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1 ELISA BERTON EIDT ELISA BERTON EIDT AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Elisa Berton Eidt Mestre em Direitos Hu- manos pela Universida- de Regional do Noroes- te do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Especialista em Direito Previdenciário (CESUSC) e em Direito Público (Universidade Potiguar). Graduada em Direito pela Universi- dade Federal de Santa Catarina (UFSC). Procu- radora do Estado do Rio Grande do Sul. RESUMO A presente obra analisa a incorporação dos métodos consensuais de resolução de conflitos pelo Poder Judiciário e a sua aplicação no âmbito da Administração Pública. Passados mais de 10 (dez) anos da denominada Reforma do Judiciário (Emenda Constitucio- nal 45/2004), a Lei nº 13.140/2015 vem regular a prática do instituto da mediação, além de tratar da autocomposição de con- flitos na União, nos Estados, nos Municípios e no Distrito Federal. A crescente inadequação da forma tradicional de resolução de conflitos, sobretudo após o advento da Constituição Federal de 1988, tornou a prestação de justiça no Brasil um serviço caro, lento e ineficiente. O Poder Público em muito contribui para esse quadro, pois participa da maior parte dos processos judiciais em tramitação. Este trabalho visa demonstrar que a adoção de solu- ções consensuais pela Administração Pública encontra amparo na maior eficiência da prestação estatal, em que a ausência da in- termediação de um processo judicial dá ao Estado melhores con- dições de realizar os direitos e garantias constitucionais. Nesse sentido, demonstra-se que o regime de direito público perpassa por uma revisão de seus conceitos, abrindo espaço para os méto- dos autocompositivos como meio de bem atender aos interesses da sociedade e, ainda, de propiciar melhor funcionamento das atividades estatais. A U TO CO M PO SI ÇÃ O N A A D M IN IS TR AÇ ÃO P Ú BL IC A EL IS A BE R TO N E ID T 2 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 2017 Santa Cruz do Sul 1ª edição ELISA BERTON EIDT AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 3 ELISA BERTON EIDT 4 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil COMITÊ EDITORIAL Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil 5 ELISA BERTON EIDT Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Correção ortográfica: Rodrigo Bartz Projeto gráfico e diagramação: Daiana Stockey Carpes Essere nel Mondo Rua Borges de Medeiros, 76 Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269 www.esserenelmondo.com.br www.facebook.com/esserenelmondo Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser repro- duzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expresso consentimento da Editora. A utilização de citações do texto deve- rá obedeceras regras editadas pela ABNT. As ideias, conceitos e/ou comentários expressos na presente obra são criação e elaboração exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora. E34s Eidt, Elisa Berton Solução de conflitos no âmbito da administração pública e o marco regulatório da mediação: da jurisdição a novas formas de composição / Elisa Berton Eidt. – Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017. 122 p. Originalmente apresentado como Dissertação de Mestrado, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. 1. Administração pública. 2. Mediação. 3. Jurisdição. 4. Conciliação (Processo civil). 5. Poder judiciário. 6. Estado de direito. I. Título. CDD-Dir: 341.4618 Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 184 Livro impresso: Prefixo Editorial: 67722 Número ISBN: 978-85-67722-71-9 Livro digital: Prefixo Editorial: 67722 Número ISBN: 978-85-67722-71-9 6 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 7 ELISA BERTON EIDT PREFÁCIO A Lei 13.140 de 26 de junho de 2015 dispõe so- bre a mediação entre particulares como meio adequado de solução de controvérsias e sobre a composição de conflitos no âmbito da Administração Pública. Essa lei compilou propostas legislativas de outros três projetos PLS 517/11, PLS 434/11, PLS 405/13 determinando, em seus 48 artigos, sobre mediação judicial e extrajudicial, a respeito dos mediadores judiciais e extrajudiciais, dos procedimentos de mediação, sobre a confidencialidade na mediação e suas possíveis exceções. Trata, ainda, da composição de conflitos em que for parte a pessoa ju- rídica de direito público, trabalha com os conflitos en- volvendo a administração pública federal direta, suas autarquias e fundações e traz disposições finais. A proposta dividiu opiniões de modo que exis- tem adeptos e opiniões contrárias, tecendo críticas que merecem consideração. O fato é que a lei tem seus mé- ritos e suas deficiências e analisar, de modo crítico, esse contexto foi o trabalho sobre o qual se debruçou a autora Elisa Berton Eidt. Importa salientar que pouco foi escrito a respeito até o presente momento e que, por ser nova, a legislação merece amadurecimento e reflexão. Elisa foi uma das primeira autoras a analisar o texto que, sabe- se, poderá ainda sofrer várias e profundas modificações 8 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA na sua interpretação. Por conseguinte, é importante fri- sar a coragem da autora que, dentro de um contexto de insegurança, ineditismo e estranhamento se propôs a investigar a Lei 13.140/2015, mais conhecida como Marco Legal da Mediação no Brasil, concentrando sua pesquisa na possibilidade de autocomposição na admi- nistração pública. Talvez a melhor iniciativa da lei tenha sido divi- dir os dispositivos em três capítulos, nos quais primei- ramente se aborda a mediação e posteriormente a com- posição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público. Essa divisão é salutar pois evita a manu-tenção da enorme confusão instalada no País (entre defi- nições, procedimentos e conflitiva alvo) em cada um dos meios de lidar com os conflitos atualmente conhecidos e praticados. Explica-se: muitos confundem mediação com outros meios de composição de conflitos, dentre eles a conciliação, por exemplo, usando mediação para conflitos nos quais a conciliação poderia ser mais eficaz e ter maior aplicabilidade. É o caso dos conflitos que envolvem pessoa jurídica de direito público que podem e devem ser tratados por meios compositivos, mas não necessariamente pela mediação em função das caracte- rísticas a eles inerentes. Nesse sentido, os conflitos envolvendo pessoa jurídica de direito público serão alvo de práticas compo- sitivas, dentre elas a negociação, a conciliação e a me- diação (no que couber) encontrando regulamentação que permita sua aplicação. Essa iniciativa é importante e pio- neira em termos de legislação pois busca mecanismos para tratar uma conflituosidade crescente em termos de jurisdição brasileira. Essa afirmativa pode ser corrobora- 9 ELISA BERTON EIDT da pelo relatório “Os cem maiores litigantes” da Justiça Brasileira, elaborado em 2012, pelo CNJ e divulgado em sua página1. Nessa lista é possível perceber que os dez maiores litigantes do sistema de justiça no Brasil (envol- vendo a esfera Estadual, Federal e Trabalhista) são, na sua grande maioria, pessoa jurídica de direito público2. O projeto de lei, especialmente no que diz res- peito ao seu capítulo II, vem oferecer uma hipótese para lidar com esses conflitos que efetivamente causam o congestionamento do sistema de justiça no Brasil. A iniciativa é interessante porque até o momento todas as propostas legislativas bem como os projetos a elas vinculados se preocupavam em oferecer mecanismos complementares à jurisdição para lidar com litígios in- dividuais, referentes a família, sucessões, vizinhança, consumidor, danos morais, dentre outros. Agora, a pro- posta dispõe sobre conflitos envolvendo os grandes li- tigantes3 que efetivamente congestionam as vias judi- ciais e que agora poderão lidar com o conflito utilizando práticas compositivas. Atualmente é possível verificar uma situação de esquizofrenia completa: o Judiciário (um dos três po- deres estatais) busca alternativas para lidar com uma 1 Ver: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publica coes/100_maiores_litigantes.pdf, acesso em 11.11.2016. 2 Ordenados pela quantidade de demandas temos: 1º Instituto Na- cional do seguro Social – INSS; 2º B.V. Financeira S/A; 3º Município de Manaus; 4º Fazenda Nacional; 5º Estado do Rio Grande do Sul; 6º União; 7º Município de Santa Catarina; 8º Banco Bradesco S/A; 9º CEF – Caixa Econômica Federal; 10º Canco Itaúcard S/A. http://www.cnj. jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/100_maiores_liti- gantes.pdf, acesso em 11.11.2016. 3 Assim considerados pelo número de processos nos quais fazem parte como autor ou requerido. 10 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA litigiosidade crescente produzida pelo próprio Estado e encontra portas que dão conta apenas da litigiosidade individual e de menor quantidade. Nesse ponto a Lei em comento tem seus méritos. Diante de tais vantagens e das características do Marco Legal da Mediação e, principalmente, conhecen- do profundamente a matéria, a autora Elisa fez dela sua fonte de inspiração e de análise científica na elaboração de sua dissertação de mestrado. O trabalho tornou-se primoroso por apresentar a abordagem de uma conhe- cedora das agruras conflitivas que envolve a administra- ção pública e suas relações com outros entes federados e com o particular. O livro divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo aborda o Poder Judiciário no pós Constituição Federal de 1988, apontando para a sua relevância no desenvolvimento da democracia. O segundo capítu- lo, analisa o funcionamento do Poder Judiciário como prestador de um serviço público, apontando para suas dificuldades, seus pontos de exaurimento e para as hi- póteses de aperfeiçoamento. Por fim, o último capítulo expõe o tratamento legislativo dispensado à autocom- posição na administração pública. No decorrer do livro a autora Elisa defende a Ad- vocacia Pública como instrumento essencial para a con- cretização de um Estado mais eficiente na maneira de lidar com seus litígios. Nessa linha de raciocínio, a partir da Lei nº 13.140/2015, o texto investiga a atuação dos Advogados Públicos para tornar viável a resolução con- sensual no âmbito dos entes federados, contribuindo para a máxima realização dos direitos e garantias cons- titucionalmente previstos. 