTRO, 2014), a interação entre os indivíduos pode ser observada na sociedade de várias formas, por exemplo, mediante conflitos, competição, submissão ou cooperação. A imagem, a seguir, demonstra um exemplo da socialização dos indivíduos: Relações e interações sociais Fonte: Pixabay. O pensar sociologicamente deve ser crítico desde a sua origem, tendo em vista que o pensamento científico deve ser pautado sempre na dúvida, e o sociólogo (como homem da ciência) deverá apresentar essa atitude. A dúvida é a base para o pensar sociologicamente crítico, pois a Sociologia, na busca pela compreensão dos fenômenos sociais, deve duvidar de tudo, inclusive de si mesma (SOUTO, 1987). O pensamento científico e o campo das ciências sociais 9 Unidade 1 Os três principais pensadores das Ciências Sociais (Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber) apresentam conceitos teóricos e métodos científicos diferentes para a análise da sociedade, e isso é possível devido ao fato das Ciências Sociais não constituírem uma ciência exata, ou seja, nas Ciências Sociais é possibilitada existência de interpretações diferentes para um mesmo fato. Fonte: Elaborado pelo autor. 1.1.1 Revoluções econômicas e sociais Três grandes revoluções (transformações profundas) abalaram completamente o modelo de sociedade que vigorava até o século XVIII e deram sustentação para o surgimento de um novo modelo se agrupamento social (sociedade moderna industrial): Revolução Francesa, Revolução Industrial e Revolução Científica. • Revolução Francesa A Revolução Francesa, ocorrida em 1789, provocou diversas transformações na forma de pensar o mundo (de maneira filosófica - Iluminismo), juntamente com o surgimento de novos ideais políticos e, também, com o desenvolvimento de novas formas de organização do poder. A Revolução Francesa apresentou uma forma de rompimento com o regime antigo, trazendo novas perspectivas sociais, como é possível ver na imagem a seguir: Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade Fonte: Pixabay. A partir da promessa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a Revolução Francesa trouxe impactos nas formas de organização do poder e na estrutura de funcionamento da sociedade, gerando o desenvolvimento de condições para o surgimento da sociedade moderna (SELL, 2001). Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 10 • Revolução Industrial Entre os séculos XVIII e XIX a sociedade passou por diversas transformações sociais rápidas e intensas, que tiveram origem em acontecimentos da ordem econômica (classificados posteriormente como Revolução Industrial). O desenvolvimento de equipamentos tecnológicos (máquinas) alterou toda a forma de relacionamento existente até então entre os indivíduos e trouxe como consequências diretas a elevação da produtividade e o surgimento de duas grandes classes sociais: burguesia e proletariado (SELL, 2001). • Revolução Científica A busca por explicações lógico-racionais para os diversos fenômenos acompanha a humanidade desde o seu surgimento (acentuada pelo desenvolvimento de novas estruturas, por exemplo a sociedade). A elaboração de métodos racionais e rigorosos deixou de lado práticas pautadas em tradições populares e religiosas. O rompimento com a lógica não formal na busca pela “verdade” trouxe implicações profundas na sociedade (e nos seres humanos) com o surgimento da ciência moderna. As bases que deram origem à ciência moderna proporcionaram um novo olhar para o mundo, em que as explicações baseadas em métodos não lógicos não explicam de maneira satisfatória os diversos fenômenos que rodeiam o homem e a sociedade. O desenvolvimento de uma percepção crítica e questionadora se faz necessário nessa nova sociedade. Esse cenário deu origem às Ciências Sociais. 1.2 Objetivos das Ciências Sociais É necessário destacar, inicialmente, que cada uma das Ciências Sociais (Antropologia, Sociologia e Ciência Política) possui objetivos específicos próprios (que são convergentes). Entretanto, podemos afirmar que de maneira geral e integrada a finalidade das Ciências Sociais é buscar a compreensão, de maneira lógica, crítica e cientifica, das estruturas de funcionamento da sociedade em todas as suas esferas (política, cultural, social e econômica). A sociedade moderna (gerada pelas transformações política, econômica e social dos últimos séculos) é constituída por arcabouço de instituições que merecem serem estudadas, e as Ciências Sociais têm o objetivo (e a missão) de oferecer estudos científicos pautados em métodos reconhecidos e que apresentem panoramas lógicos sobre o funcionamento das instituições que compõem a sociedade moderna. O artigo “Sobre os obstáculos sociais ao desenvolvimento histórico da razão”, da pesquisadora Sylvia Gemiganni Garcia, repercute que a razão científica, aplicada à área de Ciências Sociais, pode ser avaliada em dois níveis de conhecimento: instrumental (usado para o controle técnico do mundo) e reflexivo (que estuda as várias dimensões de sentido das práticas humanas). O material está disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662014000400751& lang=pt>. Fonte: Elaborado pelo autor. O pensamento científico e o campo das ciências sociais 11 Unidade 1 2. O qUE é SER CIENTISTA SOCIAL HOjE? A pergunta que circula o título deste tópico envolve, primeiramente, a compreensão de outros questionamentos prévios como: Quais são as características da sociedade em que vivemos hoje? Quais são as perspectivas sociais da sociedade atual? Existem diferenças da sociedade contemporânea (atual) para a sociedade analisada por Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber? Quais são as características da sociedade atual? Este será nosso ponto de partida. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um dos sociólogos contemporâneos mais reconhecidos (pela complexidade das suas obras), afirma que a modernidade assumiu uma esfera mutável (tornando o “mundo líquido” para ser mais literal) na qual a incerteza passa a ser um ator predominante na cena social (sociedade). Uma característica marcante dessa sociedade,marcada pela liquidez e pautada na incerteza, é que os indivíduos foram transformados em meros consumidores, e os consumidores foram transformados em mercadorias. Bauman (apud CASTRO, 2014, p. 121) afirma que: Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias [...]. Podemos perceber que, segundo Bauman, a sociedade moderna “evoluiu” para um modelo de sociedade marcado pelo consumo, pela incerteza e, principalmente, pela liquidez. Nesse cenário, ela se apresenta, de maneira objetiva, como opressora das vontades individuais, assumindo (de vez) um papel repressor e redutor dos indivíduos em consumidores, e os consumidores em mercadorias. Neste ponto passaremos ao segundo questionamento: Quais são as perspectivas sociais da sociedade atual? As teorias presentes nas obras dos pensadores clássicos das ciências sociais (Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber) se mantêm atuais e, ainda hoje, são referências para a compreensão dos fenômenos sociais. A sociedade moderna industrial ainda vigora, em novos moldes, e as suas estruturas sociais (que ainda podem ser avaliadas pelos clássicos da sociologia) permanecem presentes no contexto social atual. Nesse cenário, podemos perceber que as preocupações e perspectivas sociais da sociedade moderna industrial fazem parte do cotidiano dos indivíduos nos dias de hoje. O pensamento sociológico é de fundamental importância para a análise da sociedade (meio social) e das transformações na qual ela passa de maneira cotidiana. Segundo Souto (1987), ele deve se adequar aos fatos sociais concretos. A construção teórica e metodológica deve seguir a realidade da sociedade, como podemos perceber ao analisar a seguinte afirmação: Naturalmente, a própria construção teórica ex ante, sendo sociológica e, assim, científica, pressuporá algum grau de observação prévia informal da realidade. Essa construção será apenas anterior a uma comprovação fática por técnicas formais de pesquisa (observação, questionário, entrevista, experimento, etc.). (SOUTO, 1987, p. 50). Como podemos perceber, o domínio metodológico (e das práticas sociológicas) permite a aplicação dos procedimentos mais adequados à realidade social e do objeto de pesquisa. Nesse cenário, o cientista social deve atualmente se moldar às necessidades metodológicas apresentadas pelos objetos de pesquisa. O pensar sociologicamente é de fundamental importância para a prática do cientista social hoje, tendo