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Metodologias de Alfabetização e Letramento SUMÁRIO 1. ORIGEM DO TERMO LETRAMENTO ..............................................................................................03 1.1. Alfabetização e Letramento: Caminhos e Descaminhos ............................................................... 05 1.2 Métodos de Alfabetização .............................................................................................................. 11 1.3 Construtivismo: sua influência no Processo de Alfabetização ....................................................... 16 2. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: REPENSANDO O ENSINO DA LÍNGUA ESCRITA E DA LINGUAGEM ORAL .....................................................................................................17 2.1 As Relações entre Linguagem Oral e Escrita ................................................................................. 17 2.2 Repensando o Ensino da Língua Escrita ........................................................................................ 20 3. DIDÁTICA DA ALFABETIZAÇÃO ......................................................................................................30 3.1 Alfabetizar Letrando: Uma Proposta de Aprendizagem da Língua Escrita .................................... 30 3.2 Distinção entre Alfabetização e Letramento .................................................................................... 31 3.3 Alfabetizar letrando.......................................................................................................................... 32 3.4 Alfabetização: Pensando nos Textos de Uso Diário e no incentivo a Leitura .................................34 4. PROPOSTAS DE ATIVIDADES ........................................................................................................38 4.1 Uso do Material Didático: Possibilidades e Limitações .................................................................. 38 4.2 O papel do professor alfabetizador ................................................................................................ 41 4.3 Sugestões de Atividades ................................................................................................................ 46 1. ORIGEM DO TERMO LETRAMENTO Como sabemos na Alfabetização: • Linguagem é objeto de estudo sistemático. • Focada nas relações grafema-fonema. • Domínio dos processos de codificação e decodificação. • É um processo finito. Dizemos que alguém é alfabetizado quando esta pessoa sabe ler e escrever palavras, frases e pequenos textos em determinado idioma. Quando falamos em letramento, estamos dizendo que essa pessoa sabe usar a linguagem escrita como ferramenta cultural em diferentes contextos sociais (trabalho, família, lazer). Vamos entender melhor! As transformações socioeconômicas, políticas, históricas e/ou culturais das últimas décadas provocaram o aparecimento de novos conceitos e/ou termos para designar estes fenômenos recém-surgidos e que ainda se encontram em processo de recepção e compreensão pela sociedade. Um desses termos/conceitos que surgiram nas últimas décadas é o “Letramento”. Desse modo, o uso do vocábulo “letramento” vem atender a uma nova realidade, pois, no Brasil, só a bem pouco tempo existe a preocupação com o desenvolvimento de habilidades para utilizar a leitura e a escrita nas práticas sociais e não somente com o saber ler e escrever mecanicamente. As práticas de leitura e escrita como socialmente construídas só começaram a ser pesquisadas a partir da década de 70. Até esse momento, o letramento era compreendido como “codificação e decodificação de símbolos organizados em qualquer sistema que representa, de forma permanente e precisa, a linguagem oral”. (MACEDO, 2005 p.32). Anterior aos anos 70, entendia-se a escrita como sendo autônoma independente do contexto. Apresentava-se desvinculada do oral, como um componente no desenvolvimento cognitivo do sujeito, e no social e econômico de uma sociedade. No início da década de 80, grandes estudos empíricos etnográficos foram realizados em vários países para analisar as práticas de letramento. 3 Afinal, o que é Letramento? Sob a ótica social, o letramento é um acontecimento cultural relativo às atividades que envolvem a língua escrita. O destaque incide nos usos, funções e propósitos da língua escrita no contexto social. De acordo com Kleiman: O letramento abrange o processo de desenvolvimento e o uso dos sistemas da escrita nas sociedades, ou seja, o desenvolvimento histórico da escrita, refletindo outras mudanças sociais e tecnológicas, como a alfabetização universal, a democratização do ensino, o acesso a fontes aparentemente ilimitadas de papel, o surgimento da internet. (KLEIMAN, 2005, p18). Nesse sentido, Marcuschi (2001) afirma que o letramento: é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, por isso é um conjunto de práticas, ou seja, ‘letramentos’ [...]. Distribui-se em graus de domínios que vão de um patamar mínimo a um máximo. Quanto à escolarização, define-a este autor como uma prática formal e institucional de ensino que visa a uma formação integral do indivíduo, sendo que a alfabetização é apenas uma das atribuições/atividades da escola. A escola tem projetos educacionais amplos, ao passo que a alfabetização é uma habilidade restrita. (MARCUSCHI, 2001, p. 21-22). Podemos concluir que distinguir as letras é somente um caminho a ser percorrido para o letramento, que é o uso social da leitura e da escrita. Para desenvolver cidadãos atuantes, é preciso “Letrar”, isso significa colocar a criança no mundo letrado, trabalhando com os diversos usos de escrita na sociedade. Essa inclusão começa muito antes da alfabetização, quando a criança começa a interagir socialmente com as práticas de letramento no seu mundo social. O letramento é cultural, muitas crianças antes de irem para a escola, já têm contato com o mundo letrado, com o conhecimento alcançado de maneira informal absorvido no cotidiano. Ao entendermos a importância do letramento, deixamos de exercitar o aprendizado automático e repetitivo. A família exerce grande influência neste processo, pois é através dela que as crianças se sentem motivadas a explorar este mundo letrado. 4 O QUE É LETRAMENTO? Letramento não é um gancho em que se pendura cada som enunciado, não é treinamento repetitivo de uma habilidade, nem um martelo quebrando blocos de gramática. Letramento é diversão é leitura à luz de vela ou lá fora, à luz do sol. São notícias sobre o presidente, o tempo, os artistas da TV e mesmo Mônica e Cebolinha nos jornais de domingo. É uma receita de biscoito, uma lista de compras, recados colados na geladeira, um bilhete de amor; telegrama de parabéns e cartas de velhos amigos. É viajar para países desconhecidos, sem deixar sua cama, é rir e chorar com personagens, heróis e grandes amigos. É um atlas do mundo, sinais de trânsito, caças ao tesouro, manuais, instruções, guias, e orientações em bulas de remédios, para que você não fique perdido. Letramento é, sobretudo, um mapa do coração do homem, um mapa de quem você é, e de tudo o que você pode ser. In: SOARES, Magda. LETRAMENTO um tema em três gêneros. 2. ed. 8. reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 1.1 Alfabetização e Letramento: Caminhos e Descaminhos. Para entendermos ainda mais sobre o mundo do Letramento e da alfabetização, escolhemos o texto da conceituada autora Magda Becker Soares (2004), acerca dos caminhos e descaminhos da Alfabetização e letramento. Um olhar histórico sobre a alfabetização escolar no Brasil revela uma trajetória de sucessivas mudanças conceituais e, consequentemente, metodológicas. Atualmente, parece que de novo estamos enfrentando um desses momentos de mudança – é o que prenuncia o questionamento a que vêm sendo submetidos os quadros conceituais e as práticas deles decorrentes, que prevaleceramna área da alfabetização nas últimas três décadas: pesquisas que vêm identificando problemas nos processos e resultados da alfabetização de crianças no contexto escolar, insatisfações e inseguranças entre alfabetizadores, perplexidade do poder público e da população diante da persistência do fracasso da escola em alfabetizar, evidenciada por avaliações nacionais e estaduais, 5 vêm provocando críticas e motivando propostas de reexame das teorias e práticas atuais de alfabetização. Um momento como este é, sem dúvida, desafiador, porque estimula a revisão dos caminhos já trilhados e a busca de novos caminhos, mas é também ameaçador, porque pode conduzir a uma rejeição simplista dos caminhos trilhados e à propostas de soluções que representem desvios para indesejáveis descaminhos. Este texto pretende discutir esses caminhos e descaminhos, de que se falará mais explicitamente no tópico final; a este tópico final se chegará por dois outros que o fundamentam e justificam: um primeiro que busca esclarecer e relacionar os conceitos de alfabetização e letramento, e um segundo que pretende encontrar, nas relações entre esses dois processos, explicações para os caminhos e descaminhos que vimos percorrendo, nas últimas décadas, na área da alfabetização. Alfabetização X Letramento Letramento é palavra e conceito recente, introduzidos na linguagem da educação e das ciências linguísticas há pouco mais de duas décadas; seu surgimento pode ser interpretado como decorrência da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do sistema alfabético e ortográfico, nível de aprendizagem da língua escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo de alfabetização. Esses comportamentos e práticas sociais de leitura e de escrita foram adquirindo visibilidade e importância à medida que a vida social e as atividades profissionais foram se tornando cada vez mais centradas e dependentes da língua escrita, revelando a insuficiência de apenas alfabetizar – no sentido tradicional – a criança ou o adulto. Em um primeiro momento, essa visibilidade se traduziu ou numa adjetivação da palavra alfabetização – alfabetização funcional tornou-se expressão bastante difundida – ou em tentativas de ampliação do significado de alfabetização, alfabetizar, por meio de afirmações como “alfabetização não é apenas aprender a ler e a escrever”, “alfabetizar é muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar”, e outras semelhantes. A insuficiência desses recursos para criar objetivos e procedimentos de ensino e de aprendizagem que efetivamente ampliassem o significado de alfabetização, alfabetizar, alfabetizado é que pode justificar o surgimento da palavra letramento, consequência da necessidade de destacar e claramente configurar, nomeando os comportamentos e práticas de uso do sistema de escrita, em situações sociais em que a leitura e/ou a escrita estejam envolvidas. 