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MATERIAL DIDÁTICO 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 4 2 CONCEITO DE ANTROPOLOGIA ............................................................. 5 2.1 Evolução epistêmica da Antropologia .................................................. 7 2.2 Campos de estudos antropológicos ..................................................... 9 2.3 Tendências do pensamento antropológico ......................................... 10 3 OBJETO DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIA .......................................... 11 3.1 Objetivo do trabalho antropológico ..................................................... 12 3.2 Trabalho do antropólogo e olhar do outro .......................................... 13 4 METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA .................................................... 16 4.1 Influências do trabalho antropológico ................................................. 17 4.2 Metodologias do fazer antropológico .................................................. 19 4.3 Etnografia ........................................................................................... 20 4.4 Pesquisa longitudinal.......................................................................... 21 4.5 Survey ................................................................................................ 22 4.6 Antropólogos importantes ................................................................... 22 5 PERSPECTIVAS DE ANÁLISE ANTROPOLÓGICO ................................ 24 5.1 Sociologia ........................................................................................... 25 5.2 Psicologia ........................................................................................... 25 5.3 Economia e política ............................................................................ 26 5.4 Outras ciências ................................................................................... 27 6 A ANTROPOLOGIA E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS ................. 28 6.1 Clássica dicotomia entre natureza e cultura ....................................... 28 6.2 Características da cultura ................................................................... 33 6.3 Enfoques da cultura ........................................................................... 33 6.4 Conteúdo cultural ............................................................................... 34 3 6.5 Ser humano: produto e produtor de cultura ........................................ 34 6.6 Multiculturalismo e interculturalidade.................................................. 36 6.7 Processos de urbanização sob o olhar da antropologia urbana ......... 37 7 ANTROPOLOGIA E CIBERESPAÇO ....................................................... 40 7.1 As redes sociais ................................................................................. 40 7.2 Conceito, características e desafios da sociedade em rede ............... 41 7.3 Antropologia e redes .......................................................................... 46 7.4 Ciborgues: o corpo pós-humano ........................................................ 47 7.5 Antropologia e internet ....................................................................... 49 8 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 51 4 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 5 2 CONCEITO DE ANTROPOLOGIA Fonte: https://www.brasilcultura.com.br/ A etimologia da palavra antropologia deriva de dois radicais gregos: “Anthropos”, que significa homem, e ‘logos’, que significa ciência. Trata-se, portanto, de uma ciência que estuda o ser humano. Mas o que isso quer dizer? Qual o sentido de estudar o homem? Qual homem é esse estudado pela Antropologia? Antropologia é Ciência? De que forma ela analisa a sociedade? A quem serve a Antropologia? Qual a sua contribuição? Começamos dizendo que a Antropologia se propõe olhar o ser humano de forma integral, considerando os aspectos biológicos, sociais e culturais. Nesse sentido, cabe observar, analisar e compreender as inúmeras dimensões atribuídas aos seres humanos enquanto um ser social, a fim de compreender a sua evolução ao longo do tempo. Os antecedentes do pensamento antropológico remetem-se à época da colonização europeia, a partir de 1492. Primeiro, foi a perplexidade ante o chamado “novo mundo”, após a conquista dos povos nativos e da colonização, compreendida como a imposição material, social e simbólica da Europa sobre os grupos indígenas. François Laplantine (2003) entende que o estudo do homem precisa ir além de um recorte temporal e territorial específicos, conforme ele mesmo diz: “A antropologia 6 não é apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade. Ela é o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas” (LAPLANTINE, 2003, p. 12). No século XIX, houve uma intensa atividade científica pela qual se constituíram e estabeleceram as principais disciplinas científicas e suas práticas. A Antropologia não foi exceção e, ainda mais, foi um bom objeto de estudo para entender os processos institucionais da ciência. Assim, em 1799, Louis-François Jauffret e Joseph de Maimieux fundam em Paris a primeira sociedade antropológica Société des Observateurs de l’Homme (BROCA, 1870, apud HERNÁNDEZ, 2015). A palavra “antropologia” aparece, pela primeira vez, na academia do Renascimento francês. No entanto, como disciplina acadêmica é relativamente jovem. Suas raízes podem ser encontradas no Iluminismo do século XVIII e início do século XIX na Europa e na América do Norte. Na medida em que as nações europeias estabeleceram colônias em diversas regiões do planeta, e os norte-americanos expandiam-se para o Oeste e para o Sul dominando os territórios indígenas, ficou claro para os colonizadores que a humanidade era extremamente variada. A Antropologia começou, em parte, como uma tentativa dos membros das sociedades científicas de registrar objetivamente e compreender essa variação. A curiosidade relacionada com esses povos e seus costumes motivaram os primeiros antropólogos amadores. Por profissão, eles eram naturalistas, médicos, clérigos cristãos, ou exploradores. A partir da segunda metade do século XIX, a Antropologia foi considerada uma disciplina acadêmica nas universidades norte- americanas e ocidentais. Nos dias atuais, ela é considerada ciência (O’NEIL, 2013). Em suma, podemos definir Antropologia como uma ciência que objetiva descrever no sentido mais amplo possível o que significa ser humano (LAVENDA & SCHULTZ, 2014). A curiosidade é uma das características humanas. Após os estudosvoltados para desvendar os enigmas ocultos na natureza, o homem começa a observar-se a si mesmo, por meio de métodos científicos importados das Ciências Biológicas até que as próprias disciplinas das Ciências Humanas desenvolvessem suas metodologias. Com isso, essas aprendizagens iniciais sobre o estudo do homem vão dando corpo a um saber científico sobre os seres humanos e seu modo de vida, 7 possibilitando uma reflexão mais aprofundada em relação aos fenômenos das sociedades. Fonte: https://conhecimentocientifico.com/sociedade/ A antropologia é um movimento epistemológico importante no pensamento científico, pois o homem abandona a compreensão de se entender como centro do universo e começa a olhar o outro, a fim de interpretar outras formar de habitar o mundo. Trata-se sobretudo de ressignificar a sua relação com o outro diferente de si para compreender-se dentro de uma sociedade com múltiplas possibilidades de estar no mundo e de estilos de vidas. 2.1 Evolução epistêmica da Antropologia A história da humanidade foi escrita a partir dos registros encontrados nas diversas culturas presentes no nosso planeta. O ser humano foi capaz de observar, especular, registrar o seus costumes e pensamentos. Podemos contar a nossa história porque o homem guardou e escreveu suas memórias e experiências. 8 Na Idade Clássica, os gregos foram os que mais reuniram informações sobre povos diferentes, deixando substanciosos registros e relatos dessas culturas. Nasce, assim, a Antropologia, no século V a.C., com a figura de Heródoto, que descreveu minuciosamente as culturas circundantes. É considerado o “Pai da Antropologia”. Chineses e romanos também deixaram descrições de povos diferentes. Até o século XVIII, formam poucos os avanços no campo da Antropologia. Entre os séculos XV e XVIII contava-se com as importantes contribuições dos cronistas, viajantes, soldados, missionários e comerciantes que procuravam pelas regiões exóticas, como por exemplo as Américas, e cujos habitantes eram alvo de pesquisas e explorações de todo tipo. No Brasil, alguns cronistas destacados foram: Pero Vaz de Caminha, Hans Staden, André Thevet, Saint-Hi-laire etc. Na América Latina foram importantes as crónicas e relatos de Bartolomeu de Las Casas, por exemplo. A Antropologia começa a ser considerada como ciência, partir de meados do século XVIII, com Linneu, quem classificou diversos animais, relacionando-os com o os primeiros primatas. Ele foi um dos primeiros a descrever as raças humanas. Será a partir o XIX, que a Antropologia começa a dar passos importantes e a se desenvolver, pois a descoberta de fósseis humanos e de dos restos arqueológicos possibilitaram os seus avanços. Na década de 1840, o investigador francês Boucher de Perthes, pela primeira vez, refere-se ao homem pré-histórico, baseado em seus achados (utensílios de pedra) de idade bastante recuada. John Lubbock recompilou dados existentes sobre a Cultura da Idade da Pedra e estabeleceu as diferentes culturas do Paleolítico e Neolítico (1865). A Antropologia sistematiza-se como ciência após Darwin ter trazido à luz a teoria evolucionista, com a publicação de suas duas obras: Origem das espécies (1859) e A descendência do homem (1871). A Antropologia Física tem, a partir daí grande impulso, e surgem os primeiros teóricos da nova ciência: Tylor, Morgan, Bachofen, Maine, Bastian. O progresso da Antropologia no século XX é resultado das descobertas anteriores relativas ao homem. Seus especialistas passam a desenvolver constantes pesquisas de campo, de caráter científico, incentivadas a partir dos trabalhos de Franz Boas, que é considerado o “Pai da Antropologia Moderna”. 