em vista que, segundo Souto (1987, p. 53): Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 12 Pensar sociologicamente não será algo que se esgote em um mero levantamento descritivo de dados. Se o fosse, então a atividade sociológica seria apenas atividade técnica. Seria somente atividade de aplicação de conhecimento, e não de crítica ao conhecimento estabelecido e tentativa de criação de conhecimento novo. O pensar sociológico, característico das Ciências Sociais, não pode ser reduzido a atividades meramente técnicas, mas deve ser entendido como atividade crítica de questionamento ao conhecimento estabelecido, na busca pelo desenvolvimento de novos conhecimentos; ou seja, ainda hoje é uma atividade crítica e reflexiva. Como foi possível perceber neste tópico, a sociedade moderna, alvo de estudos das Ciências Sociais, passa por um processo de “mutação constante”, mas mantém as mesmas estruturas observadas pelos pensadores clássicos da Sociologia. Assim, o papel do cientista social se mostra centrado da busca pela construção de conhecimentos críticos, que atendam às expectativas de buscarem respostas para questionamentos sociais e também teóricos. O cientista social é o investigador social e usa suas técnicas (métodos científicos) como lupa social, buscando “enxergar melhor” a sociedade. Investigador social Fonte: Pixabay. As Ciências Sociais devem dar conta das lacunas criadas pela sociedade moderna e também das consequentes repercussões. Enfim, ser cientista social hoje é ser crítico dos conhecimentos existentes, observador da realidade social e, principalmente, entusiasta da busca pela liberdade das condicionantes criadas pela sociedade moderna industrial. O artigo da pesquisadora Lucie Tanguy publicado na Revista Educação e Sociedade – o título é “A sociologia: ciência e ofício” – aborda as atribuições dos profissionais da área de sociologia. A pesquisadora questiona se o sociólogo intelectual dos anos 1950-1960 estaria sendo substituído por um novo tipo de profissional, presente no papel de um consultor. O texto está disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0101-73302012000100003&lang=pt>. Fonte: Elaborado pelo autor. O pensamento científico e o campo das ciências sociais 13 Unidade 1 3. O HISTóRICO DA CONSOLIDAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS COMO CAMPO DE PESqUISA E CONHECIMENTO A análise da relação existente entre homem, sociedade e natureza no decorrer da história (Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna) constitui um elemento importante para análise da mudança social. Durante o período da Idade Antiga a filosofia clássica grega não separou o homem da sociedade e da natureza, convicção compartilhada em alguns estágios do desenvolvimento do pensamento moderno. Durante a Idade Média a ideia de unidade da razão, ligada aos primórdios da sociedade capitalista, foi uma característica da “luta” entre a Igreja e os poderes seculares. No decorrer da Idade Moderna, o poder foi secularizado e uma mudança social passou a ser necessária. Nesse cenário, o racionalismo passou a ser predominante, tendo como característica o desenvolvimento das teorias psicológica e sociológica. Existiam três tendências importantes na Idade Moderna: a otimista (evolução e progresso), a pessimista (rejeição ao progresso pacifico) e a não conformista/crítico (materialista, na direção da satisfação das necessidades materiais). Nesse cenário, o distanciamento da teoria social da filosofia – como veremos nesta unidade –, com o desenvolvimento da sociologia moderna, transformou a teoria social em uma questão sociológica específica. Até o século XIX a análise social era feita por historiadores e teóricos sociais – a teoria social foi posteriormente foi reclassificada por Augusto Comte como Sociologia –, e um pequeno conflito era aparente, pois grande parte dos historiadores demonstrava certa resistência à teoria social, a qual posteriormente deu origem às Ciências Sociais. No século XVIII não existia nenhum tipo de conflito ou controvérsia entre os dois tipos de profissionais, porque as Ciências Sociais (em especial a Sociologia) ainda não existiam como área científica independente, e teóricos sociais debatiam a sociedade civil de maneira sistemática (ainda sem métodos próprios). No final do século XVIII, com a formação dos Estados Nacionais, a historiografia passou a se concentrar nos estudos de registros oficiais (documentos), em vez de crônicas, e esse fato gerou uma revolução nos métodos utilizados. Nesse momento, a leitura do convívio social passou a ser um modo legítimo de produção de conhecimento, descartando a simples leitura de relatos descritos nas crônicas: as Ciências Sociais se constituíram como área científica e os cientistas sociais passaram a gerar os próprios dados para suas pesquisas (colocando o passado em segundo plano para compreendera sociedade). Diversas correntes de pensamento nas Ciências Sociais surgiram com o mesmo propósito: conhecer de maneira aprofundada a sociedade e buscar explicações para os fenômenos que a rodeavam. A primeira corrente de pensamento da Sociologia foi o positivismo, fundado por Augusto Comte, o primeiro “sociólogo”). O positivismo apresentava um enorme sentimento antimetafisico, ou seja, sustentava que todas as formas de produção de conhecimento não passíveis de comprovação (empírica) não possuíam sentido/significado. A sociedade passou a ser estudada por intermédio de uma forma de “microscópio social”, e diversos métodos foram desenvolvidos no processo de busca pela explicação racional para os diversos fenômenos sociais que surgiam na sociedade moderna. Segundo Sell (2001), a ciência sociológica é centrada em três problemas fundamentais para o desenvolvimento das Ciências Sociais como confiável e racional. Eles estão vinculados às teorias Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 14 sociológica, da modernidade e política. A primeira é associada à dimensão teórico-analítica; a teoria da modernidade se liga à dimensão teórico-empírica; e a teoria política está relacionada à dimensão teórico-política. Vamos conhecer os três principais pensadores da Sociologia Clássica. Émile Durkheim (1858-1917): importante sociólogo francês e principal expoente da corrente sociológica do positivismo (funcionalismo). Teve como contribuição o desenvolvimento das seguintes teorias: • Teoria Sociológica: Método Funcionalista; • Teoria da Modernidade: Divisão Social do Trabalho; • Teoria Política: Culto do Indivíduo. Émile Durkheim foi o primeiro grande pensador das Ciências Sociais e na sua teoria aponta que os diversos fenômenos sociais devem ser concebidos como “fatos sociais” e ser estudados de acordo com a sua natureza. Ele afirmava que os fatos sociais precisavam ser tratados como “coisas” e possuíam características próprias: coercitivos, gerais e externos. É fato social toda maneira de fazer, estabelecida ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção externa; ou ainda, que ele é geral na extensão de determinada sociedade, embora tenha existência própria, independentemente de manifestações individuais. (DURKHEIM, apud CASTRO, 2014 p. 33). Segundo Durkheim, os fatos sociais são coercitivos porque ocorrem independentemente da vontade dos indivíduos; são gerais, pois podem atingir a todos os indivíduos da sociedade; são externos, visto que as causas geradoras são externas aos indivíduos (não pertencendo a natureza humana – são “coisas sociais”). A sociologia, portanto, não é o anexo de nenhuma outra ciência, e sim, em si mesma, uma ciência distinta e autônoma, e a percepção do que a realidade social tem em específico é de tal forma necessária ao sociólogo que só uma cultura especificamente sociológica pode prepará- lo para a compreensão dos fatos sociais. (DURKHEIM apud CASTRO, 2014 p. 36). O método desenvolvido por Durkheim foi o funcionalista (comparativo) e tinha como objetivo buscar as explicações por meio da análise dos fatos sociais de maneira comparativa, buscando encontrar, de forma sistemática, similaridades presentes em diversos fatos sociais. Durkheim apresenta a Sociologia como uma ciência autônoma e independente, sendo a única capaz de explicar os fatos e fenômenos ocorridos na sociedade, e assim deve ser reconhecida: Ciência da Sociedade. A série 13 Reasons Why (exibida no Netflix) é baseada no livro Thirteen Reasons Why (2007), de Jay Asher, e adaptado por Brian Yorkey para a Netflix. A série cita um conjunto de situações cotidianas (sociais) que levaram uma jovem