6 Entretanto, provavelmente devido ao fato de o conceito de letramento ter sua origem numa ampliação do conceito de alfabetização, esses dois processos têm sido frequentemente confundidos e até mesmo fundidos. Pode-se admitir que, no plano conceitual, talvez a distinção entre alfabetização e letramento não fosse necessária, bastando que se ressignificasse o conceito de alfabetização no plano pedagógico; porém, a distinção torna-se conveniente, embora seja também imperativamente conveniente que, ainda que distintos, os dois processos sejam reconhecidos como indissociáveis e interdependentes. Assim, por um lado, é necessário reconhecer que alfabetização – entendida como a aquisição do sistema convencional de escrita – distingue-se de letramento – entendido como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais: distinguem-se tanto em relação aos objetos de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos e linguísticos de aprendizagem e, portanto, também de ensino desses diferentes objetos – isso explica por que é conveniente a distinção entre os dois processos. Por outro lado, é necessário também reconhecer que, embora distintos, alfabetização e letramento são interdependentes e indissociáveis: a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita, e por meio dessas práticas, ou seja: em um contexto de letramento e por meio de atividades de letramento; este, por sua vez, só pode desenvolver-se na dependência da linguagem e por meio da aprendizagem do sistema de escrita. Distinção, mas indissociabilidade e interdependência – que consequências têm isso para a aprendizagem da língua escrita na escola? Aprendizagem da língua escrita: alfabetização e/ou letramento? Uma análise das mudanças conceituais e metodológicas ocorridas ao longo da história do ensino da língua escrita no início da escolarização revela que, até os anos 80, o objetivo maior era a alfabetização (tal como acima definida), isto é, enfatizava-se fundamentalmente a aprendizagem do sistema convencional da escrita. Em torno desse objetivo principal, métodos de alfabetização alternaram-se em um movimento pendular: ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qual a alfabetização deve partir das unidades menores da língua – dos fonemas, das sílabas – em direção às unidades maiores – à palavra, à frase, ao texto (método fônico, método silábico); ora a opção pelo princípio da análise, segundo o qual a alfabetização deve, ao contrário, partir das unidades maiores e portadoras de sentido – a palavra, a frase, o texto, em direção às unidades menores (método da palavração, método da sentenciação, método global). Em ambas as opções, porém, a meta sempre foi a aprendizagem do sistema alfabético e ortográfico da escrita; embora se possa identificar, na segunda opção, uma preocupação também com o sentido veiculado pelo código, seja no nível do texto 7 (método global), seja no nível da palavra ou da sentença (método da palavração, método da sentenciação), estes – textos, palavras, sentenças – são postos a serviço da aprendizagem do sistema de escrita: palavras são intencionalmente selecionadas para servir à sua decomposição em sílabas e fonemas, sentenças e textos são artificialmente construídos, com rígido controle léxico e morfossintático, para servir à sua decomposição em palavras, sílabas, fonemas. Assim, pode-se dizer que até os anos 80, a alfabetização escolar no Brasil caracterizou-se por uma alternância entre métodos sintéticos e métodos analíticos, sempre, porém, com o mesmo pressuposto – o de que a criança, para aprender o sistema de escrita, dependeria de estímulos externos cuidadosamente selecionados ou artificialmente construídos, e também sempre com o mesmo objetivo – o domínio desse sistema, considerado condição e pré-requisito para que a criança desenvolvesse habilidades de uso da leitura e da escrita, isto é: primeiro, aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa, considerados intransitivos, para só depois de vencida essa etapa atribuir complementos a esses verbos: ler textos, livros, escrever estórias, cartas etc. Nos anos 80, a perspectiva psicogenética da aprendizagem da língua escrita, divulgada entre nós sobretudo pela obra e pela atuação formativa de Emilia Ferreiro sob a denominação de “construtivismo”, trouxe uma significativa mudança de pressupostos e objetivos na área da alfabetização, porque alterou fundamentalmente a concepção do processo de aprendizagem e apagou a distinção entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas efetivas de leitura e de escrita. Essa mudança paradigmática permitiu identificar e explicar o processo através do qual a criança constrói o conceito de língua escrita como um sistema de representação dos sons da fala por sinais gráficos, isto é, o processo através do qual a criança se torna alfabética, e, por outro lado, e como consequência, sugeriu ascondições em que mais adequadamente esse processo se desenvolve, isto é, revelou o papel fundamental que tem, para o processo de conceitualização da língua escrita, uma interação intensa e diversificada da criança com práticas e materiais reais de leitura e de escrita. Entretanto, o foco no processo de conceitualização da língua escrita pela criança e a ênfase na importância de sua interação com práticas de leitura e de escrita como meio para provocar e motivar esse processo tem subestimado, na prática escolar da aprendizagem inicial da língua escrita, o ensino sistemático das relações entre a fala e a escrita, de que se ocupa a alfabetização, tal como anteriormente definida. Como consequência de o construtivismo ter evidenciado processos espontâneos de compreensão da escrita pela criança, ter condenado os métodos que enfatizavam o ensino direto e explícito do sistema de escrita e, sendo fundamentalmente uma teoria psicológica, e não pedagógica, não ter proposto uma metodologia de ensino, os professores foram levados a supor que, a despeito de sua natureza convencional 8 e frequentemente arbitrária, as relações entre a fala e a escrita seriam construídas pela criança de forma incidental e assistemática, como decorrência natural de sua interação com numerosas e variadas práticas de leitura e de escrita, ou seja, através de atividades de letramento, prevalecendo, pois, estas sobre as atividades de alfabetização. É, sobretudo essa ausência de ensino direto, explícito e sistemático da transferência da cadeia sonora da fala para a forma gráfica da escrita, que tem motivado as críticas que atualmente vêm sendo feitas ao construtivismo, e é ela que explica por que vêm surgindo, surpreendentemente, propostas de retorno a um método fônico como solução para os problemas que vimos enfrentando na aprendizagem inicial da língua escrita pelas crianças. No entanto, não é retornando a um passado já superado e negando avanços teóricos incontestáveis que esses problemas serão esclarecidos e resolvidos. Por outro lado, ignorar ou recusar a crítica aos atuais pressupostos teóricos e a insuficiência das práticas que deles têm decorrido resultará certamente em mantê- los inalterados e persistentes. Ou seja: o momento é de procurar caminhos e recusar descaminhos. A aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de pesquisa e estudo de várias ciências nas últimas décadas, cada uma delas privilegiando uma das facetas dessa aprendizagem; para citar as mais salientes: a faceta fônica, que envolve o desenvolvimento da consciência fonológica, imprescindível para que a criança tome consciência da fala como um sistema de sons e compreenda o sistema de escrita como um sistema de representação desses sons, e a aprendizagem das relações fonema- grafema e demais convenções de transferência da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o reconhecimento holístico de palavras e sentenças; a faceta da leitura compreensiva, que supõe ampliação de vocabulário e desenvolvimento de habilidades como interpretação, avaliação, inferência, entre outras; a faceta da identificação e uso adequado das diferentes funções da escrita, dos diferentes portadores de texto, dos diferentes tipos e gêneros de texto... Fundamenta cada uma dessas facetas, teorias de aprendizagem, princípios fonéticos e fonológicos, linguísticos, psicolinguísticos, sociolinguísticos, teorias da leitura, teorias da produção textual, teorias do texto e do discurso... Consequentemente, cada uma dessas facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua natureza; algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e explícito, como é o caso da faceta para a qual se volta a alfabetização, outras por ensino muitas vezes incidental e indireto, porque dependente das possibilidades e motivações das crianças, bem como das circunstâncias e contexto em que se realize a aprendizagem, como é caso das facetas que se caracterizam como de letramento. 