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ESTUDOS CULTURAIS E ANTROPOLÓGICOS Priscila Farfan Barroso O fazer antropológico Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar as influências do trabalho do antropólogo. Distinguir as novas metodologias do fazer antropológico. Reconhecer os dilemas éticos do antropólogo. Introdução Neste capítulo, você vai conhecer algumas influências metodológicas e conceituais do fazer antropológico enquanto disciplina científica. Como você pode imaginar, a transformação da antropologia em uma disciplina científica não se deu de uma hora para outra. Assim, é preciso entender as etapas desse processo. Ao longo do texto, você também vai conhecer algumas metodologias utilizadas no fazer antropológico que podem ser usadas em outras áreas de conhecimento. São elas: a etnografia, o estudo longitudinal e o survey. Além disso, você vai ver os dilemas e limites éticos do fazer antropológico, que envolve desde a construção do tema de pesquisa até a produção do relatório ou a publicação da pesquisa em livro. Influências do trabalho antropológico O trabalho do antropólogo foi se constituindo como disciplina com o passar dos anos. Para a realização de uma pequena genealogia desse processo, é neces- sário considerar a história e retomar o momento em que povos de continentes diferentes se encontraram pela primeira vez. Um marco dessa trajetória foram as grandes navegações do século XV. Nesse período, como você sabe, surgiu o interesse dos europeus por povos que habitavam terras afastadas das suas. Naquele momento histórico, a ideia dos europeus não era somente conhe- cer como os povos até então desconhecidos moravam e o que faziam. Eles desejavam principalmente se familiarizar com o modo de vida desses povos para melhor dominá-los, subordiná-los e até escravizá-los, já que eram tidos como “primitivos”. Assim, para os europeus, esses povos que viviam além-mar eram considerados menos humanos e deveriam se submeter à civilização para acessar o “progresso”, o “conhecimento” e a “ciência”. Esse pensamento dos europeus é o que se chama de etnocentrismo. Segundo Rocha (1984, p. 5), “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Assim, o etnocentrismo não é característico somente dos europeus, mas de todo grupo social existente, como reforça Laraia (2001, p. 75): O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É como uma crença de que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autodenominações de diferentes grupos refletem este ponto de vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se autodenominavam "os entes humanos"; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul do Pará, consideram-se "os homens"; os esquimós também se denominam "os homens"; da mesma forma que os Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos chamavam as roupas de "peles de fantasmas", pois não acreditavam que os ingleses fossem parte da humanidade; e os nossos Xavante acreditam que o seu território tri- bal está situado bem no centro do mundo. É comum assim a crença no povo eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças contêm o germe do racismo, da intolerância e, frequentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. A dicotomia "nós e os outros" expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes e não parentes. Os primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o plano extra grupal resulta nas manifestações nacionalistas ou formas mais extremadas de xenofobia. O ponto fundamental de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza, em relação aos estrangeiros. Então, o encontro entre colonizadores e outros povos permitiu a coleta de descrições, desenhos e materiais de outras culturas. Mas tudo ainda ocorria de maneira bastante exploratória e sem uma metodologia específica. Os materiais coletados não tinham status de veracidade e eram tidos mais como relatos, cartas e romances que contavam, de forma até fansiosa e macabra, a vida de outros povos. Somente no século XVIII é que a antropologia começa a se consolidar como disciplina, definindo seu objeto de estudo, delimitando formas de estudá-lo e pro- duzindo análise científica sobre esse objeto. É o que explica Laplantine (2003, p. 7): O fazer antropológico2 […] apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os mé- todos até então utilizados na área física ou da biologia. Isso