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1 PRA CEGO VER: A (IN)VISIBILIDADE DA DEFICIÊNCIA VISUAL A PARTIR DO CORDEL “PELEJA DO CEGO ADERALDO COM ZÉ PRETINHO DO TUCUM” Raissa Kainara Campêlo da Silva 1 RESUMO Falar sobre inclusão na atual conjuntura já não é uma utopia, tornou-se uma realidade com a qual nos deparamos diariamente. Seja nas escolas ou na vida social, os portadores de necessidades especiais exigem e são merecedores de lugar de destaque. Porém, o tema ainda é pouco pesquisado dentro da academia e, devido a falta de registros a esse respeito na historiografia caicoense, o presente trabalho propõe-se a analisar uma fonte ainda pouco usual, a literatura de cordel. E é no folheto A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum que baseia-se esse estudo, indo além da busca pela representatividade do deficiente visual na literatura, mas com o intuito de analisar e problematizar os discursos que, porventura, cercam esses indivíduos Palavras-chaves: Inclusão; Literatura de Cordel; Deficiência Visual; Cego Aderaldo ABSTRACT Talking about inclusion in the current conjuncture is no longer a utopia, it has become a reality that we face daily. Whether in schools or in social life, people with disabilities demand and deserve prominence. However, the subject is still little researched within the academy and, due to the lack of records on this subject in the Caicoense historiography, the present work proposes to analyze a still unusual source, the cordel literature. And it is in the booklet A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum that is based on the research, going beyond the search for the representativeness of the visually impaired in the literature, but in order to analyze and problematize the discourses that perhaps surround these individuals. Keywords: Inclusion; Literature of twine; Visual impairment; Cego Aderaldo INTRODUÇÃO No âmbito da educação, um dos debates mais recentes é o da inclusão de crianças que carecem de atenção especial. Tornou-se corriqueiro adentrar às salas de aula e deparar-se com alunos que possuem deficiências físicas, intelectuais, transtornos de aprendizagem, superdotação, dentre outras situações que, na prática, solicitam um olhar mais sensível por parte do professor. Segundo o artigo 205 da Constituição Federal de 1988: 1 Graduanda do curso de Licenciatura em História UFRN. E-mail: raissa_narinha@oi.com.br 2 A educação é um direito de todos e é dever do Estado, juntamente com a sociedade, promovê-la e assegurar a igualdade de condições de acesso e permanência na escola. A máxima é válida para indivíduos pertencentes a qualquer gênero, raça ou classe social, incluindo crianças e jovens que possuem necessidades educacionais especiais (Constituição Federal do Brasil, artigo 205) . Ao atentar-se para a educação inclusiva, percebemos algumas fragilidades. Na prática, a inserção desses indivíduos no meio social dito típico, ainda mostra-se instável, em especial nas escolas, devido a escassez de profissionais qualificados para atender suas especificidades e de materiais didáticos que facilitem suas atividades diárias. De acordo com a Declaração de Salamanca, redigida em junho de 1994 na Espanha, todas as crianças possuem habilidades e necessidades educacionais únicas, assim sendo, a escola deve recebê-las de forma igualitária e incentivar essa socialização, sempre que possível. Conforme a Lei Nº 9394/96 - LDB, cabe ao sistema educacional oferecer, quando necessário,serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender as peculiaridades da clientela de educação especial. Assegurando assim currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas carências. Mas, como falar sobre inclusão em um cenário onde esses sujeitos passam despercebidos em meio a multidão tida como normal e as suas deficiências são tratadas enquanto motivo de vergonha e, por vezes num passado nada distante, escondidas em manicômios para que ninguém as veja? Esboça-se um eixo da corrigível incorrigibilidade, em que vamos encontrar mais tarde, no