9 A tendência, porém, tem sido privilegiar, na aprendizagem inicial da língua escrita, apenas uma de suas várias facetas e, consequentemente, apenas uma metodologia: assim fazem os métodos hoje considerados como “tradicionais” que, como já foi dito, voltam-se predominantemente para a faceta fônica, isto é, para o ensino e a aprendizagem do sistema de escrita; por outro lado, assim também tem feito o chamado “construtivismo”, que se volta predominantemente para as facetas referentes ao letramento, privilegiando o envolvimento da criança com a escrita em suas diferentes funções, seus diferentes portadores, com os muitos tipos e gêneros de texto. No entanto, os conhecimentos que atualmente esclarecem tanto os processos de aprendizagem quanto os objetos da aprendizagem da língua escrita, e as relações entre aqueles e estes, evidenciam que privilegiar uma ou algumas facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho no ensino e aprendizagem da língua escrita, mesmo em sua etapa inicial – talvez por isso, temos sempre fracassado nesse ensino e aprendizagem; o caminho para esse ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimentos e metodologias fundamentados em diferentes ciências, e sua tradução em uma prática docente que integre as várias facetas, isto é, que articule a aquisição do sistema de escrita, que é favorecida por ensino direto, explícito e ordenado – aqui compreendido como sendo o processo de alfabetização – com o desenvolvimento de habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais de leitura e de escrita – aqui compreendido como sendo o processo de letramento. A utilização, acima, dos verbos integrar, articular, retoma a afirmação anteriormente feita de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita, indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se, isto é, constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em situações de letramento, no contexto de e por meio da interação com material escrito real, e não artificialmente construído, e de sua participação em práticas sociais de leitura e de escrita; por outro lado, a criança desenvolve habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais que a envolvem no contexto do, por meio do, e em dependência do processo de aquisição do sistema alfabético e ortográfico da escrita. Este alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e articulação das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua escrita, é, sem dúvida, o caminho para a superação dos problemas que vimos enfrentando nesta etapa da escolarização; descaminhos serão tentativas de voltar a privilegiar esta ou aquela faceta, como se fez no passado, como se faz hoje, sempre resultando em fracasso, este reiterado fracasso da escola brasileira em dar às crianças acesso efetivo e competente ao mundo da escrita. 10 1.2 Métodos de Alfabetização Sabemos que comunicar não só pela fala, mas pela escrita, é fundamental para a vida social, política e mesmo afetiva. Daí a importância da alfabetização, e para tanto iremos debater os diferentes métodos utilizados no processo de alfabetização. A discussão sobre métodos de alfabetização faz parte do campo educacional desde que a escola se tornou uma escola popular ou escola de massa. Assim, a história nos permite situar a discussão dos métodos no período em que são formados os sistemas escolares ocidentais e, sobretudo, quando a escola passa a ter que criar estratégias para ensinar a todos, num mesmo espaço e tempo. Discutir metodologias, então, significa discutir a própria escolarização e a história deste campo de saber. No entanto, não só de metodologias da alfabetização vive a escola e várias metodologias cruzam seu interior: tanto aquelas referidas à organizaçãoescolar como aquelas de base conceitual, seja esta filosófica, psicológica, sociológica ou antropológica, ou todas elas juntas. Método Fônico Este método nasceu no séc. XVI, na Alemanha. Seu desenvolvimento se deu a partir dos conhecimentos desenvolvidos pelos linguístas e psicolinguistas. O Método Fônico é todo aquele que ensina, de forma explícita, a relação entre grafemas e fonemas. O Método Fônico, também considerado sintético ou fonético, é baseado no ensino do código alfabético, ou seja: O alfabeto é um código. Esse código tem um sistema de regras que serve para traduzir sons falados (fonemas) em símbolos impressos (letras ou grafemas). No sentido mais básico, alfabetizar é compreender as regras usadas no código – um processo necessário para ajudar o aluno a desvendar o segredo do código alfabético – ou decodificar – é preciso compreender as regras que permitem estabelecer determinadas relações entre sons e letras. (OLIVEIRA, 2004, p.115). Além de basear-se na relação grafema e fonema, os textos utilizados são específicos para a alfabetização. A associação entre símbolo (letra) e som (fala) possibilita que a criança seja capaz de decifrar milhares de palavras além das que já fazem parte de seu vocabulário. Na instrução fônica, primeiro se ensina as formas e os sons das vogais, depois as consoantes, estabelecendo-se aos poucos as mais complexas. Cada letra é um fonema que, ao se juntarem, formam sílabas (das mais simples às mais complexas) e palavras. 11 Para Oliveira (2004), o aluno precisa saber “o que está fazendo” e “porque está fazendo”, para que tenha um bom ensino de fônica. O termo utilizado por ele, “metafônico”, é na verdade, a combinação entre o princípio fônico e o conceito de metacognição. Metacognição são estratégias para monitorar o próprio processo de aprendizagem, neste caso, desde o início, o aluno deve saber a maneira correta de pegar no lápis, postura, verbalizar a direção e o sentido dos movimentos das formas das letras, perguntas de antecipação ao texto, reconhecendo palavras conhecidas, descobrindo e corrigindo possíveis erros. A alfabetização, na verdade, ensina a decifrar o código alfabético, pois quem o conhece é capaz de escrever qualquer palavra. Além disso, o aluno deve aprender a decodificar e a codificar fonemas e grafemas, desta forma o aluno é capaz também de ler qualquer palavra. No que se refere à leitura, Oliveira (2004) descreve que o cérebro registra palavras tanto pela via visual (lexical) como pela fonológica (som), porém a primeira depende muito mais da segunda; portanto, o contexto ajuda a compreensão do sentido da leitura, mas a identificação das palavras é muito mais lenta. Reconhecer palavras de forma precisa e fluente requer o uso de conhecimento de fônica. A capacidade de ler palavras, por sua vez, explica uma parcela substancial do desempenho posterior em leitura. Os bons leitores são aqueles que não dependem principalmente do contexto para identificar novas palavras. Quando estes bons leitores encontram uma palavra desconhecida, eles decodificam a palavra, dizem o nome e atribuem o sentido a palavra identificada. O contexto só ajuda a encontrar o sentido da palavra depois que a palavra foi identificada pelos outros processos. De acordo com Capovilla & Capovilla (2004), o texto deve ser introduzido gradualmente, conforme a criança for adquirindo habilidade de decodificação e tiver recebido instruções sistemáticas de consciência fonológica e da correspondência grafema e fonema. Consciência Fonológica é, segundo Oliveira (2004), a capacidade de identificar sons (ex: alto, baixo, grave, suave, etc). Já a Consciência Fonêmica é identificar que as palavras têm sons. Entre as mais conhecidas técnicas para ensinar a decodificar (identificar a correspondência entre sons e letras), Oliveira (2004) destaca: Fônica analítica (analisar as relações entre letras e sons, utilizando palavras conhecidas pelos alunos, ensinando os sons isoladamente); Fônica Analógica (para identificar novas palavras, o aluno aprende a usar partes das famílias de palavras com partes que sejam semelhantes às palavras que já conhecem); Fônica através da escrita (decompor as palavras em fonemas e escrever as letras que representam os fonemas); Fônica contextualizada (a partir da leitura de textos, o aluno aprende a relação específica entre letra e som, porém não permite o ensino sistemático); Fônica pela silabação (identificar o som da consoante com a vogal até formar a palavra) e a Fônica Sintética 12 (aprendem a converter tanto as letras como suas combinações em sons e misturando- os formam palavras). Bem, no ensino das relações entre grafema e fonema, Oliveira (2004) afirma que os Métodos Fônicos Sintético são mais eficazes e que além disso devem ser sistemáticos, ou seja, o aluno não precisa aprender todas as relações entre as vogais e consoantes de uma vez, mas precisa aprender uma quantidade razoável destas relações. Ao se referir a sistemático, se refere a um ensino intencional, no qual o aluno não aprende a adivinhar o sentido das palavras, mas a decodificar e codificar. É importante observar a criança nos aspectos familiar e comunitário, para que se possa, segundo Oliveira (2004), saber o tipo de atividades lúdicas e de interação que poderão ser utilizadas em sala de aula. A família e a pré-escola podem contribuir para o processo de alfabetização, proporcionando a familiarização da criança com livros e textos próximos do cotidiano familiar; porém, ao familiarizar a criança, deve-se considerar o lúdico. Métodos Sintéticos O Método Sintético foi utilizado até meados do século XVIII. Nessa metodologia, partia-se do mais simples (letras) ao mais complexo (textos). São variações do Método Sintético: Método Alfabético e o Silábico. O Método Alfabético foi inventado pelos gregos juntamente com o alfabeto. Nele, o aluno aprende o nome das letras e vai juntando para formar palavras. Apresenta, portanto, uma compreensão imperfeita do princípio alfabético. O Método Silábico, proposto a partir do século XVIII, tinha como base a sílaba pronta, que se combinam para formar palavras. Inicia-se com a apresentação das vogais (forma e nome), combinações (ditongo e tritongo), combinação das vogais e consoantes e palavras formadas por estas combinações. No entanto o que marca o Método Silábico é a apresentação progressiva das sílabas e de suas famílias silábicas. Este é, portanto, o método apresentado nas cartilhas. 