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ENTRE CONTINUIDADES E RUPTURAS: AS INDEPENDÊNCIAS HISPANO-AMERICANAS E O PARADIGMA REVOLUCIONÁRIO

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ENTRE CONTINUIDADES E RUPTURAS: AS INDEPENDÊNCIAS
HISPANO-AMERICANAS E O PARADIGMA REVOLUCIONÁRIO
Beatriz Gambini
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Revolução e independências: Notas sobre o conceito e
os processos revolucionários na América espanhola. In: Estudos históricos, nº 20, 1997.
(pp. 275-294).
Esta resenha tem por objetivo explanar a perspectiva histórica dos processos de
independências hispano-americanas como casos de revoluções civis - respostas internas à
conjunturas atuantes na época. Para tanto, a exaltação dos processos internos de cada
região, em face às influências externas, serão aqui trazidas a fim de demonstrar certas
particularidades históricas presentes nos diferentes contextos. Um breve levantamento
historiográfico acerca do tema se faz necessário, uma vez elucidativo sobre as
transformações paradigmáticas ocorridas em tais estudos.
A historiografia porvindoura dos acontecimentos, desenvolvida na segunda
metade do século XIX e presente em princípios do século XX, abordava os fenômenos de
independências a partir de uma perspectiva liberal e nacionalista. Buscava, assim, certa
justificativa teleológica na criação dos Estados nacionais. O termo revolução era evocado
apenas como sinônimo de “lutas de independência”, sem quaisquer ponderações sobre a
natureza semântica da palavra. A ruptura era apontada apenas em nível institucional.
Defendia-se a ideia do continuísmo nas relações sociais - elite revolucionária, portanto
“evoluída”, x povo estagnado.
As independências hispano-americanas serviam de exemplo antípoda à
independências verdadeiramente revolucionárias. Os casos estadunidense e haitiano
(caso-limite) eram contrastados aos tipos ibéricos, a fim de comprovar as mudanças
significativas verificadas nos dois primeiros. Nos EUA, por exemplo, a unidade territorial
comprovava o êxito das ideias liberais adotadas - sobretudo de equidade cidadã, enquanto
a fragmentação hispano-americana apontava a conservação das antigas divisões sociais e
do modus operandi colonial.
Tal perspectiva historiográfica sofrera significativas transformações apenas na
década de 1950, em contexto de Guerra Fria. A ideia de revolução apareceu então mais
pronunciada. Entretanto, sua causalidade era estritamente externa - resposta à crise
absolutista. Seria, desta forma, como uma mitose/ reprodução da Revolução Francesa e
Independência estadunidense. Os agentes internos eram insignificantes em tais processos,
assim como as particularidades regionais. A defesa do caráter revolucionário anunciava,
por fim, especificamente um objetivo político: haveria, no território atlântico; sendo EUA
pioneiro, uma “vocação burguesa” que promoveu a libertação das amarras coloniais por
vias revolucionárias - ideia defendida por historiadores como Godechot e Palmer, em
1956 e 1959, respectivamente.
Os anos de 1970 anunciara uma nova mudança paradigmática na historiografia
das independências hispano-americanas. Pierre Chaunu (1973), através de um
revisionismo, inaugura a ênfase da análise sobre as complexidades internas frente às
questões internacionais. Trouxe à luz a natureza ambígua da elite criolla quando em
relação aos peninsulares. Se por um lado era sancionada a partir do consentimento
espanhol, por outro era preterida diante de maiores ocupações político-administrativas no
mundo atlântico-ibérico. Esse descompasso entre legitimidade e rejeição criaria, assim,
uma tensão racial em que o desfecho, sobretudo facilitado pela revolta liberal na Espanha
(1920), seriam as revoluções de independências.
Complementar a este novo tipo de abordagem, Maria Lígia Prado enfatizara o
caráter de ruptura destes processos. O século XIX experimentou, assim, a “destruição das
estruturas político-jurídicas herdadas do período colonial” (1985, apud Prado, p.2,
Gouvêa, 1997, p. 279). A colaboração promovida na década de 1970 permitiu, ao decênio
seguinte, um rompimento mais estrutural do paradigma continuísta presente na
historiografia tradicional. A análise de François Furet sobre a Revolução Francesa nos
fins dos anos 1970 forneceu ao campo de estudos sobre revoluções novo aparato
teórico-metodológico capaz de examinar tais transformações sob o ponto de vista,
simultaneamente, de processos e acontecimentos - caracterizados por continuidades e
rupturas.
Assim o fez François Xavier Guerra nos primeiros anos de 1990. Em Modernidad
e Independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas (1992), destacou o
dinamismo entre conjuntura interna e externa, que se desenrolara em movimentos
revolucionários de independências. Existiu, nos processos do século XIX, uma ruptura
dos vínculos coloniais, onde o ponto de mutação de tais estruturas data os anos entre
1808 e 1810. A crise do Antigo Regime possibilitou, então, novas experiências
intelectuais e políticas para se pensar outros tipos de representações políticas, bem como
a natureza da relação entre Espanha e América hispânica.
