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ç ç CASO CLÍNICO Sra. Marcela solicita uma consulta médica não agendada. Ela é avaliada pela enfermeira, que nota que Marcela veio solicitar um pedido de exame: cateterismo. A enfermeira informa que as consultas de encaixe são apenas para urgências médicas e que para pedido de exame ou receita tem de marcar uma consulta. Antes de concluir, Marcela começa a gritar, dizendo que todo mundo que trabalha no Sistema Único de Saúde (SUS) é vagabundo e, por isso, que ela só usa convênio. Ela diz que não aguenta mais ter dor no peito e ninguém descobrir o que ela tem, começando a chorar. A enfermeira conversa com Marcela por alguns minutos e depois pede para que o médico de família e comunidade a atenda. Para o médico ela conta que, apesar de estar melhor depois de conversar com a enfermeira, precisava solicitar exame no SUS, o qual foi pedido pelo médico da clínica popular do bairro. Diante de perguntas do médico, ela explica que sente muita dor no peito e, eventualmente, “batedeira”, além de um nó na garganta e uma dor que vai para ambos os braços. Conta que o pai “tinha isso e morreu de infarto”. Ao ir ao cardiologista, após a realização de eletrocardiograma (ECG), endoscopia e teste de esforço, foi informada que “não tinha nada” e recebeu prescrição de “remédio tarja preta”. Indo a outro cardiologista, foi sugerida a realização de um cateterismo para que ela ficasse “mais calma”. Marcela já nem dormia por, segundo ela, temer um infarto. O médico inicia algumas perguntas sobre seu estado emocional. A usuária informa que mudou muito: sente-se impaciente, chora de raiva e tristeza. Nesse momento, fala que seu filho se meteu com “gente ruim” e foi preso, e começa a chorar novamente. Após um tempo, respondendo a mais perguntas do médico, diz que não consegue sair da cama. Diz que quando pensa no que aconteceu com o filho, sente dores de cabeça, rigidez no pescoço, dor no peito e outros sintomas que a levaram ao cardiologista, tendo procurado serviços de emergência algumas vezes. Por fim, desabafa, dizendo que pensa, às vezes, ser “melhor morrer” do que ter de passar por tudo isso. RELEVÂNCIA • A prevalência de sofrimento emocional entre os usuários atendidos em unidades de saúde é muito alta. • Diversos estudos no Brasil apontam que cerca de 50% dos usuários atendidos por equipes da APS e da Estratégia Saúde da Família (ESF) apresentam esse tipo de sofrimento, sendo que, em média, 35% deles têm alterações de intensidade grave, preenchendo critérios para transtornos mentais diversos. CLASSIFICAÇÃO • Ao estudar-se a demanda de saúde mental na APS, podem-se perceber dois subgrupos de somatizadores: o aqueles em que a somatização é um fenômeno de características agudas, associadas a sofrimento emocional inespecífico e transtornos mentais comuns (TMC), como ansiedade e depressão; e o aqueles em que a somatização é um processo psicopatológico estruturado, de curso crônico, com evolução e prognóstico frequentemente negativos. SOMATIZADORES AGUDOS • O subgrupo um representa pessoas que, em situações de sofrimento emocional, procuram seus médicos ou outros profissionais da APS como fonte de apoio e cuidado. Geralmente uma parcela grande desses quadros tem remissão espontânea. • Outros indivíduos desse subgrupo são os portadores de TMCs (transtornos mentais comuns). Diversos estudos demonstraram que, na APS, as queixas somáticas são os principais sintomas trazidos ao médico pelos portadores dos chamados TMCs. • Nesses casos, além do acolhimento e da escuta, é necessário diagnosticar corretamente e tratar os transtornos mentais associados, em geral ansiosos e depressivos. • Os sintomas costumam ser físicos, associados à ansiedade ou à depressão, como, por exemplo, taquicardia, dispneia, suspiros, dores originárias de contratura muscular tensional, como cefaleia, dor lombar ou cervical, astenia, dores nas pernas, aperto no peito e alterações de sono e apetite. SOMATIZADORES CRÔNICOS • São os que apresentam transtornos mais graves, como por exemplo o transtorno de sintomas somáticos. Aplica-se a pessoas que apresentam qualquer número de sintomas somáticos, desde que esses sintomas sejam acompanhados por pensamentos, sentimentos ou comportamentos excessivos relacionados aos sintomas somáticos ou preocupações associadas com a saúde. • Esses pacientes apresentem padrões cognitivos que se caracterizam por pensamentos desproporcionais e persistentes sobre a gravidade dos próprios sintomas; nível persistentemente elevado de ansiedade sobre a saúde ou sintomas; excesso de tempo e energia dedicados a esses sintomas ou problemas de saúde. • Nesse grupo, também encontramos os pacientes com as chamadas “síndromes funcionais”, como fibromialgia, cólon irritável, fadiga crônica, dores pélvicas e torácicas atípica, entre outras, cuja interação entre o sofrimento mental e as alterações orgânicas ainda é pouco compreendida. • Esses pacientes