século XIX, o indivíduo anormal, precisamente. O eixo da corrigibilidade incorrigível vai servir de suporte a todas as instituições específicas para anormais que vão se desenvolver no século XIX. Monstro empalidecido e banalizado, o anormal do século XIX também é um incorrigível, urn incorrigível que vai ser posta no centro de uma aparelhagem de correção. Eis o ancestral do anormal do século XIX (FOUCAULT, 2001, p 73). No decorrer do curso de Licenciatura em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Ceres / Caicó, é gritante a ausência de registros que tragam os deficientes enquanto protagonistas de ações que mereçam destaque e, até mesmo de episódios em que estes apareçam, ainda que de forma secundária. A própria ementa exclui disciplinas que preparem os futuros educadores para a realidade da Educação Especial. Ao pesquisar a temática dentro dos trabalhos de conclusão de curso na área de História e demais artigos escritos pelos discentes, o silêncio mostrou-se ensurdecedor. E a perspectiva de pesquisa a curto prazo deveras obtusa, visto a ausência de referencial teórico-metodológico acerca do assunto. A maior motivação para esmiuçar esse horizonte de pesquisa é a emergência que existe nas escolas das redes de ensino básico, despreparadas para enfrentar as dificuldades que podem vir a surgir no dia-a-dia ao lado de crianças e jovens que, 3 a bem pouco tempo eram privados de frequentar ambientes sociais, quiçá educacionais regulares. Sem citar a ausência de trabalhos que responsabilizem-se por estudar o campo temático, a fim de quebrar os paradigmas existentes e desconstruir a idéia de que a criança com deficiência é problemática e impossibilitada de aprender. Vygotsky (2006) afirma que a criança com deficiência não desenvolve-se menos, mas de forma diferente. E é justamente da interação com outras pessoas e ambientes que esse conhecimento é adquirido. Situação que autor denomina como aprendizagem mediada. Ao escolher o tema e, posteriormente o recorte da pesquisa, decidiu-se trabalhar sob a ótica de fontes documentais textuais, fazendo ainda o recorte para a literatura de cordel. O presente estudo se debruça sob o cordel “Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” , vislumbrando apresentar a deficiência visual de acordo com o olhar do autor Firmino Teixeira do Amaral. Além de fazer uma breve revisão bibliográfica acerca dos discursos que permeiam a presença dos atípicos nesse nicho literário. O cordel, segundo Curran,“é um dos principais documentos da cultura brasileira, mesmo sendo da cosmovisão do homem comum” (2011, p.13). E é justamente nessa visão do sertanejo, semi ou totalmente analfabeto, que buscaremos os registros de deficiências em um sertão ainda desprovido de consciência social. Em Medeiros (2017), temos como destaque o Cego Aderaldo que, mesmo privado de um sentido básico como a visão, percebe o mundo de forma sensível, tendo seus versos reconhecidos não apenas no cordel, mas ainda na música e até mesmo tornando-se personagem recorrente em filmes. Sua importância foi tamanha que, ao procurar por “Cego Aderaldo” como palavra-chave no catálogo da Biblioteca de Obras Raras Átila Almeida, localizada na cidade de Campina Grande/PB e referência mundial por seu extenso acervo de cordéis, aparecem 45 (quarenta e cinco) registros. Da mesma fonte bebe o autor Aderaldo Luciano dos Santos, porém sob uma percepção adversa, visto que, em sua tese de doutorado Literatura de Cordel: visão e re-visão (2013) buscou desconstruir o que nós conhecemos como a historiografia do cordel nordestino, descrevendo o cordel enquanto uma forma de poesia e não um gênero literário independente. Além dos livros que tratam essa tipologia de escrita de forma teórico-metodológica, trabalhar-se-á com o cordel em si, o folheto escrito com rimas marcadas e xilogravura como marca de identidade visual. Por fim, fazer-se-á um levantamento bibliográfico acerca do Aderaldo enquanto homem e enquanto personagemmitológico, buscando nas minúcias denunciar sua essência. Além de abrir espaço para a discussão de como as deficiências costumam ser descritas nas narrativas aqui elencadas. Ouvindo principalmente os silêncios presentes na historiografia nessa área, visto que não há material escrito no CERES - Caicó, campus seridoense da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, dentro do curso de História, que abarque a presença de deficientes em quaisquer cenário, o objetivo principal é abrir espaço para discussões sobre as deficiências e assim, iniciar um debate sobre a inclusão enquanto realidade diária. 