constitui um evento considerável na história do pensamento do homem sobre o homem. […] Trata-se, desta vez, de fazer passar este último do estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da ciência. […] Para que esse projeto alcance suas primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será preciso esperar a segunda metade do século XIX, durante a qual a antropologia se atribui ob- jetos empíricos autônomos: as sociedades então ditas “primitivas”, ou seja, exteriores às áreas de civilização europeias ou norte-americanas. A ciência, ao menos tal como é concebida na época, supõe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Para conhecer mais sobre a constituição da antropologia como disciplina, sugerimos a leitura do livro Textos básicos de Antropologia, de Celso Castro. Esse livro apresenta a história do pensamento antropológico e destaca alguns antropólogos que constituíram estudos importantes na disciplina. Você também deve atentar à contribuição das ciências biológicas para a constituição da disciplina da antropologia. Afinal, a metodologia de classifica- ção e comparação realizada pelas ciências biológicas influenciou os primeiros ensaios sobre o homem em sociedade. Eriksen e Nielsen (2007, p. 28) trazem mais informações sobre esse período: Finalmente, surgiu a ciência internacionalizada. O pesquisador global se torna uma figura popular — e o protótipo é, naturamente, Charles Darwin (1809–1882), cuja Origem das espécies (1859) se baseava em dados coleta- dos durante uma circum-navegação de seis anos ao redor do globo. […] Não surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse período. O antropólogo é o pesquisador global prototípico que depende de dados de- talhados sobre pessoas do mundo todo. Agora que esses dados se tornavam disponíveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadêmica. 3O fazer antropológico Assim, a antropologia passa a desenvolver estudos sobre o homem, mas esses estudos não são algo focado em um ou outro homem, e sim nas socie- dades humanas como um todo. Com isso, a pretensão da antropologia é de “[...] constituir os ‘arquivos’ da humanidade em suas diferenças significativas” (LAPLANTINE, 2003, p. 12). Metodologias do fazer antropológico Mas o que faz o antropólogo? Ele vai a campo e faz etnografi a ao conversar com as pessoas, anotar o que vê e o que dizem, tirar fotos ou fazer vídeos e pesquisar documentos. Posteriormente, ele produz relatórios, discute com seus pares e refl ete sobre o que viu e ouviu. Ou seja, essa disciplina envolve o fazer antro- pológico, que é aprendido na teoria e também no cotidiano de trabalho. Agora você pode se perguntar o seguinte: quem não é antropólogo pode utilizar algumas metodologias próprias do fazer antropológico? A resposta é sim. Contudo, para haver legitimidade, deve-se ter o cuidado de não banalizar as metodologiasdo fazer antropológico. É o que evidencia Oliveira (2011, p. 120–121): A apropriação, por outras áreas, das teorias e metodologias antropológicas nos levam a pensar e repensar nossa identidade intelectual, bem como o fazer antropológico nesta era pós-tudo, como diria Geertz. A ampliação do que vem sendo produzido, em termos de conhecimento acadêmico, na interface entre a antropologia e as diversas áreas do conhecimento, longe de constituir uma ameaça para o campo da antropologia, perfaz um engrandecimento da produção acadêmica nesta área, ainda que devamos tomar cuidado com o que se está produzindo, quais os limites e quais os diálogos travados com a literatura antropológica, com seus conceitos e referenciais teóricos, afinal, como nos coloca Dauster (2007), não podemos resumir o diálogo da antropo- logia com as demais áreas do conhecimento a uma utilização instrumental da etnografia, até mesmo porque esta constitui mais que “técnica” de coleta de dados, mas sim uma forma de interpretar a realidade social, cujo substrato encontra-se atrelado a um campo de conhecimento específico e a questões suscitadas pela antropologia. Desse modo, você pode perceber que o fazer antropológico implica conhecer as ferramentas e teorias da área da antropologia, mas também requer certa postura do pesquisador em meio ao grupo social estudado. Afinal, como o objeto de estudo é o ser humano, os desafios da pesquisa incluem as formas de relacionamento entre pesquisadores e pesquisados. A seguir, você vai ver