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Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 – Térreo e 6º andar – 20040-040 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3543-0770 – Fax: (21) 3543-0896 faleconosco@grupogen.com.br | www.grupogen.com.br O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível (art. 102 da Lei n. 9.610, de 19.02.1998). Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior (art. 104 da Lei n. 9.610/98). Esta obra passou a se chamar Linguagem e Argumentação Jurídica a partir desta edição, é resultado das obras Lições de Argumentação Jurídica – da Teoria à Prática e Lições de Linguagem Jurídica – Da Interpretação à Produção do Texto. Capa: Fabricio Vale dos Santos Produção digital: Ozone Fechamento desta edição: 29.05.2018 CIP – BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. V29L Valverde, Alda da Graça Marques Linguagem e argumentação jurídica / Alda da Graça Marques Valverde, Néli Luiza Cavalieri Fetzner, Nelson Carlos Tavares Junior; coordenação Néli Luiza Cavalieri Fetzner. – 5. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. Inclui bibliografia ISBN 978-85-309-8162-4 1. Direito - Linguagem. 2. Argumentação jurídica. 3. Redação forense. 4. Oratória forense. I. Fetzner, Néli Luiza Cavalieri. II. Tavares Junior, Nelson Carlos. III. Título. 18-50216 CDU: 340.12 APRESENTAÇÃO Sabemos que argumentar representa, para a área jurídica, uma exigência profissional específica. Argumentar constitui um pré-requisito fundamental para o processo de formação em qualquer das carreiras jurídicas. O próprio Ministério da Educação, em documento referente ao desenvolvimento das habilidades necessárias à formação jurídica, destaca como prioridades a leitura crítica, a interpretação e a escrita. Participamos de um movimento, dentro e fora do Poder Judiciário, que vem estabelecendo como mais um fator decisivo da melhor prestação jurisdicional o que aqui é chamado de habilidade para “saber dizer o Direito”; uma demanda extensiva a advogados, defensores, procuradores, promotores, juízes e desembargadores. Em outras palavras, hoje, a Língua Portuguesa de uso jurídico está posta em questão por seus próprios usuários. Muitos deles, por sua vez, têm procurado conferir a essa modalidade de uso uma nova expressividade, que recusa, entre outros aspectos, a retórica vazia, o vocabulário erudito e tortuoso à inteligibilidade ou o emprego de jargões e clichês envelhecidos e sem nenhuma função, a não ser, é claro, a de acumular a poeira do tempo. Com base nessas novas molduras e demandas que circunscrevem a complexidade da escrita e da argumentação dos profissionais da área jurídica, um novo (re)encontro com a teoria da argumentação é fundamental. Um texto consequente, como deve ser o jurídico, exige do seu redator, além da observância dos aspectos técnicos próprios de cada peça redacional – petição inicial, contestação, agravo de instrumento, sentença, acórdão –, o domínio das ferramentas linguísticas que dão forma e comunicabilidade aos conteúdos. Não há texto bem produzido sem o manejo consciente dos instrumentos que a língua disponibiliza. Sabendo das especificidades da produção de peças processuais, os autores reapresentam aqui a teoria da argumentação de maneira didática, acessível. Também contemplam conteúdo teórico e prático referente à narrativa dos fatos. Nessa perspectiva, parabenizo os autores por mais este livro, que condensa, amplia e aprofunda o conteúdo de duas obras anteriores: Lições de Linguagem Jurídica: da interpretação à produção de textos e Lições de Argumentação Jurídica: da teoria à prática, por estabelecerem outro acordo com o estudo da produção dos textos jurídicos, com vistas a uma dinamização de suas orientações e prescrições, de modo a tornar a redação do texto jurídico mais consistente e em conformidade com o novo perfil esperado dos profissionais do Direito, que pressupõe, além da capacitação técnica, a habilidade de tornar comunicável a sua ação profissional. Desembargador Sérgio Cavalieri Filho Ex-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Diretor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Procurador-Geral do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. PREFÁCIO Recebi, honrado, o convite para prefaciar a obra coordenada pela professora Néli Luiza Cavalieri Fetzner, também autora junto com Nelson Carlos Tavares Junior e Alda da Graça Marques Valverde. É grande a responsabilidade, mas a seriedade e a profundidade do trabalho desenvolvido pelos autores, renomados e experientes professores, tornaram irrecusável a proposta. Espera-se que o prefácio de um livro apresente a obra, ainda inédita, e que, de forma cuidadosa, indique suas principais qualidades. Se o livro é muito bom, como no presente caso, o prefácio é um convite para que a leitura prossiga e que todos aproveitem o que um texto, bem construído, pode proporcionar. O início da obra que se apresenta, dedicado à prática interpretativa do direito, mostra que o uso correto e oportuno das palavras é estratégico para os que pretendem ser ouvidos e compreendidos. Palavras, indevidamente utilizadas, produzem parte considerável dos conflitos existentes na vida em sociedade. O bom profissional do direito deve saber expor, com clareza e senso de oportunidade, suas razões. Não se devem desperdiçar argumentos, eles são valiosos. Assim, à medida que a leitura se desenvolve, fica nítida a mensagem de que o uso correto das palavras é uma valiosa ferramenta que o profissional do direito tem. A superação do uso da força e o reconhecimento do valor da argumentação é a resposta civilizatória da humanidade em busca do que verdadeiramente é justo. É necessário, cada vez mais, convencer por meio das palavras. O uso da força para impor posições torna as palavras pequenas. Ao longo do trabalho, as questões teóricas e práticas são apresentadas harmonicamente, fruto da experiência e do trabalho desenvolvido pelos autores na sua intensa e produtiva vida acadêmica. O texto foi construído por professores que sabem quais são as necessidades daqueles que precisam, de maneira correta e segura, expor suas razões em peças processuais. A virtude, nas apresentações jurídicas, está na forma objetiva, técnica e coerente usada pelo profissional. O segundo capítulo do livro, de modo didático e direto, trata da estrutura das peças processuais com a indicação de como os fatos devem ser apresentados e as postulações formuladas. Na evolução do livro, de forma lógica, os autores demonstram, na teoria e na prática, como se produz a narrativa jurídica. Destacam-se os conceitos de narrativa simples e de narrativa valorada. Desenvolveu-se, ainda, rico capítulo sobre argumentação, indicando o seu surgimentoe o impacto dos estudos formulados por Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca na construção de uma teoria sobre o tema. Nesse contexto, são apresentadas as noções de auditório, de polifonia, além da necessária exposição dos conceitos de demonstração e argumentação. Explica-se, com grande didática, como o manejo das palavras e o uso da técnica são relevantes para fazer com que os argumentos cheguem corretamente ao auditório, na feliz expressão de Perelman. Enfim, fica a certeza de que temas importantes foram apresentados de forma objetiva, harmônica e direta. Essa é uma das características do livro. Ao final da leitura, identifica-se a agradável sensação de que valeu a pena. Cláudio Brandão de Oliveira Desembargador com assento efetivo na 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro desde 5 de novembro de 2009. Membro do Órgão Especial. Membro do Fórum Permanente de Ciência Política e Teoria Constitucional. 2.1 2.2 2.3 2.3.1 2.3.2 4.1 4.2 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6 6.1 6.2 6.2.1 6.2.2 6.2.3 6.3 6.3.1 6.3.2 6.3.2.1 6.3.2.2 6.3.2.3 6.3.2.4 6.3.2.5 6.3.2.6 6.3.2.7 SUMÁRIO Introdução Capítulo 1 – A Prática Interpretativa do Direito Capítulo 2 – Entendendo a Estrutura das Peças Processuais Petição inicial Contestação Parecer técnico-jurídico A estrutura de um parecer técnico-jurídico Esquema da disposição das partes do parecer técnico-jurídico Capítulo 3 – Gramática e Produção do Texto Jurídico Capítulo 4 – Redação das Peças Processuais Noções de gênero textual e tipo textual como fundamentos linguísticos para a produção de peças processuais Os tipos textuais e a redação jurídica Capítulo 5 – Aspectos Relevantes para a Produção da Narrativa Jurídica A narrativa jurídica simples e a narrativa jurídica valorada A seleção dos fatos da narrativa A valoração da narrativa na petição inicial e na contestação: modalizadores A relevância da precisão temporal e da cronologia dos fatos na narrativa A polifonia na narrativa jurídica A função argumentativa da narração Capítulo 6 – A Argumentação nas Peças Processuais Questões teóricas relativas à argumentação no direito: antecedentes importantes; noção de auditório; polifonia; demonstração e argumentação; argumentação simples e argumentação complexa Planejamento do texto argumentativo Do pedido (O que se quer?) Tese (O que se defende?) Seleção de fatos, provas e indícios (Como se defende a tese?) Defesa da tese e tipos de argumentos Introito Desenvolvimento Argumento/fundamento de fato Argumento de autoridade Argumento de oposição/técnica do enquadramento Argumento de analogia Argumento de causa e efeito Argumento de senso comum Argumento ad hominem 6.3.2.8 6.3.2.9 6.3.2.10 6.4 6.5 6.6 6.6.1 6.6.2 6.7 6.7.1 6.7.2 6.7.3 Argumento a fortiori Argumento por absurdo Argumento de fuga O uso