13 Os principais períodos da história do ensino da leitura e da escrita mostram as diferentes formas de tratamento que a sílaba tem recebido na alfabetização de crianças, jovens e adultos, desde séculos passados, de tal forma que podemos dizer que ela sempre esteve presente e que, mesmo tendo a metodologia se apoiado em elementos sem significação, de uma forma ou de outra, desde os trabalhadores braçais à elite intelectual do Brasil, todos os que sabem ler e escrever, hoje, aprenderam pelos métodos tradicionais que envolvem a silabação. O surgimento do Método Silábico se deu para resolver “problemas do Método Fônico” e não se confunde nem com este, nem com o Método da Palavração (apresenta primeiro a palavras e depois se extrai dela a sílaba). No final do século XIX, surge a reação contra os postulados deste método, então passando a ser considerado por muitos educadores como mecânico, artificial e não funcional, e a ser acusado de não levar em conta a psicologia da criança. (CORRÊA, 2003, p. 31). O fato é que o Método Silábico foi muito influente, e ainda o é, na alfabetização brasileira. Métodos Globais Os Métodos Globais começaram a ser utilizados desde o século XVII, diante das insatisfações com o Método Alfabético. Com o advento da Escola Nova (séc. XIX) em que a ênfase da Educação passou a ser o aluno como agente ativo de seu conhecimento, esta corrente teórica passou a ser difundida por pensadores como Rosseau, que enfatizava a espontaneidade do aluno e JonhDewey, que defendia a valorização da capacidade de pensar do aluno. São variações dos Métodos Globais: Métodos Ideovisuais, Construtivismo e o Sociointeracionismo – ainda que estes não possam ser considerados de fato um método, mas sim linhas teóricas. O Construtivismo é uma linha teórica que enfatiza a participação ativa do aluno no processo de construção do conhecimento. Este termo designa também a concepção de que a inteligência se desenvolve através das ações entre o indivíduo e o meio. O papel do professor é de investigar os conhecimentos prévios dos alunos, seus interesses e procurar apresentar diversos elementos para que o aluno construa seus conhecimentos. O professor interfere menos em sala e respeita as fases do aluno. Uma sala de aula construtivista deve conter diferentes objetos para serem manuseados pelos alunos, como: blocos lógicos, figuras e textos de diversos gêneros. Jean Piaget (1896-1980), com seus estudos da epistemologia genética, trouxe importantes contribuições. Em seus estudos, Piaget procurou demonstrar que a 14 criança se desenvolve conforme as faixas etárias e chama de “estágios” estas fases do desenvolvimento cognitivo. São elas: sensório motor, operacional concreto (pré- operatório e operações concretas) e operacional formal. O teórico Lev Vygotsky (1896-1934) também teve importante contribuição para o Construtivismo. Para ele, o conhecimento se dá através da interação social. Sendo assim, Vygotsky dá ênfase ao aspecto interacionista na aprendizagem, em que a criança aprende interagindo socialmente. Nesta linha teórica, o papel do professor é o de mediador do conhecimento e, portanto, mais ativo do que na concepção piagetiana. O conhecimento se constrói no relacionamento entre o professor e o aluno. Em sala, são realizadas tarefas desafiadoras e em grupo que consideram o erro como parte do aprendizado do aluno. O conceito de ZDP (Zona de Desenvolvimento Próximal), derivados das concepções pedagógicas de Vygotsky, refere-se à diferença entre o que a criança pode fazer sozinha e o que precisa de ajuda. Ao adulto, cabe descobrir o “nível” de ajuda que a criança precisa e lhe fornecer o apoio necessário para que ela aprenda. O aprendizado é mais do que a aquisição de capacidade para pensar; é a aquisição de muitas capacidades especializadas para pensar sobre várias coisas. O aprendizado não altera nossa capacidade global de focalizar a atenção; ao invés disso, no entanto, desenvolve várias capacidades de focalizar a atenção sobre várias coisas. (VIGOTSKY, 2003, p.108). No Brasil, a tendência construtivista está explícita nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), e no discurso de muitos que defendem esta linha teórica como eficaz no processo de alfabetização. Na verdade, o segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural. Uma vez que ela é atingida, a criança passa a dominar o princípio da linguagem escrita, e resta então, simplesmente, aperfeiçoar esse método. (VIGOTSKY, 2003, p.153). De acordo com Moll (2006), Emília Ferreiro e Ana Teberosky, seguidoras das ideias de Piaget, realizaram investigações com crianças latina americana referente ao processo da aquisição da leitura e da escrita. Na postura construtivista, a língua escrita é vista como um conhecimento apropriado pelo sujeito à medida que se torna objeto de sua ação e reflexão. O contexto social é mediador nessa aprendizagem pois a língua escrita é produção cultural coletiva. Ela não acontece espontaneamente. Essa mediação, no contexto, da sala de aula, é propriamente a intervenção docente problematizadora e desafiadora do processo. (MOLL, 2006, p.101). 15 Segundo Oliveira (2004), para os construtivistas, ler é muito mais do que decodificar, exige contato com muitos livros, acesso à literatura, textos jornalísticos e científicos, uso de atividades dinâmicas. Os construtivistas afirmam que o contexto ajuda os leitores a “construir sentido”, simplesmente a partir de uma pequena amostra das palavras de um texto. Por isso desenfatizam a importância da habilidade de consciência fonêmica, fônica e decodificação, e acentuam o papel do contexto como propiciador e facilitador da aprendizagem da leitura. Oliveira (2004), explica que, no Construtivismo, ler é algo natural, como falar, e deve ser resultado do contato das crianças com adultos e textos de diferentes gêneros. O código alfabético é aprendido com hipóteses sobre as relações entre letra e som. Além de considerar que “textos autênticos” devam constituir o material didático. 1.3 Construtivismo: Sua Influência no Processo de Alfabetização O grande desafio da alfabetização a partir da década de 80 não é mais as mudanças, técnicas ou métodos. Surge uma nova perspectiva na concepção de alfabetização, concepção esta que se dará a partir dos processos utilizados pelo aprendiz. O construtivismo surge como uma teoria sobre a origem do conhecimento, que busca caracterizar os estágios mais recentes, baseados nos estudos de Piaget, que considera o conhecimento como um processo de organização de dados. Desta forma, ao direcionar o construtivismo para a questão da alfabetização, pode-se considerar que o mesmo oferece uma contribuição substancial na busca de compreensão da língua escrita. Cada criança desenvolve sua própria maneira de aprender a ler e escrever, buscando construir seu conhecimento através de elaboração de hipóteses, e somente o produto desse conflito cognitivo permite a ela avançar frente ao sistema de escrita. Este processo inicia-se muito antes que a escola tradicional imagina, por se tratar de um sujeito disposto a adquirir conhecimento e que interage com o mundo físico, e não uma técnica particular, como é ensinado nos métodos. É a partir deste referencial que se muda a concepção do ato de alfabetizar ao demonstrar que a criança constrói o processo da lecto-escrita, conhecimento que a criança tem sobre a leitura e a escrita, seguindo o caminho próprio e determinado. Assim, pode-se dizer que o construtivismo, aplica a compreensão do percurso 16 vivenciado pela criança, na tentativa de compreender como a escrita funciona. Mais do que pensar em métodos, é preciso compreender os processos de aprendizagem que a criança vivencia ao tentar reconstruir a representação do sistema alfabético. Se entendermos a aquisição da escrita como produto de uma construção ativa, ela supõe etapas de estruturação de conhecimento. Ferreiro, (1992, p.26) afirma que a criança como um sujeito ativo “é aquele que compara, ordena, categoriza, comprova, reformula, elabora hipótese, reorganiza uma ação interiorizada ou efetiva.” 2. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: REPENSANDO O ENSINO DA LÍNGUA ESCRITA E DA LINGUAGEM ORAL 2.1 As Relações entre Linguagem Oral e Escrita Soares (1985, p. 20) afirma que, de fato, a aprendizagem da linguagem oral ou escrita é um processo permanente, porém, que é preciso diferenciar um processo de “aquisição da língua” (oral e escrita) de um processo de “desenvolvimento” da língua. Cox e Assis-Peterson (2001, p. 51), em seu trabalho “Cenas de sala de aula” afirma que “a distância que separa a escrita da oralidade situa-se entre o ouvido e o olho, o tempo e o espaço, a evanescência e o resíduo, o corporal e o não corporal, a performatividade e a representação, e dependência e a independência do contexto”. Neste sentido, a criança relaciona-se com a linguagem oral de modo diferente da forma como se relaciona com a escrita. Quem fala em alfabetização e letramento fala igualmente das relações entre a linguagem oral e escrita. Na perspectiva do processo de aquisição da língua, é preciso entender a linguagem oral como um “fenômeno sonoro”, que se “desenrola no tempo” e no espaço “sem deixar vestígios” ou marcas, um fenômeno que é totalizante e auditivo. Cox e Assis-Peterson (2001) afirmam que a audição é um processo agregativo, de síntese, que nos permite ouvir sons provenientes de vários lugares ao mesmotempo. A criança, em seu desenvolvimento, vai construindo sua fala a partir dos sons que a envolve. Ao chegar à escola, já possui o domínio da língua oral, é um perfeito falante, mas não tem ainda o domínio da linguagem escrita. Esta, por sua vez, está ligada ao “fenômeno visual”, que é analítico e desagregador; vemos só o que está a nossa frente, só olhamos em uma direção de cada vez. Neste contexto, as palavras seriam fenômenos visuais, signos que se inscrevem no espaço e deixam “marcas” que, ao contrário do som, não se apagam. 17 Diferenciar a linguagem oral da escrita implica saber as maneiras pelas quais uma e outra é transmitida e adquirida pelo indivíduo. A fala é um saber universalmente partilhado pelos homens. Todos, em condições biológicas normais, aprendem a falar. “O aprendizado da fala é holístico. Não é necessário ter consciência das unidades que compõem um enunciado para produzi-lo”, afirmam Cox e Assis-Peterson (2001, p. 56). Acrescenta a autora que, no caso da linguagem escrita, o saber já “não é universalmente partilhado”, pois nem todos os povos possuem uma, ou a mesma linguagem escrita. Deste modo, o aprendizado da fala e da escrita ocorre de modo diferente. “Só o convívio com pessoas alfabetizadas não garante o domínio da escrita como o convívio com falantes pode garantir o domínio da fala. O aprendizado da escrita é um processo analítico” (COX; ASSIS-PETERSON, 2001, p. 56). Aqui a criança precisa operar com unidades linguísticas para poder escrever, precisa refletir sobre a língua, pensar sobre ela. Então, o processo de aquisição da linguagem escrita demanda um domínio da estrutura mecânica, ou seja, adquirir a habilidade de codificar a língua oral em língua escrita e decodificar a língua escrita em língua oral. Porém, se deseja que o domínio do código escrito auxilie a criança na sua inserção no meio cultural que está em constante mudança, é preciso entender que a aprendizagem da língua escrita é mais que aprender um código de transcrição; é construir um sistema de representações. Neste sentido, como já mencionado anteriormente, o aprendizado da escrita demanda, por parte da criança, uma reflexão sobre todos os aspectos que envolvem o processo desde o conhecimento das letras e a consciência das sílabas até a compreensão dos significados das marcas ou sinais que segmentam as orações. A criança, quando inicia o processo de alfabetização, já domina a linguagem oral como comunicação; esta é uma competência adquirida de forma natural no processo de socialização no qual se encontra inserida desde que nasce. Porém, o aprendizado da “escrita (e da leitura) pressupõe por parte da criança, uma reflexão dessa linguagem natural (oral), desenvolvendo assim um novo conhecimento, o conhecimento metalinguístico ou, consciência metalinguística” (TOLCHINSKY, 1995, p. 38). A consciência metalinguística, conforme essa autora, envolve três tipos de habilidades consideradas úteis à compreensão e aprendizado da escrita: segmentar a fala em suas diversas unidades (palavras, sílabas, fonemas); separar as palavras de seus referentes (ou seja, estabelecer diferenças entre significados e significantes); perceber semelhanças sonoras entre palavras. 18 Na perspectiva do processo de desenvolvimento da língua, Soares (1985) entende ler e escrever como apreensão e compreensão de significado como uma forma de compreender o mundo, resolver questões práticas e ter acesso à comunicação. Lê-se um objeto, um texto, um desenho, uma palavra, lê-se o que está próximo e distante, lê-se para se comunicar, para adquirir e trocar conhecimentos. A leitura, neste sentido, é uma ferramenta que permite o acesso da criança (e do adulto) às diferentes maneiras de interpretar a realidade. O desenvolvimento da língua implica, entre outras coisas, em reconhecer a função social da leitura e escrita, e fazer uso delas. A leitura e escrita, entendidas nesta perspectiva, são atividades conceituais que envolvem habilidades cognitivas como as de análise, síntese, abstração, elementos básicos para o pensamento e reflexão. O que me parece fundamental é que o professor alfabetizador, ao desenvolver um trabalho de ensino da escrita na educação infantil nesta visão, tenha conhecimento e domínio do processo de aquisição e desenvolvimento da língua pelas crianças, podendo desta forma, organizar seu trabalho de modo a proporcionar-lhes melhor aprendizado. Outros autores, diferentemente, concebem a escrita como sendo prolongamento de linguagem oral. Essa concepção supõe que a linguagem escrita constitui a fala por escrito, e os sistemas escritos teriam sido inventados para representar a fala. Goulart (2006), estudando especificamente o letramento, diz que: [...] o termo letramento vem se mostrando pertinente para os estudos sobre o processo de ensino-aprendizagem da língua escrita, já que se observa no Brasil o termo alfabetização, ainda muito relacionado a uma visão dessa aprendizagem como um processo de codificação- decodificação de sons em letras e vice-versa. Essa visão está de um modo geral ligada à suposição de que a linguagem escrita é a fala por escrito. (GOULART, 2006, p. 452). GOULART (2006) também indica que: Partindo do princípio de que construir linguagem é constituir sistemas de referências do mundo e, também de que a constituição do sujeito, da linguagem e do conhecimento está irremediavelmente interligada, a linguagem oral ganha relevância especial. (GOULART, 2006, p. 452). 19 Ainda GOULART(2006, p. 452) defende que: “A escrita não é uma transcrição do oral, mas a elaboração de um modelo conceitual para o discurso”, por permitir detectar não só os elementos linguísticos, mas também as estruturas linguísticas em que esses elementos se inserem. A escrita é uma nova forma de comunicação que trouxe à tona uma nova semiótica e novas formas de discurso. Esta relação entre linguagem oral e linguagem escrita na alfabetização é outro aspecto polêmico quando se trata dos dois processos: letramento e alfabetização. Vários estudos têm sido feitos nesta direção, porém, pelo estado em que se encontra a discussão, há de se aceitar com tranquilidade o que afirma Cox e Assis-Peterson (2001) que a linguagem escrita não é prolongamento da linguagem oral, que como diz Soares (2004): [...] embora a relação entre alfabetização e letramento seja inegável, além de necessária e até mesmo imperiosa, ela, ainda que focalize diferenças, acaba por diluir a especificidade de cada um dois fenômenos. Há quem empregue os dois termos como sinônimos mas, verifica- se uma diferença entre eles. Esta polêmica reforça também a ideia de que a formação do professor alfabetizador é ação que merece atenção, dada a especificidade, a complexidade do processo a conhecer e que requer ação docente reflexiva, atenciosa e cuidadosa. (SOARES, 2004, p. 8). Extraído e adaptado de: TEDESCHI, Jane Mary de Paula Pinheiro. A professora de educação infantil e a alfabetização: relação entre a teoria e a prática. Campo Grande, 2007. 137p. Dissertação (Mestrado) Universidade Católica Dom Bosco. 2.2 Repensando o Ensino da Língua Escrita Dando continuidade ao estudo sobre a alfabetização e o letramento, agora trabalharemos com o texto da autora Silvia M. Gasparian Colello (2009). A autora afirma que se, no início da década de 80, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita trouxeram aos educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de ser a apropriação de um código, envolve um complexo processo de elaboração de hipóteses sobre a representação linguística; os anos que se seguiram, com a emergência dos estudos sobre o letramento, foram igualmente férteis na compreensão da dimensão sócio-cultural da língua escrita e de seu aprendizado. Em estreita sintonia, ambos os movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais, romperam definitivamente com a segregação dicotômica entre o sujeito que aprende e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismoque delimitava a sala de aula como o único espaço de aprendizagem. 