algumas metodologias do fazer antropológico que compõem a cientificidade O fazer antropológico4 da disciplina e que a consolidam como mais um dos campos de estudos das ciências humanas. A primeira metodologia que você vai conhecer aqui é a etnografia. Ela propõe a observação e a participação em grupos sociais orientadas por proble- mas de pesquisa. Assim, o pesquisador busca se inserir no grupo com certas ideias preconcebidas, podendo retificá-las ou modificá-las completamente. A proposta de Malinowski (1998) inclui ficar um longo período de tempo com o grupo para compreendê-lo, evitando fazer apenas viagens rápidas. Cuche (1999, p. 45) reforça essa mesma ideia ao dizer que “A transformação de uma etnografia de viajantes ‘que apenas passam’ em uma etnografia de estada de longa duração modificou completamente a apreensão das culturas particulares”. Então, ainda que o modo de pesquisar cada grupo social tenha suas especi- fidades, cabe compreender os principais pontos a que o pesquisador deve estar atento a fim de encarnar uma postura condizente com o fazer antropológico proposto. Eckert e Rocha (2008, p. 2) explicam melhor essa questão: A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar (ouvir), impõe ao pesquisador ou à pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta. A segunda metodologia que pode ser realizada no âmbito do fazer antro- pológico é a pesquisa longitudinal. Aqui, a ideia é que as “[...] pessoas de um único grupo são estudadas em diferentes épocas de suas vidas” (BOYD; BEE, 1977, p. 42). Contudo, nem sempre um trabalho acadêmico realizado por estudantes, por conta dos prazos, permite esse tipo de estudo. Assim, esse tipo de metodologia não é tão comum, ainda que alguns pesquisadores optem por ela. Cunha (2014, p. 411) discorre sobre essa questão ao evidenciar as possibi- lidades e potencialidades do estudo longitudinal na etnografia: Mudando a conjuntura, uma nova investigação terá provavelmente de formular novas questões, em vez de limitar-se a alimentar as mesmas questões com novos dados ao longo do tempo. Ao prosseguir no rumo traçado de início, o risco é, paradoxalmente, o de distorcer a historicidade que se procura captar precisa- mente através de uma revisitação do terreno. Revisitação não equivale, pois, a replicação. É precisamente a ausência de rigidez da abordagem etnográfica que se pode revelar a mais adequada para captar o sentido das transformações. 5O fazer antropológico Por último, você deve conhecer a metodologia do survey (questionário). Ela é a mais utilizada em pesquisas sociológicas e pode ajudar o antropólogo a mapear aspectos da cultura e analisar comportamentos a partir da amostra de um grupo social. Nesse sentido, pode-se utilizar o survey para pesquisas políticas, questões sociais, situações de consumo, entre outros. A ideia é desvendar aspectos que não são facilmente explicáveis. Além disso, um mesmo questionário pode ser aplicado em diferentes públicos. Dessa forma, é possível apreender o que muda de um para outro. Bryman (1989, p. 104) sistematiza as informações sobre o assunto: [...] a pesquisa de survey implica a coleção de dados [...] em um número de unidades e geralmente em uma única conjuntura de tempo, com uma visão para coletar sistematicamente um conjunto de dados quantificáveis no que diz respeito a um número de variáveis que são então examinadas para discernir padrões de associação [...]. Essas variáveis têm de ser analisadas previamente pelos pesquisadores para que eles possam verificar se elas podem ajudá-los a compreender a rea- lidade. Afinal, “[...] uma variável, por definição, deve ter variação; se todos os elementos na população têm a mesma característica, esta característica é uma constante na população e não parte de uma variável” (BABBIE, 1999, p. 124). Dilemas éticos do antropólogo Agora que você já conhece os principais aspectos e metodologias que envolvem o fazer antropológico, deve considerar que essas práticas têm diversos limites. Tais limites devem provocar a refl exão do pesquisador sobre os desafi os da pesquisa. Além disso, o pesquisador deve buscar soluções possíveis para que a pesquisa se realize a contento. Estes são os três principais limites da prática antropológica: 1. o limite dos prazos acadêmicos; 2. os limites do encontro com o outro; 3. os limites surgidos após a produção do trabalho. O primeiro deles considera o fazer