da dedução e indução na produção dos argumentos Princípios gerais do direito e a formulação dos argumentos Organização hierárquica de algumas fontes do direito na estrutura argumentativa: razoabilidade, princípios, lei, doutrina e jurisprudência Proposta Comentário O efeito persuasivo das figuras de retórica Figuras de linguagem Figuras de construção Figuras de pensamento Referências INTRODUÇÃO Sabemos que o brasileiro, em geral, tem grande dificuldade de acesso ao livro, em especial ao livro didático. Essa realidade ganha contornos ainda mais graves quando atinge o ensino de nível superior, pois, além do fator custo, o aluno que inicia um curso de graduação enfrenta concretamente outro problema: a linguagem, muitas vezes utilizada nessas publicações, exige-lhe um conhecimento de mundo, por vezes, superior àquele por ele acumulado. Por isso, não temos receio em afirmar que, ao ler esta obra, o aluno terá em mãos um livro-texto didático, diferente da maioria. Entretanto, este livro não se destina, somente, aos graduandos em Direito, mas também aos advogados que desejam aprimorar a linguagem de suas peças processuais e, ainda, àqueles que têm pretensão de participar de um concurso público, porquanto haja um capítulo destinado à produção de um parecer técnico-formal – peça muito solicitada em concursos. Reiteramos, nesse sentido, a relevância desta obra, pois cremos que ela conseguiu cumprir uma tarefa audaciosa: sem abrir mão do aprofundamento esperado de uma obra dessa natureza, os autores utilizam uma linguagem bastante acessível, facilitando a compreensão dos iniciantes nesse mister. Com efeito, não há razão para supor que um bom livro deva ser aquele de linguagem excessivamente rebuscada, discriminadora. O papel principal da Academia é facultar o acesso à informação àqueles que o desejam. Assim dito, esse raciocínio parece óbvio, mas é impressionante que especialistas da área se esqueçam de que questões aparentemente simples são absolutamente tormentosas para os não iniciados na produção de textos jurídicos. Prova disso é o enorme temor causado pela segunda fase do Exame da OAB, em que o formando deve produzir uma peça profissional. Por que tantas dificuldades se o graduado já passou por estágio profissional e por diversas disciplinas de Prática Jurídica? É que nada disso garante segurança e expertise na produção de peças processuais. Apenas um trabalho didático e metodologicamente cuidadoso pode emprestar gradativamente essa segurança ao redator desses textos. Esperamos que este livro seja mais uma contribuição nesse sentido. Nesta nova edição, apresentamos vários exercícios em material suplementar. Esse material pretende oferecer aos leitores de nossa obra a oportunidade de fixação do conteúdo relativo à linguagem e à argumentação jurídica. O leitor encontrará excelente oportunidade de consolidar o que aprendeu, por meio de questões objetivas e discursivas. Capítulo 1 A PRÁTICA INTERPRETATIVA DO DIREITO Antes de enfrentarmos o nosso conteúdo principal de trabalho – a produção das peças processuais –, gostaríamos de promover uma breve reflexão, neste capítulo, sobre a importância da palavra como instrumento de comunicação. Especialmente para os profissionais do Direito, uma ciência social aplicada, a prática interpretativa ganha especial relevância. Para iluminar esse primeiro passo, escolhemos uma citação de Isócrates, um orador da Grécia, para dimensionarmos como os antigos valorizavam a palavra. Segundo Isócrates 1 , Foi a palavra que nos permitiu realizar quase tudo o que criamos em matéria de civilização. Foi ela que estabeleceu normas sobre o justo e o injusto, o belo e o feio, sem a ordenação das quais seríamos incapazes de conviver com os outros. É ela que nos permite acusar os maus e reconhecer os bons. É graças a ela que educamos os ignorantes e reconhecemos os inteligentes. A capacidade de falar é, pois, o sinal mais importante da razão humana. O emprego verdadeiro, justo e leal da palavra é a imagem duma alma boa e digna de confiança. É com o auxílio da palavra que discutimos o duvidoso e investigamos o desconhecido. Se, em resumo, quiséssemos determinar esse poder, veríamos que nada quanto no mundo acontece de modo racional acontece sem a palavra, mas é essa o guia de toda a ação e de todo o pensamento 2 . Só o homem possui a palavra, que constitui a linguagem verbal: instrumento mais utilizado para modelar o pensamento humano, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos. Como bem exprimiu Isócrates, a maneira como a palavra é empregada revela não só o conteúdo do que foi enunciado, mas também o caráter daquele que a emprega. Dessa forma, é necessário que, ao utilizá-la, tenhamos cuidado a fim de expressarmos com clareza aquilo que desejamos e preservarmos a imagem que pretendemos refletir. O Direito é uma ciência humana e objetiva, que visa à organização da convivência social e da prática política. Tal convivência obedece a regras e princípios, expressos por palavras. Ora, o profissional do Direito precisa interpretar essas palavras e expressá-las com discurso próprio. Impõe-se, portanto, que zele pelobom uso do vernáculo. Tal zelo na composição do texto deve ser observado por todos, isso porque as palavras podem transmitir não apenas um sentido, mas ainda sentidos variados. Justamente quando nos deparamos com termos polissêmicos, isto é, com mais de uma possibilidade interpretativa, é preciso que nos esforcemos para determinar-lhes o sentido preciso. Na prática da busca pelo sentido do texto, desenvolvemos um processo que implica “compreender + reformular ou reexprimir sob forma nova” 3 . Observemos que o ato de compreender implica saber ler não apenas o conteúdo explícito do texto, como também o que se encontra implícito, ou seja, os pressupostos e os subentendidos 4 . Mais ainda, é preciso saber ler o contexto real em que o texto foi escrito, as intenções daquele que o escreveu, a finalidade do texto. Por essa razão, o intérprete deve extrair da realidade fática elementos que orientem sua interpretação. Com relação a isso, ofereceremos mais esclarecimentos nos itens seguintes. Quanto ao ato de reformular ou reexprimir, este só se realizará após termos extraído o(s) sentido(s) do texto. Inicialmente, devemos considerar que alguns termos que expressam conceitos do direito existem em função de um discurso jurídico, como é o caso do vocábulo propriedade. Este possui significação à medida que for considerada a função que ele cumpre em sintetizar toda a disciplina normativa relacionada ao modo de aquisição e aos poderes, faculdades e deveres decorrentes da aquisição de uma posição jurídica subjetiva em relação a um bem. Sendo assim, a compreensão de seu significado, a princípio, é objetiva, isto é, não implica formulação de juízo de valor, independe de interpretação individual. Assim está expressa, no Vocabulário Jurídico, a definição de “propriedade” (“... próprio direito exclusivo ou o poder absoluto e exclusivo que, em caráter permanente, se tem sobre a coisa que nos pertence.” De Plácido e Silva, p. 1115). Será que essa definição, após a Constituição Federal de 1988, continua adequada? Observe o que diz a Constituição: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da propriedade; Ora, o conceito de propriedade deixou de ser objetivo e passou a ser subjetivo a partir do momento em que se avalia a sua função social. O conceito individualista de propriedade, instituído pelo Código Civil de 1916, foi superado pelo de propriedade socialmente adequada, contido na Constituição de 1988, pela Lei Federal 10.257/2001 (o Estatuto da Cidade) e pelo Código Civil de 2002. Tal mudança de paradigma se deve a alterações sociais, econômicas e outras havidas por exigência de uma nova realidade. Observa-se, entretanto, que alguns termos utilizados para representar conceitos jurídicos são expressões que representam ideais dos indivíduos e grupos, povos e países. Os termos “boa-fé”, “bom pai de família”, “dolo”, “culpa”, por exemplo, representam conceitos que só adquirem significado quando associados a determinado fato. Mesmo assim, ainda estarão submetidos a interpretações distintas que só serão definidas após muita discussão sobre o sentido que se pode conceber em relação ao caso concreto. Isso porque tais termos, que normalmente constituem conceitos jurídicos indeterminados, envolvem situação de natureza valorativa 5 . Citemos como exemplo o “princípio da insignificância”, que se destina a excluir do âmbito penal as lesões de importância mínima. Ora, como interpretar se a ofensa ao valor tutelado foi, de fato, inexpressiva, ou melhor, insignificante? Examinemos o caso de um rapaz que teve roubada a bicicleta que possuía, há dez anos, sem marcha, enferrujada. Avaliando os aspectos descritos, entender-se-ia que nos referimos a um objeto de valor inexpressivo. Entretanto, se acrescentarmos a informação de que tal objeto serve-lhe de transporte para a entrega dos salgadinhos que sua mãe produz e esse é o meio de sobrevivência da família, certamente se alteraria a interpretação quanto ao valor subjetivo da bicicleta. É necessário, então, que se estabeleça uma relação de proporcionalidade entre a conduta e sua consequência. Aí vai outro termo que desejamos que interprete: “caso fortuito”. De acordo com o art. 393, parágrafo único, do Código Civil, “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir”. A expressão “fato necessário” nem sempre se revela de fácil compreensão, por conter teor valorativo. As narrativas registradas a seguir são adaptações de casos