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INTRODUÇÃO O presente trabalho agrega conhecimentos ao campo dos estudos interdisciplinares acerca do lazer à medida que, partindo de uma base empírica consistente sobre a Capoeira Angola, procura aprofundar conhecimentos sobre essa prática de lazer cultural tipicamente afro-brasileira, corroborando assim com teses, como as de Gomes e Elizalde (2012), que afirmam a necessidade de que se incentivem as práticas populares de lazer, uma vez que as mesmas - diferentemente das formas massificadas e manipuladoras contemporâneas do entretenimento que servem aos interesses do consumo e do grande capital - podem servir como “[...] um ponto de partida para realizar essa conexão do sujeito consigo mesmo, com sua essência e com suas identidades” (GOMES; ELIZALDE, 2012, p. 147) , Além disso, “[...] pode gerar experiências de aberturas marcadas por uma atitude que rompa e transgrida o lícito e o permitido, situando-se muitas vezes à margem do socialmente adequado e aceito [...].” (GOMES; ELIZALDE, 2012, p. 84) Assim, essas formas populares de lazer, que se encontram disseminadas por toda a América Latina, ao serem apreendidas pelo conhecimento acadêmico interessado em desenvolver pesquisas assumindo uma posição política descolonizadora, isto é, evidenciando o lado da história sistematicamente encoberto, ou negligenciado, deveriam também ser analisadas a partir de metodologias próprias. Dessa forma, Fernandéz e Bedoya (2012, p. 24) afirmam que: “na perspectiva do lazer, o grande desafio está vinculado ao desenvolvimento de um pensamento capaz de recolher e dar conta da singularidade histórica, social, cultural e política das comunidades da região latino- americana” Isso demandaria a operacionalização de novos marcos de referência analítica que permitissem compreender o lazer fora dos padrões estabelecidos pelas chamadas metrópoles, que tendem, ora a interpretá-lo como atividade marginal, ora como atividade compensatória, que prescreve o fortalecimento do corpo para potencializar a sua exploração laboral. Nesse sentido, a pesquisa que ora apresentamos também corrobora os estudos interdisciplinares referentes ao lazer, uma vez que a mesma se desenvolveu mediante a utilização de uma metodologia participativa, dentro de uma perspectiva de cunho epistemológico qualitativo, de modo que os próprios sujeitos da pesquisa participaram do processo de construção do conhecimento de forma a permitir “a reconstrução decidida de uma história do lazer na periferia, que torne visível o não contado e que forneça elementos para tentarmos entender melhor o que somos hoje” (FERNANDÉZ; BEDOYA, 2012, p. 23). Sendo assim, quando em nosso estudo relativo à Capoeira Angola, propiciamos que os seus cultores participassem do processo de produção do conhecimento, contribuindo por meio de seus próprios relatos e também participando do processo da análise, como descreveremos em momento oportuno, conseguimos lançar luzes sobre a mesma, desvelando aspectos muito particulares dessa forma de lazer e, ao mesmo tempo, de resistir ao modo colonizador ainda dominante. Com efeito, foi no espaço do folguedo, da festa, do batuque, da “brincadeira” negra, permitidos porque aparentemente inofensivos, que “os negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam seus deuses e retomavam a linha do relacionamento comunitário. Já se evidencia aí a estratégia africana de jogar com as ambiguidades do sistema, de agir nos interstícios da coerência ideológica.” (SODRÉ; 2005, p. 93) À vista disso, o objetivo precípuo de nosso trabalho foi o de fazer transparecerem os aspectos dessa forma de resistência política e cultural a Capoeira Angola, tão associada aos ideais de liberdade do afro-brasileiro no contexto da escravidão, verificando e demonstrando as suas características e as formas de resistência que ela engendra nos dias atuais. Assim, em linhas gerais, buscamos