9 2.2 Campos de estudos antropológicos Os estudos antropológicos contam com uma basta quantidade de subáreas, motivo principal pelo qual dificilmente um antropólogo se autodesigne como tal sem mencionar alguma dessas especialidades dentro da própria antropologia. A maioria dos(as) antropólogos(as) responde que estudam Antropologia Biológica, Arqueologia, ou alguma outra subdisciplina do campo. Podemos considerar que, a partir do objeto de estudo, a antropologia seja considerada em duas perspectivas: material e imaterial. Por um lado, os antropólogos biológicos exploram os fatos relativamente objetivos e quantificáveis da Biologia Molecular e os mecanismos de herança genética e evolução. Por outro, os antropólogos culturais abordam a realidade subjetiva das atitudes, percepções e crenças culturais (O’NEIL, 2013). Pela diversidade de objetos de estudo, a Antropologia tornou-se um conjunto de quatro campos ou disciplinas especializadas: Antropologia Biológica ou Física: estuda as bases biológicas do comportamento humano, bem como a evolução do homem. Inclui disciplinas como a Genética, Paleoantropologia, Primatologia, Etologia, Sociobiologia etc. Arqueologia: estuda vestígios materiais de culturas humanas desaparecidas, como ossadas, palácios, pirâmides, fortalezas, vias de comunicação, ferramentas etc. e busca conhecer o passado das sociedades humanas. Descreve o auge e a decadência de culturas e os fatores que influenciaram o seu desenvolvimento. A Antropologia contribui na explicação das práticas culturais, tais como guerra, caça, horticultura, estratificação social etc. Antropologia Linguística: estuda a variedade de línguas faladas pelo homem, a sua função e origem, bem como a influência da linguagem na cultura e vice- versa. Antropologia Cultural ou Social: o estudo comparativo das sociedades humanas: sua variabilidade cultural, estilos de vida, práticas, costumes, tradições, instituições, normas e códigos de conduta do passado e do presente (FERNANDEZ, 2013). 10 2.3 Tendências do pensamento antropológico Tratando-se das principais tendências do pensamento antropológico contemporâneo, podemos verificar que as principais são: antropologia americana; antropologia britânica; antropologia francesa Há autores que caracterizam diferentes escolas antropológicas, como: evolucionismo social; escola antropológica (ou sociológica) francesa; funcionalismo; culturalismo norte-americano; estruturalismo; antropologia interpretativa; antropologia pós-moderna O quadro a seguir elucida as tendências gerais contemporâneas, com base em Laplantine (1989, p. 100). 11 3 OBJETO DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIA Fonte: https://www.significados.com.br/ A leitura da literatura antropológica desde suas origens e até mesmo a mais especializada dos tempos recentes adota como objeto de estudo em um grau menor ou maior a questão da hominização (condição biológica) e humanização (desenvolvimento das potencialidades e capacidades humana pela educação e a cultura). O primeiro é assunto tratado por aqueles que estudam o processo do desenvolvimento da natureza biológica do homem. O outro grupo está interessado no processo de humanização dos hominídeos. Eles começam sua tarefa a partir do momento no qual podem-se identificar que o ser humano possui os atributos conhecidos da vida coletiva do homem (HERNÁNDEZ, 2015). Apesar do interesse no modo de vida do homem, a Antropologia vem complexificando as formas de estudo desse objeto conforme a disciplina se desenvolve. As primeiras sociedades e culturas estudadas estavam longe, geograficamente, da morada dos pesquisadores, assim os antropólogos se preocupavam em conhecer seus sistemas sociais, buscando, nesses estudos, a totalidade dessas sociedades, em termos de sua estrutura e organização social. 12 Com o tempo, esses pesquisadores foram estudando sociedades mais próximas e reconheceram que valeria a pena se debruçar sobre manifestações culturais específicas, mais do que sobre a totalidade de suas ações sociais. E então, o estudo do homemfoi se concentrando em aspectos da vida social que expressam os fenômenos culturais diversos, como no âmbito religioso, das cerimônias, dos rituais cotidianos, entre outros. Logo, podemos dizer que a Antropologia foi ganhando feições e apostando em subáreas de conhecimento conforme as especificidades estudadas sobre o homem, como: a Antropologia da Saúde, Antropologia da Religião, Antropologia Visual, Antropologia Urbana, Antropologia da Alimentação, Antropologia Econômica, Antropologia Política, entre outros. Nesse sentido, criam-se problematizações teóricas que envolvem os diferentes modos de vida dos indivíduos que convivem na mesma sociedade. Soma-se a isso a questão de que a antropologia permite desnaturalizar as ações e as vivências humanas, como algo único e imutável em todas as sociedades, e ao mesmo tempo permite estudar os elementos culturais em cada contexto social. 3.1 Objetivo do trabalho antropológico A definição de antropologia no dicionário enciclopédico encontra-se a seguinte conceituação do termo: Antropologia é um Ciência – um estudo sistemático que visa, através da experiência, observação e dedução, produzir explicações confiáveis de fenômenos, com referência ao mundo material e físico (WEBSTER’S NEW WORLD ENCYCLOPEDIA, 1993, p. 937). Assim, o objetivo principal da Antropologia é estudar a sociedade humana, instituições sociais e cultura, em sua forma mais elementar. Além de ser útil para a compreensão das sociedades humanas atuais, contribui no conhecimento da história humana e natureza das instituições sociais. Portanto, a Antropologia Social está intimamente relacionada com a História e a Arqueologia (NEENA, 2011). Guerra (2018) afirma que ao investigar as culturas humanas, a antropologia se volta para o conhecimento do comportamento cultural humano, fruto do aprendizado social. 13 A partir da compreensão da variedade de procedimentos culturais dentro dos contextos em que são produzidos, a Antropologia, como o estudo das culturas, contribui para erradicar preconceitos derivados do etnocentrismo, fomentar o relativismo cultural e o respeito à diversidade. 3.2 Trabalho do antropólogo e olhar do outro Diante do debate teórico em como enquadrar as sociedades humanas, cabe imaginar como será o nosso encontro com alguém de uma cultura estranha a nós. O que importa, primeiramente, é que estejamos, de fato, interessados em conhecer e compreender o modo de vida de outras pessoas. Sejam pescadores, trabalhadores informais, dançarinos, empresários, gestores, entre outros, cabe a dedicação no encontro etnográfico. Para Cardoso de Oliveira (2000), é nesse encontro que se: Cria um espaço semântico partilhado por ambos interlocutores, graças ao qual pode ocorrer aquela “fusão de horizontes” – como os hermeneutas chamariam esse espaço –, desde que o pesquisador tenha habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvido, encetando formalmente um diálogo de “iguais”, sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos do seu próprio discurso (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 24). Cabe o diálogo entre pesquisador e pesquisado, de modo que a vivência em uma cultura é imprescindível para o primeiro poder acompanhar uma forma de ver a vida diferente daquela que ele conhece. Alguns processos de negociação podem ser mais demorados do que outros, mas é preciso que o pesquisado adquira certa confiança no pesquisador e no seu trabalho, para que a fusão de horizontes ocorra. Assim, o produto gerado pela pesquisa antropológica registrará os meandros desse encontro que permitiu acessar compreensões e explicações, que seriam inacessíveis sem a interlocução entre o pesquisador e o pesquisado, durante o trabalho de campo. Para isso, o autor ainda levanta algumas “faculdades do entendimento” (OLIVEIRA, 2000, p. 17), inerentes ao modo de conhecer o outro em Ciências Sociais, cujos atos cognitivos possibilitam que a mescla de horizontes seja material de reflexão do pensamento científico. São eles: olhar, ouvir e escrever. Vamos falar sobre cada um deles! O olhar pode ser, inicialmente, curioso ou mais atento, e aos poucos vai 14 sendo treinado para buscar gestos, atos, elementos culturais que sejam relevantes para conhecer mais a cultura do outro. Ainda que tenhamos lido sobre outros modos de vida, quando chegamos em outras sociedades, é possível que diferentes aspectos culturais chamem a nossa atenção. Assim, de modo empírico, vamos observando