4 Como passo inicial, foi feito uma revisão de literatura nas bibliotecas locais, dentro das sessões de História, em busca dos relatos acerca dos excepcionais na educação, seja ela especial ou inclusiva. Devido a falta de material, foi proposta pelo orientador da disciplina Laboratório de História, que tem como produto final o presente artigo, uma varredura nos livros de memórias encontrados na Biblioteca Municipal Olegário Vale. Nesta, os relatos permaneceram raros e inconclusivos. Partiu-se então para o planejamento de um novo viés de pesquisa. Nesse sentido, foi feita a escolha de filtrar resultados na literatura presente na Cordelteca da UFRN Poeta Djalma Mota, localizada à Rua Joaquim Gregório, s/n. Prédio dos Laboratórios do curso de História - CERES/UFRN e os que foram, gentilmente cedidos pelo Professor Dr. Lourival Andrade Júnior e pelo Professor José Mário Dantas. O maior percalço encontrado pelo pesquisador foi definir o conceito que embasaria o presente trabalho, tendo em vista que o tema encaixa-se dentro da História Social. Entretanto, para Lynn Hunt, o próprio Michael Foucault construiu um caminho próprio, que viria a unir a história social à antropologia: Seguindo por um caminho diferente, Foucault questionou o próprio princípio implícito em toda a história social: o de que a própria sociedade constitui a realidade a ser estudada.(HUNT, 1992, p35) Se, porventura, a própria sociedade se constitui enquanto material de estudo, o cordel configura-se como retrato do contexto cultural que o produziu. Assim sendo, como utiliza-se esse documento enquanto fonte, encontramos na História Cultural os conceitos que viriam a permear o estudo, tendo em vista que, para Pesavento, escrita e leitura são indivisíveis. Diz a autora que: Nessa medida, é a História que formula as perguntas e coloca as questões, enquanto a Literatura opera como fonte. A Literatura ocupa, no caso, a função de traço, que se transforma em documento e passa a responder às questões formuladas pelo historiador. Não se trata, no caso, de estabelecer uma hierarquia entre História e Literatura, mas sim de precisar o lugar de onde se faz a pergunta. (2012, p 82) Aspirando fazer essa ponte entre o cordel e as deficiências, nos ateremos inicialmente na apresentação do folheto de cordel enquanto fonte historiográfica e nas possibilidades criadas a partir desse filão literário como documento oficial. Em seguida, teremos uma revisão bibliográfica acerca dos materiais encontrados que trazem em seus títulos a deficiência como destaque. O texto conta ainda com a descrição do Aderaldo Ferreira de Araújo e sua história de vida e conclui com a análise do folhetim “A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” e a maneira como a sua deficiência física é mostrada no decorrer da narrativa. 1 - O CORDEL ENQUANTO FONTE HISTORIOGRÁFICA É sublime a maneira que Marco Haurélio, define a sua paixão pela literatura de cordel; gênero brasileiro, que traz Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde como nomes de destaque. 