a cometer suicídio, demonstrando elementos práticos para a abordagem de Émile Durkheim em sua obra O Suicídio. Nela o autor afirma que o suicídio é um fato social – gerado por repercussões sociais externas a biologia dos seres humanos. Fonte: Elaborado pelo autor. O pensamento científico e o campo das ciências sociais 15 Unidade 1 Karl Marx (1818-1883): foi (e continua sendo até hoje) o principal expoente da sociologia crítica à sociedade moderna industrial e a todos os impactos causados aos indivíduos pelo surgimento das classes sociais (geradas pela sociedade moderna industrial). As principais contribuições teóricas foram: • Teoria Sociológica – Método Histórico-Dialético; • Teoria da Modernidade – Modo de Produção Capitalista; • Teoria Política – Revolução Comunismo. A sociologia de Karl Marx tem como base a crítica às transformações geradas na sociedade pela Revolução Francesa e Revolução Industrial (transformações que deram origem à sociedade moderna capitalista – modelo atual da sociedade). Segundo Marx, os impactos sociais das revoluções podem ser observados mediante uma análise dialética da sociedade, ou seja, uma análise das promessas que sustentaram tais revoluções e as consequências reais delas. As condições objetivas de vida dos indivíduos pioraram após as Revoluções, e segundo Marx é justamente este fato que deve ser analisado pela sociologia. Marx (apud CASTRO, 2014, p. 12) afirma que: As premissas de que partimos não são bases arbitrarias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são, pois, verificáveis por via puramente empírica. A Revolução Francesa, em sua essência, trouxe a expectativa de rompimento com o poder político dominado por um grupo por tradição (tradição religiosa – poder divino); entretanto, segundo Marx, ela possibilitou a ascensão ao poder a um grupo que não tinha poder político, mas tinha perspectiva e poder econômico: a burguesia. O desenvolvimento que a Revolução Industrial (tratada aqui de maneira una, mas que possuiu diversas fases distintas) possuía como objetivo foi obscurecido pela relação de exploração que acompanhou tal revolução. A burguesia, que tinha ascendido ao poder na Revolução Francesa, se constituiu como classe social dominante, buscando exclusivamente a concentração de capital no processo de desenvolvimento da Revolução Industrial (início da produção manufaturada com o surgimento das indústrias). O surgimento de indústrias acelerou o processo de divisão do trabalho, cabendo à classe proletária os trabalhos repetitivos e sem intelectualidade (produção). Trabalhadores na produção Fonte: Pixabay. Segundo a perspectiva marxista, a burguesia explorava o trabalho dos proletários, gerando, assim, o conflito social que sustenta o desenvolvimento da sociedade moderna até os dias atuais: burguesia X proletariado. Segundo Marx, a ciência deveria assumir um papel ativo na compreensão das condições Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 16 objetivas de vida dos indivíduos, que foram transformados em mercadorias descartáveis pela sociedade moderna (burguesa e industrial). Nesse cenário, Marx (apud CASTRO, 2014, p. 19) afirma que: A reflexão sobre as formas da vida humana, e assim também a sua análise científica, segue em geral um caminho oposto ao do desenvolvimento efetivo. Começa um post festum e com resultados prontos do processo de desenvolvimento. As formas que marcam os produtos de trabalho como mercadorias e que são pressupostas, daí, na circulação de mercadorias, possuem já a firmeza de formas naturais de vida social, antes de os homens tentarem se dar conta do caráter histórico dessas formas, que valem para eles como já imutáveis, mas do seu teor. Segundo Marx, o Estado (Estado Nacional – base para o desenvolvimento da sociedade moderna) assumiu um papel de aparato técnico-burocrático (ideológico) pela manutenção da ordem contra a revolução proletária (todos contra o proletariado); a disputa política no âmbito do Estado não ocorria por princípios e sim por interesses(o Estado passa a se constituir a partir de um horizonte de modernidade). O filme Tempos Modernos (1936), de Charlie Chaplin, apresenta a perspectiva de um proletário no desenvolvimento do mundo moderno e industrializado. Relata a trajetória de um trabalhador no mundo industrial e as formas como a exploração burguesa era realmente constituída. O filme se torna uma das bandeiras na crítica às condições de trabalho presentes após a Revolução Industrial. Fonte: Elaborado pelo autor. Max Weber (1864-1920): pensador alemão que teve um papel importante na consolidação das Ciências Sociais como disciplina científica. As suas principais contribuições teóricas foram: • Teoria Sociológica – Método Compreensivo; • Teoria da Modernidade – Método Racionalismo da Dominação do Mundo; • Teoria Política – Liderança Carismática e Ética da convicção e da responsabilidade. No início do século XX, Max Weber apresentou novas perspectivas para a sociologia na busca pela compreensão dos diversos fenômenos sociais que rodeavam a sociedade em pleno desenvolvimento. Ele defendia que a sociologia deveria estabelecer-se de maneira científica a partir das conexões dos problemas, como podemos perceber na seguinte afirmação: O domínio do trabalho científico não tem por base as conexões “objetivas” entre as “coisas” mas as conexões conceituais entre os problemas. Só quando se estuda um novo problema com o auxílio de um método e se descobrem verdades que abrem novas e importantes perspectivas é que nasce uma nova ciência. (WEBER, apud CASTRO, 2014, p. 55). Max Weber afirmava também que o indivíduo e a sua subjetividade deviam estar no centro dos estudos da sociologia, e os tipos ideais precisavam percorrer o caminho para a compreensão do papel dos sujeitos na sociedade (tais como todas as suas formas de influência). Ele ressaltava ainda que era necessária a construção sociológica de determinada forma de organização social que servisse como modelo para análise de ações sociais e que esse modelo não seria existente na realidade (servindo apenas como ferramenta metodológica racional – para a compreensão da realidade): tipos sociais ou tipo ideal. Como destacou o pensador alemão: As construções da teoria abstrata só na aparência são “deduções” a partir de motivos psicológicos fundamentais. Na realidade, trata-se antes do caso especial de uma forma da construção de conceitos, O pensamento científico e o campo das ciências sociais 17 Unidade 1 própria das ciências da cultura humana e, em certo grau, indispensável... Pelo seu conteúdo, essa construção reveste-se do caráter de utopia, obtida mediante a acentuação mental de determinados elementos da realidade. A sua relação com os fatos empiricamente dados consiste apenas em que, onde quer que se comprove, ou suspeite de que determinadas relações – tipo das representadas de modo abstrato naquela construção, a saber, as dos acontecimentos dependentes do “mercado” – chegam a atuar em algum grau da realidade, podemos representar e tornar compreensivo pragmaticamente a natureza particular dessas relações mediante um tipo ideal. Esta possibilidade pode ser valiosa, e mesmo indispensável, tanto para a investigação como para a exposição.” (WEBER, apud CASTRO, 2014, p. 56). O filme “A Onda” (2008) retrata o pensamento de Weber de que a sociedade e a história devem ser entendidas pela ação intencional de um indivíduo sobre o outro. A relação social na sociedade se dá entre indivíduos. As coisas (situações) são tão-somente os meios pelos quais os indivíduos se inter-relacionam. O filme foi inspirado no livro homônimo de 1981 do pensador americano Todd Strasser e também no experimento social da Terceira Onda, realizado pelo professor de história norte-americano Ron Jones. Fonte: Elaborado pelo autor. Para Weber, o tipo ideal decorre da concepção acerca da infinita complexidade do real, diante do alcance limitado dos conceitos elaborados pela mente humana; nenhum dos tipos ideais construídos deve ser considerado mais que um instrumento limitado e provisório de investigação. Weber afirmava que a sociologia deveria construir elementos metodológicos para compreender os fenômenos que rodeavam os indivíduos na sociedade moderna. Um exemplo metodológico abordado por ele por meio da construção de um tipo ideal foi a burocracia. Para o pensador, no mundo moderno trata- se do exemplo mais típico do domínio legal, nos limites da legitimidade. A definição desse tipo ideal de burocracia é relacionada a uma série de dimensões, cada qual na forma de um contínuo; quando se mede cada contínuo, nenhuma variação concomitante é encontrada entre as dimensões. A utilização desse modelo inibe que a avaliação das organizações seja feita a partir de não burocráticas e burocráticas. Além dos pensadores clássicos da Sociologia (Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber), podemos também destacar importância das contribuições do sociólogo austríaco Alfred Schutz (1899-1959) para o desenvolvimento da Ciências Sociais. Segundo ele, as Ciências Sociais deveriam desenvolver dispositivos metodológicos diferentes dos utilizados nas ciências naturais: “Uma teoria que visa explicar a realidade social tem de desenvolver dispositivos particulares, estranhos às ciências naturais, a fim de acompanhar a experiência do senso comum do mundo social. Isso foi, de fato, o que fizeram todas as ciências teóricas das coisas humanas – economia, sociologia, direito linguística, antropologia cultural etc.” (SCHUTZ, apud CASTRO, 2014, p. 52). Fonte: Elaborado pelo autor. Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 18 4. OS DESAFIOS PARA A COMPREENSÃO DO MUNDO CONTEMPORâNEO Como já apresentamos, o mundo contemporâneo passa por diversas transformações contínuas, sem alterar a estrutura da sociedade moderna industrial. A compreensão da conjuntura na qual tais mudanças ocorrem se tornou um desafio de grande importância para a área das Ciências Sociais. As transformações sociais estão vinculadas a diversos fatores: geográficos, socioeconômicos, tecnológicos, políticos e, principalmente, humanos (que englobam todos os anteriores). Neste tópico abordaremos de maneira sistemática os fatores humanos. Um questionamento importante a se fazer para a compreensão das transformações ocorridas na sociedade moderna industrial é sobre o apreço dos indivíduos ao novo. Simmel (2004, p. 45) afirma que “a razão do apreço pelo novo e pelo excepcional reside na ‘sensibilidade para a diferença’ que há na constituição pelo espírito”. Ainda segundo Simmel (2004), o ser humano tem seu significado prático determinado por meio das suas semelhanças e diferenças. As transformações sociais são geradas por uma necessidade dos indivíduos, de maneira coletiva, na busca pelo novo, por novas experiências e por novas vivências. No decorrer da Idade Média essa busca era oprimida pela realidade religiosa e pela perseguição a todos que questionavam a realidade existente, regrada por dogmas, padronizações e convicções rígidas – antagônicas à liquidez e à flexibilidade características da sociedade moderna). Nesse cenário, podemos especular que as mudanças ocorridas no cotidiano da sociedade moderna são alimentadas por uma necessidade natural dos seres humanos, que anseiam por novidades e por transformações. Podemos perceber esse fato em nosso cotidiano, ao compreender o porquê a realidade de cinco anos atrás não dá conta das demandas de hoje. Atualmente, os indivíduos são dependentes das tecnologias que criaram para satisfazer suas necessidades. A imagem, a seguir, apresenta um recurso tecnológico que transformou a sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, tornou o seu detentor dependente. Dependência da tecnologia Fonte: Pixabay. O mundo líquido, descrito por Bauman, possibilita que o ser humano se reconheça e se realize nas necessidades (ou pseudonecessidades) mais profundas, mas também o aprisiona nelasao transformá- lo em simples mercadorias (BAUMAN, apud CASTRO, 2014). O pensamento científico e o campo das ciências sociais 19 Unidade 1 O maior desafio das Ciências Sociais na compreensão do mundo contemporâneo é, justamente, explicar as implicações geradas pela busca desenfreada dos seres humanos pela satisfação das suas necessidades, que os tornou simples indivíduos que agem por interesse próprio. Podemos perceber que a sociedade moderna não teve as estruturas alteradas na contemporaneidade, mas os seres humanos se tornaram individualistas na busca por atingir os anseios particulares. Assim, ela apenas se adaptou para transformá-los no que mais buscavam para saciar as suas necessidades: mercadorias. Para compreender esse fenômeno, podemos buscar, novamente, refúgio nos pensadores clássicos das Ciências Sociais: Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Os desafios são novos, mas as bases teóricas dos clássicos se mantêm atualizadas para desvendar os novos questionamentos que surgem todos os dias. Começaremos por Émile Durkheim. A busca pelo novo é geral e coletiva – todos os “indivíduos” estão inseridos nela –, e, segundo Durkheim, “é um estado de grupo, que se repete nos indivíduos por impor-se a eles” (DURKHEIM, apud CASTRO, 2014, p. 31). Os indivíduos são condicionados pelo pensamento coletivo, e a sociedade moderna, ao se tornar “flexível e líquida”, os condiciona a seguirem os padrões coletivos. Por mais que faça parte da natureza humana, a busca pelo novo na sociedade moderna enseja, segundo Durkheim, um pensamento coletivo, ou seja, não é meramente uma necessidade individual, e sim uma imposição coletiva. Já Karl Max e Friedrich Engels, ao questionarem a submissão dos homens às mercadorias, afirmaram: “Até agora, os homens sempre tiveram ideias falsas a respeito de si mesmos, daquilo que são ou deveriam ser.... Criadores inclinaram-se diante de suas próprias criações.” (MARX; ENGELS, apud CASTRO, 2014. p. 11). As mercadorias são criaturas dos seres humanos, mas na sociedade moderna estes se transformaram em criaturas das suas criações. Podemos perceber que, ao assumir o papel de mercadorias, passam a fazer parte de uma falsa realidade na qual se inclinaram diante das próprias criações, como se as mercadorias fizessem parte dos seres humanos ou fossem eles próprios. A tecnologia trouxe diversos exemplos práticos dessas situações: um smartphone (e todas as suas aplicações e aplicativos) hoje é mais importante que um órgão fisiológico para grande parte dos seres humanos; eles podem deixar de realizar as necessidades fisiológicas (ou atrasá-las para horários mais convenientes) mas “quase nunca” esquece o dispositivo em casa ou no trabalho – quando isso ocorre se sentem incompletos, como se um pedaço de si próprios estivesse faltando). Nesse cenário, é completamente factível a afirmação de Marx e Engels de que os seres humanos se tornaram criaturas das próprias criações; nos tornamos criaturas da tecnologia e reduzidos a perfis de aplicativos e sites de relacionamento. Em outubro de 2017, perto de 241 milhões de linhas de telefone móvel estavam ativas no Brasil, informou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). De acordo com a Agência, as linhas 4G cresceram 4,27% (3,9 milhões de novas unidades entre setembro e outubro. Se levarmos em conta os últimos 12 meses, esse aumento foi de 81,23%, o que equivale a 42,7 milhões de unidades. Fonte: GOVERNO DO BRASIL, 2017. A dominação à qual os homens se submeteram pode ser compreendida pela análise da sociologia compreensiva de Max Weber. Ele afirma que: Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 20 A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado comando, pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode depender diretamente de uma situação de interesse, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte daquele que obedece. Pode também depender de mero “costume”, do hábito obtuso de um comportamento inveterado. Ou pode fundar-se, finalmente, no puro afeto, na mera inclinação pessoal do dominado. (WEBER, apud CASTRO, 2014, p. 58). Podemos perceber que, segundo Weber, a dominação que sofremos do mundo das mercadorias na sociedade moderna é fruto dos nossos costumes e das nossas situações de interesse. O interesse não faz parte da natureza humana, mas das necessidades coletivas criadas e da adaptação (pelas vantagens e conveniências criadas por elas); sendo assim, não é possível afirmar que ela é consciente e dotada de crítica. Ou seja, simplesmente os homens se condicionaram aos seus interesses, vantagens e conveniências para se submeter à obediência a um comando que não percebem nem sequer a existência dele. Segundo Demo (1985), o poder embutido nesse processo não deveria ser eliminado, mas sim democratizado, buscando, na sua essência, a geração de benefícios para a maioria. Entretanto, na sociedade moderna industrial, os benefícios são restritos a uma minoria em detrimento da maioria e assim os interesses e vantagens atingem apenas uma pequena parcela dos indivíduos pertencentes à classe econômica dominante: burguesia. Esses são os desafios