para acessar, conhecer, entender o que, em um primeiro momento, parece-nos estranho. Esse olhar vai se direcionando, se aperfeiçoando, se complexificando, tornando-se ferramenta de conhecimento da cultura do outro. Entretanto, somente observar não nos garante esse conhecimento. É preciso complementar o que vemos, com o que ouvimos. Assim como o olhar, o ouvir de forma mais atenta e apurada envolve uma aprendizagem de quem escuta, que se molda de acordo com os interesses desse conhecimento. Deixar de lados os ruídos e se dedicar a uma escuta atenta, que leve a compreender os simbolismos que veiculam o som, a voz, a música, entre outros. Durante o carnaval, a dimensão sonora de um desfile na avenida pode expressar a força de uma comunidade, alinhada em um mesmo canto, comemorando sua união e seus esforços para estarem ali. Cabe ouvir o outro em suas manifestações culturais, mas também entrevistá- los para questionar o que não se entende, para aprender com quem discursa sobre seu modo de vida com facilidade, para entender o argumento que, às vezes, não faz muito sentido para quem escuta. Assim, esse ato cognitivo possibilita aprofundar a leitura sobre o outro. O que pode parecer óbvio para um, pode ser completamente entranho para outro. Ainda mais se a língua a qual estamos estudando não é a mesma que a nossa. Desde Malinowski (1976), recomenda-se que o próprio pesquisador conheça, aprenda e estude o idioma do outro, por mais diferente que possa ser do seu. Assim, a convivência entre os interlocutores vai fazendo com que a compreensão das palavras, juntamente aos gestos expressados, potencialize a relação dialógica entre eles, pesquisador e pesquisado. Tendo realizado o trabalho de campo, cabe registrar por meio da escrita, de forma descritiva, todos os elementos que te chamaram a atenção, contando, como história, os meandros do encontro etnográfico. É importante ter um diário de campo para anotar informações, descrever cenas, refletir mais profundamente sobre dúvidas, propor perguntas sobre o que viu e mesmo 15 olhar o diário futuramente, quando já tiver entendido coisas que antes você não compreendia sobre o outro, depois parecem tão evidentes. Também é através desse material que você poderá utilizar para informar outros pesquisadores sobre o que vem sendo estudado, e até mesmo trocar ideias e possibilidades interpretativas em relação ao fenômeno estudado. Como nos lembra Geertz (2002), é no estar lá que você vai ouvir e ver, ao vivenciar juntamente com o outro, momentos de seu estilo de vida, mas é no estar aqui, dentro do escritório, ao escrever, que poderá ter insigths, fazer relações, produzir organogramas, analisar os pormenores, dimensionando a interpretação do fenômeno estudado. Nesse sentido, o registro no diário de campo, a descrição densa ou mesmo a produção de um paper, possibilita um momento de produção intelectual a partir dos dados observados, sendo ela um papel chave para um estudioso das culturas e das sociedades. Inicialmente, o estranhamento sobre o outro faz com que o pesquisador seja sensibilizado a prestar mais atenção no que faz, no que diz, no que sente aqueles que são pesquisados. Mas é por meio desse longo processo de encontro etnográfico (OLIVEIRA, 2000) que a relação entre as culturas, nas suas diferenças e proximidades, possibilita que as experiênciasdo antropólogo se transforme em conhecimento científico. Fonte: http://www.juventudect.fiocruz.br/ http://www.juventudect.fiocruz.br/ 16 4 METODOLOGIA DA ANTROPOLOGIA Fone: https://www.actionlabs.com.br/ O propósito da ciência é criar conhecimento científico. Conhecimento científico refere-se a um corpo generalizado de leis e teorias para explicar um fenômeno ou comportamento adquiridos usando o método científico. As leis são padrões observados de fenômenos ou comportamentos, enquanto as teorias são explicações sistemáticas do fenômeno ou comportamento. Por exemplo, em Física, as leis de movimento de Newton descrevem o que acontece quando um objeto está em um estado de repouso ou movimento (a primeira lei de Newton), a força necessária para mover um objeto em repouso ou deter um objeto em movimento (a segunda lei de Newton) e o que acontece quando dois objetos colidem – ação e reação (terceira lei de Newton). A estratégia utilizada em qualquer pesquisa científica fundamenta-se em uma rede de pressupostos ontológicos e da natureza humana que definem o ponto de vista que o pesquisador tem do mundo que o rodeia. Esses pressupostos proporcionam as bases do trabalho científico, fazendo que o pesquisador tenda a ver e a interpretar o 17 mundo sob determinada perspectiva. É absolutamente necessário que possam ser identificados os pressupostos do pesquisador em relação ao homem, à sociedade e ao mundo em geral. Fazendo isso, pode-se identificar a perspectiva epistemológica utilizada pelo pesquisador. Essa perspectiva orientará a escolha do método, metodologia e técnicas a serem utilizados em uma pesquisa. 4.1 Influências do trabalho antropológico O trabalho do antropólogo foi se constituindo como disciplina com o passar dos anos. Para a realização de uma pequena genealogia desse processo, é necessário considerar a história e retomar o momento em que povos de continentes diferentes se encontraram pela primeira vez. Um marco dessa trajetória foram as grandes navegações do século XV. Nesse período, como você sabe, surgiu o interesse dos europeus por povos que habitavam terras afastadas das suas. Naquele momento histórico, a ideia dos europeus não era somente conhecer como os povos até então desconhecidos moravam e o que faziam. Eles desejavam principalmente se familiarizar com o modo de vida desses povos para melhor dominá-los, subordiná-los e até escravizá-los, já que eram tidos como “primitivos”. Assim, para os europeus, esses povos que viviam além-mar eram considerados menos humanos e deveriam se submeter à civilização para acessar o “progresso”, o “conhecimento” e a “ciência”. Esse pensamento dos europeus é o que se chama de etnocentrismo. Segundo Rocha (1984, p. 5), “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Assim, o etnocentrismo não é característico somente dos europeus, mas de todo grupo social existente, como reforça Laraia (2001, p. 75): O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É como uma crença de que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autodenominações de diferentes grupos refletem este ponto de vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se autodenominavam "os entes humanos"; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul do Pará, consideram-se "os homens"; os esquimós também se denominam "os homens"; da mesma forma que os Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos chamavam as roupas de "peles de fantasmas", pois não acreditavam que os ingleses fossem parte da humanidade; e os nossos 18 Xavante acreditam que o seu território tribal está situado bem no centro do mundo. É comum assim a crença no povo eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças contêm o germe do racismo, da intolerância e, frequentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. A dicotomia "nós e os outros" expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes e não parentes. Os primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o plano extra grupal resulta nas manifestações nacionalistas ou formas mais extremadas de xenofobia. O ponto fundamental de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza, em relação aos estrangeiros. Então, o encontro entre colonizadores e outros povos permitiu a coleta de descrições, desenhos e materiais de outras culturas. Mas tudo ainda ocorria de maneira bastante exploratória e sem uma metodologia específica. Os materiais coletados não tinham status de veracidade e eram tidos mais como relatos, cartas e romances que contavam, de forma até fantasiosa e macabra, a vida de outros povos. Somente no século XVIII é que a antropologia começa a se consolidar como disciplina, definindo seu objeto de estudo, delimitando formas de estudá-lo e produzindo análise científica sobre esse objeto. É o que explica Laplantine (2003, p. 7): […] apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia. Isso constitui um evento considerável na história do pensamento do homem sobre o homem. […] Trata-se, desta vez, de fazer passar este último do estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da ciência. […] Para que esse projeto alcance suas primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será preciso esperar a segunda metade do século XIX, durante a qual a antropologia se atribui objetos empíricos autônomos: as sociedades então ditas “primitivas”, ou seja, exteriores às áreas de civilização europeias ou norte-americanas. A ciência, ao menos tal como é concebida na época, supõe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Você também deve atentar à contribuição das ciências biológicas para a constituição da disciplina da antropologia. Afinal, a metodologia de classificação e comparação realizada pelas ciências biológicas influenciou os primeiros ensaios sobre o homem em sociedade. Eriksen e Nielsen (2007, p. 28) trazem mais informações sobre esse período: 19 Finalmente, surgiu a ciência internacionalizada. O pesquisador global se torna uma figura popular — e o protótipo é, naturamente, Charles Darwin (1809–1882), cuja Origem das espécies (1859) se baseava em dados coletados durante uma circum-navegação de seis anos ao redor do globo. […] Não surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse período. O antropólogo é o pesquisador global prototípico que depende de dados detalhados sobre pessoas do mundo todo. Agora que esses dados se tornavam disponíveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadêmica Assim, a antropologia passa a desenvolver estudos sobre o homem, mas esses estudos não são algo focado em um ou outro homem, e sim nas sociedades humanas como um todo. Com isso, a pretensão da antropologia é de “[...] constituir os ‘arquivos’ da humanidade em suas diferenças significativas” (LAPLANTINE, 2003, p. 12). 