20 Reforçando os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem se processa em uma relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Isso quer dizer que, ao lado dos processos cognitivos de elaboração absolutamente pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que, não só fornece informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e “concretude” ao aprendido, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de aplicação e uso nas situações vividas. Entre o homem e os saberes próprios de sua cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem (não só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados pela sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade assumida). Capitaneada pelas publicações de Angela Kleiman, (1995), Magda Soares (1995, 1998) e Tfouni (1995), a concepção de letramento contribuiu para redimensionar a compreensão que hoje temos sobre: a) as dimensões do aprender a ler e a escrever; b) o desafio de ensinar a ler e a escrever; c) o significado do aprender a ler e a escrever; d) o quadro da sociedade leitora no Brasil; e) os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever; f) as próprias perspectivas das pesquisas sobre letramento. As dimensões do aprender a ler e a escrever Durante muito tempo, a alfabetização foi entendida como mera sistematização do “B + A = BA”, isto é, como a aquisição de um código fundado na relação entre fonemas e grafemas. Em uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos e marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/interpretar palavras (ou frases curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado do analfabeto. Com o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade de nossas sociedades fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso da língua escrita. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre as pessoas, que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar o código da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos, o final do século XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira condição para a 21 sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto das grandes transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas que o termo “letramento” surgiu, ampliando o sentido do que tradicionalmente se conhecia por alfabetização. Hoje, tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é poder se engajar em práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos de uma cultura grafocêntrica. Assim, enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de uma sociedade. (Tfouni, 1995, p. 20). Com a mesma preocupação em diferenciar as práticas escolares de ensino da língua escrita e a dimensão social das várias manifestações escritas em cada comunidade, Kleiman, apoiada nos estudos de Scribner e Cole, define o letramento como: Grafocêntrica Estado ou condição no qual se considera a escrita como centro. ... um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (KLEIMAN, 1995, p. 19). Mais do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”, Soares valoriza o impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais representa para o sujeito, extrapolando a dimensão técnica e instrumental do puro domínio do sistema de escrita: Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita. Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se Letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos. (RIBEIRO, 2003, p. 91). 22 Ao permitir que o sujeito interprete, divirta-se, seduza, sistematize, confronte, induza, documente, informe, oriente-se, reivindique, e garanta a sua memória, o efetivo uso da escrita garante-lhe uma condição diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não necessariamente conquistado por aquele que apenas domina o código (Soares, 1998). Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado contexto cultural. Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (...dos professores), tanto na pré-escola quanto no ensino médio, seja a utilização da escrita verdadeira nas diversas atividades pedagógicas, isto é, a utilização da escrita, em sala, correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o ponto de partida e de chegada do processo de alfabetização escolar é o texto: “trecho falado ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se estabelece numa determinada situação discursiva.” (LEITE, 2001, p. 25). O desafio de ensinar a ler e a escrever Partindo da concepção da língua escrita como sistema formal (de regras, convenções e normas de funcionamento) que se legitima pela possibilidade de uso efetivo nas mais diversas situações e para diferentes fins, somos levados a admitir o paradoxo inerente à própria língua: por um lado, uma estrutura suficientemente fechada que não admite transgressões sob pena de perder a dupla condição de inteligibilidade e comunicação; por outro, um recurso suficientemente aberto que permite dizer tudo, isto é, um sistema permanentemente disponível ao poder humano de criação. Como conciliar essas duas vertentes da língua em um único sistema de ensino? Na análise dessa questão, dois embates merecem destaque: o conceitual e o ideológico. 1) O embate conceitual Tendo em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e letramento (processos paralelos, simultâneos ou não, mas que indiscutivelmente se complementam), alguns autores contestam a distinção de ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável processo de aprendizagem (incluindo a compreensão do sistema e sua possibilidade de uso). Em uma concepção progressista de “alfabetização” (nascida em oposição às práticas tradicionais, a partir dos estudos psicogenéticos dos anos 80), o processo de alfabetização incorpora a experiência do letramento e este não passa de uma redundância em função de como o ensino da 23 língua escrita já é concebido. Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica. Note-se, contudo,que a oposição da referida autora circunscreve-se estritamente ao perigo da dissociação entre o aprender a escrever e o usar a escrita (“retrocesso” porque representa a volta da tradicional compreensão instrumental da escrita). Como árdua defensora de práticas pedagógicas contextualizadas e signifcativas para o sujeito, o trabalho de Emília Ferreiro, tal como o dos estudiosos do letramento, apela para o resgate das efetivas práticas sociais de língua escrita o que faz da oposição entre eles um mero embate conceitual. Tomando os dois extremos como ênfases nefastas à aprendizagem da língua escrita (priorizando a aprendizagem do sistema ou privilegiando apenas as práticas sociais de aproximação do aluno com os textos), Soares (1998) defende a complementaridade e o equilíbrio entre ambos e chama a atenção para o valor da distinção terminológica. Porque alfabetização e letramento são conceitos frequentemente confundidos ou sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo em que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura- se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele. Assim, é preciso reconhecer o mérito teórico e conceitual de ambos os termos. Balizando o movimento pendular das propostas pedagógicas (não raro transformadas em modismos banais e mal assimilados), a compreensão que hoje temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir definitivamente as práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade da alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar letrando. 2) O embate ideológico Mais severo do que o embate conceitual, a oposição entre os dois modelos descritos por Street (1984) representa um posicionamento radicalmente diferente, 24 tanto no que diz respeito às concepções implícita ou explicitamente assumidas quanto no que tange à pratica pedagógica por elas sustentadas. O “Modelo Autônomo”, predominante em nossa sociedade, parte do princípio de que, independentemente do contexto de produção, a língua tem uma autonomia (resultado de uma lógica intrínseca) que só pode ser apreendida por um processo único, normalmente associado ao sucesso e desenvolvimento próprios de grupos “mais civilizados”. Contagiada pela concepção de que o uso da escrita só é legitimo se atrelada ao padrão elitista da “norma culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão de um inflexível funcionamento linguístico, a escola tradicional sempre pautou o ensino pela progressão ordenada de conhecimentos: aprender a falar a língua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia (talvez nunca), fazer uso desse sistema em formas de manifestação previsíveis e valorizadas pela sociedade. Em síntese, uma prática reducionista pelo viés lingüístico, e autoritária pelo significado político; uma metodologia etnocêntrica que, pela desconsideração do aluno, mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar. Em oposição, o “Modelo Ideológico” admite a pluralidade das práticas letradas, valorizando o seu significado cultural e contexto de produção. Rompendo definitivamente com a divisão entre o “momento de aprender” e o “momento de fazer uso da aprendizagem”, os estudos linguísticos propõem a articulação dinâmica e reversível entre “descobrir a escrita” (conhecimento de suas funções e formas de manifestação), “aprender a escrita” (compreensão das regras e modos de funcionamento) e “usar a escrita” (cultivo de suas práticas a partir de um referencial culturalmente significativo para o sujeito). O esquema abaixo pretende ilustrar a integração das várias dimensões do aprender a ler e escrever no processo de alfabetizar letrando: 25 O significado do aprender a ler e a escrever Ao permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam aos apelos da cultura grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na sociedade, a aprendizagem da língua escrita deixa de ser uma questão estritamente pedagógica para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa o investimento na formação humana. Nas palavras de Emilia Ferreiro (2001), a escrita é importante na escola porque é importante fora dela, e não o contrário. Retomando a tese defendida por Paulo Freire, os estudos sobre o letramento reconfiguraram a conotação política de uma conquista – a alfabetização - que não necessariamente se coloca a serviço da libertação humana. Muito pelo contrário, a história do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das “ilhas de excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo agravado pelo quadro nacional de baixo letramento. O quadro da sociedade leitora no Brasil Do mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, redimensionaram as diretrizes para a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o significado dessa aprendizagem, os estudos sobre o letramento obrigam-nos a reconfigurar o quadro da sociedade leitora no Brasil. Ao lado do índice nacional de 14,6 milhões de analfabetos no país (IBGE, 2010), importa considerar um contingente de indivíduos que, embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos longos, localizar ou relacionar suas informações. Dados do Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa em Educação (INEP) indicam que os índices alcançados pela maioria dos alunos de 4ª série do Ensino Fundamental não ultrapassam os níveis “crítico” e “muito crítico”. Isso quer dizer que, mesmo para as crianças que têm acesso à escola e que nela permanecem por mais de 3 anos, não há garantia de acesso autônomo às práticas sociais de leitura e escrita. (Colello, 2003). Que escola é essa que não ensina a escrever? Independentemente do vínculo escolar, essa mesma tendência parece confirmar-se pelo “Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional” (INAF). Uma pesquisa realizada por amostragem representativa da população brasileira de jovens e adultos (entre 15 e 64 anos de idade), revela: entre os 2000 entrevistados, 1475 eram analfabetos ou tinham pouca autonomia para ler ou escrever, e apenas 525 puderam ser considerados efetivos usuários da língua escrita. Indiscutivelmente, uma triste realidade! 26 Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever Por que será que tantas crianças e jovens deixam de aprender a ler e a escrever? Por que é tão difícil integrar-se de modo competente nas práticas sociais de leitura e escrita? Se descartássemos as explicações mais simplistas (verdadeiros mitos da educação) que culpam o aluno pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados “problemas de aprendizagem” se explicam muito mais pelas relações estabelecidas na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser enfrentado a partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento; se as práticas pedagógicas pudessem transformar as iniciativas meramente instrucionais em intervenções educativas; talvez fosse possível compreender melhor o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem e do quadro de analfabetismo no Brasil. Nesse sentido, os estudos sobre o letramento se prestam à fundamentação de pelo menos três hipóteses não excludentes para explicar o fracasso no ensino da língua escrita. Na mesma linha de argumentação dos educadores que evidenciaram os efeitos do “currículo oculto” nos resultados escolares de diferentes segmentos sociais, é preciso considerar, como ponto de partida, que as práticas letradas de diferentescomunidades (e as experiências de diferentes alunos) são muitas vezes distantes do enfoque que a escola costuma dar à escrita (o letramento tipicamente escolar). Lidar com essa diferença (as formas diversas de conceber e valorar a escrita, os diferentes usos, as várias linguagens, os possíveis posicionamentos do interlocutor, os graus diferenciados de familiaridade temática, as alternativas de instrumentos, portadores de textos e de práticas de produção e interpretação...) significa muitas vezes percorrer uma longa trajetória, cuja duração não está prevista nos padrões inflexíveis da programação curricular. Em segundo lugar, é preciso considerar a reação do aprendiz em face da proposta pedagógica, muitas vezes autoritária, artificial e pouco significativa. Na dificuldade de lidar com a lógica do “aprenda primeiro para depois ver para que serve” muitos alunos parecem pouco convencidos a mobilizar os seus esforços cognitivos em benefício do aprender a ler e a escrever. Essa típica postura de resistência ao artificialismo pedagógico em um contexto de falta de sintonia entre alunos e professores parece evidente na reivindicação da personagem Mafalda: 27 Com ironia e bom humor, o exemplo acima explica o caso bastante frequente de jovens inteligentes que aprenderam a lidar com tantas situações complexas da vida (aquisição da linguagem, transações de dinheiro, jogos de computador, atividades profissionais, regras e práticas esportivas, entre outras), mas que não conseguem disponibilizar esse reconhecido potencial para superar a condição de analfabetismo e baixo letramento. Por último, ao considerar os princípios do alfabetizar letrando (ou do Modelo Ideológico de letramento), devemos admitir que o processo de aquisição da língua escrita está fortemente vinculado a uma nova condição cognitiva e cultural. Paradoxalmente, a assimilação desse status (justamente aquilo que os educadores esperam de seus alunos como evidência de “desenvolvimento” ou de emancipação do sujeito) pode se configurar, na perspectiva do aprendiz, como motivos de resistência ao aprendizado: a negação de um mundo que não é o seu; o temor de perder suas raízes (sua história e referencial); o medo de abalar a primazia até então concedida à oralidade (sua mais típica forma de expressão), o receio de trair seus pares com o ingresso no mundo letrado e a insegurança na conquista da nova identidade (como “aluno bem-sucedido” ou como “sujeito alfabetizado” em uma cultura grafocêntrica altamente competitiva). ... a aprendizagem da língua escrita envolve um processo de aculturação – através, e na direção das práticas discursivas de grupos letrados - , não sendo, portanto, apenas um processo marcado pelo conflito, como todo processo de aprendizagem, mas também um processo de perda e de luta social. (...) (...) há uma dimensão de poder envolvida no processo de aculturação efetivado na escola: aprender – ou não – a ler e escrever não equivale a aprender uma técnica ou um conjunto de conhecimentos. O que está envolvido para o aluno adulto é a aceitação ou o desafio e a rejeição dos pressupostos, concepções e práticas de um grupo dominante – a saber, as práticas de letramento desses grupos entre as quais se incluem a leitura e a produção de textos em diversas instituições, bem como as formas legitimadas de se falar desses textos -, e 28 o consequente abandono (e rejeição) das práticas culturais primárias de seu grupo subalterno que, até esse momento, eram as que lhe permitiam compreender o mundo. (KLEIMAN, 2001, p. 271). Como exemplo de um mecanismo de resistência ao mundo letrado construído por práticas pedagógicas (ainda que involuntariamente ideologizantes) no cotidiano da sala de aula, Kleiman (2001) expõe o caso de um grupo de jovens que se rebelaram ante a proposta da professora de examinar bulas de remédio. Como recurso didático até bem intencionado, o objetivo da tarefa era o de aproximar os alunos da escrita, favorecendo a compreensão de seus usos, nesse caso, chamando a sua atenção para os perigos da automedicação e para a importância de se informar antes de tomar uma medicação (posologia, reações adversas, efeitos colaterais etc.). Do ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola e muito provavelmente à escrita foi uma reação contra a implícita proposta de fazer parte de um mundo ao qual nem todos podem ter livre acesso: o mundo da medicina, da possibilidade de ser acompanhado por um m édico e da compra de remédios. Na prática, a desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização - o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógicas e a negação do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as tensões, negociar significados e construir novos contextos de inserção social. Perspectivas das pesquisas sobre letramento Embora o termo “letramento” remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas sociais de uso da escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de um determinado grupo social ou de um campo específico de conhecimento (ou prática profissional) motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito de suas especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos, vemos surgir a referência no plural “letramentos”. Mesmo correndo o risco de inadequação terminológica, ganhamos a possibilidade de repensar o trânsito do homem na diversidade dos “mundos letrados”, cada um deles marcado pela especificidade de um universo. Desta forma, é possível confrontar diferentes realidades como, por exemplo, o “letramento social” com o 29 “letramento escolar”; analisar particularidades culturais, como o “letramento das comunidades operárias da periferia de São Paulo”, ou ainda compreender as exigências de aprendizagem em uma área específica, como é o caso do “letramento científico”, “letramento musical” o “letramento da informática ou dos internautas”. Em cada um desses universos, é possível delinear práticas (comportamentos exercidos por um grupo de sujeitos e concepções assumidas que dão sentido a essas manifestações) e eventos (situações compartilhadas de usos da escrita) como