5 Acreditando na cultura popular como sinônimo de resistência, e no cordel como manifesto dessa cultura que não entrega os pontos, vou espargindo versos sobre o papel com o mesmo respeito e cuidado do agricultor que lança a semente e, com ela, a esperança, no ventre da terra. (2013, p.9). Segundo Curran: A literatura de cordel - assim chamada porque os folhetos em verso eram muitas vezes vendidos “cavalgando” um barbante (cordel) numa barraca de feira do Nordeste (quando esta literatura surgiu, os folhetos eram expostos como cartas de baralho em cima da mala do poeta-vendedor) - é aquele corpus de poesia narrativa folclórico-popular surgida originalmente no Nordeste do Brasil. ( 2011, p 16) A priori, é importante ressaltar que o cordel é produto de uma determinada época em um determinado espaço. Significa dizer que o cordel nada mais é que o retrato do tempo em que foi escrito e das pessoas que o pensaram. Justamente por isso, retrata pensamentos que, por vezes, na contemporaneidade, consideram-se preconceituosos ou desusados, muitas vezes até mesmo descabidos. Para Curran, “o cordel é o registro escrito da cultura do povo humilde do Nordeste do Brasil, arraigada em seu processo formativo” (2011, p 13). A partir dele é possível encontrar maneiras inéditas de compreender o Brasil. Mas qual Brasil? Peter Burke nos traz esse questionamento. Quem é “o povo”? Todos, ou apenas quem não é da elite? Neste último caso, estaremos empregando uma categoria residual e, como acontece muitas vezes em se tratando dessas categorias, corremos o risco de supor a homogeneidade dos excluídos. Talvez seja melhor seguir o exemplo de vários historiadores e teóricos recentes e pensar as culturas populares (ou, como os sociólogos costumam chamar, “subculturas”) no plural, urbana e rural, masculina e feminina, velha e jovem, e assim por diante. O termo “subcultura” parece estar caindo em desuso, talvez porque esteja associado à delinquência ou porque, erradamente, tenha passado a significar mais posição inferior em uma hierarquia cultural do que a parte de um todo. (BURKE, 2005, p 28) No caso dos folhetins utilizados para este trabalho, o povo do qual se fala é o homem sertanejo, em sua maioria semi-analfabeto, que encontra nos cordéis uma espécie de jornal da época, para manter-se informado dos acontecimentos. Ou busca ali pelo menos uma distração da labuta diária. Já para SANTOS (2012) tomar o termo ‘literatura de cordel’ utilizado por Silvio Romero para nomear a produção cordelistica brasileira resulta em equívoco. O autor defende que o cordel é poesia e não um gênero à parte, como muitos teóricos defendem, baseando-se na descrição feita por Romero que, em 1879 já 6 dava conta do nascimento de um novo gênero de literatura popular, escrito para narrar os feitos de Antônio Conselheiro no Arraial de Canudos. Trazendo para o cerne de nossa problemática, o uso do cordel enquanto fonte histórica, Lucena (2016) afirma que, a literatura de folhetos relata os acontecimentos políticos, econômicos, religiosos e culturais de um determinado período e tessitura social, configurando-se como uma das possibilidades de memória, documento e registro da história da sociedade brasileira. Por fazer parte de uma complexa rede social e transcrever situações de uma dada conjuntura, é de sua alçada contribuir para a compreensão do pensamento em que foi escrito. Fazendo uso de Michel de Certeau pode-se visualizar nos cordéis particularidades que fabricam as pluralidades de uma cultura, eles são artes de fazer, táticas de uma produção popular cotidiana que produz uma antidisciplina em relação a uma ordem social hegemônica e a um sistema cultural instituído. Eles além de testemunharem um passado, apresentam-se com uma forma de ler e ouvir diferente de um texto convencional. Possuem um poder de atração que se expressa a partir das rimas, da musicalidade, da liberdade de pensamento e dos gracejos de seus versos. (LUCENA, 2016, p 02) O mais importante aqui é desmistificar a ideia do cordel como um objeto literário de meio de feira, mas desnaturaliza-lo de seu ambiente original e fazer uso enquanto documento histórico capaz de expressar a cultura do povo que viveu naquele cenário específico. E, por fim, usá-lo para desqualificar e problematizar os discursos impressos que não condizem mais com a realidade atual. Indicação principal para àqueles que pretendemutilizar o folhetim enquanto ferramenta didática em salas de aulas, inclusive àqueles que abarcam temáticas interligadas com as deficiências, tema já bastante destrinchado no presente artigo. 