diferenciam-se dos que apresentam queixas mais passageiras, devido ao maior risco de se tornarem crônicos; por desenvolverem grave comprometimento de suas atividades sociais e profissionais, frequentemente recusando associação entre suas queixas e seus problemas psicossociais e não aceitando as explicações de seus médicos; e por evoluírem aderidos ao papel de doentes com importante ganho secundário (ex: benefício no INSS). • Em geral, seus portadores apresentam uma série de queixas somáticas em comum, que incluem fadiga, dor no corpo todo, cefaleia, distúrbios gastrintestinais, alterações de memória e de sono, ansiedade e depressão DISSOCIAÇÃO/CONVERSÃO • Há duas características que são marcantes na maioria desses casos: representam simbolicamente o conflito inconsciente envolvido no surgimento do sintoma e, para que tal processo seja possível, necessita envolver funções corticais superiores, abrangendo apenas sintomas conversivos (motores voluntários, alterações de pares cranianos e de sensibilidade) e/ou dissociativos (afetam nível e conteúdo da consciência, incluindo pseudocrises epiléticas). → PITI • Geralmente, envolvem quadros de surdez, cegueira, afasia, paralisias, paresias, anestesias, parestesias e desmaios. TRANSTORNO DE ANSIEDADE DE DOENÇA (HIPOCONDRIA) • Esses pacientes reinterpretam, com características de pensamento prevalente ou, raramente, delirante, sensações somáticas normais como indicadoras de uma patologia grave, em geral única, bem definida e letal, como AIDS ou câncer O QUE PODE OCASIONAR • Há evidente contribuição de fatores emocionais, mas há outros fatores de risco que estão associados a esses diversos quadros. • No grupo dos somatizadores agudos, dois principais padrões se associam à presença de sintomas SEM (sem explicação médica): o cultural e o de atribuição PADRÃO CULTURAL • A expressão dos transtornos psíquicos varia de cultura para cultura. • Verifica-se que o padrão de associação entre queixas somáticas inespecíficas com transtornos mentais comuns ocorre de forma mais intensa em populações de origem latina, como atestam a alta prevalência de somatização dos centros do Brasil e Chile, no estudo da OMS. • Neste sentido, o médico de família deve ser competente em reconhecer os padrões culturais da comunidade em que atua, lembrando que “competência cultural” é um atributo da APS. PADRÃO DE ATRIBUIÇÃO • Quando as pessoas apresentam qualquer queixa ou sintoma somático ou mesmo sintomas psíquicos anormais, elas costumam construir explicações para essas sensações, o que é definido como “modelo explicativo”. • Esses “modelos explicativos” são parte fundamental da maneira e das atitudes tomadas pelos indivíduos, podendo, por exemplo, motivar a busca de um médico para sua solução, quando compreendidos como indicativos da presença de patologia somática. • Existem três padrões de atribuição para as queixas somáticas: somatizador,psicologizador e normalizador, dependendo da explicação causal que é organizada para a queixa, podendo estar relacionados respectivamente a ter uma doença somática, a ter uma causa psicológica ou considerar que essa queixa somática não é indicativa de patologia. o Normalizador: “comi algo que não me fez bem”, “dormi de mal jeito”. o Somatizador: “estou com infecção intestinal”, “estou com problema de coluna” o Psicologizador: “estou com medo”, “estou tenso”. FATORES DE RISCO • No caso dos portadores de casos crônicos de somatização, os fatores de riscos envolvidos são: o papel de doente; o baixo apoio social; o história de doença na infância; o papel do profissional e do sistema de saúde; o desempoderamento; o história pessoal de trauma e abuso físico e sexual. PAPEL DO DOENTE • O conceito de comportamento anormal de doença qualifica a adesão ao papel de doente, em especial na presença de ganhos secundários importantes, e a destaca como uma das mais importantes alterações comportamentais associadas à somatização crônica, incluindo a busca de inúmeros médicos e exames (doctor- shopping) e ao desenvolvimento de um elevado grau de incapacidade. • Verifica-se a presença de um comprometimento funcional significativo dessas pessoas, cujo universo psicossocial passa a girar em torno da “doença” • Observa-se a estruturação de uma identidade de doente, com comportamentos anormais de dor, a busca de isenção de responsabilidades e a percepção negativa de sua saúde, sendo esses comportamentos reforçados pelos ganhos secundários obtidos com o adoecer. BAIXO APOIO SOCIAL • Apresentar uma doença pode ser uma forma bastante eficiente, em especial na ausência de outras formas de se conseguir apoio social, de ter atenção e ajuda. Geralmente são pessoas “super usuárias do SUS”. • Rede de apoio pessoal insuficiente, com isolamento social, tem sido relacionada ao aumento da procura de serviços médicos como forma de apoio, à piora da evolução de patologias mentais em geral e à diminuição da capacidade das pessoas de resistir a problemas na