existentes para a compreensão do mundo contemporâneo: perceber o que está além dos olhos, lutar contra as formas de dominação e se imaginar além das suas criações. As Ciências Sociais (e seus clássicos pensadores) ainda possuem um papel de destaque na busca por respostas aos questionamentos gerados pela sociedade moderna e pelo mundo contemporâneo. CONCLUSÃO O principal objetivo desta unidade foi apresentar elementos palpáveis para uma compreensão inicial da área de atuação das Ciências Sociais. O conteúdo proposto buscou abordar o panorama de surgimento das Ciências Sociais e também a sua constituição como disciplina científica (metódica, sistemática e rigorosa). Desde a sua origem, com a “criação” da sociologia por Augusto Comte no século XVIII, o pensamento sociológico foi profundamente influenciado por diversos pensadores, tendo como destaque Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, que deram às Ciências Sociais um caráter científico e transformaram-nas em uma ciência completa (mas não exata). As contribuições de sociólogo polonês Zygmunt Bauman também foram destacadas – principalmente a percepção dele acerca da liquidez do mundo contemporâneo –, além dos componentes teóricos apresentados por Alfred Schutz para o desenvolvimento da Ciências Sociais. Vimos que as transformações cotidianas vivenciadas pela sociedade moderna industrial (fase atual da sociedade) apresentam diversas novas perspectivas para a área das Ciências Sociais, principalmente para o campo de atuação dos cientistas sociais contemporâneos. Por fim, entendemos que as Ciências Sociais possuem um papel de relativa importância no processo de compreensão do mundo, das relações humanas e das perspectivas sociais (do presente e do futuro), devendo apresentar a crítica aos conhecimentos desenvolvidos e também se manter neutras e distantes das influências que podem contaminar as respectivas análises sociais. O pensamento científico e o campo das ciências sociais 21 Unidade 1 ELEMENTOS COMPLEMENTARES #LIVRO# Título: Raízes do Brasil Autor: Sérgio Buarque de Holanda Editora: Companhia das Letras Sinopse: Estudo histórico e sociológico do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira. O autor apresenta um conjunto de características do povo brasileiro que, na sua interpretação, influenciaram e continuam influenciando a sociedade brasileira. #FILME# Título: Tempos Modernos Ano: 1936 Sinopse: Filme relata a rotina de um empregado de uma linha de montagem no início do século XX e os impactos causados a sua vida profissional e pessoal por conta do ritmo acelerado. #FILME# Título: A Onda Ano: 2008 Sinopse: O filme foi inspirado no livro homônimo de 1981 do pensador americano Todd Strasser e também no experimento social da Terceira Onda, realizadopelo professor de história norte-americano Ron Jones. Retrata o pensamento de Weber de que a sociedade e a história devem ser entendidas pela ação intencional de um indivíduo sobre o outro. A relação social na sociedade se dá entre indivíduos. As coisas (situações) são tão somente os meios pelos quais os indivíduos se inter-relacionam. Unidade 1 O pensamento científico e o campo das ciências sociais 22 Título: 13 Reasons Why Ano: 2017 Sinopse: A série 13 Reasons Why é baseada no livro Thirteen Reasons Why (2007), de Jay Asher, e adaptada por Brian Yorkey para a Netflix. Apresenta um conjunto de situações cotidianas (sociais) que levaram uma jovem a cometer suicídio, demonstrando elementos práticos para a abordagem de Émile Durkheim na sua obra “O Suicídio” (quando o autor afirma que o suicídio é um fato social – gerado por repercussões sociais externas a biologia dos seres humanos). REFERÊNCIAS CASTRO, C. (Org.) Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. DEMO, P. Sociologia. São Paulo: Atlas, 1985. GARCIA, S. Sobre os obstáculos sociais ao desenvolvimento histórico da razão. Sci. stud., São Paulo, v. 12, n. 4, out./dez. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1678-31662014000400751&lang=pt>. Acesso em: 14 jan. 2018. GOVERNO DO BRASIL. Brasil tem mais de 240 milhões de linhas de celular ativas, 6 dez. 2017. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2017/12/brasil-tem-mais-de-240-milhoes- de-linhas-de-celular-ativas>. Acesso em: 14 jan. 2018. SELL, C. E. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. São Paulo: Editora Vozes, 2001. SIMMEL, G. Questões fundamentais da Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. SOUTO, C. O que é pensar sociologicamente. São Paulo: EPU, 1987. TANGUY, L. A sociologia: ciência e ofício. Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 118, jan./mar. 2012. Unidade 2 Objetivos de aprendizagem da unidade • Analisar as distinções dadas ao indivíduo e ao ser social a partir do estudo do processo de socialização • Discorrer sobre a categoria de memória relacionando-o com o conceito de identidade social • Conceituar cultura e ideologia e identificar os componentes da cultura que influenciam a posição política • Compreender a consolidação da divisão social do trabalho e a solidariedade social dentro de sociedades complexas • Apresentar os conceitos de poder, dominação, coerção, legitimidade, legalidade e norma a partir do contexto sociológico e político Professor Mestre Luiz Alberto Neves Filho A CoNstrução DA iDeNtiDADe soCiAL: reLAção eNtre iNDivíDuo e soCieDADe Unidade 2 A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 24 iNtroDução Esta unidade pretende apresentar, de maneira clara, como ocorre o processo de construção da identidade social dos indivíduos na sociedade moderna industrial. A compreensão dessa construção tem um caminho a ser percorrido que, necessariamente, depende da compreensão de alguns elementos constitutivos. São eles: a presença do social no indivíduo; a construção e preservação da memória e da identidade social; o desenvolvimento cultural da sociedade (e as suas implicações); o papel exercido pela ideologia na produção cultural e na sociedade; a importância do trabalho (e da sua divisão social) na formação do indivíduo e da sociedade; a força do Estado e da sociedade que se organizam e se legitimam por meio de normas e leis para exercer o seu poder sobre os indivíduos. Podemos perceber, inicialmente, que a construção da identidade social depende de fatores externos aos indivíduos, muitas vezes contrários a própria natureza humana. Bons estudos! 1. o soCiAL No iNDivíDuo: As MArCAs soCiAis que exibiMos NAs ForMAs De Agir e PeNsAr A natureza dos seres humanos sempre foi a aproximação com o outro (formação de coletividade), mesmo o homem não nascendo social ele adquire essa característica na relação com o outro. A história da humanidade demonstra que os seres humanos sempre possuíram a tendência de viverem em grupo e de se socializarem. Segundo Vila Nova (2000, p. 51), socialização significa “transmissão e assimilação de padrões de comportamento, normas, valores e crenças, bem como desenvolvimento de atitudes e sentimentos coletivos”. Nesse cenário, é natural conseguir perceber a influência da socialização nas nossas ações, comportamentos, hábitos e atitudes cotidianas. Nós não nascemos indivíduos sociais, mas incorporamos características comportamentais típicas de humanos no processo de socialização e, consequentemente, nos tornamos indivíduos sociais. Nesse mesmo caminho, Aron (1982, p. 301) afirma que, Durkheim já apontava que os indivíduos nascem da sociedade e não o contrário: “[...] Durkheim deduz uma ideia que manteve por toda a sua vida, e que ocupa o centro de toda sua sociologia: a que pretende que o indivíduo nasce da sociedade, e não que a sociedade nasce dos indivíduos”. A aceitação de que o indivíduo é fruto da sociedade nos permitirá ter uma compreensão prática sobre a presença do social nele. Como herdamos nossos valores, nossas crenças, nossa linguagem, nossos hábitos e nossa cultura? Compreender as repercussões desse questionamento será de fundamental importância para o entendimento sobre a formação dos indivíduos por meio do social. Buscaremos nas teorias de Émile Durkheim elementos importantes para esse esforço. O pensador afirma que o domínio da sociedade sobre os indivíduos tem dois sentidos: prioridade histórica e prioridade lógica (DURKHEIM apud ARON, 1982). A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 25 Unidade 2 Segundo Durkheim (apud ARON, 1982), as sociedades em que os indivíduos se assemelham – aquelas com solidariedade mecânica – surgiram primeiro (prioridade histórica); ou seja, se as sociedades coletivistas