11 ELISA BERTON EIDT Por fim, importa dizer que trata-se de obra in- teressantíssima, alicerçada em autores de renome na- cionais e estrangeiros, que debate tema atual, polêmico e inovador. Muito me honrou o convite para elaborar o prefácio e apresentar essa obra que, sem dúvidas, servi- rá de base para muitos estudos e debates sobre o tema. A autora Elisa cabe os cumprimentos pela bela pesquisa elaborada com a certeza que é só o início de uma inte- ressante carreira acadêmica! FABIANA MARION SPENGLER Pós-doutora em Direito pela Universitá Degli Studi di Roma Tre – Itália, Doutora em Direito pela UNISINOS, professora universitária da UNISC e da UNIJUI, advogada e mediadora. 12 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 13 ELISA BERTON EIDT “Só há um tempo em que é fundamental despertar. Esse tempo é agora”. 14 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 15 ELISA BERTON EIDT AGRADECIMENTOS O esforço pessoal no desenvolvimento deste projeto veio acompanhado de um apoio imprescindível para que a sua concretização se tornasse possível. O reconhecimento de que sozinha não teria alcançado o que me propus nesta pesquisa, torna-me ainda mais de- sejosa do registro de alguns especiais agradecimentos. Agradeço, então, a minha família, a minha amiga e co- lega de Mestrado Janaína Schorr, a minha orientadora e fonte de inspiração Fabiana Marion Spengler, e à Procu- radoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. A vocês, a confiança e a doação serão sempre recíprocas. 16 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 17 ELISA BERTON EIDT SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 O PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 1.1 O Estado e suas transformações 1.2 A Constituição Federal de 1988 e os Direitos Fun- damentais 1.3 O Judiciário como um Poder de Estado 1.4 O Poder Judiciário em crise 2 A NECESSÁRIA ADAPTAÇÃO DA FUNÇÃO JURIS- DICIONAL – NOVAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS 2.1. A Reforma do Poder Judiciário 2.2. O Fórum Múltiplas Portas 2.3. A Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça 3 A COMPOSIÇÃO DE CONFLITOS NA ADMINIS- TRAÇÃO PÚBLICA 3.1 Lei da Mediação e a Mediação no Código de Processo Civil 3.2 Resolução consensual de conflitos na Administração Pública – Lei nº 13.140/2015 3.3 Os métodos consensuais e o regime jurídico de Direito Público 3.4 A promoção dos métodos consensuais pela Advocacia Pública CONCLUSÃO REFERÊNCIAS 19 25 25 33 37 52 65 66 86 91 107 107 114 130 146 163 169 18 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 19 ELISA BERTON EIDT INTRODUÇÃO A presente pesquisa visa investigar a inserção dos métodos consensuais de resolução de conflitos no âmbito do Poder Judiciário e, em seguida, na Administração Pública A crescente demanda de ações judiciais contra o Estado permite diversas análises sobre a relação dos cidadãos com o poder estatal e sobre como a função precípua do Estado para dirimir estas controvérsias – o Poder Judiciário – vem lidando com a questão. Inicial- mente, necessário pontuar que o excesso de ações em tramitação na Justiça brasileira não diz respeito somen- te às questões que envolvem o Poder Público, mas sim, a uma gama de problemáticas que culminam em pro- cessos judiciais a fim de se chegar a uma solução. E o Estado, devido a sua maciça presença nos mais diversos setores da sociedade brasileira,também sofre o reflexo deste excesso de judicialização. A Carta Constitucional brasileira prevê uma exten- sa lista de direitos e garantias fundamentais, bem como direitos sociais, que exigem do Estado a assunção de di- mensões tanto negativa quanto positiva a fim de concre- tizá-los. A frustração no atendimento destes direitos, por parte do Estado, leva os cidadãos a baterem às portas de um Judiciário que, no intuito de dar cabo às inúmeras con- trovérsias que lhe são postas, encontra-se assoberbado e incapaz de fornecer respostas rápidas e eficientes. 20 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Depara-se o cidadão, então, com dois proble- mas: de um lado, a violação de um direito por parte do Estado, seja ele individual ou social; de outro, a ausên- cia de alternativa a não ser esperar a solução por um Po- der – do Estado – que assumidamente reconhece a sua incapacidade de atender às demandas que lhe chegam, de modo célere e eficaz. Nesse contexto, buscam-se novas formas de solução de litígios em geral, sem que se tenha que ne- cessariamente perpassar por todos os trâmites de um processo judicial, com toda a burocracia e lentidão que lhe são próprias. A Resolução nº 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça, seguida da Lei nº 13.105/2015, que traz o novo Código de Processo Civil e, por fim, da Lei nº 13.140/2015, trazem em seu texto os institutos da me- diação e da conciliação, além de incentivos à sua prática. Este último diploma normativo interessa mais ao presente trabalho, pois trata de modo mais específico a autocomposição de conflitos na Administração Pública. A partir deste marco regulatório, demonstra-se a possibi- lidade e as vantagens de conformação da estrutura dos entes públicos à adoção de métodos mais adequados de solução de conflitos que não a prestação jurisdicional Com base nessas considerações, a presente pesquisa objetiva averiguar as possíveis vantagens que as resoluções consensuais podem propiciar ao Estado, sem esquecer de analisar a sua compatibilização com o regime de Direito Público. Como objetivos específicos, busca-se estudar a função do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito e evidenciar a crise da presta- ção jurisdicional tal como é concebida tradicionalmente, para então tratar de novos métodos de tratamento de conflitos e a sua aplicação pela Administração Pública. 21 ELISA BERTON EIDT Neste intuito, a presente pesquisa utiliza o méto- do hipotético-dedutivo, por meio de consulta bibliográfi- ca e análise histórica dos diplomas normativos que tra- taram do aperfeiçoamento do Poder Judiciário brasileiro. O trabalho está dividido em três capítulos. O capítulo primeiro insere o Poder Judiciário no cenário montado a partir do advento da Constituição Federal de 1988, destacando a sua relevância para o desenvolvi- mento da democracia. A sua postura ativa, como ne- cessário contrapeso ao agigantamento que acomete os demais Poderes, é reforçada pela urgência da sociedade no usufruto de um status nunca antes assegurado pelo Estado. A demonstração inicial da importância do Judi- ciário, contudo, contrasta com a seguinte constatação revelada ainda na primeira parte do presente trabalho, a respeito da ineficiência da função jurisdicional frente àqueles que procuram o seu serviço. No segundo capítulo, adentra-se no funciona- mento do Poder Judiciário na sua acepção de prestador de serviço público, em que são expostos os gargalos da prestação jurisdicional e as tentativas de seu aperfeiçoa- mento. O poder constituinte derivado deu nova roupa- gem aos tribunais superiores e cuidou da celeridade na tramitação de processos judiciais, como forma de aten- der aos anseios de uma sociedade dotada de amplos direitos, mas com limitações de seu exercício. O enfoque das modificações, contudo, não atin- ge o resultado esperado, pois remanescem os proble- mas identificados desde antes da Reforma do Judiciário. Inicia-se a abordagem, então, dos métodos consensuais de solução de conflitos, que visam antes um tratamento qualitativo dos conflitos que emergem na sociedade do que a sua eliminação por meio de respostas mais rápi- 22 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA das, mas nem sempre mais adequadas. O Fórum Múl- tiplas Portas ilustra essa ampliação de possibilidades em relação ao encaminhamento dos litígios que buscam auxílio para sua solução, quando são apresentadas as hipóteses da mediação, da conciliação, da negociação e da arbitragem. Após a introdução dos métodos consensuais, vem o terceiro capítulo expor o tratamento legislativo dispensado à matéria até o momento, ainda no calor das recentes promulgações das Leis nºs. 13.105/2015 (novo Código de Processo Civil), 13.129/2015 (nova Lei de Arbitragem) e 13.140/2015 (Lei da Mediação). A institucionalização das soluções alternativas à jurisdi- ção para o tratamento de conflitos introduz no sistema legislativo um regramento básico para o funcionamento destes novos métodos, em especial no âmbito do pro- cesso judicial. Em seguida à exposição dos dispositivos gerais da novel legislação sobre os métodos consensuais, o terceiro capítulo aborda de maneira positiva a inclusão de comandos específicos à Administração Pública, no sentido de organização de sua estrutura para o desen- volvimento de soluções consensuais nos conflitos em que se encontre envolvida e, não menos importante, para