esfera psicossocial. HISTÓRIA DE DOENÇA NA INFÂNCIA • A somatização crônica também tem sido associada à história de adoecimento frequente (ou ter familiares com doenças incapacitantes) na infância, com um reforço ao papel de doente causado pelo aumento da atenção que ocorre quando da doença física e pela identificação com figuras doentes. • Em vários estudos, a ausência de cuidados suficientemente bons por parte das famílias, junto com ganho de atenção ao adoecer se correlacionam com presença de somatização. • Alguns autores levantam a hipótese de que certos padrões familiares favorecem a somatização, incluindo as ditas “famílias psicossomáticas”, em que pouco se pode falar de situações conflitivas. PAPEL DO PROFISSIONAL E DO SISTEMA DE SAÚDE • As queixas somáticas inespecíficas representam uma demanda complexa, pois, na maioria das vezes, os profissionais não conseguem diagnosticar uma patologia que as justifique, o que leva a inúmeras investigações clínicas e ao referenciamento a diversos especialistas. • Essa conduta traz, além do alto custo associado a essas pessoas, maiores riscos de iatrogenia e insatisfação de ambos os protagonistas da relação médico-paciente, tornando o tratamento um campo de batalha fadado ao insucesso. • Os profissionais de saúde, por terem dificuldade em lidar com os aspectos subjetivos do sofrimento de seus pacientes, tendem a acatar e aceitar melhor as queixas físicas dessas pessoas, o que funciona como importante reforço desse padrão de comportamento nos indivíduos. TRAUMA E ABUSO FÍSICO E SEXUAL • Verifica-se, em um subgrupo dos somatizadores crônicos, uma alta frequência de relatos de trauma, físico ou psicológico e de abusos sexuais, em especial relacionados a queixas de dor, que se destacam nesses casos. • As queixas somáticas inespecíficas têm sido associadas a transtorno do estresse pós- traumático (TEPT). • A adaptação ao trauma envolve diversos mecanismos, em que se incluem processos como a somatização, a dissociação e a desregulação dos afetos, e que devem ser diagnosticados para a melhor elaboração de soluções terapêuticas. ABORDAGEM TERAPÊUTICA DA PESSOA • Cuidar adequadamente de pessoas com sintomas SEM (sintomas sem explicação médica) só é possível a partir da superação do modelo biomédico, cartesiano, tradicional, de cuidado, com a construção de uma abordagem centrada na pessoa, de cunho integral, a qual permita espaços para falar e lidar com o sofrimento emocional na consulta. • Os sintomas SEM envolvem antes de tudo uma disponibilidade para acolher, escutar e elaborar o sofrimento emocional da pessoa e as formas como esse se manifesta em seu corpo. • É necessário estar atento para as informações sobre a vida do paciente, seus problemas e dificuldades, seu sofrimento emocional, presença de sintomas psicológicos associados. • Destaca-se especialmente a técnica de reatribuição delineada por Goldberg e cols. o A reatribuição refere-se a um processo de abordagem de pessoas com sofrimento emocional/transtorno psíquico que buscam cuidados na APS, geralmente com sintomas físicos SEM. o Essas queixas, apresentadas muito frequentemente, representam uma barreira para o cuidado adequado ao sofrimento emocional, pois desviam o foco das consultas para exames e possíveis doenças físicas a serem detectadas. o Reatribuir, ou seja, construir uma conexão entre as queixas somáticas e o sofrimento psíquico, é o primeiro passo para que os tratamentos psicossociais na APS ou o referenciamento para terapias especializadas sejam aceitos pelos indivíduos. • Uma vez que o processo seja realizado e o indivíduo entenda a conexão entre suas queixas físicas e seu sofrimento emocional, a abordagem, a elaboração e a resolução de seus problemas psicossociais se tornam o objetivo de seu tratamento, em vez das queixas físicas SEM. TRABALHAR COM TERAPIAS COMPLEMENTARES E GRUPOS • Essas técnicas permitem que espaços de acolhimento e elaboração do sofrimento psíquico sejam organizados em moldes coletivos e têm sido bastantes eficazes no cuidado a essas pessoas. Elas incluem relaxamento/exercício físico, estratégias de grupo, terapia comunitária, grupos de convivência, incluindo os grupos de artesanato, e as terapias breves baseadas nas terapias cognitivo-comportamentais (TCCs) e na técnica de resolução de problemas. • O relaxamento e as meditações tipo mindfulness permitem a redução da ansiedade e o desenvolvimento de novas formas de lidar com o estresse que são extremamente positivas para essas pessoas. • Deve-se sempre utilizar, quando disponível, o recurso do apoio matricial em saúde mental (matriciamento), em especial a consulta conjunta na abordagem desses pacientes na APS. • Por meio de uma conduta compartilhada e dialogada entre os profissionais da MFC, da saúde mental, do paciente e da sua família pode ser construída em conjunto, o que é particularmente benéfico para a pessoa com sintomas SEM.
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