apareceram primeiro, não faz sentido tentar explicar a sociedade a partir dos indivíduos (prioridade lógica). As sociedades coletivistas possuem prioridade histórica por terem surgido primeiro; assim, de maneira lógica, a explicação dos fenômenos da diferenciação social deve ocorrer a partir dos indivíduos (prioridade lógica). Resumindo: não podemos explicar o indivíduo de maneira descontextualizada, pois foi precedido por uma sociedade coletivista; ele deve ser entendido a partir das características apresentadas pela coletividade, pois ela surgiu primeiro. O filme “O garoto selvagem” (1969) relata a história de um garoto que foi encontrado por caçadores em uma área de selva, e no momento em que isso ocorreu, ele não andava como um bípede, se alimentava de grãos e raízes, não falava nem escrevia, não tinha contato com a sociedade e com as suas respectivas linguagens, costumes, práticas etc. Um professor de medicina se interessou pela história do garoto e passou a estudá-lo e também a ajudá-lo a se inserir na sociedade. Fonte: Elaborado pelo autor. Neste momento, uma dúvida importante pode ter surgido: a sociedade moderna industrial é coletivista? A resposta é simples, mas paradoxal: não, a sociedade moderna industrial é baseada na diferenciação, portanto não é coletivista (na qual cada indivíduo se assemelha a todos), mas derivou diretamente de sociedades coletivistas. Assim, a prioridade lógica apresentada por Durkheim determina que todos os fenômenos sociais que envolvam os indivíduos tenham como referência as sociedades coletivistas, pois estas possuem prioridade histórica (surgiram antes) sobre as sociedades baseadas na diferenciação. É necessário destacar que, segundo Durkheim, algumas instituições presentes na sociedade, como família, religião, escola etc., exercem um papel fundamental na construção social dos indivíduos, pois disseminam valores, crenças, costumes, linguagens existentes antes do nascimento deles. O homem, ao nascer, é desprovido de todos os valores e costumes sociais que o circulam, mas com o crescimento passa a incorporar aqueles que lhe são interessantes;assim, inicia-se a construção do indivíduo como ser social (DURKHEIM apud ARON, 1982). No artigo “A particularidade do processo de socialização contemporâneo”, publicado em novembro de 2005 na revista Tempo Social, a pesquisadora Maria da Graça Jacintho Setton aborda de maneira objetiva o processo de socialização no mundo contemporâneo e também suas implicações concretas no cotidiano dos indivíduos. O material está disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0103-20702005000200015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Fonte: Elaborado pelo autor. Unidade 2 A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 26 Nossas formas de agir e pensar são influenciadas pelo contexto social no qual estamos inseridos; assim, podemos afirmar que somos fruto da socialização e que o social está em nós. Entretanto, como vivemos em uma sociedade baseada na diferenciação, a socialização apresenta “diversos caminhos”, todos determinados pelo contexto social. O indivíduo até pode acreditar que está percorrendo um caminho próprio, diferente da sua realidade social concreta, com escolhas próprias, com pensamentos e formas de agir autônomas. Entretanto, não podemos esquecer que o ser social está inserido nas raízes dos indivíduos, e justamente por esse fato esses “novos caminhos” percorridos estão inseridos na dinâmica social da nossa sociedade (sustentada na diferenciação). Nas imagens a seguir, poderemos perceber a força da socialização no nosso cotidiano e também nas nossas ações. A primeira apresenta um indivíduo, sem rosto e sem marcas pessoais, inserido no meio de uma coletividade que o levou à socialização. Ele busca se tornar iluminado (diferenciado) em relação aos outros, mas, ainda assim, apresenta as marcas da coletividade e da socialização (seguindo padrões determinados – está em uma fila organizada). Já a segunda imagem demonstra que os seres humanos nascem com características impares, são seres únicos, mas a socialização os transforma em indivíduos no meio de uma coletividade e impactados pelo processo de socialização. Nascemos com características próprias e incorporamos características comuns a todos mediante o processo de socialização. Indivíduo inserido no coletivo Fonte: Pixabay. A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 27 Unidade 2 Os indivíduos nascem com características únicas Fonte: Pixabay. Para facilitar a compreensão, utilizaremos o exemplo de um jovem filho de um carpinteiro que deseja cursar Medicina. Nesse caso, existe um claro distanciamento entre a realidade social, cultural e econômica apresentada pelos seus pais e as ambições, expectativas sociais e profissionais. Ainda assim, a busca por uma profissão que possui o respeito social e que gera melhor perspectiva econômica se enquadra na realidade social já existente e desejada por muitos. Isso porque, mesmo que esse jovem venha a atingir o seu objetivo (cursar Medicina e se tornar um respeitável profissional), ele não estará rompendo com a estrutura social da sociedade, mas estará se aproximando de outro grupo na sociedade baseada na diferenciação (diferenciando-se da realidade vivida pelos pais). 2. MeMóriA e iDeNtiDADe soCiAL A memória e a identidade social constituem pilares importantes para o reconhecimento do indivíduo na sociedade e também para a preservação da história dele, dos costumes, dos valores e da própria sociedade de maneira geral. Como veremos no Tópico 3 (Cultura e Ideologia), a cultura exerce um papel de grande relevância na vida dos indivíduos e nos seus respectivos processos de socialização. Ela é um produto coletivo dos seres humanos, mas é construída de maneira histórica. Santos (2006, p. 45) afirma que “cultura é uma construção histórica, seja na concepção, seja como dimensão do processo social”. A construção histórica dela e também dos diversos processos sociais presentes na sociedade cria elementos constitutivos do indivíduo, da sociedade e da identidade social. Como podemos preservar a história desses elementos constitutivos dos indivíduos? A preservação da memória é a resposta para esse questionamento. A memória é a forma de se conservarem e recordarem fatos, situações e produções humanas vinculadas à criação do estado de consciência dos indivíduos. Ou seja, significa registrar e relembrar todos elementos que fazem parte da história da sociedade e, consequentemente, dos grupos sociais e indivíduos que dela fazem parte. Não existe cultura sem memória, pois a cultura é construída historicamente, e a história deve ser preservada e registrada. Todas as ações e obras da humanidade devem ser preservadas, pois influenciam de maneira direta a construção da identidade e dos próprios Unidade 2 A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 28 indivíduos. A memória é constitutiva das identidades cultural e social, ou seja, sem a preservação dela não existe nenhuma forma de identidade (cultural, social e política). Assim, não existe identidade sem preservação da história e, consequentemente, sem registro e preservação da memória. Preservação da memória Fonte: Pixabay. Existem diversas formas de preservar a memória, como registros oficiais verdadeiros, manutenção e preservação dos objetos da construção humana, registros fotográficos, crônicas verídicas etc. Segundo Berger e Luckmann (2003), a identidade tem a sua raiz de formação nos processos sociais, e após ser cristalizada pode ser mantida, modificada ou remodelada pelas relações sociais cotidianas presentes nos processos sociais. Já os processos sociais (geradores da identidade) são determinados pela estrutura social da sociedade. O filme “Eu, mamãe e os meninos” (2013), dirigido por Guillaume Gallienne, é uma comédia que conta a história de um personagem que busca a construção da sua identidade, mesmo diante de imposições e contrariedades da sociedade e da própria família. Fonte: Elaborado pelo autor. Segundo Aron (1982), o indivíduo nasce da sociedade, fato que já denuncia o processo de formação de identidades na sociedade. Ou seja, se ele é construção direta das relações sociais, logo a construção da sua identidade depende das relações sociais presentes no cotidiano e vivenciadas por ele. Um indivíduo desenvolve sua identidade social por meio dos processos sociais de que participa, os quais, por sua vez, aproximam tal indivíduo de valores (políticos, religiosos, sociais, morais etc.), crenças, pensamentos, atitudes