4.2 Metodologias do fazer antropológico Mas o que faz o antropólogo? Ele vai a campo e faz etnografia ao conversar com as pessoas, anotar o que vê e o que dizem, tirar fotos ou fazer vídeos e pesquisar documentos. Posteriormente, ele produz relatórios, discute com seus pares e reflete sobre o que viu e ouviu.Ou seja, essa disciplina envolve o fazer antropológico, que é aprendido na teoria e também no cotidiano de trabalho. Agora você pode se perguntar o seguinte: quem não é antropólogo pode utilizar algumas metodologias próprias do fazer antropológico? A resposta é sim. Contudo, para haver legitimidade, deve-se ter o cuidado de não banalizar as metodologias do fazer antropológico. É o que evidencia Oliveira (2011, p. 120–121): A apropriação, por outras áreas, das teorias e metodologias antropológicas nos levam a pensar e repensar nossa identidade intelectual, bem como o fazer antropológico nesta era pós-tudo, como diria Geertz. A ampliação do que vem sendo produzido, em termos de conhecimento acadêmico, na interface entre a antropologia e as diversas áreas do conhecimento, longe de constituir uma ameaça para o campo da antropologia, perfaz um engrandecimento da produção acadêmica nesta área, ainda que devamos tomar cuidado com o que se está produzindo, quais os limites e quais os diálogos travados com a literatura antropológica, com seus conceitos e referenciais teóricos, afinal, como nos coloca Dauster (2007), não podemos resumir o diálogo da antropologia com as demais áreas do conhecimento a uma utilização instrumental da etnografia, até mesmo porque esta constitui mais que “técnica” de coleta de dados, mas sim uma forma de interpretar a realidade social, cujo substrato encontra-se atrelado a um campo de conhecimento específico e a questões suscitadas pela antropologia. 20 Desse modo, você pode perceber que o fazer antropológico implica conhecer as ferramentas e teorias da área da antropologia, mas também requer certa postura do pesquisador em meio ao grupo social estudado. Afinal, como o objeto de estudo é o ser humano, os desafios da pesquisa incluem as formas de relacionamento entre pesquisadores e pesquisados. A seguir, você vai ver algumas metodologias do fazer antropológico que compõem a cientificidade da disciplina e que a consolidam como mais um dos campos de estudos das ciências humanas. 4.3 Etnografia Fonte: https://carmattos.com/ A primeira metodologia que você vai conhecer aqui é a etnografia. Ela propõe a observação e a participação em grupos sociais orientadas por problemas de 21 pesquisa. Assim, o pesquisador busca se inserir no grupo com certas ideias preconcebidas, podendo retificá-las ou modificá-las completamente. A proposta de Malinowski (1998) inclui ficar um longo período de tempo com o grupo para compreendê-lo, evitando fazer apenas viagens rápidas. Cuche (1999, p. 45) reforça essa mesma ideia ao dizer que “A transformação de uma etnografia de viajantes ‘que apenas passam’ em uma etnografia de estada de longa duração modificou completamente a apreensão das culturas particulares”. Eckert e Rocha (2008) explicam melhor essa questão: A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar (ouvir), impõe ao pesquisador ou à pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta (ECKERT; ROCHA, 2008, p. 2). Então, ainda que o modo de pesquisar cada grupo social tenha suas especifidades, cabe compreender os principais pontos a que o pesquisador deve estar atento a fim de encarnar uma postura condizente com o fazer antropológico proposto. 4.4 Pesquisa longitudinal A segunda metodologia que pode ser realizada no âmbito do fazer antropológico é a pesquisa longitudinal. Aqui, a ideia é que as “[...] pessoas de um único grupo são estudadas em diferentes épocas de suas vidas” (BOYD; BEE, 1977, p. 42). Cunha (2014) discorre sobre essa questão ao evidenciar as possibilidades e potencialidades do estudo longitudinal na etnografia: Mudando a conjuntura, uma nova investigação terá provavelmente de formular novas questões, em vez de limitar-se a alimentar as mesmas questões com novos dados ao longo do tempo. Ao prosseguir no rumo traçado de início, o risco é, paradoxalmente, o de distorcer a historicidade que se procura captar precisamente através de uma revisitação do terreno. Revisitação não equivale, pois, a replicação. É precisamente a ausência de rigidez da abordagem etnográfica que se pode revelar a mais adequada para captar o sentido das transformações. (CUNHA, 2014, p. 411) 22 Contudo, nem sempre um trabalho acadêmico realizado por estudantes, por conta dos prazos, permite esse tipo de estudo. Assim, esse tipo de metodologia não é tão comum, ainda que alguns pesquisadores optem por ela. 4.5 Survey Por último, você deve conhecer a metodologia do survey (questionário). Ela é a mais utilizada em pesquisas sociológicas e pode ajudar o antropólogo a mapear aspectos da cultura e analisar comportamentos a partir da amostra de um grupo social. Nesse sentido, pode-se utilizar o survey para pesquisas políticas, questões sociais, situações de consumo, entre outros. A ideia é desvendar aspectos que não são facilmente explicáveis. Além disso, um mesmo questionário pode ser aplicado em diferentes públicos. Dessa forma, é possível apreender o que muda de um para outro. Bryman (1989) sistematiza as informações sobre o assunto: [...] a pesquisa de survey implica a coleção de dados [...] em um número de unidades e geralmente em uma única conjuntura de tempo, com uma visão para coletar sistematicamente um conjunto de dados quantificáveis no que diz respeito a um número de variáveis que são então examinadas para discernir padrões de associação [...] (BRYMAN, 1989, p.104). Essas variáveis têm de ser analisadas previamente pelos pesquisadores para que eles possam verificar se elas podem ajudá-los a compreender a realidade. Afinal, “[...] uma variável, por definição, deve ter variação; se todos os elementos na população têm a mesma característica, esta característica é uma constante na população e não parte de uma variável” (BABBIE, 1999, p. 124). 4.6 Antropólogos importantes Uma das perguntas relativas ao estudo do homem é como coletar dados sobre os diferentes grupos. Não basta viajar, especular ou ter curiosidade, mas organizar, sistematizar, processar e interpretar dados e observações. Assim, como fontes de pesquisa, os antropólogos podem utilizar desde livros, documentos e objetos até depoimentos, vivências e observação. Dessa forma, os principais métodos de estudo 23 utilizados na antropologia envolvem pesquisas de campo, como a etnografia e a observação participante — que consiste basicamente em vivenciar experiências e práticas de outras culturas, com imersão, para entendê-las. Essas pesquisas foram desenvolvidas por importantes antropólogos ao longo da história, como: o antropólogo polaco Bronislaw Malinowski, que conviveu com povos nativos australianos no século XX e registrou os seus estudos etnográficos no livro Os argonautas do Pacífico Ocidental; o americano Franz Boas, que estudou povos nativos e esquimós norte- americanos; o francês Marcel Mauss, que estudou a reciprocidade entre sociedades, além de religiões e sociedades esquimós; o francês Claude Lévi-Strauss, que escreveu sobre antropologia estrutural, mitos e parentesco, além de ter vivido alguns anos no Brasil, considerado fundador do estruturalismo na antropologia; o estadunidense Clifford Geertz, da antropologia contemporânea, realizou estudos de campo e publicou obras como O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. No Brasil, importantes antropólogos contemporâneos são referências em estudos, pesquisas e obras, como Darcy Ribeiro, que escreveu sobre a formação do povo brasileiro e educação, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, Roberto Kant de Lima, Lilia Schwarcz, além de Alba Zaluar, entre outros. Fonte: http://cursocertificado.com.br/24 5 PERSPECTIVAS DE ANÁLISE ANTROPOLÓGICO Fonte: https://lereaprender.com.br/ Inúmeras subdivisões podem apresentar o campo de estudos da Antropologia, assim, optamos por identificar os subconjuntos que traçam as perspectivas de análise que compuseram o desenvolvimento da disciplina ao se relacionar com outras ciências, trocando experiências e conhecimentos. Como ciência social, oferece e recebe dados teóricos e metodológicos da Sociologia, da História, da Psicologia, da Geografia, da Economia e da Ciência Política. Como ciência biológica ou natural, liga-se à Biologia, à Genética, à Anatomia, à Fisiologia, à Embriologia, à Medicina. Também a Geologia, a Zoologia, a Botânica, a Química e a Física vêm oferecendo indispensável contribuição aos estudos antropológicos na busca da compreensão dos problemas comuns a todas essas disciplinas. A Antropologia, considerada a mais jovem das ciências, teve que aguardar o desenvolvimento dos conhecimentos ligados à Geologia, à Genética, à Biologia, à Sociologia para que pudesse se desenvolver. Pode-se afirmar que, somente após os conhecimentos da célula e da evolução terem sido formulados e aplicados ao homem, é que a Antropologia se sistematizou e progrediu como ciência do homem. 