a prevenção de novos litígios relacionados ao po- der público. A fundamentação para tanto não veio por meio dos novos diplomas legais anteriormente expos- tos, eis que já se encontrava insculpida na própria Cons- tituição Federal. Tal como será demonstrado, o desiderato da estrutura estatal está na realização dos escopos cons- titucionais, os quais devem pautar toda a atuação da Administração Pública. É sob esta ótica que devem ser 23 ELISA BERTON EIDT interpretados todos os princípios e regras de direito pú- blico, desmantelando-se certos dogmas que mais ser- vem para escudar o poder público do cumprimento de suas obrigações do que efetivamente atender aos inte- resses da sociedade. Na luz deste raciocínio, confere-se ao Estado verdadeiro dever de solucionar seus litígios de forma mais eficaz, sem a necessária atuação do Judiciário para este fim. Conforme os dados que serão expostos no presente trabalho, a presença do Estado nos processos judiciais revela inabilidade na condução das soluções administrativas e até certa intencionalidade na delega- ção à função jurisdicional para toda e qualquer deman- da que envolve o poder público. Diante desse quadro, defende-se a Advocacia Pública como instrumento essencial para a concretiza- ção de um Estado mais eficiente na maneira de lidar com seus litígios, seja de maneira preventiva seja ao resolvê -los por meio de uma relação mais direta com a socie- dade. Com o incentivo trazido pela Lei nº 13.140/2015, busca-se definir a atuação dos Advogados Públicos de forma a viabilizar a resolução consensual no âmbito dos entes federados, contribuindo para a máxima realização dos direitos e garantias constitucionalmente previstos. 24 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 25 ELISA BERTON EIDT 1 O PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O presente capítulo visa demonstrar a relação entre a consolidação do Estado Democrático de Direito e a essencialidade do Poder Judiciário tanto na concretiza- ção dos direitos fundamentais constitucionalmente pre- vistos quanto na sua função moderadora em relação aos demais Poderes Legislativo e Executivo. A configuração do Estado Democrático Social passa a vincular as ações estatais à realização dos direitos fundamentais em sua máxima potência, quando a sociedade ganha autonomia para o exercício dos seus direitos de liberdade em con- junto com a garantia de uma vida minimamente digna. Neste contexto, o Judiciário protagoniza a possibi- lidade de acesso dos cidadãos às promessas advindas com a Constituição de 1988, ao mesmo tempoem que interfe- re na desordenada atividade dos demais poderes políticos, igualmente imbuídos de fortalecer o regime democrático. Contudo, a prestação jurisdicional vem descolada da ex- pectativa em relação ao seu resultado, a reboque de uma estrutura judicial ineficaz para atender às demandas de uma sociedade exponencialmente mais ágil e conflituosa. 1.1 O Estado e suas transformações A sociedade atual presencia nas suas relações uma intensa intervenção do Estado. Seja a prestação de 26 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA um serviço público, a obediência a determinada norma, a exigência de algum direito, o cumprimento de um dever: a inter-relação entre a vida cotidiana e a atividade estatal é inevitável, porém complexa. Não obstante esta intensi- dade – e talvez por causa dela –, o Estado muitas vezes frustra a expectativa dos cidadãos sob seu manto, quan- do não é ele mesmo o próprio causador de algum dano. Antes de se chegar ao estágio acima narrado, o Es- tado assumiu outras versões. Uma análise histórica desde a sua versão moderna, no início do século XVII, e das múlti- plas feições exercidas ao longo dos séculos, faz-se necessá- ria para compreender o Estado contemporâneo que hoje se manifesta deste modo tão intenso e tão diverso. Conforme alertam STRECK e MORAIS (2014), o pano de fundo de to- das estas evoluções pelas quais perpassa o Estado diz res- peito a um determinado momento histórico e ao respectivo modo de produção, não havendo, portanto, uma continui- dade evolutiva até o seu aperfeiçoamento final. A fim de melhor estruturar as diversas formas que o Estado pode assumir, Norberto Bobbio (2014, p. 113) utiliza-se de dois critérios principais, “o histórico e o relativo à maior ou menor expansão do Estado em detrimento da sociedade”. Em relação ao critério histó- rico, expõe o autor as seguintes configurações de Esta- do: feudal1, estamental, absoluto e representativo. Esta 1 Na lição de Gilmar Antonio Bedin (2013), a sociedade feudal é mar- cada pela forte dependência nas relações entre o senhor feudal e o vassalo, em que há uma estrutura hierárquica extremamente rígida e sem a presença de um poder central, à vista da soberania parcelada entre os senhores feudais. À medida que se desenvolvem o comércio e a indústria, os feudos perdem espaço para as cidades, produzindo, aos poucos, “um homem novo, com um sistema de valores diferente daquele do senhor, do servo e do clérigo, que passa a ser chamado de citadino ou cidadão” (BEDIN, 2013, p. 59). 27 ELISA BERTON EIDT última é a que permanece até hoje, sendo marcada pelo verdadeiro reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão, “direitos que cada indivíduo tem por natureza e por lei e que, precisamente porque originários e não adquiridos, cada indivíduo pode fazer valer contra o Es- tado” (BOBBIO, 2014, p. 116). Já no que diz respeito ao critério do tamanho do Estado em relação à sociedade, Norberto Bobbio (2014, p. 121) faz referência à categoria do Estado totalitário, em que “toda a sociedade está resolvida no Estado, na organização do poder político que reúne em si o poder ideológico e o poder econômico. Não há espaço para o não-Estado”. Explica Bobbio (2014) que se trata de uma situação limite, eis que o não-Estado sempre esteve pre- sente nas esferas religiosa e econômica e a sua variação de intensidade é que trará o critério de diferenciação das formas históricas do Estado. Diante disso, tem-se o Esta- do confessional ou laico em relação à religião e Estado in- tervencionista ou abstencionista em relação à economia. Após estas classificações, diferencia o autor a questão do fim do Estado com a crise do Estado, esta última referindo-se à “crescente complexidade e à con- sequente ingovernabilidade das sociedades complexas, ou ao fenômeno do poder difuso, cada vez mais difícil de ser reconduzido à unidade decisional que caracteri- zou o Estado de seu nascimento a hoje” (BOBBIO, 2014, p. 126). Nesse sentido, a incapacidade do Estado de dar sustento ao que lhe foi proposto realizar e de manter a integridade de suas instituições relaciona-se à crise de um tipo de Estado, e não propriamente ao fim do Estado. E é partir destas crises, que mais se relacionam com as transformações dos modelos de Estado desde a época do Feudalismo, que se perfectibiliza a passagem 28 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA do Estado Mínimo para o Estado Social. Com efeito, a concepção de um Estado liberal que tem como função principal resguardar a liberdade individual de seus ci- dadãos cede espaço, a partir de meados do século XIX, para um Estado que “passa a assumir tarefas positivas, prestações públicas, a serem asseguradas ao cidadão como direitos peculiares à cidadania, agindo, assim, como ator privilegiado do jogo socioeconômico” (STRE- CK e MORAIS, 2014, p.64). A transformação do Estado Mínimo em Estado Social fica mais evidente após a Segunda Guerra Mun- dial, quando as lutas por melhores condições de traba- lho e de bem-estar ganham força entre os movimentos operários. Segundo ensina José Luiz Bolzan de Morais (2011), neste dado momento histórico não mais basta ao Estado assegurar a liberdade negativa dos indivíduos e de suas relações sociais, mas sim, são necessárias me- didas que tornem efetivos os direitos sociais, tais como alimentação, transporte, saúde pública, etc. Diante des- tas lutas sociais, todavia, “o Estado liberal não sucumbiu nem desapareceu: transformou-se. Deu lugar ao Estado social (BONAVIDES, 2014, p. 37). Dessa forma, pode-se concluir que a transforma- ção do Estado como Welfare State é decorrência justamente das conquistas alcançadas com a fórmula liberal do Estado Mínimo, uma vez que o fim da escravidão, a liberdade de imprensa, o desenvolvimento industrial, a ampliação do sufrágio e a elaboração de Constituições escritas fazem aumentar as reivindicações sociais. Assim, o Estado passa a assumir espaços antes reservados à iniciativa privada, em busca de uma maior justiça social em resposta às novas demandas e inclusive para aparar as próprias fragilidades do modelo liberal (STRECK e MORAIS, 2014). 