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60 Unidade II Unidade II 5 COMUNICAÇÃO PELA SEMIÓTICA Comunicação é um processo de interação entre, no mínimo, duas pessoas que desejam trocar informações e ideias, discutir um assunto, expor sua opinião e sentimentos, narrar um acontecimento, entre outras tantas intenções. Como ocorre, então, a comunicação? Ela ocorre por meio da linguagem. Como já afirmava Benveniste (1976, p. 286), “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser”. Nessa perspectiva, consideramos que a linguagem é a grande mediadora entre nós – seres humanos – e o mundo. Nossas percepções, identificação e classificação dos seres e fenômenos, conclusão e generalização são mediadas pela linguagem. As teorias linguísticas e semióticas concebem a linguagem como uma atividade construída tanto por capacidade interna do ser humano quanto pela interação ou contato social. A linguagem é uma forma de organização e atividade extremamente diversa e complexa, sendo regulada e mediada pelas interações e cooperação entre os indivíduos. É caracterizada, segundo Habermas (BRONCKART, 1999), pelo agir comunicativo, constituído tanto pelo aspecto psíquico (condições ontogenéticas) quanto por fatores sociais (condições filogenéticas). Saiba mais Quer saber como a linguagem se forma no cérebro? Neurologistas empenham‑se em mapear as estruturas neuronais que governam os complexos mecanismos linguísticos. António Damásio e Hanna Damásio oferecem‑nos um texto muito bom sobre como compreendemos a linguagem. DAMÁSIO, A.; DAMÁSIO, H. O cérebro e a linguagem. Revista Viver Mente & Cérebro Scientific American, ano XIII, n. 143, p. 22‑29, dez. 2004. O processo evolutivo filogenético para a capacidade humana de linguagem dependeu de os membros dos grupos humanos primitivos colaborarem concretamente em atividades gerais ligadas à sobrevivência e, com a liberação das mãos – capacidade comportamental poderosa –, produzirem instrumentos para reforçar e prolongar suas capacidades comportamentais. Além disso, houve a necessidade de um mecanismo de acordo entre os homens; esse acordo foi sobre o próprio contexto da atividade e sobre a parte da atividade que deveria caber aos indivíduos instrumentalizados. A necessidade de acordo teria 61 TEORIA DA COMUNICAÇÃO motivado as produções sonoras originais, que seriam, a princípio, temporal e deiticamente associadas às intervenções sobre os objetos e teriam se constituído para os congêneres em pretensões concretas à designação dessas mesmas intervenções. Lembrete Na língua, há termos que indicam situação da comunicação, como o lugar e o tempo. Por exemplo, aqui é um termo dêitico indicador de um determinado lugar em que estão os interlocutores em conversa. Os dêiticos fazem referência a elementos extralinguísticos, intrínsecos ao contexto discursivo. A linguagem emergiu, então, da negociação prática das pretensões à validade designativa (que exprime a dimensão ativa do uso social dos signos) das produções sonoras dos membros de um grupo envolvidos em uma mesma atividade. Decorrente dessa abordagem, a linguagem apresentou‑se, inicialmente, como uma produção interativa associada às atividades sociais, tornou‑se um instrumento pelo qual os interactantes, de maneira intencional, emitem pretensões à validade relativas às propriedades do meio em que essas atividades se desenvolvem, e foi, primariamente, uma característica de atividade social humana, cuja função maior é de ordem comunicativa. A linguagem, na formação humana, serviu de acesso ao meio ambiente e, aos poucos, à construção de elementos de representação desse mesmo meio ambiente. A linguagem passou a representar três tipos de mundo: • o mundo físico, que é o objetivo pertinente ao meio ambiente; • o mundo social, que se constitui da organização e cooperação entre os membros do grupo; • o mundo subjetivo, que se refere às características individuais quanto à habilidade, eficácia, valores etc. A linguagem, na história da evolução humana, passa pelo processo de semiotização. Produto da interação social, a semiotização dá lugar ao nascimento de uma atividade que é puramente de linguagem e que se organiza em textos ou discursos. Assim, a comunicação ocorre por meio da linguagem verbal, ou seja, da língua oral e escrita, mas ocorre também e de maneira abundante por meio de outros sistemas de linguagem. Conceitos e abstrações podem ser tratados em textos imagéticos pictóricos, esculturas, corpo, composições musicais, fotografias, sons. Esses textos constituem‑se de linguagem específica, de linguagens misturadas (híbridas), do diálogo entre linguagens. Trata‑se, enfim, do sincretismo, que é a mobilização de múltiplas linguagens em contextos comunicativos, como um programa televisivo, um filme, uma história em quadrinhos, entre outros. 