25 Mantém relações interdisciplinares mais íntimas com as ciências que centram seu interesse especificamente no estudo do homem e que emprestam a ela os dados pesquisados e acumulados em relação a todos os aspectos da existência humana: Sociologia, Psicologia, Economia Política, Geografia Humana, Direito e História. A Antropologia vem firmando-se como ciência do homem que exige, cada vez mais, a cooperação entre os seus especialistas e os de outras ciências, pois cada série de problemas requer a utilização de métodos específicos altamente técnicos. 5.1 Sociologia De todas as ciências sociais, a Sociologia é a que mantém relações mais íntimas com a Antropologia, em função de seus interesses teóricos e práticos, salvaguardando a especificidade de cada uma. Antropólogos e sociólogos emprestam-se mutuamente os dados obtidos nas pesquisas, que passam a ter, com esses especialistas, tratamento teórico adequado. Antropologia e Sociologia auxiliam-se na compreensão do caráter global do homem, enquanto reunido em sociedade. A primeira empresta o seu conceito de cultura, largamente utilizado pela Sociologia, que, por sua vez, enfatiza o conceito de sociedade. Como afirma o antropólogo Kluckhohn (1972, p. 284), “a abordagem sociológica tem-se inclinado para o que é prático e presente, a antropológica, para o que é pura compreensão e passado”. Ambas valem-se de teorias, conceitos, métodos e técnicas desenvolvidos pelos seus especialistas. 5.2 Psicologia As relações entre essas duas ciências são bastante estreitas, uma vez que ambas têm como foco de interesse o comportamento humano. A Antropologia ocupa- se do comportamento grupal, e a Psicologia, do comportamento individual. Os antropólogos buscam, nos dados levantados pelos psicólogos, explicações para a complexidade das culturas e do comportamento humano e para a interpretação dos sistemas culturais relacionados com os tipos de personalidade correspondentes. 26 Indagam-se, assim, quais seriam os motivos da conduta social e qual o papel da cultura no processo de adaptação humana. Fatores biológicos, ambientais e culturais são as variáveis explicativas das diferenças individuais que determinam os diversos tipos de personalidade básicos das culturas. Na tarefa de proceder a esse conhecimento, antropólogos e psicólogos auxiliam-se mutuamente, fornecendo dados que propiciam a compreensão de problemas comuns. 5.3 Economia e política As relações interdisciplinares com a Economia e a Política são justificadas, uma vez que a Antropologia, ao se preocupar com a globalidade da cultura, enfatiza o conhecimento das instituições econômicas e políticas. Todo grupo humano, por mais simples que seja, tem sua organização econômica sistematizada, com base nos recursos disponíveis e no trabalho realizado. A Economia, tendo criado uma série de teorias, é capaz de explicar, de modo geral, todo o procedimento econômico humano. Por outro lado, a Antropologia, documentando numerosos sistemas existentes na Terra, tem uma perspectiva mais ampla das organizações econômicas. Desse modo, ambas podem trocar informações valiosas para a melhor compreensão desse setor da cultura. Toda sociedade se organiza politicamente por meio de um complexo de instituições que regula o poder, a ordem e a integridade do grupo. Nas sociedades simples, a organização política varia muito, relacionando-se quase sempre com o ritual, o sagrado e os laços de parentesco. Antropólogos e cientistas políticos encontram um ponto em comum. Se, por um lado, a Política se desenvolveu no sentido de compreender as várias modalidades de formas de governo e de Estado, por outro, os focos de interesse da Antropologia, sob esse aspecto, são imensos. O intercâmbio de ideias enriquece o campo das duas ciências do homem. 27 5.4 Outras ciências A História permite a reconstrução das culturas que já desapareceram, indagando, muitas vezes, sobre as origens dos fenômenos que se relacionam com o homem. Por meio da Etno-história, é possível a reconstrução de culturas ágrafas do presente que estiveram ou estão em contato com a civilização. A contribuição da Geografia Humana aos estudos antropológicos é inestimável, interessando-se ambas pela adaptação do homem e pela modificação do meio ambiente. O geógrafo estuda as mudanças do habitat provocadas por tecnologias novas, por inovações culturais etc. O estudo do meio físico de um grupo tribal é foco de atenção tanto do antropólogo quanto do geógrafo humano. O conhecimento da Biologia, em geral, e da Biologia Humana, em especial, deve fazer parte da formação do antropólogo físico, que tem seu interesse centrado na evolução do homem. Antropologia e Biologia mantêm íntimas relações que facilitam sobremaneira a tarefa dos seus especialistas. As ciências auxiliares, em geral, que se interessam por variadas áreas de experiência humana estão em condições de dar respostas adequadas a questões e problemas específicos. Além dessas, várias outras ciências como a Geologia, a Paleontologia, a Metalurgia, a Arquitetura, a Engenharia, a Zoologia, a Botânica, a Fisiologia, a Anatomia, a Farmacologia, a Astronomia e as Artes, em geral, podem colaborar com o antropólogo nas suas mais variadas atividades. Fonte: http://portalmariliense.com/portal/ 28 6 A ANTROPOLOGIA E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Fonte: https://jornalproenca.pt/ Desde seu surgimento, a antropologia estuda a origem e o desenvolvimento humano, pensando nos processos pelos quais a sociedade e os povos passaram (e passam). Assim, por meio desse estudo, entende-se o que é natural e cultural no ser humano, ou se é possível estabelecer uma relação de compreensão com o que não é humano de modo não hierárquico. Compreender a relação entre a sociedade e o indivíduo no sentido constitutivo e os modos de existência e experiência de vida nas cidades também é próprio ao estudo antropológico. Neste capítulo, você estudará como a abordagem e as críticas contemporâneas à dicotomia entre natureza e cultura ocorrem e a importância do estudo antropológico em relação à vida nas cidades e os problemas decorrentes do processo de urbanização. 6.1 Clássica dicotomia entre natureza e cultura A necessidade de definir o que é natural e cultural no indivíduo se trata de um problema secular, sendo que a relação entre o que se determina e o que se cria surgiu como questionamento já na obra do filósofo grego Aristóteles. Em sua teoria, existe uma distinção entre a constituição humana e a da natureza, assim, os seres humanos são classificados como não objetivos; e a natureza estásubmetida às leis e ordens. Nesse sentido, a natureza é ordenada e, segundo o pensamento aristotélico, sua ontologia se refere à investigação científica de suas leis; já a ontologia do ser humano seria subjetiva e relacionada àquilo que é próprio de uma produção cultural. Portanto, a partir da concepção aristotélica, a natureza começou a ser tratada como uma realidade externa pronta para ser descoberta em seu funcionamento. 29 Já a concepção do termo cultura é própria, em seu primeiro uso, dos romanos e advém do verbo colere, em latim, que significa o trabalho no campo, com a colheita. Os romanos empregavam tal verbo tanto para se referir à colheita e ao processo de produção de agricultura como ao cultivo das virtudes, intelectualidade e propriedades do espírito. Essa compreensão da cultura evoluiu em alguns aspectos, mas continuou a incluir faculdades do espírito e da intelectualidade até o surgimento da corrente filosófica Iluminista, a qual defendia que o uso da razão seria suficiente para os indivíduos saírem da menoridade intelectual. Portanto, o refinamento do espírito e da mente ocorria pela capacidade racional do ser humano. Um filósofo que intensificou e protagonizou essa forma de entender cultura e natureza no movimento Iluminista foi René Descartes (1596-1650). Na obra “O discurso do método” (1637), Descartes apresenta sua teoria sobre um método para se chegar à verdade. Portanto, o método é o racional e considera como se pode provar que você existe e que a realidade ao seu redor não é apenas uma formação da sua imaginação. Para o filósofo, prova-se que existe refletindo: se penso é porque existo. A razão seria a responsável por garantir a existência, e não os sentidos que podem enganar. Do mesmo modo, por ser externa, a natureza pode ser investigada em suas leis por meio do método racional. O sentido do termo cultura permaneceu assim até o final do século XIX, quando surgiram os estudos de antropologia e sociologia. Nesse contexto, ela começou a ser entendida como tudo o que constitui um povo, por exemplo, as tradições, a língua, as técnicas, o conhecimento, etc. Foi propriamente com a antropologia que a problematização dessa dicotomia teve início. Já as primeiras correntes filosóficas que marcaram essa nova abordagem antropológica são o racionalismo e o empirismo, os quais partem do questionamento sobre o conhecimento e sua fonte — a razão ou a experiência. Posteriormente, essas noções foram superadas com a teoria newtoniana, que defende que tudo está submetido às leis universais, naturais e eternas. Desse modo, a antropologia se concentrava em classificar tudo que compunha esse universo cultural: [...] há uma natureza humana tão regularmente organizada, tão perfeitamente invariante e tão maravilhosamente simples como o universo de Newton. Algumas de suas leis talvez sejam diferentes, mas existem leis; parte da sua imutabilidade talvez seja obscurecida pelas armadilhas da moda local, mas ela é imutável (GEERTZ, 2008, p. 25). 