2 - O DISCURSO ACERCA DAS DEFICIÊNCIAS NO CORDEL Segundo Mazzotta, “[...] a falta de conhecimento sobre as deficiências em muito contribuiu para que às pessoas portadoras de deficiência, por ‘serem diferentes’, fossem marginalizadas, ignoradas” (2005, p 16). E é justamente nesse cenário que discutiremos o conceito de deficiência para a sociedade e como o mesmo encontra-se representado na Literatura de Cordel. E são justamente esses discursos que podemos encontrar dentro da literatura de cordel, ou, pelo menos, nos poucos exemplares que foram analisados para esta análise bibliográfica. De acordo com Pontes, este estudo focaliza a leitura dos marginalizados na literatura, como uma variedade de tipos que insere os personagens no rol dos despossuídos. [...] portanto, estudar esta figura literária grotesca amplia as possibilidades de compreensão da marginalidade social como fator estético da maior relevância na literatura brasileira contemporânea (2014, p13) Durante as pesquisas, deparamo-nos com uma personagem, no mínimo curiosa. “A estória da nêga de um peito só”, de Cícero Vieira, narra as balelas de um 7 homem que só quer contar as proezas da tal moça, feia e assombrada, como ele mesmo diz, parecia o satanás. “Eu preguntei aos colegas Com paciência de Jó Andei por todo lugar Fui à casa da vovó Pra saber dessa história Da Nêga dum peito só” O discurso mostra-se apelativo, tratando sempre a negra como defeituosa, fedorenta e desmazelada. Além do preconceito para com a deficiência física, temos presente o racismo e machismo. Discursos a serem problematizados e desconstruídos sempre que possível. A descrição física é comumente usada para desqualificar a personagem através de comparações e da riqueza de detalhes depreciativos, tanto físicos como morais. (...) isso nos leva a refletir sobre a condição da existência do pobre diabo estar ligada aos aspectos sociológicos e biológicos, ‘o que foi destinado pela própria natureza a esse que é o mais humilde dos papéis ficcionais” (PAES, 1990, p.44 ) Encontramos ainda “A cidade dos cegos ou a História de pescador”, de Queima-Bucha. Este narra como a soberba cega o coração daqueles que só buscam o ouro. Será só mais uma história de pescador: “Hoje em dia eu sou um deles Caminho na escuridão Tirei a venda dos olhos Joguei o pano no chão Preferi cegar meus olhos Que cegar meu coração.” Neste exemplar é feito uma analogia acerca da cegueira, indo além da deficiência visual, mas tratando da cegueira que a ganância é capaz de gerar no homem, quando a sede de possuir mais e mais venda os olhos do soberbo. Outro exemplar lido foi a “Peleja do Mestre Azulão com o Negro dos pés redondos”. Que, assim como a “Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” traz mais um duelo de palavras trocadas, algumas até ofensivas, a fim de descobrir quem é o mais sabido dos dois, através do uso de verbetes, por vezes infames. Essas pelejas, geralmente, baseiam-se nas grandes guerras da Idade Média, em especial nas toadas que trazem Carlos Magno como herói. “Pois seus pés eram redondos Visguentos como quiabo E bem no fundo da calça O negro escondeu o rabo Tanto que Azulão disse: 8 -Agora encontrei o diabo!” Menção honrosa para o professor José Mário Dantas, cordelista e cadeirante, que, ao saber do interesse pela pesquisa das deficiências na literatura de cordel, prontamente nos recebeu em sua casa e apresentou seu ilustre trabalho. Em “O baú dos absurdos”, a deficiência aparece, mas não como protagonista. Em meio a um sonho, o personagem se vê envolto em situações descabidas, porém sempre puxado por sua cadeira de rodas. Mas, por incrível que pareça, nenhum dos despautérios lhe é causa ou efeito de sua limitação física. “Num cadeira de rodas Sonhei que eu caminhava Puxado por um jumento Um negócio eu acertava Com um sitiante antigo Que a venda efetuava” Em um segundo trabalho o professor narra sua trajetória de superação desde a mais tenra infância, quando a paralisia infantil tirou-lhe o movimento das pernas, mas nunca o desejo de