antropológico circunscrito ao trabalho acadêmico. Antes mesmo de iniciar o estudo, essa questão se impõe como desafio para o pesquisador. Isso ocorre porque o contexto de realização da O fazer antropológico6 pesquisa afeta diretamente os resultados do estudo. Silva (2009, p. 28) explica melhor esses pontos: [...] não se pode esquecer que a antropologia é uma forma de conhecimento definida segundo os limites impostos pelas regras da academia. O desenvolvi- mento do trabalho de campo sofre, portanto, os constrangimentos relacionados com o modo pelo qual a escolha do tema, das hipóteses e das perspectivas teóricas, para citar apenas alguns itens presentes num projeto de pesquisa, é negociada na academia que o acolhe e legitima. E nessa negociação, além dos “méritos científicos” inerentes ao projeto de pesquisa, deve-se considerar a influência das políticas acadêmicas (linhas de pesquisa institucionalizadas, estabelecimentos, reorganização ou fortalecimento dos núcleos de pesquisa- dores, afirmação de lideranças intelectuais, etc.) na escolha dos temas, regiões geográficas, grupos sociais, etc. que compõem o “recorte” das pesquisas. Mesmo que se trate de uma pesquisa pontual de disciplina, cabe refletir sobre os pontos evidenciados a fim de que se possa realizar um exercício fidedigno à proposta do fazer antropológico. Assim, o pesquisador não tem controle total de sua pesquisa, mas pode direcioná-la da maneira mais adequada, de acordo com os objetivos em questão. O segundo ponto a ser ilustrado enfoca justamente o diálogo entre o pes- quisador e o grupo pesquisado. Segundo Oliveira (2000, p. 24), esse diálogo “Faz com que os horizontes semânticos em confronto — do pesquisador e do nativo — abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal conjunto em um verdadeiro ‘encontro etnográfico’”.Em algumas situações, esses diálogos possibilitam trocas mais densas; em outras, essas trocas são mais truncadas por conta de questões subjetivas. Nesse sentido, não apenas o pesquisador escolhe quem vai pesquisar, mas também precisa ser escolhido pelos nativos, uma vez que a pesquisa envolve o relacionamento entre seres humanos. Assim, esse diálogo implica não somente um pesquisador que demanda algo do pesquisado. O próprio pesquisador tem de aprender, de negociar e de compreender como se dá a comunicação discursiva de quem ele pesquisa. Ferreira (2010, p. 147) evidencia essa questão quando argumenta que o diálogo antropológico implica uma aprendizagem da conversa com o nativo: Já que as metodologias usadas pelos antropólogos dependem fundamentalmen- te de processos linguísticos, é preciso considerar as dimensões comunicativas da aquisição de informações como requisito tanto para a adequação da me- todologia aos contextos culturais a serem estudados (BRIGGs, 1986) quanto para a garantia de uma postura ética na relação de pesquisa. Dessa forma, 7O fazer antropológico podemos evitar situações em que as questões formuladas pelo pesquisador são incompatíveis com o sistema de comunicação nativo. Ao mesmo tempo, é importante você considerar a possibilidade de utilizar o termo de consentimento livre e esclarecido ao travar relações com os inte- ressados em participar da pesquisa, conforme exige a Resolução nº 196/1996 do Conselho Nacional do Ministério da Saúde. Afinal, a pesquisa com seres humanos implica certos cuidados do pesquisador. Esse termo deve ser elaborado pelo pesquisador, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e assinado pelo pesquisador e pelo pesquisado. Depois, destina-se uma via para cada um. Para aprofundar a discussão e conhecer mais sobre o debate nacional relacionado à ética em pesquisa antropológica, leia Antropologia e ética: o debate atual no Brasil, organizado pela Associação Brasileira de Antropologia. Nessa obra, são discutidos aspectos gerais da ética em pesquisa e também questões envolvendo a multidisciplinaridade. Entretanto, você deve notar que, na área de antropologia, há dificuldade de seguir à risca essa resolução, já que ela é baseada em pesquisas da área das ciências biológicas. Contudo, a pesquisa antropológica se relaciona às ciências humanas e se realiza durante o fazer antropológico. Nesse processo, nem sempre se tem o controle de quais caminhos são percorridos e de quais pessoas são encontradas. Então, o essencial é que você se guie pelos princípios éticos e que informe aos