29 ELISA BERTON EIDT No destaque feito por Morais (2011), a inter- venção do Estado por intermédio de prestações sociais não se trata de assistencialismo, mas de direitos pró- prios da cidadania e pressuposto da dignidade da pes- soa humana: Ou seja, o Welfare State seria aquele Es- tado no qual o cidadão, independente de sua situação social, tem direito a ser prote- gido por meio de mecanismos/prestações públicas estatais, contra dependências e/ ou ocorrências de curta ou longa duração, dando guarida a uma fórmula onde a ques- tão da igualdade e do bem-estar aparecem – ou deveriam aparecer – como fundamen- to para a atitude interventiva do Estado (MORAIS, 2011, p. 40). [grifo no original] Conforme já assinalado, esta mutação do inter- vencionismo estatal, de condição de excepcionalidade à exigência de sua prática para que direitos sociais e políticos sejam assegurados, decorre de determina- dos eventos históricos e, também, é fruto das próprias transformações que o modelo liberal propiciou. A Revo- lução Industrial e as necessidades do proletariado, as- sim como a Crise de 1929 e as duas Guerras Mundiais, demandaram do Estado maior controle da economia, culminando na inviabilidade da separação entre econo- mia e política a fim de manutenção da estabilidade so- cial (MOREIRA, 2002). Por conseguinte, da propriedade passa-se a exi- gir sua função social, e da liberdade contratual resul- ta a função social do contrato, na qual há submissão às intervenções estatais na economia e a padrões nor- mativos previamente estabelecidos (STRECK e MORAIS, 2014). O exercício da liberdade, dessa maneira, passa 30 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA a se submeter a um maior controle do Estado, com a finalidade de diminuir as desigualdades que resultaram do livre desenvolvimento do mercado e das relações decapital e trabalho. Do Estado liberal ao Estado Social, ensina Paulo Bonavides (2014, p. 33-34) que a “trajetória de institucio- nalização do poder” está intrinsecamente relacionada ao exercício real da liberdade. Em vista disso, na doutrina do liberalismo o Estado representa a antítese da liberda- de vivida em sociedade. Entretanto, conforme adverte o autor, a plena liberdade contratual e o desenvolvimento do capitalismo conduziram a uma exploração econômica sem limites, resultando em uma “visível e nua contradi- ção entre a liberdade do liberalismo e a escravidão social dos trabalhadores” (BONAVIDES, 2014, p.61). Daí decorre a inevitável fórmula de sobrevivên- cia do Estado liberal, onde o poder estatal passa a atuar como “mitigador de conflitos sociais e pacificador ne- cessário entre o trabalho e capital” (BONAVIDES, 2014, p. 185), mediante um maior gerenciamento na atividade econômica e uma maior participação do proletariado na vida política, a partir do sufrágio universal. As reivindi- cações sociais servem de estopim para a transformação de um modelo que demonstrava não mais ter condições de prosseguir para a posteridade. No que diz respeito ao Brasil, contudo, o inter- vencionismo estatal em nada tem a ver com o forne- cimento de condições de vida mais dignas do cidadão brasileiro, mas sim, associa-se a uma prática autoritá- ria/ditatorial, em que a pobreza e a desigualdade so- cial tomam ainda mais espaço. De acordo com STRECK e MORAIS (2014), trata-se de fenômeno ocorrido em toda a América Latina, dada a colonização exploradora a que 31 ELISA BERTON EIDT seus países foram submetidos, resultando em um de- senvolvimento tardio e numa atividade econômica que apenas atendia aos interesses de uma pequena elite do- minadora. Por consequência, concluem, o Estado inter- vencionista no Brasil serviu apenas para que as elites se mantivessem no poder e se apropriassem ainda mais do aparato estatal para acumulação de maiores riquezas. Dessa forma, o passado autoritário, fruto do pe- ríodo ditatorial que imperou no Brasil de 1964 a 1985, deu ao país um arcabouço jurídico instável e desprovido de legitimidade, em que os indivíduos se viam ameaça- dos pela força de um Estado arbitrário e opressor. É este histórico de atraso na participação popular na condução política do país, aliada a uma sociedade bastante de- sigual, de estrutura patriarcal e oligárquica, que torna suplantada a participação da sociedade civil, reduzida a uma relação de passividade com os poderes estatais. Delimitado o contexto histórico-político no qual o Brasil se insere, segue o presente trabalho na apre- sentação dos modelos de Estado para acrescentar, por fim, o Estado de Direito. Trata-se de Estado regido pelo princípio da legalidade que, na conceituação de Miguel Reale (1999, p. 9) “consiste em não pretender que a vontade individual ou coletiva seja superior à vontade objetivamente consubstanciada nos mandamentos da Constituição e das leis”. Por sua vez, o Estado de Direito pode se apre- sentar na forma liberal ou social, desde que haja “a pres- crição da supremacia da lei sobre a autoridade pública” (STRECK e MORAIS, 2014, p.92). Dessa forma, no Esta- do Liberal de Direito o ordenamento jurídico irá refletir o ideário liberal, com a redução do papel do Estado e a 32 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA preservação das liberdades individuais. O Estado Social de Direito, por seu turno, irá incluir em seu conteúdo o direito a prestações de ordem social a serem implementa- das pelo Estado, em busca de uma sociedade mais justa. Já no que diz respeito ao Estado Democrático de Direito, este é resultado de um aprofundamento do Estado Social, no qual o conteúdo do seu ordenamento jurídico é informado pelos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Na conclusão de Paulo Bo- navides (2014), tal modelo é o mais adequado para fins de concretização dos comandos expostos nas Declara- ções de Direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 reflete este mo- delo de Estado Democrático e Social2, “muito embora a tradição das políticas sociais brasileiras aponte para um déficit democrático e de cidadania forjados ao longo de períodos de experiências autoritárias recorrentes” (MO- RAIS, 2011, p. 41, grifo no original). Consoante será de- monstrado neste trabalho, esta ausência de engajamento da sociedade nos processos decisórios, com uma parti- cipação política limitada ao voto, resultará em uma au- sência de representatividade dos poderes políticos e um deslocamento de legitimidade para o Poder Judiciário. Nos termos do ensinamento de Paulo Bonavides (2012, p. 345), o sistema democrático tem sua sustentação na Constituição, onde estão representados em grau máxi- 2 Conforme adverte Ingo Wolfgang Sarlet (2011), não há na Consti- tuição Federal de 1988 a definição expressa de nossa República com um Estado Social de Direito. No entanto, tal conclusão é fácil extrair dos diversos princípios expressos no texto constitucional (dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho, construção de sociedade livre, justa e solidária, entre outros), bem como da extensa lista de direitos fundamentais sociais (arts. 6º a 11), que incluem os direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais por parte do Estado. 33 ELISA BERTON EIDT mo os valores e os princípios da sociedade e que serve de fundamento para todos os demais textos normativos. Nas palavras do autor, “a Constituição se converte, assim, na imagem da legitimidade nacional, valor supremo que limita todos os poderes”, bem como no “denominador comum da ideologia democrática, convertida em compromisso invio- lável que a legitimidade do sistema eleva a grau máximo”. É, pois, por meio da Constituição que o Estado Social efetivamente se concretiza, na medida em que a supremacia das suas normas irá não somente assegurar a preservação de uma justiça social, como também limi- tará a atividade do próprio Estado. A sua legitimidade, consequentemente, emana do imprescindível respeito – pelo Estado e pela sociedade - aos seus comandos, eis que, sem ele, “a Constituição escrita perde a sua juridi- cidade” (BONAVIDES, 2012, p. 352). A vinculação ao texto constitucional reside no padrão interpretativo que emana dos direitos funda- mentais, verdadeiros vetores de todo o ordenamento ju- rídico e da própria funcionalidade dos Poderes do Esta- do (SARLET, 2011). Ao Estado, portanto, não é permitido deles dispor, ao mesmo tempo em que é sua função pro- movê-los de forma que tenham a sua eficácia ampliada 1.2 A Constituição Federal de 1988 e os Direitos Fundamentais É no texto constitucional, então, que os direitos fundamentais, na condição de expressão máxima dos valores e princípios da sociedade, irão encontrar-se positivados, a fim de vincular a atividade estatal e fazer frente a qualquer ameaça de retorno à ditadura e ao 34 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA totalitarismo (SARLET, 2011). Além desta proteção contra o arbítrio do Estado, o seu conteúdo deve refletir o respeito à dignidade dos indivíduos, por meio do “estabelecimento de condições mínimas de vida e de desenvolvimento da personalidade humana (MORAES, 2011, p. 20). A relação dos direitos fundamentais com a ideia de democracia torna-se evidente, uma vez que a garantia de autonomia aos cidadãos, com liberdade de participação política e oferta de iguais oportunidades para o alcance de uma vida digna são essenciais para que um ambiente democrático efetivamente se constitua. Nessa linha, dife- rencia Ronald Dworkin (1995) o entendimento da demo- cracia não apenas como regra da maioria, mas como regra da maioria legítima, na qual uma estrutura constitucional garanta condições posteriores de preservação dos direitos fundamentais, imutáveis inclusive pela maioria. A partir do momento em que o ordenamen- to jurídico encontra nos direitos da pessoa humana o fundamento para considerar comojuridicamente válida determinada norma, cada indivíduo encontra-se em si- tuação de igualdade em relação ao outro, pois titulares dos mesmos direitos fundamentais (BARZOTTO, 2004). Dessa forma, diferentes membros da sociedade são per- cebidos pelo Estado como titulares de idênticos direitos, o que proporciona igualdade de participação nos pro- cessos civis e políticos que animam a democracia. Com efeito, é neste processo de consolidação dos direitos de cidadania, na qual a garantia de liberdade e a ampliação na participação na escolha dos governan- tes aliam-se a atitudes positivas do Estado no sentido de reduzir desigualdades de oportunidades, que o ambiente democrático ganha espaço. A eliminação