e de espelhamentos que admira e/ou compartilha. A identidade social é formada mediante o tempo e possui um caráter flexível, pois pode ser modificada e/ou remodelada pela incorporação de novas características (valores, crenças, pensamentos, atitudes etc.) por parte do indivíduo em novas relações sociais cotidianas. É importante destacar que, muitas vezes, os processos históricos que dão origem à construção cultural (e a identidade também) são frutos de ações não planejadas de indivíduos. Ou seja, o desenvolvimento cultural e histórico também é fruto de ações particulares, cujas repercussões se tornam coletivas e sociais. A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 29 Unidade 2 Nesse cenário, Elias (1993, p. 17) afirma que: [...] a questão de como todos esses processos, que consistem em nada mais do que ações de pessoas isoladas, apesar disso dão origem a instituições e formações que nem foram pretendidas nem planejadas por qualquer indivíduo singular na forma que concretamente assumem. Ou seja, mesmo em um ambiente de construção social padronizada, as ações individuais ainda são importantes para o processo de desenvolvimento de instituições e outras formações que impactam a formação culturale de identidade social. Ainda que não consciente, a natureza humana ainda sobrevive, mesmo em um ambiente de geração coletiva de valores, crenças, costumes e padrões de comportamento. O artigo “Documento, história e memória: a importância da preservação do patrimônio documental para o acesso à informação”, desenvolvido pelas pesquisadoras Franciele Merlo e Glaucia Vieira Ramos Konrad, aborda a importância do patrimônio documental no processo de preservação da história e da memória. Confira o texto em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/viewFile/18705/pdf_43>. Fonte: Elaborado pelo autor. 3. CuLturA e iDeoLogiA Neste tópico, serão abordados os conceitos de cultura e ideologia, e também todas as suas repercussões na formação dos indivíduos, da coletividade e das identidades (nacional, social e política). 3.1 Conceito de cultura Segundo Vila Nova (2000), cultura, no sentido sociológico, é tudo o que resulta da criação humana, sendo assim, compreende ideias e artefatos. Nesse cenário, podemos perceber que o conceito de cultura para as Ciências Sociais possui diferenças básicas em relação à definição proposta pelo senso comum. No cotidiano, o termo se refere a erudição, conhecimentos, construções humanas (arte e ciência) etc. O sentido sociológico não exclui as definições de cultura para o senso comum, entretanto não se limita a elas. Nota-se que erudição, conhecimentos diversos, arte, ciência e filosofia fazem parte da cultura, mas não se limita a elas (na perspectiva sociológica). Edward B. Tyler (apud VILA NOVA, 2000, p. 53) afirma que cultura pode ser entendida como: “Um todo complexo que abarca conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes, e outras capacidades adquiridas pelos pelo homem como integrante da sociedade”. Portanto, resumidamente, cultura é todo o resultado atingido em processos que se sustentam na criação humana (VILA NOVA, 2000). Podemos dividi-la em material e não material. A cultura material é representada por objetos e artefatos em geral, e a imaterial é se expressa pelo domínio das ideias (linguagem, crenças, ética, valores morais, normas, técnicas etc.). Na perspectiva das Ciências Sociais, não existe hierarquia entre as culturas, ou seja, não há cultura superior e cultura inferior; existem, simplesmente, culturas diferentes (VILA NOVA, 2000). Unidade 2 A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 30 A cultura material representada por objetos e artefatos Fonte: Visualhunt. Berger e Luckmann (2003) afirmam que a linguagem é o mais importante sistema de sinais das sociedades humanas, sendo a vida cotidiana fruto direto da linguagem (inserida no escopo da cultura). Podemos, assim, entender que compreender a linguagem é fundamental para a compreensão da vida cotidiana; ou seja, a vida circula por meio da linguagem (expressão direta da cultura). A cultura está presente em todos os nossos atos e em todas as nossas produções, e a própria expressão da linguagem é uma expressão direta da cultura. Berger e Luckmann (2003, p. 57) descrevem que: A linguagem tem origem e encontra sua referência primária na vida cotidiana, referindo-se sobretudo à realidade que experimento na consciência e estado de vigília, que é dominada por motivos pragmáticos (isto é, o aglomerado de significados diretamente referentes as ações presentes ou futuras) e que partilho com os outros de maneira suposta evidente. A cultura, em geral, faz referência a um passado comum a um povo, que seria base e também o portador da cultura (OLIVEN apud MICELI, 2002). A cultura está ligada a um povo, e a identidade nacional, a uma nação. Não podemos confundir cultura com identidade: a cultura é expressa por meio de toda a produção humana, consequentemente um povo expressa a sua cultura pelas produções sociais e das produções humanas individuais (produção de um ou mais integrantes, mas compartilhada por todos). Segundo Santos (2006), nas sociedades contemporâneas a cultura apresenta uma grande diversidade; o nosso país, por exemplo, possui uma grande diversidade cultural, ou seja, grandes variações dentro de uma mesma cultura. A afirmação Santos é convergente com a perspectiva sociológica de Émile Durkheim, segundo o qual a sociedade complexa (como a nossa sociedade contemporânea) se sustenta na diferenciação dos indivíduos mesmo apresentando um processo de socialização coercitivo. Em nossa sociedade, a diferenciação se apresenta na forma de diversidade. Santos (2006, p. 51-52) afirma: “A diferenciação é, no entanto, mais complexa, pois não se pode dizer que as maneiras de viver sejam homogêneas nem dentro da classe trabalhadora nem dentro da classe proprietária”. A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 31 Unidade 2 A cultura não é homogênea, mesmo em sociedades pautadas por um grande processo de socialização dos indivíduos (sociedade contemporânea), e deve ser observada e analisada a partir da sua diversidade. Ou seja, a aceitação da diversidade cultural é de fundamental importância para o respeito de culturas diversas das nossas, tendo em vista que não existe superioridade ou inferioridade de culturas, apenas processos históricos que estabelecem marcas diferentes em determinados grupos (SANTOS, 2006). 3.1.1 Cultura, Nação e identidade Nacional Em sua definição moderna, Nação está ligado um território no qual os indivíduos compartilham características culturais, linguísticas e sociais comuns e desenvolvem um espirito de pertencimento. Já Identidade Nacional está vinculado ao grupo de indivíduos que compartilham esses valores culturais, linguísticos e sociais presentes em uma nação, sendo que esses indivíduos possuem um sentimento de ser parte de uma sociedade e/ou país. Resumindo, a nação não é, simplesmente, um território que tem todos os poderes concentrados em um Estado, mais, sim, um território no qual os indivíduos são vinculados por valores culturais, linguísticos e sociais, desenvolvendo, assim, a identidade nacional. Atualmente, temos diversos exemplos de nações que não constituídas em Estados burocráticos, mas por valores (e espírito nacionalista) que integram os seus componentes. (por exemplo, Catalunha, território localizado na Espanha, e País Basco, situado entre a Espanha e a França). A Identidade é fruto direto do autorreconhecimento de um indivíduo como integrante de um grupo no qual ele possui valores comuns (culturais, religiosos, políticos, sociais etc.). Entretanto, segundo Santos (2006), é importante ressaltar que para compreender as características culturais de um país devemos considerar a existência da diversidade cultural. Ou seja, mesmo em países que apresentam elevados níveis de rigidez cultural, ela existe e deve ser analisada e respeitada. 