seus interlocutores, de forma clara, quais são as suas intenções e os objetivos da pesquisa. Ferreira (2010, p. 143) aprofunda essa discussão: Nas pesquisas antropológicas, a ética está vinculada ao plano das relações sociais; portanto, diz respeito à linguagem e à comunicação. No empreen- dimento etnográfico, o antropólogo conversa, interage e consolida vínculos com as pessoas. Essa relação não está dada a priori, mas sim emerge duran- te a própria interação do antropólogo com os participantes da pesquisa. A reflexão ética [...] deve orientar a construção dessa relação e o processo de interação dialógica voltado para a compreensão do outro. Nesse sentido, o consentimento dado por determinado grupo social para a realização de um estudo antropológico advém da relação estabelecida em campo. O fazer antropológico8 O terceiro ponto se refere aos limites éticos decorrentes da produção do trabalho escrito e da veiculação pública desse trabalho. Ao escrever sobre a vida das pessoas, o pesquisador deve ter o cuidado de manter o sigilo das suas identidades. Por exemplo, na tese de Machado (2008) sobre bebês que nascem com a genitália ambígua — dita como intersexo —, a antropóloga optou por trocar os nomes dos envolvidos por nomes de anjos, fazendo um paralelismo com o fato de o senso comum dizer que os anjos não têm sexo. Esse é um exemplo de estratégia e subterfúgio que os pesquisadores podem utilizar para manter a ética de pesquisa. Quando você escreve um relatório sobre aqueles que pesquisa, é importante não só disponibilizar o produto final para eles, que gentilmente lhe concederam seu tempo e sua convivência, como também buscar saber a opinião deles sobre os resultados da pesquisa. Esse processo é conhecido como restituição dos dados. Veja: Na pesquisa, podemos pensar que a restituição dos dados também pode ser uma forma de prolongar o trabalho de campo, as interações, a relação com os nativos. Nesse caso, a receptividade da pesquisa e a restituição confundem-se em relação às interações estabelecidas, engajamento e responsabilidade com o campo. O duplo produto final da enquete, seja sob a forma de relatório para o projeto de financiamento ou artigo para a revista científica, sublinha a dis- tinção entre dois papéis: ciência “pura” versus ciência “aplicada”. Entretanto, trata-se de distinção ideal. Nas situações concretas, observa-se ambiguidade entre esses dois papéis, uma vez que um ou outro é reivindicado e um ou outro argumento pode ser utilizado segundo o contexto. A publicação de artigos e livros é uma forma importante de difusão da pesquisa no meio acadêmico, no entanto, essas publicações tendem a repercutir pouco para os pesquisados (FERREIRA, 2015, p. 2.645). Portanto, evidencia-se que o pesquisador produz seus trabalhos finais sem saber da repercussão da publicação dos dados. Mesmo assim, ao apresentar a sua análise aos pesquisados, ele deve construir esse processo de restituição. Muitas vezes, esse é o momento positivo em que o pesquisador é reconhecido pelo seu esforço de compreender o grupo social que pesquisou. Em outros casos, os pesquisados podem não gostar de algumas interpretações. Nessa situação, é necessário negociar a respeito do que fazer com publicações futuras. Você deve ter em mente que o produto da pesquisa não vai sempre agradar a todos. Por isso, cabe ao pesquisador ter o cuidado de não expor os pesqui- sados a situações perigosas. Logo, o debate sobre ética em pesquisa não está finalizado. Ele é uma problemática de reflexão importante e deve ser sempre considerado pelo pesquisador. 9O fazer antropológico BOYD, D. B.; BEE, H. A criança em crescimento. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1977. BABBIE, E. Métodos de pesquisas de survey. Belo Horizonte: UFMG, 1999. BRYMAN, A. Research methods and organization studies. Great Britain: Routledge, 1989. CUCHE, D. A noção de cultura em ciências sociais. Bauru: UDUSC, 1999. CUNHA, M. I. C. Linhas de redefinição de um objeto: entre transformações no terreno e transformações na antropologia. Etnográfica, v. 18, n. 2, 2014. Disponível em: <https:// journals.openedition.org/etnografica/3761>. Acesso em: 22 nov. 2018. DESCOBRIMENTO do Brasil. [200-?]. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/ historiab/descobrimentobrasil.htm>. Acesso em: 22 nov. 2018. ECKERT, C.; ROCHA, A. 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