do arbítrio do 35 ELISA BERTON EIDT poder estatal, substituído por um sistema de governo3 que deve obediência à lei e que, por isso, tem o dever de preservar a liberdade dos indivíduos e de propiciar seu bem-estar trazem uma nova configuração do poder pú- blico, agora vinculado aos direitos fundamentais4. Na Constituição Federal de 1988, os direitos fun- damentais recebem tratamento inédito, oportunizado pelo contexto de redemocratização em que se inseria o país à época, após mais de vinte anos de ditadura militar. Os direitos fundamentais estão vivencian- do o seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, ao menos no que diz com seu reconhecimento pela or- dem jurídica positiva interna e pelo instru- mentário que se colocou à disposição dos operadores do Direito, inclusive no que concerne às possibilidades de efetivação sem precedentes no ordenamento nacio- nal (SARLET, 2011, p. 69). Três características podem ser atribuídas à carta constitucional e, consequentemente, aos direitos fun- damentais nela previstos: analítica, pluralista e grande quantidade de normas de conteúdo programático e di- rigente. De acordo com a explicação de Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 65), o caráter analítico “revela certa des- 3 No tripé definido por Alain Touraine (1996), como condição para que a democracia realmente exista, deve haver o respeito aos direi- tos fundamentais, o efetivo exercício da cidadania pelos indivíduos, com participação nos processos de construção de uma vida coletiva e, por fim, que haja uma representavidade dos dirigentes políticos, servindo com um verdadeiro elo entre o Estado e a sociedade civil. 4 A vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais encon- tra ressonância no comando da aplicabilidade imediata destes direitos, presente no §1º do art. 5º da Constituição Federal. Dessa maneira, é dever de todos os órgãos estatais colocá-los em prática imediatamente. 36 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA confiança em relação ao legislador infraconstitucional”, o pluralismo decorreu da opção do Constituinte de “aco- lher e conciliar posições e reivindicações nem sempre afinadas entre si” e o seu cunho programático resulta do “grande número de disposições constitucionais depen- dentes de regulamentação legislativa”, não obstante a previsão constante no art. 5º, §1º, que dá aplicabilidade imediata aos direitos e garantias fundamentais. Ainda no que diz respeito à caracterização dos direitos fundamentais, estes podem ser divididos em duas principais categorias, a depender da necessária omissão ou ação do Estado para a sua realização. Na pri- meira categoria, encontram-se os direitos de liberdade, em que é garantida a autonomia individual dos cidadãos e o tratamento igualitário perante a lei, inclusive como forma de defesa contra a intervenção do Estado. Os direitos sociais, por sua vez, “reclamam uma atuação positiva do legislador e do Executivo, no sen- tido de implementar a prestação que constitui o objeto do direito fundamental (SARLET, 2011, p. 284). Ensina Sarlet (2011, p.284) que, enquanto os direitos de liber- dade demandam uma abstenção da atividade estatal no que diz respeito à liberdade dos indivíduos, os direitos sociais “encontram-se intimamente vinculados às tare- fas de melhoria, distribuição e redistribuição dos recur- sos existentes, bem como à criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que deles necessitem”. Diante disso, tem-se que a promulgação da Constituição de 1988 definiu uma nova abordagem em relação aos direitos fundamentais, eis que alçados à condição de verdadeiros condutores – e limitadores - de toda a produção normativa a partir de então. Advinda em um momento de transição de regime, de autoritário 37 ELISA BERTON EIDT para democrático, a sua extensa lista de direitos e de normas programáticas trazem uma diferente perspec- tiva para a sociedade e uma outra dimensão para o Es- tado. Aquela pode exigir deste a garantia de uma vida com dignidade, com o usufruto de todas as liberdades que lhe são asseguradas e as quais os poderes políticos não podem se furtar de concretizar. 1.3 O Judiciário como um Poder de Estado O alargamento das garantias individuais e das obrigações de fazer pelo Estado atingem sobremaneira a função do Poder Judiciário. O advento do regime de- mocrático aliado a uma Constituição abrangente e ana- lítica descortinam um cenário onde o Judiciário assume um protagonismo em ascensão. Por certo, esta ampla gama de direitos não prescinde de um órgão capaz de fazer valê-los na prática, e não somente no texto da lei. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direi- tos individuais e sociais, uma vez que a titu- laridade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efeti- va reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moder- no e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar o direito de todos (CAPPE- LLETTI; GARTH, 1988, p. 11-12) Logo, é por meio do Poder Judiciário, seguindo a clássica teoria da separação de poderes de Montes- 38 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA quieu5, que o Estado garante a efetivação dos direitos previstos no plano normativo, pois se trata de “institui- ção pública encarregada, por excelência, de fazer com que os preceitos da igualdade estabelecidos formalmen- te prevaleçam na realidade concreta” (SADEK, 2013, p. 10). O Estado Democrático de Direito, dessa forma, além da previsão em seu texto constitucional dos direitos ci- vis, políticos e sociais, também é constituído por um poder autônomo e independente, que visa assegurar o exercício das garantias constitucionais. A Constituição de 1988 traduz esta importância conferida ao Poder Judiciário a fim de dar cabo aos avan- ços conquistados de ordem social e democrática. Já no seu preâmbulo, coloca a justiça como valor supremo, certamente necessária para o bom desenvolvimento dos demais valores ali constantes, tais como a liberdade, a segurança, o bem-es- tar, entre outros. Também consta como objetivo da Repúbli- ca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), além do caráter universal de acesso à justiça, como direito fundamental dos cidadãos brasileiros (art. 5º, XXXV). A essencialidade do Poder Judiciário para o usu- fruto das conquistas de ordem individual e social enal- tece as funções que este poder exerce, as quais dizem respeito não somente à resolução de litígios com base na correta aplicação da lei, mas também ao controle de constitucionalidade e à mediação de conflitos entre o Executivo e o Legislativo. Na percepção de Maria Tereza 5 Na teoria de Montesquieu, o “poder de julgar”, separado das fun- ções do legislativo e do executivo, é condição para a efetiva liber- dade do cidadão porque “se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor” (2010, p. 169). 39 ELISA BERTON EIDT Sadek (2004),a Constituição Federal de 1988 confere uma entonação mais política ao desempenho do Judiciá- rio, em que qualquer decisão proferida tanto pelo Exe- cutivo quanto pelo Legislativo é passível de apreciação judicial. De fato, uma vez que ao Judiciário é conferido status de Poder, torna-se ele um agente político com le- gitimidade para, além da aplicação da lei, também inter- ferir nas atividades legislativas e nas políticas públicas. Na concepção original de Montesquieu, contudo, os julgamentos deveriam ser fixos “a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto preciso da lei” (2010, p. 170). A configuração da atividade do juiz como a “bouche de loi”, em que apenas são pronunciadas as palavras da lei, serviu para aquele dado momento histórico de ascensão do Esta- do Liberal Francês, com o objetivo de neutralizar a atividade dos juízes e, assim, preservar o indivíduo de seus arbítrios. Por sua vez, no cenário contemporâneo brasilei- ro, não obstante a separação dos poderes, o que se per- cebe é a ascensão do protagonismo do Poder Judiciário. Os agentes políticos encontraram no Ju- diciário um novo interlocutor e uma nova arena, tanto para seus confrontos quanto para contestar políticas governamentais e decisões de maiorias legislativas. O cida- dão, por sua vez, passou a ter na institui- ção um espaço para a solução de disputas e para a garantia dos mais variados direi- tos. (SADEK, 2013, p. 17) A constitucionalização de uma ampla variedade de direitos e as ações constitucionais previstas para pre- servação dos vetores da Constituição deu aos tribunais uma responsabilidade mais política. A assunção deste desempenho de funções como um poder do Estado, 40 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA com a possibilidade de revisão dos atos do Executivo e de Legislativo, coloca o Judiciário em uma situação de tensão, mas como opção necessária para a preservação de um ambiente efetivamente democrático. Conforme sintetiza José Eduardo Faria (2004, p. 111), uma vez que “a relação Governo-Congresso, que é eminentemente política, ficou carente de um árbitro por causa da excessiva rigidez como a Carta disciplinou a separação dos poderes, coube ao Judiciário exercer este papel”. O Judiciário assume, portanto, não somente a função de revisão de atos dos demais poderes de acor- do com seu fundamento legal, mas também serve para aparar as arestas quando há sobreposição de funções de um pelo outro, em especial do Executivo que faz as vezes de Legislativo ao alvedrio da Constituição. Na análise de Mauro Cappelletti (1993, p. 49), a permanência do Judiciário no espaço confinado pela teoria tradicional da separação dos poderes permitiria o excesso de atividades