62 Unidade II Trata‑se da comunicação com materialidade plural em fator sensorial, código, sincretismo etc. Na interação, será que o interlocutor está preparado para a comunicação sensorial? Os cheiros, os barulhos de uma feira livre? O texto sincrético, por sua vez, é uma mistura de componentes diversos, que formam um todo de significação. Não se trata de soma de unidades, mas aglutinação de linguagens fruto de uma enunciação única. Cabe à semiótica estudar a linguagem. Ela oferece, então, referência teórica para interpretação e análise dos atos comunicativos constituídos de filmes, música, vídeos e tantos outros. Cabe a ela lidar também com as linguagens contemporâneas multimidiáticas e digitais, procurando entender a sociedade atual. O ciberespaço é um universo separado e distinto do mundo físico, ou seja, abrange várias interfaces, tais como: celulares, computadores, tablets, dentre outros, dando ao usuário uma ampla liberdade comunicacional. São várias vertentes teóricas desenvolvidas em semiótica. Há aquelas que lidam com a comunicação sensorial, em situação concreta, em que o espaço da enunciação é a rua, ou a recepção atinge um sentido sensorial da pessoa. Há outras que se especializam, cada vez mais, na comunicação ubíqua, que abrange justamente as novas tecnologias digitais. Enfim, todas as relações humanas são fundamentadas na constituição de uma linguagem com o intuito de estabelecer melhor os mecanismos de comunicação. A comunicação concretiza‑se por meio da linguagem; a linguagem, por sua vez, é plural. 5.1 Semiótica visual Foi Saussure, em seu Curso de linguística geral, de 1916, que conseguiu fazer dos estudos da língua um campo científico. A teoria sígnica de Saussure deu subsídios para os estudos da semiótica tornarem‑se também uma ciência. Linguística Linguagem Semiótica Língua Figura 18 A linguística refere‑se aos estudos dos signos da língua, e a semiótica tornou‑se ciência geral dos signos. Os princípios pelos quais Saussure se fundamenta são o da arbitrariedade e o da convencionalidade dos signos. Esses princípios perpassam, durante todo o século XX, a ciência geral dos signos. Ou seja, um signo é arbitrário e convencional; no exemplo “cadeira”, a sucessão de fonemas (sons da língua) /kadeyɾa/ fixou‑se na memória dos falantes do português, os quais recuperam o significado atribuído a essa sucessão sonora: objeto de assento individual com encosto, assento e pés. Pelo fato óbvio de que 63 TEORIA DA COMUNICAÇÃO nada nessa seleção e sucessão de fonemas – o significante – indica seu significado, a relação entre o significante e o significado é convencional. A semiótica adotou esses princípios na análise dos signos que não são linguísticos. Por exemplo, o símbolo power do computador poderia ser outro, mas ele foi criado, escolhido pelo grupo social (especialistas em computador e sua linguagem) e se tornou convenção. Qualquer usuário de computador, por mais leigo que seja, relaciona a forma (significante) com seu conteúdo (significado). Figura 19 – Símbolo power do computador Disponível em: https://bit.ly/2XUzTCc.Acesso em: 27 ago. 2021. O símbolo power não faz parte dos símbolos linguísticos, ou seja, não é uma palavra. Trata‑se de um símbolo visual, mas igualmente um signo. Esse signo é estudado, então, não pela linguística, mas pela semiótica, cujo objetivo é estudar os signos existentes, sejam eles linguísticos (verbais) ou não linguísticos (não verbais). O signo da figura anterior constitui‑se de um significante e de um significado. O significante, no caso, não está ligado aos fonemas, mas a outras formas não sonoras. O significante é constituído de duas formas visuais: um círculo e um traço vertical. Seu significado é ligar/desligar o computador. A definição de signo como união entre significante e significado