já avaliados pelo STJ e podem demonstrar a dificuldade em se determinar o caso fortuito. Leia-os, interprete-os e verifique se eles se adaptam à hipótese. Caso 1: Uma menina brincava com um bambolê, no pátio de sua escola, na hora do recreio. O brinquedo se partiu e uma das pontas atingiu o olho direito da criança. Os seus pais exigiram indenização da escola por danos morais e materiais. Entenderam que houve falha no dever de cuidar. Já a instituição de ensino afirmava que não podia ser responsabilizada, porque tudo não passou de uma fatalidade. O fato de o bambolê se partir e atingir o olho da menina não podia ser previsto: a chamada tese do caso fortuito. Com essa alegação, a escola esperava ficar livre da obrigação de indenizar a aluna. Caso 2: Um homem foi assaltado em um ônibus da empresa Caminho Seguro. Ele pediu em juízo indenização à empresa por entender que houve falha na prestação do serviço. A empresa se eximiu da responsabilidade, por meio da alegação de caso fortuito, pois não havia como prever que o ônibus seria assaltado naquela hora e naquele local. Caso 3: Na cidade do Rio de Janeiro, uma senhora foi assaltada em um banco: ficou sem a sua pensão e foi agredida pelo assaltante. Segundo seus familiares, o banco deve indenizá-la por danos morais e materiais. O banco sustenta que não lhe cabe tal obrigação, uma vez que não pode ser responsabilizado pelo caos urbano vivido em uma cidade violenta como o Rio de Janeiro. Considera que houve uma fatalidade, logo o classifica como caso fortuito. E então, como você avalia cada caso? Leia como tais casos foram avaliados pelo STJ. Solução do caso 1: Ao analisar o pedido, o STJ entendeu que a escola devia indenizar a família. Afinal, o acidente aconteceu por causa de uma falha na prestação dos serviços oferecidos pela própria instituição de ensino. Assim como esse, outras centenas de processos envolvendo caso fortuito e indenizações chegam ao STJ todos os dias. Solução do caso 2: Assalto à mão armada, em transportes coletivos, para o STJ, é caso fortuito. A jurisprudência do Tribunal afirma que a empresa de transporte não deve ser punida por fato inesperado e inevitável que não faz parte da atividade-fim do serviço de condução de passageiros. Solução do caso 3: Em situações de assalto à mão armada dentro de agências bancárias, o STJ entende que o banco deve ser responsabilizado pelos danos causados aos clientes, já que zelar pela segurança destes é inerente à atividade-fim de uma instituição financeira. Além da natureza valorativa que envolve alguns termos, esbarra-se na natureza polissêmica 6 do signo linguístico. Sendo assim, conceitos distintos podem ser expressos por um mesmo termo conceitual. Observemos, por exemplo, o que está expresso no Dicionário Eletrônico de Antonio Houaiss 7 , para a rubrica jurídica, no verbete da palavra “representação”: Ato ou efeito de representar(-se) Rubrica 1: fato de realizar um ato jurídico em nome e por conta de outrem, em virtude de poder legal ou convencional, e com o efeito de criar para a pessoa representada uma obrigação ou um direito. Rubrica 2: instituto pelo qual certos parentes do falecido são chamados pela lei a suceder em todos os direitos em que ele sucederia, se fosse vivo. Rubrica 3: posição jurídica do pai ou tutor que age em nome dos filhos oututelados. Rubrica 4: contrato remunerado entre dois comerciantes ou empresas comerciais, para que uma parte promova a venda de produtos da outra, concluindo negócios em nome dela. Rubrica 5: petição com que o cidadão se dirige aos poderes públicos para reclamar contra abusos de autoridades e promover a responsabilidade delas. Rubrica 6: pedido formulado pela vítima de certos delitos (ou por seus representantes legais) à autoridade policial ou judiciária, bem como ao órgão do Ministério Público, para que se proceda contra o delinquente, sem o que é inadmissível a ação penal intentada na espécie. Como se pode aferir, o termo possui seis significados no discurso jurídico. Tais significados devem ser analisados, dentre outros aspectos, segundo as diferenças de fins dos Códigos (interpretação teleológica) 8 . Destaquemos o parágrafo único do art. 145 do Código Penal, em que se verifica a significação 6 do verbete 1º 2º a) b) c) referente ao termo “representação”, e do art. 115 do Código Civil, que revela o significado 1 desse mesmo verbete: Art. 145, CP: Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal. Parágrafo único: Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3º do art. 140 deste Código. Art. 115, CC: Os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo interessado. A compreensão dos termos em um enunciado exige, ainda, que se conheça quando o discurso foi produzido. Isso porque o sentido de uma palavra pode mudar com o tempo e, se isso ocorrer, “prefere-se o da época em que foi o texto redigido em caráter definitivo, e não daquela em que é interpretado” 9 . Examinemos o exemplo: [...] e não compreender em meus juízos nada mais que aquilo que se apresentar a meu espírito com tal clareza e distinção que eu não tenha ensejo de duvidar 10 . Qual o significado do verbo “compreender”? Um leitor moderno diria “entender”, “explicar”. Entretanto, se soubermos que o texto é de 1637, descobriremos que o autor quis dizer outra coisa bem diferente: “incluir em meus juízos”. Não no sentido de “entender”, mas no sentido de “conter”. O local em que foi produzido o discurso também deve ser considerado. Maximiliano 11 adverte, por exemplo, que, “[...] em Estados vizinhos, como os de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, a palavra alqueire, não oficialmente empregada, não designa a mesma quantidade superficial de terra”. Além da polissemia dos termos, a possibilidade de inovar a linguagem e chamar a atenção do leitor, mediante figuras retóricas, impõe ao intérprete um trabalho extra: desvendar o sentido que o termo revela no contexto em que foi utilizado. Observemos o texto 12 a seguir. 1 – Transitar No horizonte a vencer, o que se diz é tão relevante quanto como se diz. Daí, a perspectiva inadiável de revirar a praxe didática. Sair da clausura dos saberes postos à reprodução e ir além das restrições que o molde deforma. A produção das regras de direito como ato de nascimento da vida e não certidão de óbito a ser estampada no museu das praxes. Principiar a semeadura e verificar uma colheita possível diante do CC de 2002 com a crítica às classificações de base, inserindo-as no contexto jurídico, e delas extraindo a seiva possível que possa fluir. E aí, afixar no mural da mitificação as dicotomias e seus papéis da desordem lógica que harmoniza, contrapondo Direito Objetivo – Direito Subjetivo e que separa, privando do público o lado privado das coisas e das pessoas. Para que se proceda à interpretação do trecho, é importante oferecer ao leitor algumas informações. Assim, poderá pressupor os objetivos do autor e a sua postura perante o tema abordado. Tornarse-ão, pois, mais claros o enunciado e a enunciação. Vamos a elas: o trecho em exame encontra-se no capítulo “Introdução Crítica ao direito civil”; o autor da obra é Advogado, Professor Titular de Direito da UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Direto de Família e da International Society of Family Law, do IAB, do IAP e da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, Ministro do Supremo Tribunal Federal. Questões que orientam a interpretação desse texto: Qual o sentido do verbo “transitar”, utilizado como título do texto? Em que figura retórica o texto se apoia? Justifique com exemplos do texto 13 . Que outras figuras retóricas compõem o texto? Como as interpretar? d) e) 1 2 3 4 5 Qual o objeto da preocupação do autor? Que ideia norteia o texto? Quais as palavras que expressam com clareza essa ideia? Após a interpretação, uma das possibilidades de reexprimir o texto sem as metáforas seria: Nessa tarefa de releitura do Direito Civil a partir da nova principiologia constitucional, o que se ensina é tão relevante como a forma pela qual se ensina. Daí a necessidade de se reformular, também, a prática do ensino jurídico. É preciso se libertar da velha prática de repetir o conhecimento solidificado acriticamente, para ir além, e alcançar um conhecimento ao qual não se chega por meio de meras repetições. A produção das regras de Direito pelo legislador é apenas o ponto inicial da produção do Direito; a partir daí, cabe ao intérprete construir a regra para o caso concreto à luz dos princípios constitucionais; a regra veiculada pela legislação é, pois, ponto de partida, e não de chegada. Começa-se esse trabalho e se verifica possível chegar a bom resultado diante do Código Civil de 2002, partindo-se de uma visão crítica das classificações tradicionais do Direito Civil, extraindo delas o que há de útil. E aí, sob essa nova ótica, constata-se que grande parte das dicotomias (divisões, classificações em dois tipos antagônicos) bem como de seus papéis não têm muita lógica, e que não passam de mitos, como a contraposição entre direito público e direito privado, impedindo que o direito público interfira no direito privado, resguardando-o, pois, de qualquer ingerência do Estado. Como se observa, a interpretação textual revela possibilidades de sentidos, buscando definir aquele que a) melhor expressa a intenção de quem produziu o texto; b) se encontra em conformidade com as demais fontes do direito, com o caso concreto em exame e com os apelos sociais da época e do lugar em que a interpretação se opera. Retórico, pedagogo e político teórico grego, nascido em Atenas, criador da escola de oratória mais importante da antiga Grécia que exerceria poderosa influência na vida intelectual e política da época e na luta pela unidade do povo helênico. Escreveu sobre política, educação, ética e crítica literária. Seu estilo oratório é caracterizado pela perfeição da prosa e a ênfase na persuasão. Isócrates trabalhou como logógrafo, isto é, redator de discursos jurídicos. Fundou em Atenas uma escola de retórica que exerceria poderosa influência na vida intelectual e política da época. ISÓCRATES apud BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 239. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 67. Entendemos como pressupostos aquilo que se pode inferir por meio de marcas textuais. Por exemplo, na frase “João só precisa de afeto”, a palavra denotativa só nos permite pressupor, dentre outras possibilidades, que João a) já tenha bens materiais suficientes para o seu sustento; b) não exija nada além de afeto. Já quando não há marcas textuais que nos levem a inferências, mas o contexto situacional nos permite operá-las, entendemos que a informação ficou subentendida. É assim quando alguém entra numa sala fechada e apenas diz “Está calor aqui.” Em seguida alguém reclama: “Não abriremos a janela, já que há barulho lá fora.” E aquela que reclamou do calor revela: “Mas eu só disse que estava calor, não pedi que abrissem a janela!” Na realidade,foi apenas o contexto situacional que levou o receptor a interpretar a intenção comunicativa do emissor dessa forma. A respeito dessa questão, sugere-se a leitura do Capítulo 1 “Direito, Hermenêutica e Interpretação” do livro de Margarida Maria Lacombe Camargo. Hermenêutica e argumentação : uma contribuição ao estudo do direito. 6 7 8 9 10 11 12 13 São Paulo: Renovar, 2001. p. 13-50. Como dissemos, a polissemia caracteriza-se pelos muitos significados que um mesmo termo pode apresentar, dependendo do contexto em que se insere. HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. Entende-se como interpretação teleológica aquela que visa à compreensão dos objetivos a que determinada regra jurídica deseje alcançar. Observamos que a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu art. 5º, alude a uma exigência teleológica: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Note-se que as expressões fins sociais e bem comum “são entendidas como sínteses éticas da vida em comunidade. Sua menção pressupõe uma unidade de objetivos do comportamento social do homem” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Interpretação ao estudo do direito : técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 288). MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 91. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 140. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 140. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 8. A figura retórica que norteia esse trecho está analisada no Capítulo 6, item 6.7. a) b) c) d) e) f) Capítulo 2 ENTENDENDO A ESTRUTURA DAS PEÇAS PROCESSUAIS Todo estudante de Direito que pretende exercer a advocacia precisa compreender que as peças processuais possuem uma estrutura organizacional regular, recorrente, uma espécie de coluna vertebral que norteia o trabalho do advogado. Muitas peças podem ser produzidas no curso de um processo. A título de exemplo, um advogado precisa aprender a redigir petição inicial, contestação, apelação, habeas corpus, mandado de segurança, contrarrazões, embargos de declaração, entre muitas outras. Cada uma tem um objetivo específico e deve ser manejada em situações muito peculiares. Mas o que todas essas peças, produzidas por advogados, têm em comum? A sua estrutura básica! Estamos nos referindo à ideia de: dirigir-se ao juízo responsável por apreciar a peça; qualificar a si mesmo e aos demais interessados diretos na demanda; narrar com objetividade, clareza e concisão os fatos relevantes do caso concreto; argumentar a favor da tese que se pretende sustentar; pedir o que se pretende da prestação jurisdicional; enumerar o que se pretende utilizar a título de prova. Esse caminho essencial, que pode ser realizado de diversas maneiras, estará sempre presente em todas as peças produzidas por um advogado. O papel deste capítulo é mostrar e explicar essa macroestrutura das peças, sem, porém, aprofundar as características de sua produção, uma vez que isso será feito, item a item, nos capítulos posteriores. Cabe ao professor que inicia o estudante de Direito na produção de peças processuais auxiliá-lo, progressivamente, a acumular todo o repertório linguístico e jurídico necessário à: a) organização das ideias; b) seleção e combinação de informações; c) redação de textos jurídicos; d) produção convincente dos argumentos; e) identificação das características estruturais de cada peça; f) redação em conformidade com a norma culta da língua etc. Enfim, pretendemos ajudar você a desenvolver todas as habilidades relativas à linguagem que serão indispensáveis para redigir as peças processuais, que fazem parte da prática militante da advocacia. Você deve estar pensando que essa estrutura sinalizada acima, como essencial a todas as peças, existe por uma razão aleatória ou pela simples vontade do legislador, mas não é bem assim. Esse movimento de construção textual que caracteriza as peças processuais, objetivando IDENTIFICAR AS PARTES/NARRAR/ARGUMENTAR/APLICAR A NORMA, não é, de forma alguma, anárquico ou imotivado. Certamente você foi apresentado a uma proposta teórica internacionalmente validada, chamada Teoria Tridimensional do Direito, do jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, desenvolvida em 1968. À época de sua divulgação, tratou-se de uma forma absolutamente revolucionária e inovadora de abordar as questões da ciência jurídica, tendo esse pensamento conseguido adeptos e simpatizantes em todo o universo dos estudiosos do Direito. De acordo com a proposta do autor, o direito 1 compõe-se de três dimensões: FATO, VALOR e NORMA. Vamos entender essa afirmação da forma mais simples possível. Para isso, conheça dois casos concretos que vamos apresentar. O primeiro caso ocorreu em Teresópolis, Região Serrana do Rio de Janeiro, no ano de 2005. Uma mulher de 36 anos, desempregada, estava casada com um mecânico, também desempregado. Os dois moravam em um barraco de 10 metros quadrados, junto com seus três filhos. O mais velho tinha seis anos de idade; o filho do meio, quatro; o caçula, um ano e meio. É importante mencionar que essa mulher, Marcela, estava gestando o quarto filho. No mês de fevereiro daquele ano, em decorrência das fortes chuvas, um deslizamento de terra arrastou, ladeira abaixo, o lar em que vivia essa família. A mãe conseguiu salvar os dois filhos mais velhos, entretanto o caçula, ainda aprendendo a andar, não conseguiu sair a tempo. Morreu soterrado. Por tudo o que aconteceu, Marcela entrou em trabalho de parto. Chegou ao hospital público mais próximo e foi submetida a uma cesariana. Assim que ouviu o choro do bebê prematuro, pediu à enfermeira para segurá-lo rapidamente no colo. A enfermeira permitiu. Marcela beijou longamente a criança e jogou-a para trás. O menino caiu no chão, sofreu traumatismo craniano e morreu. Perguntada por que tomara aquela atitude, disse que não gostaria que seu filho passasse por tudo o que os demais estavam passando: fome e miséria. Um exame realizado no Instituto Médico Legal apontou que Marcela se encontrava em estado puerperal2 no momento em que matou o próprio filho. Conhecido o primeiro caso concreto, vamos ao segundo: Nosso outro caso ocorreu em São Paulo. A secretária Adriana Alves engravidou do namorado e, sem saber explicar por qual motivo, não contou a novidade para ele; também não contou para mais ninguém. Seus pais, com quem morava, não sabiam de sua gravidez. Não compartilhou esse segredo com amigas ou colegas de trabalho. Definitivamente, ninguém conhecia a gestação de Adriana além dela mesma. Com o passar dos meses, Adriana não recebeu qualquer tipo de acompanhamento ou cuidado especial; escondia a barriga com cintas e usava roupas largas. No mês de dezembro, quando participava de uma festa de final de ano, no escritório em que trabalhava, sentiu-se mal e foi para casa. Sua intenção era realizar o parto, sozinha, e jogar a criança em um rio próximo à sua casa. Ocorre, porém, que o parto não transcorreu tranquilamente. Adriana teve complicações e precisou puxar à força a criança. Depois, matou-a afogada na bacia de água quente que separou para realizar o parto. Para se livrar da justiça, jogou a criança, já morta, no rio, enrolada em um saco preto. Muito debilitada, foi a um hospital buscar ajuda para si, mas não soube explicar o que aconteceu. Após breve investigação da Polícia, Adriana confessou tudo o que fizera. Exames comprovaram que ela não estava sob o estado puerperal. Queremos perguntar a você: o que ocorreu no primeiro caso? E no segundo? O fato gerador da demanda, em ambas as situações, é o mesmo? Parece que sim: as mães mataram os próprios filhos logo após o parto. Logo, as duas mães devem ser punidas da mesma maneira? Será imputado a elas o mesmo crime? Cumprirãoa mesma pena? Observe o raciocínio esquematizado. Esquema 1: Ora, se – como percebemos – o advogado segue sempre os mesmos passos (dirigir-se ao Juízo, qualificar os envolvidos na lide, narrar, argumentar, aplicar a norma e enumerar as provas que se pretende utilizar) para verificar a aplicação da norma mais adequada ao fato avaliado, é natural que, por analogia, as peças processuais