do Legislativo e do Executivo e a total ausência de controle sobre elas, de modo a amea- çar a liberdade das sociedades modernas. A elevação do Judiciário, por sua vez, na condição de um “terceiro gigante na coreografia do estado moderno” é de vital importância para um efetivo equilíbrio entre os poderes, na medida em que atividade dos juízes ultrapassa o âm- bito dos conflitos de natureza privada e passa a cuidar, também, dos atos emanados pelos poderes políticos. Diante disso, o Poder Judiciário assume, no perío- do pós Constituição de 1988, o caráter de uma instituição com dupla função. Ao mesmo tempo em que se institui como um dos Poderes da República, com capacidade de agir politicamente, também se trata de um órgão presta- dor de serviço público, qual seja, a prestação jurisdicional 41 ELISA BERTON EIDT (SADEK, 2004). Neste cenário, o protagonismo decorrente da ampla constitucionalização de direitos e da possibilida- de de exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos dos demais poderes colocam o Judiciário em um grau de relevância nunca antes experimentada. A extensa constitucionalização de direitos, em es- pecial os de cunho social, torna o acesso ao Poder Judiciário uma ferramenta disponibilizada à sociedade de modo a de- mandar do Estado o cumprimento destas normas. Ao “guar- dião da Constituição” (Supremo Tribunal Federal, art. 102 da Constituição Federal) e consequentemente a todos os órgãos do Poder Judiciário, incumbe uma prestação jurisdi- cional que preserve a aplicabilidade dos direitos fundamen- tais, muitas vezes prejudicada pela inércia na implemen- tação de políticas públicas ou pela deficitária ou ausente regulamentação das normas constitucionais, resultando no “deslocamento do polo de tensão dos demais poderes em direção ao Poder Judiciário (STRECK, 2011, p. 190). O alcance dos objetivos fundamentais da Repú- blica (art. 3º da Constituição Federal) somente é possí- vel a partir de uma postura ativa do Estado, com a rea- lização de ações concretas para a promoção da justiça social e do desenvolvimento da cidadania, sob pena de a democracia se constituir em uma “ditadura mal disfar- çada” (SANTOS, 2014, p. 146). Ao Poder Judiciário, con- sequentemente, como parte integrante dos Poderes da República, incumbe o controle das prestações estatais a fim de compatibilizá-las com estes objetivos fundamen- tais, sem querer isto dizer que houve desrespeito ao princípio da separação dos poderes (GRINOVER, 2013). De acordo com a exposição de Luiz Werneck Vianna et al (2014, p. 22 e p. 43), as inovações trazidas com o constitucionalismo do pós-guerra e os processos 42 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA sociais que se desenvolvem a partir do fomento da ci- dadania e da globalização contribuem para este “novo padrão de relacionamento entre os Poderes”, que coloca o Judiciário como alternativa à sociedade tanto para a resolução de conflitos entre si quanto para “deflagrar o processo judicial contra as instâncias de poder”. Boaventura de Souza Santos (2014, p. 23) igual- mente relaciona o processo de redemocratização experi- mentado pelo país, em conjunto com a nova carta consti- tucional, como fomentadores de uma “maior credibilidade ao uso da via judicial para alcançar direitos”. Dessa forma, o amplo acesso ao Judiciário, aliado à incapacidade de o Estado atender a todas demandas sociais, contribuem para o que o sociólogo português denomina de verdadeira substituição da administração pública pelo sistema judi- cial, a fim de ver atendidas as prestações sociais. Na conclusão de Luiz Werneck Vianna et al (2014) e Maria Tereza Sadek (2004), a presença do Judiciário na arena política resulta da adoção, pela Constituição de 1988, do modelo de controle de constitucionalidade das leis, por meio do qual os tribunais diretamente interfe- rem na atuação tanto do Executivo quanto do Legislati- vo. Conforme constata Maria Tereza Sadek (2004), hou- ve um expressivo aumento no número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que desde a promulgação da Constituição até o ano de 2010, somaram 4.383 ações6. 6 Em consulta ao site do Supremo Tribunal Federal, conta a infor- mação de que o Plenário proferiu, no ano de 2015, 130 decisões no âmbito de ações de controle concentrado de constitucionalidade. No ano de 2012 foram 38 decisões, no ano de 2013, 51 decisões e no ano de 2014, o número saltou para 181 decisões. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfRelatorio- Atividade/anexo/Relat_Ativ_STF2015.pdf. Acesso em 15/05/2016. 43 ELISA BERTON EIDT A intensa utilização deste recurso7, na sugestão de Luiz Werneck Viana et al (2014, p. 53), tem ocasionado uma mudança de postura do Supremo Tribunal Federal, que começa a migrar de sua posição como poder coadju- vante na produção legislativa para um “ativo guardião da carta constitucional e dos direitos fundamentais da pessoa humana”. O Poder Judiciário como prestador da função jurisdicional não pode deixar de responder à deman- da que lhe chega, seja de ordem individual ou coletiva. Considerando todo o arcabouço normativo da Constitui- ção, em que ao Estado, por meio de normas de caráter aberto programático, é infligido o dever de promover o bem-estarda sociedade, aliada à disponibilização de meios processuais a fim de que seja impelido a cumprir esta função, a atividade jurisdicional somente intensifi- cou. Na conclusão de José Eduardo Faria (2004, p. 110), a Justiça “teve sua discricionariedade ampliada na dinâ- mica do processo de redemocratização do País, sendo levado a assumir o papel de legitimador, legislador e até de instância recursal das próprias decisões do sistema político, formado pelo Executivo e pelo Legislativo”. Na medida em que a concepção do Estado do welfare state deu-se basicamente mediante pro- 7 O extenso número de legitimados para o ajuizamento das ações de constitucionalidade, ao total de nove, certamente contribuiu para a presença do Judiciário nos assuntos afetos ao Legislativo. Consoante art. 109 da Constituição Federal, podem propor estas ações: Presiden- te da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Depu- tados, Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Governador de Estado ou do Distrito Federal, Procu- rador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 44 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA dução legislativa e que coube ao Executivo a imple- mentação destas garantias sociais, inevitavelmente o Judiciário também expandiu suas atividades, na forma de um “necessário contrapeso” (CAPPELLETTI, 1993, p. 19) a fim de acompanhar a ampliação das funções dos demais poderes. Nesta linha de racio- cínio, a atividade dos juízes não mais se conforma à mera aplicação da lei, sobretudo porque os direi- tos sociais vêm normatizados de forma muito mais programática e principiológica, tornando inevitável a atuação do Judiciário como mediador das atividades do Executivo e do Legislativo. Denominando este fenômeno de destaque do Poder Judiciário como “judicialização”, Luis Roberto Barroso (2012) explica que a saliência – em especial do Supremo Tribunal Federal - decorre basicamente de três fatores: a redemocratização trazida pela Cons- tituição de 1988, quando, além da consagração dos direitos da cidadania, o Judiciário é instituído como um Poder autônomo e independente e os juízes go- zam de garantias e prerrogativas funcionais; a consti- tucionalização abrangente, propiciando o aumento do número de ações judiciais a fim de serem cumpridas as normas constitucionais e, por fim, o sistema bra- sileiro de controle de constitucionalidade, que possui as modalidades de controle incidental e difuso e per- mite que qualquer juiz ou tribunal, e não somente o STF, pode deixar de aplicar uma lei acaso a considere inconstitucional. O fenômeno da judicialização, porém, nos ter- mos muito bem destacados por Luiz Werneck Vianna et al (2014), não diz respeito somente à repercussão do Judiciário na esfera política, mas sim ao seu avanço para 45 ELISA BERTON EIDT as relações sociais8, em que o Direito se imiscui em as- suntos tradicionalmente encarados como de natureza estritamente privada. O compromisso herdado do Esta- do do bem-estar social e cravado na Constituição em re- lação a uma agenda de igualdades faz com que grupos e indivíduos demandem seus direitos a fim de melhor firmarem suas identidades neste novo espaço cívico que o regime democrático propiciou. Nesse contexto, novos direitos (BOBBIO, 1992) demandam uma regulação pelo Estado, tais como a ho- mossexualidade, a igualdade de gênero e o racismo, na medida em que indivíduos buscam o exercício da cida- dania de acordo com as novas oportunidades advindas da ultrapassagem do regime autoritário que vigorou no Brasil por mais de vinte anos. De outro lado, na ponde- ração feita por Luiz Werneck Vianna et al (2014), a dita- dura militar reverberou na ausência de convívio social e no distanciamento da vida política, sendo que o retorno ao sistema democrático vê-se carente de normas e de instituições confiáveis. Concluem os autores, dessa for- ma, que o Judiciário vem preencher este vazio, atuando de forma a solidarizar as relações sociais e a permitir o pleno desenvolvimento da cidadania. A Justiça representa para os indivíduos a manei- ra mais direta e confiável de ter seus direitos preserva- dos, inclusive acalentando os anseios daqueles que não encontram identificação com os demais poderes polí- ticos. A crise de representação das demais instâncias, 8 Mauro Cappelletti (1993) também faz o paralelo do crescimento do Estado com o que denomina “poluição jurídica”, referente à intensa intervenção de produções normativas e de atividades administrati- vas do Estado nas relações sociais. 