3.2 ideologia O conceito de ideologia pode ser compreendido de diversas formas, entretanto partiremos da definição crítica utilizada nas Ciências Sociais. Segundo Marx e Engels (apud ARON, 1982), a ideologia está vinculada a um conjunto de ideias cujo objetivo é deixar de maneira obscura (escondida) a própria origem por interesses sociais de determinado grupo social. Portanto, a ideologia tem como característica influenciar os indivíduos (de todas as formas) na defesa dos interesses de dado grupo social. A adulteração da realidade objetiva (realidade que vivemos) é prática comum em nossa sociedade, situação que podemos perceber facilmente ao acompanhar um simples noticiário na televisão. As notícias são transmitidas, em grande parte, de acordo com os interesses do grupo de transmissão na qual ela está sendo reproduzida, ou seja, um mesmo fato pode ser descrito de diversas formas diferentes, conforme os interesses particulares de quem o está apresentando. Portanto, podemos compreender a ideologia como um conjunto de ideias não verdadeiras que adulteram a realidade dos fatos, com o objetivo de alinhá-los aos interesses de determinadogrupo social, visando a gerar eventuais ganhos (econômicos, políticos, sociais etc.). Essa “verdade criada” tem sustentação nos modelos de Estado e de sociedade contemporâneos: Estado de direito e sociedade moderna industrial. Michel Foucault (2008, p. 179) afirma que: “[...] as regras do direito que delimitam formalmente o poder e, por outro, os efeitos da verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez reproduzem-no. Um triângulo, portanto: poder, direito e verdade”. Unidade 2 A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 32 A ideologia está diretamente ligada ao conjunto de ideias que os grupos que estão no poder apresentam como verdades objetivas concretas. Segundo Foucault (2008), a verdade criada e, consequentemente, transmitida tem como finalidade a adulteração da realidade objetiva, mesmo que de maneira coercitiva exercida por meio do poder). Assim, a verdade criada assume um papel de verdade objetiva, encobrindo as mazelas deixadas pelo Estado de direito e pela sociedade moderna industrial. A ideologia é uma ferramenta de opressão dos grupos dominantes sobre os grupos dominados na sociedade. O filme “Cidadão Kane” (1941), escrito, dirigido produzido e estrelado por Orson Welles, conta a história de um magnata da indústria da comunicação, que criou um império por meio do mercado da informação, e esta foi transformada em um produto mercadológico – servindo assim aos interesses de grupos específicos. Fonte: Elaborado pelo autor. 4. A Divisão soCiAL Do trAbALho O primeiro grande trabalho de Émile Durkheim foi a obra Da Divisão do Trabalho Social (1893), título também da sua tese de doutoramento. É justamente nesse livro que o pensador assume de maneira clara as influências de Augusto Comte, e da sociologia positivista, estabelecendo de maneira clara um dos principais objetos dos seus estudos: as relações existentes entre os indivíduos e a coletividade (ARON, 1982). Na busca por explicar essas relações, mais precisamente sobre a divisão do trabalho social, Durkheim descreve a existência de duas formas de “solidariedade” (geradoras de integração ou coesão social) na sociedade: mecânica e orgânica. Começaremos descrevendo cada uma das solidariedades observadas e descritas por Durkheim (1999): • Solidariedade mecânica: solidariedade por semelhança; quando essa forma se sobrepõe na sociedade, a tendência é que os indivíduos tenham características semelhantes, ou seja, pouco diferem entre si. As semelhanças são baseadas no fato de os indivíduos carregarem os mesmos valores, possuírem os mesmos sentimentos e reconhecerem os mesmos objetos sagrados. • Solidariedade orgânica: a diferenciação está presente, ou seja, a unidade que une a coletividade resulta de uma diferenciação. Trata-se da solidariedade baseada na diferenciação dos indivíduos. Aron (1982) afirma que as solidariedades descritas por Durkheim apresentam uma oposição entre si, se combinando com a oposição entre as sociedades segmentárias e aquelas com moderna divisão do trabalho (ARON, 1982). Ou seja, segundo Aron, Durkheim dá um passo importante para conhecer a sociedade moderna industrial ao criar elementos metodológicos (próprios da sociologia) para diferenciá-la de outros modelos de sociedades. Primeiramente, é necessário compreender o conceito de sociedades segmentárias utilizado por Durkheim para descrever as sociedades opositoras àquelas com uma moderna divisão do trabalho social. Segundo Durkheim (1999), um segmento pode ser concebido como um grupo A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 33 Unidade 2 social no qual os membros estão integrados entre si, mas também separados do mundo exterior. Ou seja, as sociedades segmentárias possuem semelhanças com a solidariedade mecânica, entretanto a solidariedade mecânica não descarta a comunicação com o mundo exterior (DURKHEIM, 1999). É importante destacar que por mais que existam singularidades entre as sociedades segmentárias e a solidariedade por semelhanças, a estrutura segmentária não pode ser confundida com a solidariedade por semelhanças (ARON, 1982). Apresentadas as diferenças básicas entre as formas de solidariedade descritas por Durkheim, tentaremos compreender como ocorre a divisão do trabalho social nas sociedades caracterizadas pela solidariedade orgânica (inclusive a sociedade moderna ocidental). Durkheim (1999) afirma que a diferenciação das diversas profissões e a multiplicação das atividades industriais são expressões de uma diferenciação social, características de sociedades com solidariedade orgânica. Ou seja, não seria possível o desenvolvimento das diversas atividades industriais (que deram origem a diversas novas profissões – fenômeno que ocorre até os dias atuais) e a diferenciação das profissões se não tivesse ocorrido uma ruptura com as estruturas das sociedades com base na solidariedade mecânica e sociedades com estruturas segmentárias. Neste momento, surge um questionamento importante: segundo Durkheim, como ocorre a divisão do trabalho nas sociedades que apresentam solidariedade orgânica? O pensador deduz que a divisão do trabalho se apresenta como “uma certa estrutura de toda a sociedade, de que a divisão técnica ou econômica do trabalho não passa de uma manifestação” (DURKHEIM apud ARON, 1982, p. 302). O domínio da coletividade sobre os indivíduos explica a manifestação apresentada, ou seja, a divisão do trabalho não está distante dos demais fenômenos sociais existentes nas sociedades complexas, nas quais o indivíduo é um fruto da sociedade e não o contrário. Nesse cenário, podemos perceber que o processo de divisão do trabalho não ocorre ao acaso, mas, sim, de maneira objetiva, a sustentar a organização social da sociedade. Trata-se de algo muito maior que um mero fenômeno econômico, é um fenômeno social que sustenta as condições essenciais para a existência da vida social. As sociedades complexas (como a sociedade moderna industrial) se mantêm em equilíbrio por causa, justamente, da divisão de tarefas, e assim a divisão do trabalho exerce um papel fundamental na geração de solidariedade social. É importante ressaltar que nas sociedades que apresentam solidariedade orgânica (por diferenciação) o elemento que faz a ligação entre os indivíduos é a solidariedade social, que, na nossa sociedade, é gerada pela divisão do trabalho social; ou seja, a solidariedade social contribui para a integração da sociedade que possui solidariedade orgânica (DURKHEIM, 1999). Já, segundo Weber (2004), a falta de uma profissão fixa (estabelecida na divisão social do trabalho) gera ao indivíduo uma perpétua confusão, pois não sabe o que fazer ou quando fazer. Weber (2004, p. 147) afirma que: O trabalho instável a qual se vê obrigado o homem comum que trabalha por dia é um estado precário, muitas vezes inevitável, sempre indesejável. Falta justamente à vida de quem não tem profissão o caráter metódico-sistemático que, como vimos, é exigido pela ascese intramundana. Podemos perceber que Weber destaca a necessidade de uma ascese ao trabalho, identificada por ele em alguns agrupamentos religiosos protestantes, e que a falta dessa ascese (consequentemente de uma profissão) faz com que o indivíduo se sinta perdido (ficando preso em uma perpétua confusão). Se, por um lado, Durkheim observa que a divisão do trabalho – e a geração de solidariedade social – gera uma forma de integração nas sociedades que apresentam solidariedade orgânica (como a sociedade moderna industrial – sociedade contemporânea), por outro lado, Weber diz que essa ligação deixa os Unidade 2 A construção da identidade social: relação entre indivíduo e sociedade 34 indivíduos em estado de confusão caso não exista a ascese ao trabalho. A ascese ao trabalho, segundo Weber, é gerada pela existência de vocação profissional, e não para que o indivíduo ocupe um lugar na sociedade, visando a gerar integração social e também coesão social.
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