30 Entretanto, tal concepção foi alterada a partir da publicação do livro de Charles Darwin (1809-1882), “Sobre a origem das espécies e a seleção natural” (1859), cuja teoria evolucionista encerra com a percepção newtoniana. Na medida em que a evolução das espécies começou a ser vista como um processo, surgiram estudos que demonstram que o mesmo ocorreu com a sociedade e os povos. Assim, essa teoria influenciou os estudos antropológicos, de modo que, no século XX, a antropologia desenvolveu um estudo cultural, o qual abordou a cultura por duas vertentes: a primeira era mais originária, e a segunda ganhou mais espaço nessa área. Inicialmente, a antropologia cultural compreendia o ser humano a partir de duas estruturas, a biológica e a cultural, depois, a partir do pressuposto de que a cultura é mais determinante do que a estrutura biológica. Se, em um primeiro momento, os estudos antropológicos partiram de uma universalidade biológica em que as diferenças entre os povos ocorriam de acordo com os níveis de desenvolvimento deles, posteriormente, a história cultural começou a ser mais valorizada. Nesse contexto, para um parecer científico acerca do ser humano, seria necessário comprovar uma natureza universal da humanidade. A partir deste paradoxo, após a Segunda Guerra Mundial, algumas correntes antropológicas começaram a apresentar novos estudos relacionados à dicotomia entre natureza e cultura, entre os principais nomes que marcaram a área no século XX está Claude Lévi-Strauss (1908-2009), considerado o inventor do corrente estruturalismo. Lévi-Strauss defendia a dicotomia entre natureza e cultura sob o argumento de que a cultura nunca foi “capaz de afirmar sua existência e originalidade a não ser cortando todas as passagens adequadas a demonstrar sua conivência originária comas outras manifestações da vida” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 26). Na obra de Lévi-Strauss, o dualismo é a própria possibilidade de ressignificação dessa estrutura, sendo a vida regida por dois determinismos: o mental e o do meio — o primeiro cuida das necessidades do espírito, e o segundo coage. Portanto, esses determinismos assumem peso igual na constituição do ser humano, já a cultura começa a ser pensada como uma constante em relação à natureza, que ora a substitui e ora a utiliza. 31 O determinismo mental (da cultura) trabalha as estruturas relativas às informações que recebe; e o determinismo do meio (da natureza) abastece simbolicamente o pensamento, ambos trabalham em correlação. Houve muitos críticos à obra de Lévi-Strauss, entre eles, se ressaltaram Philippe Descola e Bruno Latour. Descola foi orientando de Lévi-Strauss no doutorado, e sua tese apresentou algumas críticas à teoria dualista lévi- -straussiana. Ele ainda defendeu que o dualismo natureza e cultura é um paradigma que foi aprofundado especificamente na modernidade ocidental e, na tese La nature domestique, realizou um estudo etnográfico sobre os povos ameríndios da Amazônia, sobretudo os Achuar. Nesse estudo, Descola argumentou que essa dicotomia não existe na cosmologia ameríndia, na qual a natureza é participante ativa na cultura deles, por isso, o domínio natural e o cultural se completam. Portanto, a crítica de Descola a Lévi-Strauss envolve o argumento de que, na teoria deste, a natureza não incide na atividade simbólica: “incidência dos fatores ecológicos sobre todos esses aspectos da vida social que não podem ser considerados produtos da atividade simbólica” (DESCOLA, 2011, p. 38). Isso decorre também de Lévi-Strauss reconhecer certa primazia e superioridade das produções mental e cultural sobre a natural. Já Latour (1994) argumenta no mesmo sentido que Descola, porque, para ele, a oposição entre natureza e cultura decorre da fenda que foi aprofundada na modernidade. Em sua obra, “Jamais fomos modernos”, ele afirmou que, com as invenções modernas e a contribuição filosófica, começou-se a distinguir entre o que é humano e o que não é. Assim, a máquina purificadora moderna criou um abismo entre o que seria humano e tudo o que não era, como objetos, natureza, entre outras “coisas”. Tal dicotomia somente é superada pela resistência dos híbridos, um conceito que designa aquele/ aquilo que transita entre os dois domínios (natural e cultural), que foram separados pela modernidade. A crítica de Latour cabe à antropologia na medida em que esta foi inventada pelos modernos, na tentativa de compreender os que não eram considerados modernos. Portanto, ao focar nas culturas, a antropologia aprofundou ainda mais a cisão dicotômica, porque seus estudos não tratam da natureza, mas, sim, da cultura, corroborando com a cisão entre extremos. Latour propôs uma antropologia que se dedicasse ao centro, aos híbridos de natureza e cultura. Nesse 32 contexto, há também a crítica à modernidadefilosófica. Latour acusou a ontologia moderna de acirrar essa cisão, apresentando três estratégias: A separação entre a política dos seres humanos e a da natureza, como é ilustrada com a invenção da ciência política pelo filósofo Thomas Hobbes e da ciência política da natureza, instituída por Boyle — a criação de laboratórios. A filosofia kantiana ao estabelecer a primazia da razão sobre a natureza e o mundo. Assim, o sujeito basta em sua racionalidade, o que causa um distanciamento entre ele e a natureza. A limitação do sujeito ao discurso, como foi aprofundada no século XX. O ser humano é o sujeito do discurso, portanto, para compreender categorias como natureza, cultura, sociedade e ser, deve separá-los. Segundo Latour, há apenas natureza-culturas, portanto, a antropologia não consegue se debruçar sobre a cultura para superar a dicotomia natureza e cultura, pois esta é uma invenção devido ao afastamento do ser humano em relação à natureza na modernidade, assim como a noção de natureza universal. Protagonizado, em grande parte, pelo pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o perspectivismo ameríndio aborda a relação entre natureza e cultura a partir dos povos ameríndios, na contemporaneidade. De acordo com Viveiros de Castro (1996), trata-se de uma inversão na forma de pensar essa relação, se para os ocidentais a noção de natureza sempre foi compreendida a partir da universalidade e a cultura como a particularidade de cada povo; para os povos ameríndios, a cultura é universal e a natureza particular. Assim, para os ameríndios, o que distingue os corpos é a natureza, sendo a cultura universal, pois engloba tudo que existe — os corpos são o que singularizam. Isso, segundo Eduardo Viveiros de Castro, demonstra que a relação entre natureza e cultura, a partir do perspectivismo, ocorre por meio de um multiculturalismo e um multinaturalismo de forma igualitária, sem que haja a valorização de um ponto ou de outro, somente a perspectiva. Portanto, a animalidade não é considerada inferior à humanidade em detrimento da ausência de cultura, mas, sim, a ressignificação desta como um outro modo de vida, de uma outra simbologia. 33 6.2 Características da cultura As definições anteriormente referidas indicam a presença de diversos atributos fundamentais da cultura (KOTTAK, 2010): A cultura é apreendida: toda pessoa começa, ao nascer, a interação com os outros e pelo processo de enculturação internaliza uma tradição cultural. A cultura é simbólica: cultura consiste em ferramentas, implementos, utensílios, vestuário, ornamentos, costumes, instituições, crenças, rituais, jogos, obras de arte, linguagem etc. (WHITE, 1949, p. 3). A cultura é compartilhada: ela é um atributo do indivíduo como membro de grupos. A cultura e a natureza: a cultura toma as necessidades biológicas naturais compartilhadas com outros animais e nos ensina como expressá- las em determinadas formas. Por exemplo, as pessoas têm que comer, mas a cultura nos ensina o que, quando e como. A cultura é totalizante: está profundamente enraizada na sociedade e configura completamente as nossas vidas: personalidade, valores e forma de viver. Os elementos da cultura estão interligados: as culturas não são uma coleção aleatória de costumes. As culturas são sistemas integrados e estruturados. Se uma parte muda (por exemplo, a Economia) as outras partes também mudam. 6.3 Enfoques da cultura As diversas definições, referidas anteriormente, permitem apreender a cultura como um todo, sob os vários enfoques. A cruz, por exemplo, pode ser vista sob essas diferentes concepções: ideia: quando se formula sua imagem na mente; abstração do comportamento: quando ela representa, na mente, um símbolo dos cristãos; 34 comportamento aprendido: quando os católicos fazem o sinal da cruz; coisa extrassomática: quando é vista por si mesma, independentemente da ação, tanto material quanto imaterial; mecanismo de controle: quando a Igreja a utiliza para afastar o demônio ou para obter a reverência dos fiéis. A cultura, portanto, pode ser analisada, ao mesmo tempo, sob vários enfoques: ideias (conhecimento e filosofia); crenças (religião e superstição); valores (ideologia e moral); normas (costumes e leis); atitudes (preconceito e respeito ao próximo); padrões de conduta (monogamia, tabu); abstração do comportamento (símbolos e compromissos); instituições (família e sistemas econômicos); técnicas (artes e habilidades) e artefatos (machado de pedra, telefone). 