46 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA que deposita no Judiciário a esperança no cumprimento das promessas da modernidade, talvez se deva, como supõe Antoine Garapon (1996, p. 42), “a uma instância neutra e imparcial, à transparência e à regularidade pro- cessual que parecem ter atualmente mais legitimidade que o exercício de uma vontade política”. O combate à corrupção também aparece como uma das razões que contribuem para o fenômeno da ju- dicialização, eis que também traz o Judiciário para den- tro das relações políticas. Trata-se do que Boaventura de Souza Santos (2014) denomina “justiça dramática”, na qual conflitos políticos são resolvidos nos tribunais, tendo como partes do processo agentes políticos, gran- des empresários ou pessoas conhecidas nos meios de comunicação social. Aqui, abre-se parênteses para um cenário de exposição midiática do sistema da justiça cada vez mais frequente, tendo a sociedade como es- pectadora dos julgamentos transmitidos ao vivo pelos canais de televisão. De fato, a relação dos meios de comunicação com a Justiça ascende a patamares elevadíssimos, em que jornalistas transcrevem e comentam os julgamen- tos, advogados manifestam-se por meio da imprensa e a “busca da verdade” em reportagens investigativas co- locam de lado as regras processuais que conduzem uma ação judicial. Em nome da transparência conquistada com a democracia, a instrução processual e a narração midiática andam em paralelo, de modo a permitir que a opinião pública emita seu próprio julgamento sobre de- terminado caso e, não somente isso, assim querer que a Justiça proceda. Esta aproximação do Judiciário com a mídia, além de colocá-lo em posição de destaque em relação 47 ELISA BERTON EIDT às demais instituições, também proporciona o que An- toine Garapon (1996) denomina de um alinhamento da justiça e do quarto poder contra o político, o executivo e o legislativo. Na advertência do juiz francês, a exces- siva exposição de julgamentos e suas etapas na mídia pode fazer prevalecer uma lógica do espetáculo alheia à justiça, na qual a qualidade pessoal dos julgadores vem antes do seu profissionalismo e a sedução da opinião pública sobrepõe-se ao conteúdo das decisões. Nesta “lógica do espetáculo”, Antoine Garapon (1996) chama a atenção para o efeito que a pressão midiática ocasiona nos processos judiciais, onde infor- mações divulgadas antecipadamente e sem qualquer precaução dão à sociedade a oportunidade de definir quem é culpado e quem é inocente, muitas vezes in- fluenciando na própria decisão judicial. Além disso, os meios de comunicação tornam a Justiça uma instituição personalizada, em que as qualidades humanas de seus integrantes importam mais que a qualidade de suas de- cisões judiciais. Ora, os media aboliram as três distâncias essenciais que são a base da justiça: a de- limitação dum espaço protegido, o tempo diferido do processo e a qualidade ofi- cial dos actores deste drama social. Eles distorcem o quadro judicial, paralisam o tempo e desacreditam a autoridade. (GA- RAPON, 1996, p. 78) (grifo no original) Fechado estes parênteses e continuando sobre o judiciário na política, que na explicação de Boaventura de Souza Santos (2014) ocorre “sempre que os tribu- nais,no desempenho normal de suas funções, afetam de modo significativo as condições da ação política” 48 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (2014, p. 29), a atividade judiciária encontrar-se-á ne- cessariamente envolvida em um campo de tensão com os demais poderes. Este deslocamento de tensão para a Justiça ocorre justamente porque já consta um prévio desequilíbrio entre o Executivo e o Legislativo, em que o primeiro assume funções típicas do segundo. Por certo, esta é a razão mais conhecida para explicar a judicialização na política, na qual o Executivo legisla de modo desenfreado na tentativa de regulamen- tar a complexidade do desenvolvimento da sociedade e da economia, mas muitas vezes o faz por meio de tex- tos incoerentes, fragmentados e ao arrepio da Constitui- ção. Nesse contexto, os tribunais são chamados a fim de assegurar a unidade do ordenamento jurídico e de dar sentido a estas normas precariamente elaboradas, levando assim à “tribunalização” da políti- ca ou “judicialização” da vida econômica. É a incapacidade desses dois poderes de formular uma ordem jurídica com um mí- nimo de unidade, coerência e certeza, em suma, que leva o Judiciário a ter de deci- dir questões legais de curto prazo e com enormes implicações socioeconômicas, convertendo-se assim numa instituição “legislativamente” ativa. (FARIA, 2004, p. 109) (destaques no original). A judicialização da política tem ocasionado, dessa maneira, uma transferência de legitimidade do Executivo e do Legislativo para o Judiciário. Nesse con- texto, em que os tribunais são acionados para suprir a inércia ou a incapacidade dos poderes políticos para resolver suas questões internas e também para atender às demandas sociais, as decisões judiciais surgem como a alternativa mais viável de solução de conflitos e de 49 ELISA BERTON EIDT concretização de direitos fundamentais. Como senten- cia Antoine Garapon (1996, p. 45), “o sucesso da justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, devido ao desinteresse e à perda do espírito público”. Na linha deste raciocínio, Max Möller (2010) re- laciona o fenômeno da judicialização da política com a possibilidade da aplicação direta de determinadas nor- mas constitucionais, o que permite que as decisões judi- ciais se constituam em verdadeiros atos de políticas pú- blicas. Dessa forma, explica o autor que o juiz, ao levar a efeito determinada norma constitucional, adota deci- são tão política quanto aquela praticada no âmbito do Executivo, pois incorrerá em inevitável eleição de quais meios devem ser empregados para a concretização da prestação estatal, bem como de quais prioridades mere- cem a tutela jurisdicional. Outro fator que contribui para este deslocamento diz respeito à participação da sociedade no processo polí- tico democrático inaugurado com a Constituição de 1988, de modo desinteressado e indiferente, ao mesmo tempo em que os indivíduos esperam das instâncias políticas clássicas o provimento das suas mais variadas necessida- des. A Justiça, portanto, “torna-se um espaço de exigibili- dade da democracia. Oferece potencialmente a todos os cidadãos a capacidade de interpelar os seus governantes, de os chamar à atenção e de os obrigar a respeitar as pro- messas contidas na lei” (GARAPON, 1996, p.46). Importante trazer à lume a diferenciação pon- tuada por Luís Roberto Barroso (2012, p. 25) em rela- ção à judicialização e o denominado “ativismo judicial”, expressões que às vezes se confundem. Enquanto a judicialização decorre do contexto político-social pós 50 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Constituição 1988, o ativismo diz respeito a uma pos- tura9 adotada pelo Judiciário, com maior interferência no âmbito de atuação dos demais Poderes, por meio da “escolha de um modo específico e proativo de interpre- tar a Constituição, expandindo o seu alcance”. Nesse contexto, explica Barroso que o Judiciário brasileiro tem adotado uma postura claramente ativista10, diretamente relacionado ao desempenho dos demais Poderes, justi- ficando que a sua intensificação ocorre quando a fun- cionalidade tanto do Legislativo quanto do Executivo se mostram insatisfatórias. De outro lado, a faceta política do Poder Judiciá- rio como contraponto importante no jogo democrático 9 O ativismo judicial é retratado por Maria Tereza Sadek (2006) por meio de pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e que contou com sua colaboração, no ano de 2005. Após entrevistas a juízes espalhados em todo o país, a pes- quisa revelou que 86,5% dos juízes considera que as decisões judi- ciais devem orientar-se preponderantemente por parâmetros legais. Ainda, 78,5% consideram o compromisso de suas decisões com as consequências sociais e 36,5% também acreditam que devem com- promisso com as consequências econômicas. Nova pesquisa foi realizada no ano de 2015, e se constatou que a consideração das repercussões econômicas e sociais no momento da decisão judicial ainda permanece, sobretudo nos tribunais superiores. A pesquisa mais recente incluiu o item “repercussão midiática”, a qual também é considerada acentuada no âmbito das decisões proferidas pe- los tribunais superiores (Disponível em: http://www.amb.com.br/ novo/wp-content/uploads/2015/12/Revista_Resultado_Pesquisa_ AMB_2015_para_site.pdf. Acesso em 22/05/2016). Na avaliação da autora e pesquisadora, este desejo de atender às expectativas soci- ais e a percepção do impacto das decisões judiciais nos contextos econômicos e sociais do país interferem na atuação dos juízes, de modo a efetivamente assumirem o papel de protagonistas na con- dução de determinadas políticas públicas no país. 10 O autor traz exemplos trazidos em seu texto, no qual o STF adotou postura ativista para decidir sobre assuntos como a fideli- dade partidária, vedação do nepotismo, aplicação da regra da verti- calização, distribuição de medicamentos. 