também sigam o mesmo caminho, delimitado pela lógica da Teoria Tridimensional do Direito. Dito em outras palavras, para que os profissionais da área jurídica verifiquem se a parte tem ou não o direito que pleiteia, deverão passar por estas etapas, comuns a todas as peças processuais: a) b) c) d) e) f) identificação do Juízo a que se dirige – a estrutura do Judiciário é complexa e será necessário identificar o Juízo ao qual a peça será distribuída, à semelhança de uma correspondência: se não identificarmos o seu destinatário, ela nunca chegará ao local certo; qualificação dos envolvidos na lide – em geral os interessados serão autor e réu, mas há peças, como é o caso do habeas corpus, em que será necessário qualificar quem impetra esse remédio constitucional (impetrante), em favor de quem se pretende a medida (paciente) e a autoridade que violou inadvertidamente a liberdade do paciente (autoridade coatora), ou seja, esses três são os interessados diretos na lide; narração dos fatos juridicamente importantes do caso concreto (dimensão FATO da Teoria Tridimensional do Direito); defesa de uma tese, por meio de texto argumentativo, valorativo (dimensão VALOR da Teoria Tridimensional do Direito); pedido e suas especificações (dimensão NORMA da Teoria Tridimensional do Direito); enumeração das provas com que se pretende comprovar o alegado. Mas será que esse raciocínio de construção das peças jurídicas foi efetivamente endossado pelos legisladores quando indicaram, no Código de Processo Civil, os requisitos essenciais de cada peça processual? Para verificar isso, propomos um breve passeio pelos dispositivos de lei – presentes no Código de Processo Civil – que determinam os requisitos essenciais das peças processuais denominadas petição inicial, sentença e apelação. É importante esclarecer que a escolha das peças aqui tratadas não tem uma motivação específica; o que queremos mostrar é que elas – e quaisquer outras peças – seguem a organização que já sinalizamos acima. Como não poderia deixar de ser, iniciemos essa jornada pela peça inicial do processo. No verbete Petição Inicial de seu dicionário, De Plácido e Silva 3 assim a conceitua: PETIÇÃO INICIAL. Segundo o próprio sentido do adjetivo inicial, a locução exprime a petição que se faz inicialmente ou para começo ou provocação de um litígio. É, pois, o primeiro requerimento dirigido pela pessoa à autoridade judiciária, para que, segundo os preceitos legais, se inicie o processo ou se comece a demanda. Desse modo, claramente, distingue-se de qualquer outra petição, em que, no curso do processo, se venha pedir ou requerer, conforme as circunstâncias e a permissão da lei processual, o que é de interesse ou do direito das partes. Em regra, a petição inicial conduz o pedido, que forma o objeto da causa, isto é, a indicação da relação jurídica violada, que deva ser garantida, ou a ameaça que pesa sobre um direito, que deva ser protegido, com os necessários esclarecimentos que o fundamentem e as razões jurídicas em que se baseia. A lei processual estabelece as condições de sua formação, as quais se constituem em requisitos legais pertinentes à sua forma. A falta desses requisitos ou a sua elaboração de modo desordenado, confuso, sem clareza, sem coerência, inquina a petição de inepta, levando-a à preclusão. É por meio da petição que se dá começo à ação judicial e se tem a mesma como proposta ou ajuizada. Vide: Propositura da ação. Compreendido o conceito de Petição Inicial, vejamos a redação do art. 319 do Código de Processo Civil, em que são listados os requisitos dessa peça, sem os quais ela será inepta: Tabela 1: ART. 319, CPC/2015 – A PETIÇÃO INICIAL INDICARÁ: Inciso I o juízo a que é dirigida; Inciso II os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu; Inciso III o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; Inciso IV o pedido com as suas especificações; Inciso V o valor da causa; Inciso VI as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; Inciso VII a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação. Esquematicamente, assim deverá se organizar a petição inicial: Esquema 2: MERITÍSSIMO JUÍZO DA _____ VARA _____ DA COMARCA _____ (NOME DA PARTE AUTORA), nacionalidade, estado civil, profissão, portador da carteira de identidade n° xxxxxxxx 4 , expedida pelo IFP, inscrita no CPF sob n° xxxxxxxxxx, e-mail xxxxxxxxxx, residente e domiciliado na rua xxxxxxxxxx, por seu advogado, com endereço profissional na rua xxxxxxxxxx, vem a V. Ex. a propor AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS pelo rito _______, em face de (NOME DA PARTE RÉ), nacionalidade, estado civil, profissão, portador da carteira de identidade n° xxxxxxxxxx, e inscrito no CPF sob o n° xxxxxxxxxx, residente e domiciliado na rua xxxxxxxxxx, pelas razões de fato e de direito que passa a expor: Dos fatos __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Do direito (ou Dos fundamentos jurídicos do pedido) __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Do pedido Diante do exposto, requer a V. Ex. a : 1 – __________________________; 2 – __________________________. Das provas __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Do valor da causa __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Pedido de deferimento, data e assinatura. Resumidamente, podemos dizer que a petição inicial é o instrumento da demanda, ou seja, é a peça escrita na qual o autor formula o pedido de tutela jurisdicional ao Estado-juiz, para que diga o direito no caso concreto. Possui como requisitos, nos termos do Código Processual Civil, os seguintes elementos: I – o juiz ou tribunal a que é dirigida (EM CAIXA ALTA); II – as partes – autor e réu (NOMES EM CAIXA ALTA) e a sua qualificação, indicada com as seguintes informações: nacionalidade, estado civil ou existência de união estável, profissão, número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, endereço eletrônico, domicílio e residência; III – o fato (Dos fatos) e os fundamentos jurídicos do pedido (Do direito), isto é, os acontecimentos do conflito que fazem supor existir um direito a ser protegido e todos os fundamentos jurídicos com os quais se pretende mostrar esse direito; IV – o pedido (Do pedido), com as suas especificações; V – o valor da causa (Do valor da causa) (art. 292 do CPC); VI – as provas (Das provas) com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados devem ser requeridas na Inicial, que deverá ser instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação (art. 320 do CPC); VII – a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação, que deve ser listada junto com os demais pedidos; VIII – a declaração do endereço em que o advogado receberá intimações (art. 106, inciso I, do CPC). Como é a peça inicial do processo, natural é que sejanecessário endereçar o documento ao Juízo competente para conhecê-lo. Também parece apropriado indicar com destaque quem são autor e réu desse processo. Essas duas tarefas, como se observou do exemplo acima, são curtas e, de certa forma, quase telegráficas, sem maiores complicações textuais. O advogado deve apenas ter o cuidado de observar a competência e a legitimidade ativa/ passiva para figurar nos polos da demanda. Somente então o peticionário terá de desenvolver um texto propriamente dito. É aqui que a estrutura já mencionada, comum às peças complexas, será observada. Tabela 2: PETIÇÃO INICIAL “Dos fatos” Texto narrativo valorado. “Dos fundamentos” ou “Do Direito” Texto argumentativo. “Do pedido” Texto injuntivo em que se pede a aplicação da norma. Agora que já conhecemos melhor a estrutura básica e os requisitos essenciais de uma petição inicial, vamos percorrer caminho semelhante para compreender a sentença. Ainda que não seja uma peça produzida por advogados, a utilidade dessa verificação é comprovar que a estrutura essencial das peças processuais é sempre a mesma, em que pesem as aparentes diferenças estruturais e de objetivos. Comecemos pela definição de “sentença”. De Plácido e Silva 5 se manifesta da seguinte forma: SENTENÇA. Do latim sententia (modo de ver, decisão), a rigor da técnica jurídica, e em amplo conceito, sentença designa a decisão, a resolução, ou a solução dada por uma autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição. Assim, toda sentença importa num julgamento, seja quando implica numa solução dada à questão suscitada, ou quando se mostra uma resolução da autoridade, que a profere. Embora, às vezes, certos despachos importem numa sentença, desde que decidam e solucionem uma questão, ou uma divergência, sentença e despacho guardam figuras inconfundíveis. No despacho, quase sempre há uma ordem para que se faça, ou se cumpra alguma coisa, sem a intenção de a solucionar. A rigor, não configura uma decisão nem pode ser identificado como um julgamento. A sentença sempre decide, ou julga a questão, ou a causa trazida ao conhecimento do juiz, quando em caráter definitivo, o que será julgamento final, ou sempre põe fim a qualquer controvérsia suscitada perante o juiz, o que se mostra uma decisão, ou um julgamento interlocutório, com força de definitivo. Uma vez conceituada, vejamos quais seus requisitos essenciais indicados pelo legislador. Precisamos recorrer ao art. 489 do Código de Processo Civil. Tabela 3: ART. 489, CPC/2015 – SÃO ELEMENTOS ESSENCIAIS DA SENTENÇA: Inciso I o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; Texto narrativo Inciso II os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; Texto argumentativo – valorativo Inciso III o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões que as partes lhe submeterem. Texto injuntivo Para facilitar a compreensão de como essas informações são distribuídas graficamente no papel, sugerimos mais um esquema 6 . Esquema 3: COMARCA DA CAPITAL – 10ª Vara Cível Processo nº: Autor: Réu: SENTENÇA Relatório Vistos etc. __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Fundamentos __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Dispositivo __________________________________________________________________________ Publique-se, Registre-se e Intime-se (PRI) Data e assinatura. Até aqui, já conhecemos a estrutura e os requisitos da petição Inicial e da sentença. Vamos acompanhar agora o que é e como deve ser redigida uma última peça, a apelação. Para De Plácido e Silva 7 , a apelação designa um dos recursos de que se pode utilizar a pessoa prejudicada pela sentença, a fim de que, subindo a ação à superior instância, e, conhecendo esta de seu mérito, pronuncie uma nova sentença, confirmando ou modificando a que se proferiu na jurisdição de grau inferior. Por essa forma, recorrida a sentença por meio da apelação, o pronunciamento que sobre ela se fizer será, evidentemente, a nova sentença da causa. A sentença da apelação, quando pronunciada, é que vai servir de base à execução da sentença apelada. A regra é que cabe apelação de sentença (art. 1.009 do CPC), decisão que põe termo ao processo, com ou sem julgamento do mérito (arts. 485 e 487 do CPC). A apelação tem prazo certo para sua interposição. E, se a parte litigante não a interpõe no prazo regulamentar, entende-se que renunciou a ela. A lei processual marca normas para que se efetive o pedido de apelação. Por ela, entre nós, o prazo é de 15 dias, para as partes litigantes, tanto para interpor quanto para responder (art. 1.003, § 5º, do CPC). O dispositivo legal correspondente, no Diploma Processual Civil, é o art. 1.010. Tabela 4: ART. 1.010 DO CPC/2015 – A APELAÇÃO, INTERPOSTA POR PETIÇÃO DIRIGIDA AO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU, CONTERÁ: Inciso I os nomes e a qualificação das partes; Inciso II a exposição do fato e do direito; Inciso III as razões do pedido de reforma ou de decretação de nulidade; Inciso IV o pedido de nova decisão. Como se percebeu da exposição do autor De Plácido e Silva, a apelação deve ser dirigida ao juiz cuja decisão pretende ser revista. As razões da apelação vêm em outra peça, que deve ser encaminhada junto daquela. Adiante, segue um modelo das duas peças necessárias à apelação em um processo de embargos 8 . Esquema 4: Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da XX Vara da Fazenda Pública do Município de XXXXXXX/XX (cidade/Estado) 9 Processo número: XXXXXXXXX XXXXXXXX (nome do embargante), nos autos dos EMBARGOS À EXECUÇÃO, que move contra a FAZENDA PÚBLICA MUNICIPAL, processo em epígrafe, não se conformando com a veneranda sentença de primeira instância, no prazo legal, vem interpor RECURSO DE APELAÇÃO com as razões em fls. apartado, que requer seja recebido, autuado e, atendidas as formalidades de estilo, remetido ao exame do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Junta o Apelante, em anexo, o comprovante de pagamento das custas recursais. Nestes termos, pede deferimento. (local), (dia) de (mês) de (ano) Nome do advogado (OAB nº xxxxx) Esquema 5: Razões de Apelação Apelante: XXXXXXXXXXXXXXXX Apelado: XXXXXXXXXXXXXXXX Origem: XXXXXXXXXXXXXXXX Processo: XXXXXXXXXXXXXXXX Eméritos julgadores, Data maxima venia, é de ser reformada a sentença de primeira instância, uma vez que proferida de forma conflitante com as normas vigentes que regem a matéria e a pacífica jurisprudência dos tribunais. Assim, pretende o apelante buscar, pela via do duplo grau de jurisdição, a decisão final que possa derramar justiça no deslinde da demanda em tela. Para tanto, respeitosamente, vem expor suas razões, articuladamente, como a seguir: [...] 10 – exposição dos fatos e, em seguida, dos fundamentos jurídicos que sustentam a revisão da sentença de primeira instância. Feitas as considerações anteriores, pede e espera o apelante pelo provimento do presente Recurso de Apelação, para, ao final, decretar a procedência dos Embargos nos termos do pedido. (local), (dia) de (mês) de (ano) Nome do advogado (OAB nº xxxxx) Bom, pudemos comprovar o seguinte: a redação das três peças (petição inicial, sentença e apelação) seguiu um idêntico movimento lógico de construção: identificação do juízo a que se destina a demanda, qualificação dos interessados diretos (em geral as partes), os fatos importantes (narração) do conflito; interpretados esses fatos à luz das fontes do direito (argumentação), somente então a norma mais adequada ao caso foi aplicada (na petição e na apelação, em forma de pedido; na sentença, em forma dedispositivo, decisão). Há duas coisas importantes a reiterar. A primeira é que a escolha das três peças não segue nenhuma motivação específica, pois para os nossos propósitos qualquer outra (mandado de segurança, contestação, habeas corpus, embargos de declaração) teria alcançado o mesmo objetivo, qual seja mostrar uma das macrocaracterísticas redacionais de maior relevância dos textos jurídicos: a estrutura NARRAÇÃO DE FATOS IMPORTANTES/ ARGUMENTAÇÃO A FAVOR DE UMA TESE/APLICAÇÃO DA NORMA EM FORMA DE CONCLUSÃO. Observe a tabela com a organização dessa estrutura aplicada à petição inicial, à sentença, ao parecer e ao acórdão. Veja como a estrutura é semelhante, ainda que cada uma das partes dessa estrutura receba nomes distintos e sejam produzidas por advogados/magistrados/especialistas no Direito. Tabela 5: 11 DIMENSÕES DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO PEÇAS PROCESSUAIS Petição Inicial Sentença Acórdão Parecer 11 FATO Essa dimensão consiste na narrativa de todos os fatos importantes do caso concreto analisado Dos fatos (versão do autor sobre os fatos) Relatório (fatos relevantes do conflito e do processo) Relatório (fatos relevantes do conflito e do processo) Relatório (fatos relevantes do conflito e do processo) VALOR Essa dimensão consiste na valoração dos fatos narrados, ou seja, o ponto de vista defendido depende da maneira como os fatos são interpretados Dos fundamentos Motivação Motivação Fundamentação NORMA Essa dimensão consiste na aplicação de uma norma como consequência de um raciocínio argumentativo anteriormente desenvolvido Do pedido Dispositivo Dispositivo Conclusão A segunda questão a ser destacada é que nos interessam apenas as questões relativas à redação, à seleção e à combinação das informações, à argumentação. Não pretendemos tratar das questões de direito material ou processual. Diante de todo o raciocínio até aqui traçado, somente podemos concluir o seguinte: precisamos começar do início, ou seja, precisamos estudar cada uma das partes que compõem as peças processuais, o que faremos – item a item, de maneira didática – nos próximos capítulos. 2.1 PETIÇÃO INICIAL Como vimos no capítulo anterior, as peças processuais possuem uma lógica organizativa que determina sua macroestrutura. Assim, mesmo que o estudante de Direito não conheça a estrutura peculiar de cada peça, se souber qual o papel dessa peça no processo, será capaz de intuir a sua produção. É certo que, ao tecnicismo próprio do direito, isso parece pouco, pois não basta “intuir” uma estrutura: é necessário dominá-la com consistência e profundidade. Entendemos isso, mas valorizamos muito essa oportunidade de o acadêmico do Direito conhecer a organização geral das peças e conseguir aplicá-la às diversas atuações processuais que exercerá, porquanto, se assim o fizer, demonstrará que vem desenvolvendo raciocínio jurídico e sensibilidade linguística, que serão muito úteis à sua formação. Entende-se que o graduando precisa saber raciocinar a produção de suas peças e não apenas decorar estruturas e frases feitas. Pretendemos, agora, enfrentar a estrutura específica da petição inicial, por ser ela a peça que provavelmente mais causa espécie ao acadêmico de Direito. Conforme combinamos no início de nossos trabalhos, nossa pretensão não é fazer desta obra um manual de direito material ou de direito processual: nossa abordagem é essencialmente linguística, porém sem olvidar da competência jurídica indispensável à produção das peças a que nos propusemos a ensinar. Ao Bacharel em Direito que se submeterá ao Exame da OAB, recomendamos que não se preocupe tanto em DECORAR frases e expressões prontas; COMPREENDA a organização das peças e memorize apenas o que não pode faltar em cada parte. Treine bastante essa estrutura, redigindo diversas peças de cada tipo (peça inicial, de resposta e de recurso). Assim, você desenvolverá uma espécie de “memória muscular”. É certo que a expressão está deslocada do seu uso convencional, mas é como se o redator, de tanto redigir um tipo de peça, ao ser avaliado – em situações em que não haja ansiedade desorganizada – escreverá com grande naturalidade, sem o estresse que imagina existir em momentos de prova. Se, ao contrário, apenas DECORAR a estrutura, caso fique nervoso, pode ter o temido “branco” e não conseguir redigir a peça profissional. Então, vamos COMPREENDER e não apenas DECORAR o conteúdo que segue com relação à peça inicial! A peça de pedir nas ações que são propostas em Varas Cíveis e em Juizados Especiais Cíveis (as mais acompanhadas por acadêmicos do Direito) é chamada de petição inicial, mas, na verdade, esse é o termo genérico que denomina a peça que inicia o processo em qualquer jurisdição. Na seara trabalhista, por exemplo, é comum os advogados