6.4 Conteúdo cultural Refere-se ao caráter simbólico, dimensão artística e valores culturais que têm por origem ou expressam identidades culturais (UNESCO, 2005). Para Neena (2011), cada sociedade tem uma cultura própria. Assim, no mundo, as pessoas em diferentes sociedades têm culturas diferentes. Essas culturas não são apenas diversificadas, mas também desiguais. Com as diversidades e disparidades culturais, podem--se observar certas semelhanças culturais. Os povos podem adorar deuses diferentes em maneiras diferentes, mas todos têm uma religião. Eles podem ter ocupações diversas, mas todos procuram ganhar a vida. Detalhes de seus ritos, cerimônias, costumes etc. podem diferir, mas todos eles, no entanto, têm alguns rituais, cerimônias, costumes etc. Além disso, as pessoas das diversas sociedades possuem diversos bens materiais. Assim, esses componentes materiais e imateriais constituem o “conteúdo cultural” de uma sociedade. 6.5 Ser humano: produto e produtor de cultura Como vimos anteriormente, a cultura pode ser definida como tudo aquilo que o ser humano produz ou que sofre a sua intervenção, de forma que, segundo Ribeiro (1999), até uma galinha pode ser considerada cultura. Portanto, tudo o que vemos ao 35 olhar ao nosso redor é cultural e foi produzido pelo ser humano, pois a realidade, como afirmou Freire, é a realidade humana, produzida pelo ser humano. Você deve concordar que o trabalho é muito importante para o ser humano, pois lhe dignifica, o torna útil e capaz de modificar a realidade, desde que não seja um trabalho em que seja explorado. Logo, não há exagero nenhum em dizer que o ser humano é produtor de cultura. Além disso, somos seres sociais que vivem em grupo, dotados de sociabilidade, ou seja, uma necessidade intrínseca de viver em grupo e/ou comunidades, pois não somos dados ao isolamento. Ainda, nossa educação, ou seja, as nossas aprendizagens, desenvolvidas ao longo da vida, são fruto dos processos de socialização que estabelecemos nos diferentes grupos sociais que integramos ao longo da nossa vida. Há também a enculturação, como vimos, por meio da qual aprendemos os hábitos da nossa cultura e tradição. Segundo a professora Aranha (2010), o processo de socialização tem início pela influência da comunidade sobre os indivíduos. É conhecida a história das meninas-lobo encontradas na Índia, em 1920, vivendo em uma matilha. O comportamento delas em tudo se assemelhava ao dos lobos: andavam de quatro, comiam carne crua ou podre, uivavam à noite, não sabiam rir nem chorar. Só iniciaram o processo de humanização quando foram encontradas e passaram a conviver com pessoas. O mundo cultural é, dessa forma, um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra um mundo de valores dados, onde ela se situa. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom de voz nas conversas, as relações sociais, tudo, enfim, se acha estabelecido em convenções. Até a emoção, que é uma manifestação espontânea, sujeita-se a regras que dirigem de certa maneira a sua expressão. A condição humana resulta, pois, da assimilação de modelos sociais: a humanização se realiza mediada pela cultura. Se, como afirma Aranha (2010) noexcerto acima, a humanização se realiza mediada pela cultura, não é possível dissociar a sociabilidade e a socialização da cultura e dos processos de enculturação, pois é por meio delas que nos tornamos quem somos. É claro que não cabe exclusivamente ao processo de enculturação nos definir; somos constituídos pelos grupos sociais dos quais fazemos parte, pelas experiências que vivenciamos e por aquelas culturas com as quais temos contato. 36 6.6 Multiculturalismo e interculturalidade O multiculturalismo, ou pluralismo cultural, dá-se por meio da convivência com diferentes grupos sociais de diferentes culturas em um mesmo território. Por meio do contato com outros grupos culturais, ocorre o processo de aculturação. A aculturação é o processo pelo qual os sujeitos adquirem traços ou se adaptam às outras culturas com as quais têm contato. O processo de aculturação permite o sincretismo cultural e religioso, uma vez que, a partir do contato com outras culturas e religiões, o sujeito acaba adquirindo os hábitos e costumes daquela sociedade ou grupo social, dando origem, muitas vezes, a novos hábitos e novas práticas culturais. No Brasil, a aculturação permitiu às culturas indígenas e africanas adquirirem traços das outras culturas. Houve também a aculturação religiosa, por meio da qual as religiões de matriz indígena e africana adquiriram traços das outras religiões. Essa troca entre as culturas é conhecida também como interculturalidade, que nada mais é do que o intercâmbio cultural entre as sociedades — é quando sociedades com culturas diferentes interagem, e uma acaba assimilando os hábitos da outra, sem perder os seus hábitos culturais. Alguns autores trabalham o conceito de interculturalidade como sinônimo de multiculturalismo. Em uma sociedade globalizada é comum que exista o que os antropólogos chamam de assimilação, que nada mais é do que o processo de mudança que um grupo étnico pode experimentar quando se muda para um país no qual uma outra cultura é dominante. Porém, essa mudança não é inevitável e nem necessária, desde que o grupo não se sinta ameaçado ou constrangido por agir conforme a sua cultura. Em situações em que as pessoas são pressionadas ou questionadas acerca dos seus hábitos e culturas, é mais comum que exista a assimilação cultural, até como uma forma de autodefesa. Uma sociedade multicultural não só socializa os indivíduos na cultura dominante (nacional), mas também cria uma cultura étnica e permite, assim, a compreensão das semelhanças e diferenças entre as culturas, sem fazer qualquer julgamento. Contudo, em uma sociedade tão plural culturalmente, é necessário aumentar a vigilância contra os preconceitos e as intolerâncias. E, para isso, o diálogo e o respeito são imprescindíveis. 37 6.7 Processos de urbanização sob o olhar da antropologia urbana Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/ Geralmente, a figura do antropólogo é associada a alguém que se dedica aos estudos etnográficos de culturas que não participam das sociedades ocidentais, em uma relação de proximidade, como os povos primitivos e nativos de regiões mais distanciadas. Apesar de, em seus primórdios, a antropologia clássica ter abordado mais esses estudos, a mais contemporânea se voltou também ao estudo sobre o processo de urbanização e a vida urbana dos indivíduos. Nesse contexto, a vida na cidade parece ser de mais fácil acesso para o estudo antropológico, cuja inauguração aconteceu, em grande medida, a partir dos estudos sociológicos feitos pela Escola de Chicago, na primeira metade do século XX. O grupo de etnógrafos se dedicou a empreender os métodos de observação sobre os povos indígenas norte-americanos, em relação às suas práticas sociais, aos seus costumes e modos de vida nas cidades de Chicago, formando a antropologia urbana. Não existe apenas um fator que levou ao surgimento de uma nova área de estudos da antropologia (sobre a vida na cidade) e ao processo de urbanização, 38 porque muitas mudanças ocorreram no contexto social no século XX, desde as alterações geográficas e econômicas resultantes das guerras aos processos de migração de cada região, de acordo com situações múltiplas. Por exemplo, no Brasil, houve o surgimento das favelas devido à exclusão social de pessoas negras (após a abolição da escravidão), desajustadas e pobres, em busca de melhores condições de vida e trabalho. Entretanto, o que se pode afirmar é que o processo de urbanização gerou muitos impactos tanto para os que já habitavam nas cidades como para os que migraram. Portanto, problemas sociais relacionados à marginalidade, pobreza e discriminação étnica começaram a atingir grandes proporções e se tornaram objeto de estudo antropológico. Isso também foi um desafio, pois o estudo nos grandes centros precisava de adaptações e reformulações dos métodos utilizados até então pela antropologia clássica. Desse modo, desde os anos de 1960, diversos antropólogos desenvolveram métodos antropológicos e epistemológicos que atendessem a esse novo cenário de pesquisa. Assim, a antropologia urbana começou a tentar compreender o processo de urbanização a partir de três vertentes: urbanização, urbano e pobreza urbana. Entre muitas dificuldades, uma de grande relevância foi a produção etnográfica, devido ao tamanho das cidades, tornando-se um problema avaliar as partes e o todo, bem como um problema teórico e de metodologia, pois os processos de análise etnográfica ocorriam em outro contexto. Nesse sentido, uma vez que este estudo ficou caro, o método etnográfico se reformulou para buscar uma articulação entre os seguimentos e planos para a unidade de determinada cidade. A antropologia urbana se debruçou sobre vários seguimentos e aspectos da vida urbana, surgindo, neste contexto, diferentes métodos etnográficos. Contudo, mesmo com diferentes métodos e a complexidade do processo de urbanização de cada cidade, em geral, tal ramo de estudo tentou compreender a experiência de vida urbana. Portanto, é objeto de estudo a diversidade étnica e cultural dos sujeitos que habitam e visitam esses locais, como turistas, moradores fixos ou não, imigrantes, minorias, etc. Isso também serve para a diversidade de gênero, de sexualidade, as necessidades ou determinações físicas e biológicas, por exemplo, número de pessoas com doenças psíquicas, necessidades especiais, entre outras. Estuda-se ainda diferenças políticas, religiosas, ideológicas, educacionais, comportamentais, todos os modos de vida que determinado local possui e qual sua relação com a cidade. 