51 ELISA BERTON EIDT das instituições não deve ser exercida desenfreadamen- te. A interferência do Judiciário nos atos do Executivo e do Legislativo tem como fundamento a maior preserva- ção dos direitos e garantias constitucionalmente previs- tos, e dali devem ser extraídos os limites na qual a uma decisão judicial é autorizado o comando de obrigações aos demais Poderes. Nesse sentido, e de acordo com o ensinamento de Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe (2013), a interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas11 demanda alguns requisitos, justamente para preservar a harmonia e a funcionalidade entre os poderes políticos. Inicialmente, há o limite do mínimo existencial, assim en- tendido como aquele núcleo central de direitos que ga- rantem minimamente a existência de uma vida humana com dignidade. São estes direitos, segundo os autores e baseando-se em robusta jurisprudência dos tribunais brasileiros, que permitem a sua imediata judicialização, acaso não atendidos pelas prestações estatais. Em seguida, há o critério da razoabilidade, incum- bindo ao juiz, mediante o caso concreto, verificar se há o equilíbrio, a justa medida, entre a pretensão requerida em face do poder público e a atuação das autoridades estatais. Por fim, há o requisito da reserva do possível, que diz res- peito aos recursos necessários para a implementação de determinada política pública. Advertem os autores, con- tudo, que a escassez orçamentária não pode fazer frente 11 A definição de política pública utilizada por ambos os autores é aquela dada por Oswaldo Canela Junior, como sendo “o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingi- das. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado” (GRINOVER;WATANABE, 2013, p. 129 e 216). 52 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA quando a demanda tratar do mínimo existencial, critérioeste também adotado pela jurisprudência dos tribunais. Ainda sobre a limitação da reserva do possível, explica Ingo Wolfgang Sarlet (2011) que se trata da proble- mática do custo inerente às prestações de direito social, mas que é dever de todos os órgãos estatais e agentes po- líticos envolvidos na minimização dos efeitos da escassez financeira sobre a concretização dos direitos fundamen- tais. Tendo isso em mente, conclui o autor que não pode a reserva do possível servir como justificativa tanto para a omissão estatal quanto para a ausência de intervenção do Judiciário para a efetiva implantação de um direito funda- mental. Isso porque, o postulado da aplicabilidade imedia- ta dos direitos fundamentais, insculpido no art. 5º, §1º da Constituição Federal, vincula todos os órgãos dos três Po- deres, de modo que deles não podem dispor e, também, tudo devem fazer para a sua realização. Evidenciada a importância do Judiciário como um Poder de Estado com dever de atuação na arena políti- ca, para fins de equilíbrio entre as instituições e melhor persecução dos objetivos da República, resta indagar se o seu desempenho vem respondendo de forma eficiente a estas nobres expectativas. Isso porque, se o acesso à justiça é o requisito fundamental para o efetivo usufruto dos direitos e das garantias previstos no ordenamento jurídico, é corolário lógico que a prestação jurisdicional se dê de forma célere, coerente, justa e de boa qualidade. 1.4 O Poder Judiciário em crise A indagação acima tem resposta imediata. O de- sempenho do Poder Judiciário brasileiro é alvo de crí- 53 ELISA BERTON EIDT ticas pelos mais variados setores da população, pelos agentes políticos e por aqueles que operam com o sis- tema da Justiça. Além das críticas, estes segmentos têm demonstrado certa intolerância com a baixa eficiência da prestação jurisdicional (SADEK, 2004). Pesquisa rea- lizada pela Fundação Getúlio Vargas, conforme relatório ICJBrasil (Índice de Confiança no Judiciário), referente ao 1º e ao 4º trimestre de 2014, revelou que 70% (setenta por cento) dos entrevistados não confia na Justiça12. Esse é o ângulo que apresenta os sinto- mas mais visíveis do que se convencionou chamar de crise do Judiciário. Diz respei- to a uma estrutura pesada, sem agilidade, incapaz de fornecer soluções em tempo razoável, previsíveis e a custos acessí- veis para todos. A despeito de se verificar tendências ascendentes na demanda e na oferta de serviços em todas as instâncias e em todas as justiças, a imagem é de absoluta inoperância, com descompasso expressivo entre a procura e a prestação jurisdicional (SADEK, 2004, p. 88). Esta constatada ineficiência do sistema judiciá- rio tem suas raízes históricas, quando o Judiciário foi 12 Consta na conclusão do Relatório: “Os dados no sexto ano do ICJBrasil seguem a tendência, já identificada nos relatórios anteri- ores, de má avaliação do Judiciário como prestador de serviço pú- blico. De maneira geral, os entrevistados consideram que o Judi- ciário presta um serviço público lento, caro e difícil de utilizar. Para 88% dos entrevistados o Judiciário resolve os conflitos de forma lenta ou muito lentamente, 77% disseram que os custos para aces- sar o Judiciário são altos ou muitos altos e 67% dos entrevistados acreditam que o Judiciário é difícil ou muito difícil de utilizar” (Dis- ponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/han- dle/10438/14089/Relat%C3%B3rio%20ICJBrasil%20-%20ano%206. pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 10/05/2015). 54 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA concebido no Brasil colônia, ainda com traços inquisitó- rios e com um sistema de funcionamento altamente bu- rocratizado. Também a prestação da função jurisdicional foi pensada para um contexto social estável, com níveis equiparáveis de distribuição de renda e com um sistema normativo padronizado e coerente. A realidade brasilei- ra, todavia, se apresenta de modo muito mais complexo e conflituoso, com diferenças abissais de níveis de ren- da, migração da vida rural para a urbana, aumento de violência, mau emprego dos recursos públicos e, ainda, um sistema legal de extensa produção normativa nem sempre compatíveis entre si (FARIA, 2004). Desse modo, a complexidade da sociedade mo- derna e seus potenciais conflitos enaltecem sobrema- neira a importância do Poder Judiciário com sua função precípua de resolução de controvérsias. Entretanto, pesquisa realizada no ano de 2009 pela Fundação Ins- tituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, revela que 73% (setenta e três por cento) dos entrevistados que procuraram a Justiça para resolver seu problema responderam que não obtiveram solução para a situa- ção conflituosa. Ainda, daqueles que possuíram algu- ma situação de conflito nos últimos cinco anos, 30% (trinta por cento) não procuraram a Justiça. O principal motivo entre aqueles que não procuraram a Justiça foi porque resolveram o problema por meio da mediação e da conciliação. Em seguida, está a lentidão da Justiça e o seu custo13. Trata-se a pesquisa de interessante levanta- mento que revela, a um só tempo, a inacessibilidade 13 Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliote- ca-catalogo?view=detalhes&id=247311. Acesso em 11/05/2015. 55 ELISA BERTON EIDT e a ineficiência da prestação jurisdicional. Por certo, esta insuficiência do Poder Judiciário é um reflexo da incompetência do Estado como um todo que, peran- te às crescentes e diversas demandas que a socieda- de contemporânea lhe impõe, mostra-se envolto em instituições obsoletas e burocratizadas, incapazes de acompanhar o dinamismo das relações sociais e de suas necessidades. Em decorrência desta inaptidão, abre-se es- paço para outras maneiras de resolução de conflitos e de dizer o Direito, que não aquela restrita a proce- dimentos formais e impessoais, baseados em códi- gos atrasados e padronizados, sem correspondência com a realidade. O Judiciário, enquanto estrutura fortemente hierarquizada, fechada, orientada por uma lógica legal-racional, submissa à lei, torna- se uma instituição que precisa enfrentar o desafio de alargar os limites de sua juris- dição, modernizar suas estruturas organi- zacionais e rever seus padrões funcionais para sobreviver como um poder autônomo e independente (SPENGLER, 2010, p. 103). Com efeito, conforme revelou a pesquisa, este descompasso entre a função jurisdicional do Estado e a multiplicidade de conflitos que emergem e transmu- tam na modernidade deslocam para outros métodos a tentativa de solução de controvérsias, tais como a mediação e conciliação. A utilização destes mecanis- mos alternativos salienta a necessidade de revisão do modelo jurisdicional. Atualmente, ele se caracteriza pela oposi- ção de interesses entre as partes, geralmen- 56 AUTOCOMPOSIÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA te identificadas com indivíduos isolados, e a atribuição de um ganhador e um perdedor, no qual um terceiro, neutro e imparcial, represen- tado pelo Estado, é chamado a dizer a quem pertence o Direito (SPENGLER, 2010, p. 115). Não se trata, porém, de tornar o Judiciário des- cartável e inutilizável, mas sim de uma necessidade de adaptação da sua estrutura a fim de que continue a desempenhar suas atividades de modo mais eficien- te. Nesse sentido, o alerta de Fabiana Marion Spengler (2010) para a criação de novas estratégias de atuação da função jurisdicional, de modo que recupere a sua cre- dibilidade perante a sociedade e exerça de modo satis- fatório as atribuições deste Poder tão essencial para o desenvolvimento da democracia. Na análise feita por Maria Tereza Sadek (2010) em relação ao Sistema de Justiça como um todo14, tra- ta-se de um complexo de órgãos e distintas funções das quais a população tem pouco conhecimento do seu funcionamento. E se trata de um desconhecimen- to universal, não relacionado com o nível de esco- laridade, como por exemplo em relação à confusão dos papeis exercidos