se referirem à peça inicial pelo nome “reclamação trabalhista”. O legislador, porém, utiliza tanto a expressão “reclamação trabalhista” quanto “petição inicial”. Observe a redação do art. 844, § 4º, III, da CLT: “A revelia não produz o efeito mencionado no caput deste artigo se a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato”. No mesmo sentido, consulte também o art. 897, § 5º, I, da CLT, que utiliza a mesma expressão. Em muito maior número, porém, o legislador optou por usar o termo “reclamação”, conforme se atesta no trecho a seguir: “A interrupção da prescrição somente ocorrerá pelo ajuizamento de reclamação trabalhista, mesmo que em juízo incompetente, ainda que venha a ser extinta sem resolução do mérito, produzindo efeitos apenas em relação aos pedidos idênticos” (art. 11, § 3º, da CLT). Que fique claro que nossa proposta é mostrar a organização da peça inicial: receba ela o nome de petição ou de reclamação. Na área criminal, quando se tratar de ação penal pública incondicionada, de maneira diferente, quem figurará como legitimado ativo (autor da ação), em regra, será o Ministério Público. O órgão ministerial não redige “petições iniciais” nas ações penais, mas sim “denúncias”. Reiteramos, pela última vez, que nossa proposta é compreender a organização das peças iniciais em geral, ainda que o façamos pelo viés da petição inicial por uma escolha didática. Os exemplos que o leitor observará, certamente, não são a única opção adequada para produzir a petição inicial. O redator sempre terá certa liberdade de estilo, que precisa ser respeitada. Temos certeza, no entanto, de que será útil o rol de exemplos que oferecemos, dada a insegurança que cerca o início de qualquer atividade profissional. Endereçamento O primeiro passo da petição inicial é endereçá-la ao juízo competente: “a petição inicial indicará o juízo a que é dirigida” (art. 319, I, do CPC/2015). Na redação do Código Processual anterior, o texto era o seguinte: “a petição inicial indicará o juiz ou tribunal, a que é dirigida” (art. 282, I, do CPC/1973). Observe que, em vez de dizer “Juiz”, o legislador agora se refere a “Juízo”. Por essa razão, ANTES costumávamos usar a seguinte redação, a título de exemplo: EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA _____ VARA CÍVEL DA COMARCA DE NITERÓI/RJ Agora, porém, preferimos endereçar da seguinte maneira, exemplificativamente: MERITÍSSIMO JUÍZO DA _____VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE E DO IDOSO DA COMARCA DA CAPITAL – RIO DE JANEIRO MERITÍSSIMO JUÍZO DO _____ JUIZADO ESPECIAL CÍVEL, REGIONAL DE MADUREIRA – COMARCA DA CAPITAL DO RIO DE JANEIRO-RJ MERITÍSSIMO JUÍZO DO _____ JUIZADO ESPECIAL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO GRANDE DO SUL/RS MERITÍSSIMO JUÍZO DA _____ VARA CÍVEL REGIONAL DA LEOPOLDINA – COMARCA DA CAPITAL DO RIO DE JANEIRO-RJ MERITÍSSIMO JUÍZO DA _____ VARA DO TRABALHO DE SALVADOR – 5ª REGIÃO MERITÍSSIMO JUÍZO DA _____ VARA DO JÚRI DA COMARCA DA CAPITAL DE BELO HORIZONTE-MG Pelo que se pôde perceber, não há grande complexidade textual neste item para o profissional que peticiona. Os cuidados que deve ter serão concernentes à competência – conteúdo que extrapola os objetivos desta publicação.Do ponto de vista linguístico-textual, sinalizamos apenas a necessidade de usar letras maiúsculas, fonte em negrito e não abreviar as formas de tratamento. O texto deve estar justificado, ou seja, alinhado de margem a margem e não necessita de ponto final, por não se tratar de uma frase comum. Qualificação das partes O novo Código de Processo Civil também trouxe algumas alterações para a redação da qualificação das partes. Alguns dados, antes ausentes, agora são exigidos, como é o caso do endereço de e-mail e a existência de união estável. Por “partes” entendem-se autor e réu. No item 5.2, tabela 13, você encontrará uma importante explicação sobre o uso desses termos. Sinalizamos que, ao resolver conflitos no Judiciário, essencial é indicar quem são autor e réu, descritos com as características indicadas no art. 319, II, do CPC/2015: os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu. Vale lembrar que, se não souber quem está no polo ativo e no polo passivo do processo, o juiz não tem nem sequer como realizar citações, intimações etc. Também não vemos grande complexidade textual para a redação desse trecho da petição inicial. Basta cuidar para que os nomes das partes estejam em destaque (com letras maiúsculas e em negrito) e que haja uma linha em branco entre a qualificação do autor e a ação proposta e outra entre esta e a qualificação do réu, conforme segue no exemplo a seguir. Reiteramos que a maneira como registramos aqui é exatamente a maneira como deve fazer o Bacharel em Direito que passará pelo Exame da OAB. AUTORA, brasileira, estado civil, profissão, portadora da Carteira de Identidade nº xxxxxxxxxx, expedida por xxxxxxxxxx, inscrita no CPF sob nº xxxxxxxxxx, titular do correio eletrônico: xxxxxxxxxx, residente e domiciliada em xxxxxxxxxx, por meio de seu procurador signatário (instrumento em anexo), com endereço profissional em xxxxxxxxxx, vem ajuizar a presente AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS PELO RITO SUMARÍSSIMO, em face do RÉU, pessoa jurídica de direito privado, sob CNPJ nº xxxxxxxxxx, situada em xxxxxxxxxx. Pode ser que o leitor precise qualificar mais de um autor, e que um deles seja menor de idade. Nesse caso, necessitará qualificar também seu procurador. Segue um exemplo dessa ocorrência: AUTOR, PESSOA IDOSA, brasileiro, estado civil, profissão, portador da cédula de identidade nº xxxxxxxxxx, expedida por xxxxxxxxxx, e inscrita no CPF sob o nº xxxxxxxxxx, endereço eletrônico xxxxxxxxxx, residente em xxxxxxxxxx; e AUTOR, MENOR IMPÚBERE, brasileiro, estudante, portador da cédula de identidade nº xxxxxxxxxx, expedida por xxxxxxxxxx, inscrito no CPF sob o nº xxxxxxxxxx, representado por sua mãe, xxxxxxxxxx, brasileira, estado civil, profissão, portadora da cédula de identidade nº xxxxxxxxxx, expedida por xxxxxxxxxx, inscrita no CPF sob o nº xxxxxxxxxx, titular do endereço eletrônico xxxxxxxxxx, residente em xxxxxxxxxx, vêm ajuizar a presente AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER pelo rito comum, em face de RÉU, pessoa jurídica de direito privado, com endereço em xxxxxxxxxx, pelos motivos de fato e de direito que passa a expor: Outra situação que recorrentemente gera dúvida naquele que inicia a sua atividade profissional (e não estamos nos referindo agora ao Exame da OAB, mas especificamente à prática profissional) é como qualificar a si mesmo quando figurar tanto como parte como advogado. É este o caso de autorrepresentação: AUTOR, brasileiro, estado civil, advogado com inscrição OAB nº xxxxxxxxxx, portador do RG de nº xxxxxxxxxx e inscrito no CPF sob o nº xxxxxxxxxx, endereço eletrônico xxxxxxxxxx, com endereço profissional em xxxxxxxxxx, em causa própria, vem propor AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO pelo rito comum, em face de RÉU [...] Por fim, segue um exemplo de como pode ser feita a qualificação na denúncia: O Ministério Público Estadual, por meio de seu representante que esta subscreve, no uso de suas atribuições legais, nos termos do art. 41, do CPP, com base no inquérito policial de número em epígrafe (anexo), vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, oferecer DENÚNCIA em face de DENUNCIADO, brasileiro, estado civil, profissão, nascido aos dia, mês e ano, natural de xxxxxxxxxx, RG nº xxxxxxxxxx, inscrito no CPF sob o nº xxxxxxxxxx, residente e domiciliado em xxxxxxxxxx, pela infração penal a seguir descrita: Dos fatos Esta será a primeira grande parte textual da petição inicial. Diferente do Endereçamento e da Qualificação das partes, em que as informações registradas eram pontuais e de natureza descritiva predominante, aqui será desenvolvido um texto, normalmente com diversos parágrafos. Será necessário que o advogado observe com muito cuidado todas as orientações que passaremos a fim de garantir qualificação e eficiência na produção deste trecho da inicial. Vale observar que é comum os advogados experientes alertarem para a importância da parte denominada Dos fatos. Sem conhecer os fatos, nenhum juiz é capaz de julgar. Se existe uma parte de leitura indispensável na petição inicial, essa parte é exatamente a narrativa dos fatos relevantes da lide. Existe certa discussão sobre quem seja o destinatário das peças do processo. Certamente o juiz e as partes envolvidas, mas defendemos que o destinatário do processo é, na verdade, toda a sociedade. Dada a função pedagógica do processo, qualquer peça processual destina-se a toda a sociedade. É por isso que a linguagem das peças deve ser simples, clara, objetiva e concisa. A petição inicial – por sua vez – cumpre uma função muito específica: defender os interesses do autor, dando início ao processo; assim, a seleção dos fatos deverá atender a essa função. Entretanto, esse interesse não pode suplantar a veracidade dos fatos: pode-se omitir um fato, mas jamais distorcê-lo. Caso a narrativa desvirtue os fatos, o autor poderá ser punido por litigância de má-fé. Deve, portanto, o advogado narrar os fatos em uma perspectiva que induza o juiz a assumir a versão do autor como a mais verossímil. Ciente dos receptores a que se destina o texto e do seu objetivo, cabe àquele que o produz – o advogado constituído ou o defensor público – selecionar os fatos que justificarão o pedido. Ora, antes de iniciar a narrativa, é fundamental que se tenha claro o pedido que