focos interdependentes de uma mesma realidade. (Soares, 2003). A aproximação com as especificidades permite não só identificar a realidade de um grupo ou campo em particular (suas necessidades, características, dificuldades, modos de valoração da escrita), como também ajustar medidas de intervenção pedagógica, avaliando suas consequências. No caso de programas de alfabetização, a relevância de tais pesquisas é assim defendida por Kleiman: Se por meio das grandes pesquisas quantitativas, podemos conhecer onde e quando intervir em nível global, os estudos acadêmicos qualitativos, geralmente de tipo etnográfico, permitem conhecer as perspectivas específicas dos usuários e os contextos de uso e apropriação da escrita, permitindo, portanto, avaliar o impacto das intervenções e até, de forma semelhante à das macro análises, procurar tendências gerais capazes de subsidiar as políticas de implementação de programas. (KLEIMAN, 2001, p. 269). Sem a pretensão de esgotar o tema, a breve análise do impacto e contribuição dos estudos sobre letramento aqui desenvolvida aponta para a necessidade de aproximar, no campo da educação, teoria e prática. Na sutura entre concepções, implicações pedagógicas, reconfiguração de metas e quadros de referência, hipóteses explicativas e perspectivas de investigação, talvez possamos encontrar subsídios e alternativas para a transformação da sociedade leitora no Brasil, uma realidade politicamente inaceitável e, pedagogicamente, aquém de nossos ideais. 3. DIDÁTICA DA ALFABETIZAÇÃO 3.1 Alfabetizar Letrando: Uma Proposta de Aprendizagem da Língua Escrita Nesse item da unidade, vamos trabalhar com fragmentosdo texto dos autores Cláudia Janoski, Maria Cláudia Söndahl Rebellato, Maria Lúcia Castellano e Rosane de Mello Santo Nicola ( 2003). O texto dos autores citados tem como foco a prática alfabetizadora, visando a explicitar aspectos da noção de letramento e, com isso, ampliar possibilidades 30 Em razão da complexidade do tema, primeira mente, faz-se necessária uma reflexão sobre os con ceitos de alfabetização, de letramento e suas relações com as concepções de linguagem; em seguida, cabe expor a importância do uso de material didático na al fabetização, suas possibilidades e limitações; paralela mente, há também o papel ou os papéis do professor, o qual assume, dentre outras, uma função interacio- nista — a de interlocutor alfabetizador. Para fazer a transposição teórico-prática, finaliza-se com um relato de experiência de uma professora que elabora seu pensar e sua prática sobre alfabetizar letrando. Dessa forma, espera-se buscar possíveis respostas para um desafio proposto por Soares (1998, p. 59) — “como alfabetizar, letrando?” 3.2 Distinção entre Alfabetização e Letramento Ainda que alfabetização e letramento estejam inevitavelmente ligados, é fundamental distinguir esses termos, visto ser essa uma tendência entre os estudiosos da educação atual. Neste artigo, apresen ta-se uma rápida abordagem sobre alguns aspectos considerados relevantes para o trabalho alfabetizador. Entende-se o conceito de alfabetização, em seu sentido específico, como processo de aquisição do có digo escrito, isto é, do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica. Dessa forma, o termo alfabetização, etimologicamente, não ultrapassa o sig nificado de apropriação do alfabeto, ou seja, do ensino de habilidades de codificar a língua oral em língua escrita (escrever) e de decodificar a língua escrita em oral (ler). Tfouni (1997) corrobora com essa definição, caracterizando alfabetização como a aquisição de ha bilidades para leitura e escrita, e como as chamadas práticas de linguagem efetuadas pela escola, também denominadas escolarização. Assim, Soares (2005, p.15) alerta: “atribuir um significado muito amplo ao processo de alfabetização seria negar-lhe a especificidade, com reflexos indese- de discussão sobre o trabalho alfabetizador. Esta propos ta de alfabetização pode enriquecer os modos de ver, ouvir, falar e ler o espaço escolar, além de sugerir per- guntas e soluções para aspectos dessa realidade. jáveis na caracterização de sua natureza, na configu ração das habilidades básicas de leitura e escrita, na definição da competência em alfabetizar”. Depreende-se daí que considerar a alfabetização um processo per manente que se estende por toda a vida é confundir aquisição de língua com desenvolvimento de língua, este sim, com certeza, ininterrupto. A partir de 1985, essa distinção foi tornando-se cada vez mais clara, concretizando-se nos distintos sentidos existentes hoje entre alfabetização e letra- mento. Este último termo foi usado pela primeira vez por Mary Kato, em 1986, no 31 livro No mundo da escri ta: uma perspectiva psicolinguística, como tradução do termo inglês literacy, que significa cultura escrita. O termo letramento passou a ser retomado em publi cações posteriores, com diferentes sentidos e, embora os meios acadêmicos continuassem empregando-o largamente, só recentemente esse termo foi dicionari- zado (Dicionário Houaiss, 2001). Por outro lado, o ad jetivo ‘letrado’ há muitos anos aparece nos dicionários como o ‘indivíduo versado em letras, erudito’, o que não representa o sentido dado ao termo ‘letrado’ sob a concepção de letramento criada por Kato. O letramento pode então ser definido como o conjunto de práticas sociais que usam a escrita, en quanto sistema simbólico/tecnologia, em contextos es pecíficos, para objetivos específicos. (KLEIMAN, 1995). Soares também define: letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um con texto específico, e como essas habilidades se re lacionam com as necessidades, valores e práticas sociais, ou seja, é o conjunto de práticas sociais relacionadas à leitura e à escrita em que os in divíduos se envolvem em seu contexto social. (SOARES, 1998, p.72). Portanto, letramento é a apropriação da lingua gem escrita, dos usos particulares da leitura e da escrita na sociedade, os quais dependem das expe riências com a diversidade de textos produzidos em diferentes contextos de uso, com finalidades específi cas e envolvendo interlocutores específicos. Por isso, o indivíduo letrado é aquele que passa a envolver-se nas práticas sociais, usando as habilidades de ler e es crever em benefício de formas de expressão e comuni cação possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em determinado contexto cultural. Em função disso, a utilização da escrita, em sala, precisa corresponder às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Nessa perspectiva, a escola, muitas vezes, in correu em graves falhas, como tomar esses dois pro cessos — alfabetizar e letrar — de forma estanque e desarticulada, ou, pior, sobreposta, transformada em modismo por meio de práticas mecânicas que preten dem primeiro alfabetizar para depois letrar, ou ainda, meramente proporcionar à criança os usos, conside rando isso suficiente para alfabetizar. 3.3 Alfabetizar letrando Paralelamente a essa revolução conceitual ocor rida nos últimos vinte anos, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar letrando. 32 Para entender essa proposta, é preciso antes entender em qual concepção de linguagem ela se ba seia, pois, conforme se concebe a linguagem, assim se estrutura o ensino de língua. A língua se constitui como sistema (conjunto de regras e modos de funcio namento), mas também é atividade (conjunto aberto e múltiplo de práticas orais ou escritas, desenvolvidas por sujeitos historicamente situados). A alfabetização tradicional, por exemplo, é fruto da concepção de lín gua como código, sistema fixo, e, portanto, está des vinculada do texto com função social e voltada para um ensino fragmentado do trabalho com as unidades menores (letras, sílabas, palavras e textos estéreis de significados para as crianças). Por outro lado, buscando superar esses métodos tradicionais, muitos alfabetizadores, voltaram-se para uma verdadeira ‘febre do texto’ (Klein, 2004), embora sem fundamentos que tomassem o texto como eixo do processo de ensino- aprendizagem da língua. O resul tado foi um abandono do código e, paralelamente, um trabalho com o texto como mero pretexto para apre sentar letras ou ensinar regras gramaticais. A proposta de alfabetizar letrando rompe defini tivamente com a divisão entre o ‘momento de apren der’ e o ‘momento de fazer uso da aprendizagem’. Estudos linguísticos propõem a articulação dinâmica e reversível entre ‘descobrir a escrita’ (conhecimento de suas funções e formas de manifestação), ‘aprender a escrita’ (compreensão de regras e modos de funcio namento) e ‘usar a escrita’ (cultivo de suas práticas a partir de um referencial culturalmente significativo para o sujeito). Dessa forma, faz-se a apropriação dialética dos dois pólos (sistema e atividade), contextualizan do o trabalho simultâneo com textos e as unidades menores. No trabalho com os textos, estabelecem-se as condições prévias para níveis mais elevados do letramento da criança, as habilidades de uso dos instrumentos de escrita e de manipular os suportes. Ao mesmo tempo, o domínio do sistema de escrita (alfabético com convenção ortográfica) ocorre por meio de jogos e do alfabeto móvel, por exemplo. Para tanto, é preciso que as práticas pedagógicas passem de iniciativas meramente instrucionais para interven ções educativas. É imprescindível que o alfabetizador compreenda a criança para com ela estabelecer uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento. A teoria da enunciação
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