foi expandida por um seguidor de Saussure, Louis Hjelmslev (1899‑1965). No modelo linguístico proposto por Hjelmslev, um dos traços do signo é ser constituído de um plano da expressão e um plano do conteúdo. Hjelmslev (CAMPOS; ARAUJO, 2017) expande a concepção de signo para outros sistemas além da língua e, por conseguinte, o plano da expressão é uma manifestação verbal, imagética, gestual ou outras formas do conteúdo. O plano do conteúdo, por sua vez, é o significado do texto, equivalente à matéria. Ambos os planos se relacionam às partes do signo de Saussure nos termos de significante e significado. Signo Plano da expressão (significante) Plano do conteúdo (significado) Forma: fonema Substância: manifestação do som Forma: conceitos, traços do ser Substância: ser específico visto ou imaginado Figura 20 – Os planos do signo por Hjelmslev 64 Unidade II Essas propostas ajudaram o linguista Roland Barthes (1915‑1980) a desenvolver os estudos de semiologia, cujo objeto é qualquer sistema de signos: as imagens, os gestos, os sons melódicos, os ritos, os protocolos ou os espetáculos. Esse linguista reconhece que todos os sistemas de signos – a língua, a imagem, os sons etc. – têm como objetivo a comunicação. Os estudos de Hjelmslev influenciaram o desenvolvimento da semiótica, e os estudos de Roland Barthes ampliaram o modelo proposto por Saussure, porque Barthes incluiu ferramentas para os estudos dos sistemas não verbais da linguagem. Assim, os estudos semióticos desenvolveram‑se a partir do século XX, e a preocupação é com a forma como nos comunicamos – por meio de textos, cuja expressão (ou forma) é variada, múltipla. Observação O termo semiótica tem origem no grego semeîon (“signo”). Saussure distinguiu a linguística – estudo da língua – da semiologia – estudo da linguagem. De forma geral, os linguistas europeus, de origem românica, costumam empregar o termo semiologia, mas os de língua anglo‑saxã usam o termo semiótica. A semiótica é, enfim, a ciência das linguagens. Semiótica Ciência das linguagens Signo Não verbalVerbal Formas de comunicação Figura 21 Assim como ocorre na linguística, a semiótica é uma ciência com grandes linhas de pesquisa e, em cada uma, encontram‑se diferentes vertentes teóricas. 65 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Quadro 12 – Principais correntes teóricas da semiótica Vertentes Princípios Precursores Semiótica peirciana Representação da realidade por meio dos signos Charles Peirce Semiótica discursiva (ou francesa) Percurso gerativo de sentido Algirdas Greimas Umberto Eco Semiótica da cultura Cultura como texto Semiosfera como contexto cultural da comunicação Yuri Lotman Semiótica visual Manifestação da visualidade Adesão às linhas de Peirce, Greimas, entre outras Semiótica social Processo de significação como parte da construção social Gunther Kress Theo van Leeuwen Destacamos a semiótica visual nesta disciplina por dois motivos. Um deles é o número grande de situações comunicativas em que a visualidade se manifesta; o outro é a adesão a várias áreas de estudo da semiótica. De acordo com Santaella (2019), as três teorias semióticas mais reconhecidas no campo da semiótica visual são: • o estudo da imagem da vertente barthesiana; • os estudos dos signos da vertente peirciana; • a semiótica greimasiana. Muitos semioticistas aderiram à semiótica visual, que fornece os instrumentos necessários para a análise de imagens (fotografias, pinturas, desenhos etc.), permitindo às pessoas entenderem os textos imagéticos, bem como aos profissionais da comunicação se expressarem por meio de imagens. A semiótica visual é a ferramenta que comunicadores e designers utilizam para desenvolver formas de comunicar mensagens publicitárias, sociais ou de interesse público, de modo a garantir seu entendimento. Levando em consideração que as pessoas possuem diferentes conceitos mentais, a semiótica visual permite identificar certas características na constituição mental de diversos grupos de pessoas com características relacionadas, sejam elas baseadas em características socioeconômicas, culturais ou outras. De acordo com Santaella (2019), os primeiros estudos explícitos da semiótica referentes à imagem são da década de 1960. Baseados nos modelos da linguística estrutural, consideravam, entre outros aspectos do signo, o significado e o significante. Uma das principais tendências da semiótica visual é de Roland Barthes, que estudou a imagem sob a abordagem de pose, trucagem, fotogenia, esteticismo e sintaxe. 