39 Portanto, o estudo etnográfico da antropologia urbana parte de um duplo em relação a cada contexto: a perspectiva de quem foi estudado, independentemente de qual aspecto, e a perspectiva do antropólogo que realizou esse estudo. Segundo Augé (1994, p. 51), emprega-se o lugar antropológico, que é o sentido simultâneo de quem observa e daquele que está sendo observado. Trata-se do ponto de vista do observado, que se comunica para ser entendido, e cabe ao antropólogo reconhecer, entre as alternativas, a escolha dele por aquilo ou tal caminho, chegando a uma unidade de análise ou etnográfica, a qual tenta compreender um fenômeno devido ao seu alcance social inteligível. Mediante esse processo, torna-se possível entender os impactos sociais da urbanização das cidades, por uma proximidade e um distanciamento. Nesse sentido, a antropologia demonstra a importância em compreender a organização social e os modos de vida na cidade, uma vez que enfatiza a relevância dos registros múltiplos dos agentes sociais. Assim, a antropologia urbana dignifica os atores sociais em todas as relações que estabelecem com uma cidade, como sua função, seu trajeto, suas dificuldades e sua existência. A identidade de diversas existências é significada a partir de um estudo mais aprofundadoe de perspectiva dos atores que compõem essa sociedade. Conclui-se que esta importante área da antropologia faz os modos de vida serem compreendidos de forma mais completa. Por exemplo, como se poderia entender os problemas de determinado grupo que vive certa situação sem o estudo etnográfico, ou como se poderia pensar em soluções para os problemas urbanos sem um estudo aprofundado que considere tanto os seus impactos para toda a sociedade como o ator social que vive determinada realidade? Nesse contexto, a antropologia urbana cria a própria condição de compreensão de si, como ator social, e a possibilidade de agência em relação às problemáticas urbanas. 40 7 ANTROPOLOGIA E CIBERESPAÇO Fonte: https://br.depositphotos.com/ 7.1 As redes sociais Manuel Castells (2000), sociólogo espanhol, considerado o principal estudioso da sociedade de informação e a sociedade em rede, afirma que, a revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico, por sua forma de organização em redes; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e pela individualização da mão de obra. Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado (CASTELLS, 2000, p. 17). https://br.depositphotos.com/ 41 Para Castells (2005): o nosso mundo está em processo de transformação estrutural desde há duas décadas. É um processo multidimensional, mas está associado à emergência de um novo paradigma tecnológico, baseado nas tecnologias de comunicação e informação, que começaram a tomar forma nos anos 1960 e que se difundiram de forma desigual por todo o mundo. Nós sabemos que a tecnologia não determina a sociedade: é a sociedade. A sociedade é que dá forma à tecnologia de acordo com as necessidades, valores e interesses das pessoas que utilizam as tecnologias [...]. Frequentemente, a sociedade emergente tem sido caracterizada como sociedade de informação ou sociedade do conhecimento. Eu não concordo com esta terminologia. Não porque conhecimento e informação não sejam centrais na nossa sociedade. Mas porque eles sempre o foram, em todas as sociedades historicamente conhecidas. O que é novo é o fato de serem de base microeletrônica, através de redes tecnológicas que fornecem novas capacidades a uma velha forma de organização social: as redes (CASTELLS, 2005, p.17) Continua o autor, afirmando que “as redes de comunicação digital são a coluna vertebral da sociedade em rede, tal como as redes de potência (ou redes energéticas) eram as infraestruturas sobre as quais a sociedade industrial foi construída” (CASTELLS, 2005, p. 18). Nos primeiros anos do século XXI, a sociedade em rede não era a sociedade emergente da Era da Informação: ela já configurava o núcleo das nossas sociedades. De fato, nós temos um já considerável corpo de conhecimentos recolhidos na última década por investigadores acadêmicos, por todo o mundo, sobre as dimensões fundamentais da sociedade em rede, “ incluindo estudos que demonstram a existência de fatores comuns do seu núcleo que atravessam culturas, assim como diferenças culturais e institucionais da sociedade em rede, em vários contextos” (CASTELLS, 2005, p. 19). 7.2 Conceito, características e desafios da sociedade em rede De acordo com Castells (2000): o século XXI não tinha que estabelecer uma nova sociedade. Mas fez. Assim, mais do que nunca a sociedade precisa de Sociologia, no entanto, não de qualquer tipo de Sociologia, precisa-se de uma que estude cientificamente os processos de constituição, organização e mudança que, juntos e em sua interação, constituem a estrutura social de uma nova sociedade, que provisoriamente chamo “a sociedade da rede” (CASTELLS, 2000, p 693). 42 A sociedade em rede, em termos simples, é uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação fundamentadas na microeletrônica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir de conhecimento acumulado nos nós dessas redes. A rede é a estrutura formal (MONGE, CONTRACTOR, 2003). É um sistema de nodos interligados. E os nodos são, em linguagem formal, os pontos onde a curva se intersecta a si mesma. As redes são estruturas abertas que evoluem acrescentando ou removendo nodos de acordo com as mudanças necessárias dos programas que conseguem atingir os objetivos de performance para a rede. Esses programas são decididos socialmente fora da rede, mas, a partir do momento em que são inscritos na lógica da rede, a rede vai seguir eficientemente essas instruções, acrescentando, apagando e reconfigurando, até que um novo programa substitua ou modifique os códigos que comandam esse sistema operativo. Para Castells (2000), as dimensões principais da mudança social dessa nova sociedade são as seguintes: 1. É um novo paradigma tecnológico, com base na implantação de novas tecnologias da informação e incluindo a engenharia genética como a tecnologia da informação da matéria viva. Seguindo Claude Fischer (1992), a tecnologia, como cultura material, isto é, como um processo socialmente incorporado, não é um fator exógeno que influi na sociedade. Assim, as novas tecnologias de informação permitem a formação de novas formas de organização e interação social baseadas em redes de informação. 2. A globalização, compreendida como a capacidade tecnológica, organizacional e institucional dos componentes centrais de um determinado sistema (por exemplo, a Economia) para trabalhar como uma unidade em tempo real ou escolhido em escala planetária. Isto é historicamente novo, em contraste com as formas anteriores de internacionalização avançada, que não podiam se beneficiar de tecnologias de informação e comunicação capazes de lidar com o tamanho atual, a complexidade e a velocidade do sistema global, como foi documentado por David Held et al. (1999). 43 3. A inclusão das manifestações culturais dominantes em um hipertexto interativo e eletrônico, que passa a ser o marco de referência para o processamento simbólico que surge de todas as fontes e mensagens. A internet (mais de 3 bilhões de pessoas conectadas) vincula indivíduos e grupos entre si e ao hipertexto de multimídia compartilhada. Este hipertexto constitui a espinha dorsal de uma nova cultura, a cultura da virtualidade real, na qual a virtualidade se torna um componente fundamental do ambiente simbólico e, portanto, da experiência como seres comunicantes. 4. Como uma consequência das redes globais da Economia, da comunicação, do conhecimento e da informação, o estado-nação perde importância. Sua existência como aparelho de poder é profundamente transformada, ou são desconsiderados ou reorganizados em redes de soberania compartilhada formada por governos nacionais, instituições supranacionais (como a União Europeia, OTAN ou NAFTA), governos regionais, governos locais e ONGs, todos interagindo em um processo negociado de tomada de decisões. Como resultado, a questão da representação política também é redefinida, uma vez que a democracia foi constituída com um caráter nacional. Em outro eixo de mudança estrutural, há uma crise fundamental do patriarcado, provocada pelos movimentos das mulheres e aumentada pelos movimentos sociais gays e lésbicos, desafiando a heterossexualidade como alicerce da família. Assim, é difícil imaginar, pelo menos nas sociedades industrializadas, a persistência das famílias patriarcais como norma. Essa crise leva a redefinir a sexualidade, a socialização e, finalmente, a formação de personalidade. Porque a crise do Estado e da família, em um mundo dominado por mercados e
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