lutar. “Conheci a nuvem densa Daquele que discrimina Que maltrata e exclui Que a maldade rumina Quando somos diferentes \Que a violência domina” Peço licença ao leitor, para parabenizar ao professor que, gentilmente forneceu peças que se mostraram indispensáveis na construção deste trabalho, trazendo uma visão que vai além do preconceito, demonstrando que o verdadeiro deficiente é aquele que se entrega sem antes batalhar. “Relatei aqui um pouco Dessa minha trajetória Vida, escola, poesia Vividos como História Sempre vieram depois, O sucesso da vitória” O que pudemos perceber, ao analisar os folhetins acima citados, é que o discurso presente nas narrativas vem sempre abarrotado de julgamentos e preconceitos. O deficiente, costumeiramente, é tido como marginal, seja por proceder de forma malcriada, seja por estar, literalmente, fadado a permanecer às margens da sociedade. Outrossim, a narrativa deixa cada vez mais claro a impossibilidade da inclusão, do deficiente ser visto como um igual. Ele está sempre abaixo, mesmo 9 quando consegue se sobressair por seus talentos, como nas pelejas em que os cegos obtém sucesso ou quando o cadeirante consegue, enfim, tornar-se alguém que merece respeito. O mais comum é que o “defeito” seja visto como um castigo ou como motivo de vergonha ou repulsa, como fica claro nas narrativas sobre a negra dum peito só ou do negro dos pés redondos. 3 - O CEGO ADERALDO ALÉM DO MITO Aderaldo Ferreira de Araújo nasceu em 24 de Junho de 1878, no Crato - Ceará. Filho de Joaquim Rufino de Araújo, alfaiate e Maria Olímpia de Araújo, dona de casa, muda-se para Quixadá ainda menino, como narra em entrevista a Robert Rowland: Meu caro amigo, como lhe disse há pouco tempo, eu, com cinco anos de idade, comecei a trabalhar p’ra sustentar minha mãe e meu pai. Meu pai, em 1888, teve uma congestão, que ficou sem fala e sem ouças e aleijado. Mudo e surdo e aleijado. E eu trabalhando pra manter. Ora, eu ganhava dois vinténs por dia. Com cinco anos de idade. Era com aquilo, com aqueles dois vinténs, que se comia. Que a gente não tinha mais recursos. Nada não se tinha. (1965, p 02) Fez de tudo na vida: Aprendiz de carpinteiro, empregado de hotel e até ferro forjou. mas foi como maquinista nas Estradas de Ferro de Baturité que mais trabalhou. Até que, em 25 de Março de 1896, 10 dias após o falecimento de seu pai, o jovem sofre uma dor de cabeça tamanha que escurece-lhe as vistas. E desde então o mundo tornou-se negro para Aderaldo. Fiquei completamente cego. E aquela coisa morna, que pingou na minha mão, repetidas vezes, me disseram que era sangue. O sangue que descera de meus olhos, estalados pelo destino.( MEDEIROS 2017, p.14). Pobre, cego e com uma mãe idosa, Aderaldo se viu sem ter a quem recorrer. O orgulho não lhe permitia sair às ruas pedindo esmolas. Fome virou castigo diário. Até que um dia, em meio a suas orações pedindo que São Francisco do Canindé lhe desse um caminho, sonhou cantando: “Oh! Santo de Canindé! Que Deus te deu cinco chagas Fazei com que este povo Para mim faça as pagas; Uma sucedendo às outras Como o mar soltando vagas.” Aderaldo afirma em entrevista que não ouvia outros cantadores, visto a raridade de que estes aparecessem em Quixadá, mas naquele dia teve a certeza de que faria dessa sua tábua de salvação. Reza a lenda que o mancebo ganhou um 10 cavaquinho de uma moça e, desde então passou a ofertar versos pela cidade em troca de moedas, comida e mantimentos. E assim nasceu o cego cantador mais famoso do Nordeste. Até que chegou o dia em que qua mãe veio a falecer. Triste, sozinho e sem rumo, pega seu cavaquinho e sai pelo mundo a cantar. Como ele mesmo diz: “Sem guia, porque eu não tinha quem quisesse ir mais eu de graça. E pagar – não tinha dinheiro. Saí. Agora, com a bengalinha namão, batendo, batendo e seguindo. Devagarinho, que eu não podia andar depressa” E são dessas andanças que nascem suas mais importantes pelejas. Em 1914 trava sua peleja com Zé Pretinho; em 1923 ruma ao Juazeiro d’onde é recebido pelo próprio Padre Cícero; posteriormente canta para