caracterizar o ritual da Roda de Capoeira Angola desvelando os seus fundamentos estéticos, éticos e políticos. Para tanto, realizamos um estudo de caso junto a Associação Cultural Eu Sou Angoleiro – Acesa fundada e dirigida por Mestre João Bosco Alves da Silva, desde o ano de 1993, e da qual faço parte desde o ano de 1997. O estudo consta de uma parte inicial descritiva, intitulada Campo de Mandinga, em que começamos por narrar a história de vida de Mestre João, vivência que se entrelaça com a Capoeira desde a sua adolescência. A partir de seus relatos, fomos percebendo como ele, à medida que vai se aprofundando no universo da Capoeira, - principalmente depois que vem a conhecer e a praticar a Capoeira Angola - foi trazendo ao presente uma cosmovisão de origem afro-brasileira, que remonta à África pré-colonial e ao Brasil colônia. Desse modo, a atualização desses padrões culturais que o Mestre João operou pode também ser verificada na própria forma pela qual se organiza o grupo que criou. Sendo assim, ao descrevermos todo o processo que envolve o Mestre e seu grupo, ou seja, sua forma organizativa, seus treinos, os temas que foram debatidos em seus eventos e publicados em suas revistas e, principalmente, o ritual da Roda de Capoeira Angola, percebemos que a própria função da Roda de Capoeira é a de presentificar essa cosmovisão. Nesse sentido, com o objetivo de conhecer mais sobre essa cosmovisão, já que é transmitida por meio de um longo processo iniciático no qual se possibilita ao aprendiz uma vivência estética afro-brasileira, buscamos, inicialmente, a partir da bibliografia especializada, compreender as características de tal estética. Isso feito, passamos a analisar a Capoeira Angola, suas funções, seus fundamentos e suas técnicas, a partir desse paradigma estético. Tal paradigma, embora muito diferente dos referenciais estéticos políticos, liberais ou socialistas do mundo ocidental moderno, engendra uma estética também política na medida em que realça as diferenças étnicas e culturais dentro do contexto de exploração econômica e de subjugação étnico-cultural. Considerando que os iniciantes introjetam essa cosmovisão a partir da experiência estética, convidamos vinte e cinco, dentre os Contramestres e Treinéis da Acesa, todos com mais de nove anos de prática, a participarem de entrevistas roteirizadas. Essas entrevistas nos permitiram perceber que, para além de uma estética, uma ética também se constituiu no grupo. Desse modo, a partir dos padrões estéticos verificados, tangenciamos os fundamentos éticos da Capoeira Angola. A seguir, tratamos de esclarecer os aspectos da resistência política concernentes a essa prática cultural e pudemos verificar que, não só a estética e a ética grupal estariam orientadas por padrões culturais afro-brasileiros, como demonstramos, mas a própria forma de organizar do grupo também presentificaria modelos já experimentados pelos afro-brasileiros em Palmares, os quais, por sua vez, reportavam às formas de lutas e de organizações sociais dos Bantos na África. Por fim, verificamos como os fundamentos que organizam essa cosmovisão - uma vez que “[...] consagram a magia e a hierarquia como um dos elementos centrais de seu universo de valores” (MONTERO; 1996, p. 89 e seg) reafirmando, portanto, valores dissonantes com a modernidade - contribuem para construção da cidadania e de uma ordem social democrática. REFERÊNCIAS (GOMES, L. C; ELIZALDE, R. América latina, educação e lazer. In: horizontes latino- americanos do lazer. 1. Ed. Belo Horizonte: Gomes e Elizalde, 2012. cap 5, p. 147) (GOMES, L. C; ELIZALDE, R. América latina, educação e lazer. In: horizontes latino- americanos do lazer. 1. Ed. Belo Horizonte: Gomes e Elizalde, 2012. cap 5, p. 84) (MONTERO, Paula. Cultura e democracia no processo da globalização, Novos Estudos Cebrap, , ano 44, p. 89-114, mar. 1996.)
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