Os processos revolucionários seriam deste modo os meios de viabilização na
construção de uma nova cultura política. A circulação massiva da imprensa e o
surgimento de novos espaços de socialização - à exemplo as sociedades literárias,
difundiriam as novas ideias e criariam um vocabulário político moderno e ilustrado. Os
acontecimentos, por sua vez, seriam os próprios desenrolares históricos. A mutação
ideológica estaria encarnada, desta forma, na organização provisória das juntas
governamentais. Após abdicação de Fernando VII, sendo assumido por José Bonaparte -
irmão de Napoleão, o não reconhecimento francês por estas novas formas
político-organizacionais acabou por gerar, no ano de 1810, a efervescência necessária
para a classe criolla lançar-se em novas experiências ao questionarem seu papel dentro da
relação Espanha-colônias.
Esta perspectiva está circunscrita ao artigo analisado. No rol dos avanços
historiográficos, marcadores da década de 1990, Maria de Fátima Silva Gouvêa
examinou os fenômenos revolucionários das independências hispano-americanas sob o
viés traçado por Guerra. Apesar de pontuais críticas, sobretudo pela generalização
processual ao adotar indiscriminadamente a mesma hipótese causal à todo continente,
Gouvêa ressaltou a importante contribuição da dimensão interna sobre o decurso
revolucionário americano, assim como o destaque aos agentes políticos presentes no
território.
Revolução e independências: Notas sobre o conceito e os processos
revolucionários na América espanhola (1997) apresentou, portanto, as devidas
ponderações sobre as especificidades regionais até então pouco dinamizadas nos
processos de independência. Os casos de estudo selecionados foram ali abordados a fim
de exemplificar os diferentes desenvolvimentos ocorridos em todo continente. Os Vices
Reinos da Nova Espanha, do Peru e da Nova Grana corresponderam, desta forma, a
processos distintos na elaboração de novas culturas políticas e ao encaminhamento da
consolidação de novas formas de governo por vias revolucionárias.
Apesar do reconhecimento por Gouvêa da relevância dos novos espaços de
sociabilização para a viabilização de novas experiências - atribuída por Guerra; buscou
certificar a pertinência das diferentes conjunturas internas como causas específicas das
ações sociais promovidas pelas elites criollas locais. No caso da Nova Espanha, haveria
na primeira década dos 1800, certas crises agrícolas e, consequentemente, o acirramento
da disparidade sócio-racial. A elite monopolista dos meios de produção era composta, em
maioria, por espanhóis, causando grande frustração aos criollos que, apesar do
posicionamento social privilegiado, vislumbravam maior capacidade política e
econômica.
Entretanto, a crise que incidia sobre a maioria populacional despertou, diante de
movimentos insurgentes promovidos por líderes eclesiásticos, a possibilidade de abolição
e isenção de impostos aos indígenas e mestiços. Se ocorrera prematuramente a chance de
aderência da classe criolla ao movimento anti-peninsular,encerrou-se na radicalização
das mudanças propostas. Por este motivo, somente seis anos após os movimentos de
insurgência de caráter popular, sucedeu-se a união entre a força criolla e a força
remanescente para a promoção da revolução pela independência federalista mexicana. O
ponto de mutação no caso da Nova Espanha se encontra radicalmente no movimento
popular de 1810. Se por um lado modificou-se o discurso político (a priori restaurador e
de radicalismo agrário) à caminho da Federação, por outro, mantiveram-se as
hierárquicas relações sociais.
O caso do Vice Reino do Peru, no entanto, fora antagônico ao acima mencionado.
A herança do movimento insurgente de Tupac Amaru, no século XVIII, gerou, na elite
criolla regional, aversão a movimentos que despertavam na população anseios
revolucionários. Isto fortaleceu naquele espaço uma resistência realista-peninsular diante
o contexto continental de revoluções para as independências. Gouvêa salientou este
motivo como possível explicação para o relativo atraso no processo de independência
(1826), assim como o caráter “exógeno” ocorrido ali. A motivação do processo seria,
assim, derivada da pressão criolla continental, personificada nas figuras de San Martín e
Simón Bolívar. A particularidade do esforço externo à independência peruana fez com
que este novo Estado buscasse, nos anos seguintes, acordos internacionais com a Espanha
a fim de preservar a união hispano-americana. As marcas de continuidades foram mais
presentes do que as rupturas no sistema então vigente.
Em Nova Granada pôde-se perceber, de forma mais assertiva, segundo Gouvêa, a
hipótese de Guerra. Isto porque destaca-se a proeminência de duas figuras, com
influências estrangeiras, Francisco Miranda e Simón Bolívar. O ano de 1810 já marcava,
na sociedade de Nova Granada, a preocupação da questão federalista. A Sociedade
Patriótica de Caracas enunciava-se como centro irradiador das novas tendências
intelectuais e dos possíveis percursos políticos. A trajetória de Bolívar influenciou os
sentidos adotados no processo revolucionário boliviano. A aproximação e,
posteriormente, o afastamento sobre a questão federalistas estavam intimamente ligados
aos diferentes momentos intelectuais de Bolívar. Após seu exílio consentido ao Haiti,
passou a defender a centralização do Estado e seu pessimismo diante às liberdades.
Portanto, o discurso político adotado em Nova Granada fora feito a partir de ações
conservadoras e revolucionárias, simultaneamente. O triunfo republicano ocorrera entre
os anos de 1819 e 1821.
Conclui-se, a partir do estudo de casos selecionados pela autora, não somente a
relevância da conjuntura interna do continente, mas principalmente as formas particulares
de acepção destes novos contextos nas diferentes sociedades hispano-americanas. As
independências promovidas no século XIX tiveram, sob variadas formas, um momento
comum às mutações ideológicas, entretanto, os percursos diversificaram tanto em termos
processuais quanto em acontecimentos.

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