Lampião e ganha como agrado um revólver de cangaceiro.. Atrás de uma novidade, em 1931 comprou um gramofone e alguns discos pro povo escutar. Logo depois, começa a passar filmes para os sertanejos, mas isso não o realizava. Tentou ainda abrir uma bodega, mas percebeu que seu traquejo só dava pra ser cantador. Cansado da lida, Aderaldo, então, aposenta-se dos desafios e, na serenidade de seu lar, vai cuidar da família que construiu. “Aderaldo era solteiro Nunca teve uma mulher Mas os filhos adotivos Seguiram o seu mister Luis Bento e Zé Raimundo Tinham carinho profundo Por aquele pai de fé.” (LACERDA) Aderaldo Ferreira de Araújo faleceu aos 89 anos de idade, em 29 de Junho de 1967, em Fortaleza. Mas deixou seu nome gravado na historiografia sertaneja, como um dos maiores cantadores já vistos por essas paisagens. Sua visibilidade tornou-se tamanha que ganhou proporções nacional. Em 1969, o violonista Baden Powell compôs e gravou a toada "O Cego Aderaldo (Nordeste)", no LP "27 Horas de estúdio", da gravadora Elenco. Em 1974, o cantor e violeiro Téo Azevedo, no LP "Grito selvagem", da gravadora Central Park Tapes, gravou a cantiga "Cego Aderaldo ", do próprio Téo Azevedo. Em 1977, o cantor Ari Toledo em LP da gravadora Beverly, adaptou e gravou a música tradicional nordestina "Desafio do Cego Aderaldo X Zé Pretinho". Em 1979, a composição "Cego Aderaldo", de Egberto Gismonti, foi gravada por Naná Vasconcelos no LP "Saudades", da WEA. Em 1980, o baião "Cego Aderaldo", de João Silva e Pedro Maranguape, foi lançado por Luiz Gonzaga no LP "O Homem da terra", da gravadora RCA Victor. No mesmo ano, "Cego Aderaldo", de César Barreto e Marcus Accioly, foi gravada por César Barreto no LP "Nordestinados - A poesia de Marcus Accioly com música de César Barreto", da gravadora Continental. (Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira) 11 Aderaldo teve ainda sua trajetória contada no documentário Cego Aderaldo: O cantador e o mito, de Rosemberg Cariry (2012) e tornou-se personagem, ainda que de forma alegórica, do filme A história da eternidade, de Camilo Cavalcante (2014), este último vencedor de diversas premiações de cinema. 4- A PELEJA DO CEGO ADERALDO COM ZÉ PRETINHO DO TUCUM A presente peleja narra uma discussão acontecida entre o Cego Aderaldo e o brilhante cantador do sertão piauiense Zé Pretinho do Tucum. Chegando ao sertão, um camarada vem perguntar se Aderaldo, porventura, não teme à fama de Zé Pretinho. E assim se marca o tal duelo de palavras que viria a originar esse cordel escrito por Firmino Teixeira do Amaral. No presente texto há diversas questões a serem problematizadas. Seja a discriminação: “Um disse a Zé Pretinho: A roupa do cego é suja Botem três guardas na porta Para que ele não fuja Cego feio assim de óculos Só parece uma coruja” Nesse trecho é perceptível como não aceitam a condição do deficiente visual, tratando-o como sujo ou alguém que mereça ser vigiado, descumpridor de seus acordos. “Cala-te cego ruim, Cego aqui não faz figura Cego quando abre a boca é uma mentira pura O cego quanto mais mente Inda mais sustenta a jura.” Surge a figura do cego enquanto um ser de índole malvada, predisposto a mentira e ao crime. Ao deficiente visual é imposta automaticamente a alcunha de marginal. Alguns traços comuns a esses personagens nas narrativas são: - o desamparo do homem frente ao destino - a solidão existencial - uma violência exposta ou camuflada pela sociedade de que faz parte - o desengano que se estabelece pela consciência atormentada - o contraste entre o mundo e a ruína pessoal das personagens em suas vidas malogradas. (PONTES, 2014, p. 20). 