se formulará ao término da inicial. Isso porque a narrativa dos fatos contém as causas de pedir da parte autora da ação. São os fatos que expressarão ao juiz se, de fato, o autor é detentor do direito subjetivo que ele considera possuir. Caso da narrativa dos fatos não se extraia a razão de pedir (fato gerador), a inicial será avaliada como inepta. E como selecionar os fatos? Como identificar os que sustentarão o pedido? Como determinar aqueles que são juridicamente relevantes? Sem o conhecimento das fontes do direito e de uma análise ponderada do caso concreto não se chega a essa desejada seleção. Deve-se, então, analisar os fatos e selecioná-los com o foco jurídico, com a consciência do que é possível pedir, segundo o ordenamento jurídico, e quais sustentam o pedido. Após os selecionar, busca-se a melhor forma de expressá-los, a fim de garantir o sucesso da ação. Leiamos uma possibilidade de escritura da narrativa dos fatos da inicial. Em seguida, faremos uma análise de sua composição. A autora iniciou relação íntima com o réu, em 2000, por este demonstrar extremo interesse por sua pessoa e por insistir na relação. Aos poucos, foi-se envolvendo nas artimanhas engendradas pelo réu, que, cada vez mais, se apoderava da sua confiança. Durante os dezessete anos em que permaneceram juntos, o réu a iludiu com juras de amor e promessa de casamento. Por essa razão, compraram um terreno e construíram, com o dinheiro de ambos e dos pais da autora, uma casa, destinada a ser o lar do casale dos filhos que teriam. Assim, após quatro anos de namoro, ficaram noivos e deram entrada nos papéis de casamento religioso. Estava a autora vivendo o sonho dourado de toda mulher: casar, ter filhos, atingir o seu bem-estar social, financeiro; enfim, a realização plena. Entretanto, o réu adiava sempre o casamento. Infelizmente, no presente momento, com mais de quarenta anos, o réu fez naufragar todas as suas expectativas: deixou cair a máscara com a qual enganou a autora por todos os longos anos em que ela se entregou aos seus apelos. Disselhe, apenas, que só nutria por ela um “vício carnal”, uma vez que nenhum homem resistiria ao seu corpo bem feito. Afirmou, ainda, que não havia sido o primeiro homem em sua vida. De forma dolosa, difamou o nome da autora e de sua família. E mais: suportou a dor de não mais poder ser mãe biológica. Não lhe resta mais nada a não ser cobrar-lhe judicialmente 50% do valor da casa que construíram juntos e dos aluguéis até então recebidos, além de indenização por danos morais referentes à imensa frustração e sofrimento que seu ex-namorado lhe impingiu. Observe-se que o advogado assume a responsabilidade pela veracidade dos fatos e narra a versão da sua cliente como se ela própria estivesse contando sua história. A seleção das palavras conduz à adoção de um sentimento de compaixão pela autora, sendo concebida como vítima de um vilão. Como exemplo, podem-se destacar as palavras e expressões: “extremo interesse”, “artimanhas”, “iludir”, “juras de amor”, “sonho dourado”, “realização plena”, “infelizmente”, “naufragar”, “difamar”, “imensa frustração” etc. A voz do réu só está exposta para referendar essa imagem que se quer transmitir dele. Como o tempo de duração da relação entre a autora e o réu é relevante para mensurar o dano sofrido por ela com o rompimento da relação, a narrativa seleciona o início da relação como primeira informação do texto. Ainda no primeiro parágrafo, expressa como a relação se fortaleceu com planos para o futuro e com a aquisição de um bem em comum. Em seguida, no segundo parágrafo, revela-se a intenção de oficializar a relação, expõe toda a entrega da autora a essa relação e os projetos de constituir uma família com filhos. Mas tais projetos são contrariados pelos adiamentos constantes do réu em efetivar a união. No terceiro parágrafo, instala-se o conflito, já vislumbrado pelo advérbio de modo “infelizmente” na abertura do parágrafo. Para expressar o conflito, o advogado fez uso de uma figura retórica: “o réu deixou cair a máscara”. Torna dramático o término da relação, e mais: representa o réu como um homem sem caráter, aproveitador, insensível, uma vez que atribui a ele a informação de que estava com a autora por um “vício carnal”. Ademais, na concepção da autora, sua imagem e a imagem de sua família foram difamadas por ele ter afirmado não ter sido o primeiro homem de sua vida. No último parágrafo do texto, registra-se a pretensão de direito da autora em face dos fatos narrados. Enfim, a narrativa dos fatos da petição inicial é tendenciosa; logo, valorada a favor do(a) autor(a). A seleção das informações e a forma como serão narradas dependerão do objetivo a que se destina a petição, isto é, do pedido. Lembre-se de que, embora seja permitido omitir informações que possam prejudicar o(a) autor(a), jamais se deve mentir, por se correr o risco de se interpretar tal atitude como litigância de má-fé. Observe o que diz o art. 80, II, do CPC: “considera-se litigante de má-fé aquele que alterar a verdade dos fatos”. Do direito Esta será a parte argumentativa da petição inicial. Trataremos com maior profundidade este item quando desenvolvermos o Capítulo 6. Vale reconhecer que esta será a parte da peça em que o profissional do Direito relacionará os fatos relevantes, trazidos na narrativa anterior, com as fontes do direito, ou seja, haverá a compreensão dos fatos à luz da norma, em verdadeiro exercício de valoração. Serão muito bem-vindas fontes como princípios, legislação, doutrina, analogia, jurisprudência, entre outras, para compreender o limite dos direitos alegados pelas partes. Como a verdade como valor filosófico absoluto não existe e a subjetividade é inerente ao próprio direito, adiantamos que cada parte (autor e réu) defenderá a tese que melhor se ajusta aos seus interesses. Este texto argumentativo será, muito provavelmente, a parte mais extensa da petição inicial, especialmente em a) b) c) d) e) f) g) virtude da complexidade que representa defender uma tese no direito. Como já dissemos, este capítulo visa, apenas, mostrar a macroestrutura da petição inicial. Voltaremos adiante com mais detalhes ensinando passo a passo como produzir a parte “Do direito”. Do pedido Este é o momento da peça em que o representante da parte autora indica com clareza e objetividade o que deseja da prestação jurisdicional, isto é, listam-se os pedidos, indicando, com clareza, ao magistrado quais as providências que dele se espera após apreciar a lide. Em geral, fazemos uso de uma frase-padrão de introdução e, em seguida, os pedidos são listados em itens. Observe sempre a necessidade de que cada item tenha coesão plena com a frase introdutória, mantendo-se verdadeiro paralelismo entre todos esses itens. A título didático, alguns exemplos são apresentados. Exemplo de como fazer o pedido em ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais: Pelas razões de fato e direito já apresentadas, vem requerer a V. Ex.ª: o deferimento dos benefícios da justiça gratuita, nos termos do art. 98 e seguintes do CPC; a citação das empresas rés pelo correio, a fim de que, querendo, respondam à presente demanda no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de revelia; a inversão do ônus da prova, em favor da autora, com fulcro no inciso VIII do art. 6º da Lei nº 8.078/90; a condenação das rés ao pagamento de indenização por danos morais, nos termos da fundamentação supra, devidamente corrigida e acrescida de 1% (um por cento) ao mês de juros de mora a contar da citação, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), com fundamento no art. 6º, VI, da Lei nº 8.078/90; a condenação das rés à troca do aparelho por outro idêntico que esteja funcionando OU a devolução do valor do aparelho (R$ 900,00 – novecentos reais), corrigido desde o momento da compra (fevereiro de 2018) e acrescido de juros de 1% (um por cento) ao mês, com fundamento no art. 18, § 1º, da Lei nº 8.078/90; a condenação das rés ao pagamento dos honorários advocatícios, estes fixados em 20% do valor da condenação, em atenção aos preceitos do art. 85, §§ 1º e 2º, do CPC; a total procedência dos pedidos. Das provas Quando se peticiona, é necessário indicar, nem que seja genericamente, as provas que se pretende utilizar. Este item da petição inicial pode até mesmo ter uma redação-padrão, sempre observando com cuidado a desnecessidade de decorar fórmulas prontas. Nossa sugestão é que se adote a seguinte redação: Protesta provar o alegado por todos os meios de prova admitidos em direito, especialmente o depoimento pessoal do representante legal da demandada, que fica desde já requerido, sob pena de sofrer os efeitos da confissão; a juntada de novos documentos; a oitiva de testemunhas; e qualquer outro meio de prova que seja capaz de demonstrar a verdade dos fatos. Do valor da causa Item mais curto da petição inicial, normalmente contemplado em uma única linha, o valor da causa tem importância processual de grande monta. Segundo o art. 291 do CPC, “a toda causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediatamente aferível”. Assim, é indispensável a indicação de valor à causa, mesmo que calculado de forma estimativa. Esse valor atribuído à causa gera diversos reflexos sobre o processo, entre os quais: a) determinação de competência do juízo; b) definição do rito procedimental (comum e sumaríssimo); c) recolhimento das taxas judiciárias; d) fixação do valor para fins de aplicação de multas, no caso de deslealdade ou má-fé processual; e) fixação
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