12 E essa discriminação fica bastante clara, sempre que se referem ao Cego Aderaldo, de forma ruim, como se a sua deficiência disse absolutamente tudo sobre ele, e, além, dissesse apenas coisas discriminatórias e vexatórias. Outra característica peculiar ao pobre diabo é a qualificação que se faz dele por outras personagens. A descrição física comumente usada para desqualificar a personagem através de comparações e da riqueza de detalhes depreciativos tanto físicos como morais. é recorrente a comparação do pobre diabo a animais. (PONTES, 2014, p 51) Mas também é possível citar outros discursos politicamente incorretos na contemporaneidade, embora fossem deveras utilizados a tempos atrás: “Negro é raiz Que apodreceu Casco de judeu Moleque infeliz Vai pra teu país Senão eu te surro Dou-te até de murro Tiro-te o regalo Cara de cavalo Cabeça de burro” Analisar os cordéis com o olhar de historiador faz-se cada vez mais urgente e necessário. Seja para se aprazer com essa fonte tão rica de relatos, seja para problematizar os discursos nela existentes. O exemplar “Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” vai além do retrato de uma época; nos traz verdadeiros tratados acerca do desrespeito para com as deficiências, para com os colorismos e, atém mesmo, com os homens em geral. Problemas estes que devem ser discutidos, inicialmente na academia e, principalmente, fora dela. CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate acerca da inclusão ainda é deveras inicial, mas torna-se cada vez mais urgente, visto que os tempos de masmorras para aqueles que possuem limitações físicas ou intelectuais findaram-se. E, justamente por ser necessário, é preciso criar metodologias que auxiliem o educador a trabalhar esses conteúdos em sala de aula, vislumbrando assim formar cidadãos que tratem-se de maneira igualitária. E mais, que verdadeiramente adequem as condições no traquejo social para que todos possam se fazer presentes, independente de sua limitação. A escolha do Cego Aderaldo enquanto personagem da presente pesquisa não foi aleatória. Homem de diversos talentos, provou que a sua deficiência jamais o impediria de vencer. E fez dela apenas mais uma característica de seu ser. 13 Sai pelo mundo a cantar. Os meus pés pisaram a poeira de muitos caminhos! Percorri todas as serras, alcancei os chapadões, varei a caatinga, entrei no brejo… por toda parte eu levava a minha voz, assim como um soldado leva a bandeira do seu batalhão, cumprindo um roteiro de cantorias. Aqui escrevo, e juro que é verdade. (MEDEIROS, 2017, p 16) Fica a sugestão do uso do cordel enquanto ferramenta de inclusão, para debates em sala de aula, a fim de desconstruir ideias já pré estabelecidas. E enquanto fonte a ser revisitada pelo pesquisador, a fim de (re) conhecer e (re) conectar-se aos sertões e as deficiências, temáticas sensíveis e ainda tão pouco pesquisada. FONTES AMARAL, Firmino Teixeira. Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum. [folheto de cordel]. SP: Editora Luzeiro, 2011. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília : MEC, 1996. DANTAS, José Mário. Escola, vida e leitura. [folheto de cordel] Caicó/RN, 2018. DANTAS, José Mário. O baú dos absurdos. [folheto de cordel] Caicó/RN, 2018. DECLARAÇÃO DE SALAMANCA: Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, 1994, Salamanca-Espanha. FRANCISCO, Antônio. A cidade dos cegos ou história de pescador. [folheto de cordel]. Mossoró/RN: Editora Queima-Bucha, 2008. LACERDA, José Medeiros de. O cego Aderaldo. [folheto de cordel] Série Cantadores, vol XXX. Santa Luzia/PB ROWLAND, Robert Lewis. Entrevista com o Cego Aderaldo: aprendizagem como cantador. Extrato de uma longa conversa com Aderaldo Ferreira de Araújo (1878-1967), conhecido como o Cego Aderaldo, gravada em sua casa, em Quixadá (CE), em 8 de setembro de 1965. Disponível em https://www.academia.edu/8701709/Entrevista_com_o_Cego_Aderaldo_aprendizagem_como_cantador_1965_ SILVA, Antônio Alves da. Peleja do mestre Azulão com o negro dos pés redondos. [folheto de cordel]. SP: Editora Luzeiro, 2006. https://www.academia.edu/8701709/Entrevista_com_o_Cego_Aderaldo_aprendizagem_como_cantador_1965_ https://www.academia.edu/8701709/Entrevista_com_o_Cego_Aderaldo_aprendizagem_como_cantador_1965_ 14 VIEIRA, Cícero. A estória da nêga dum peito só. [folheto de cordel] Juazeiro do Norte/CE - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, José D’Assunção. 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