66 Unidade II Quadro 13 – Processos na (de)codificação da fotografia segundo Barthes Processo Definição Pose Refere‑se ao possível significado de espiritualidade, juventude, pureza etc. Trucagem Trata‑se de um processo em que o fotógrafo une duas imagens e dessa montagem surge o sentido. Fotogenia É a própria estrutura informativa. O fotógrafo usa recursos como iluminação, enquadramento, entre outros, podendo embelezar coisas que não são bonitas na realidade. Esteticismo A composição ou substância visual é deliberadamente tratada como arte. O fotógrafo usa recursos como cor, iluminação, textura e, assim, constrói imagens que lembram obras de arte. Sintaxe Várias fotografias podem constituir uma sequência encadeada. Em uma página, a sequência de fotografias juntas adquire um sentido diferente do que as imagens teriam se fossem lidas separadamente. Barthes (SANTAELLA, 2019) elabora dois conceitos sobre fotografia: studium e punctum. Um texto visual – como a fotografia – pode e deve ser analisado com critérios específicos e metodologia; é sob essa perspectiva que o conceito de studium é criado. O punctum, por sua vez, refere‑se à própria imagem, ou melhor, a algo que toca a pessoa que observa a fotografia. Punctum relaciona‑se ao afeto, que é difícil de comunicar e, principalmente, compartilhar. Saiba mais Para o linguista‑semioticista Roland Barthes, a fotografia é um elo de elementos distantes. O referente – o ser fotografado – afeta o olhar de quem observa. BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Entre os critérios de leitura/análise de uma fotografia, Barthes apresenta: • quantidade de afeto; • espacialidade e, por conseguinte, concentração do afeto envolvido; • grau de condicionamento do envolvimento encontrado na própria imagem e/ou entre a fotografia e o observador; • grau de mediação do objeto de seu afeto, o tipo de acesso que o objeto permite; • intencionalidade na relação do observador com a imagem. 67 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Na comunicação visual, ilustração, desenho, tirinha (de história em quadrinhos), charge, cartum e outros possíveis textos têm sistemas de linguagem. De acordo com Dondis (1997), a linguagem visual caracteriza‑se por: • Ponto: é o elemento que serve para preencher o espaço ou sugerir linhas e figuras, quando está alinhado a outros pontos. • Linha: é um ponto em movimento, tem flexibilidade, propósito e direção. É considerada elemento essencial do desenho, por assumir formas muito diversas. • Forma: é o resultado da descrição da linha e tem três formas básicas principais, o quadrado, o círculo e o triângulo, que permitem variações e combinações infinitas. • Direção: envolve quatro referênciasbásicas – a horizontal, a vertical (o quadrado), a diagonal (o triângulo) e a curva (o círculo), sendo a referência primária a direção vertical‑horizontal. • Tom: demonstra, em um desenho, a presença ou a ausência de luz, com suas variações de tonalidades. Essas variações permitem a informação visual e a impressão de dimensão; por exemplo, para a representação de uma esfera, a linha é insuficiente, e as variações tonais ajudam a dar ilusão de volume arredondado. • Cor: permite variedade de combinações na cor da luz e na cor do pigmento. O círculo cromático possibilita visualizar as cores primárias e secundárias. Culturalmente, a cor transmite informações e recebe significados simbólicos. Ela também é relacionada com as emoções. • Textura: pode ser reconhecida pela visão e/ou pelo tato. Em determinadas situações, a textura realmente existe, causando experiências com texturas táteis. • Dimensão: é uma maneira de representar a dimensão do objeto. Relaciona‑se à ideia de perspectiva, cujos pontos de vista possibilitam melhor exploração do objeto. • Escala: trata‑se das relações espaciais entre objetos e entre desenhos. É essencial em projetos e mapas, pois a escala indica medidas em proporção com o objeto real. • Movimento: pode ficar implícito na imagem visual; um dos recursos para indicar movimento são as linhas contínuas ou onduladas, que seguem determinado percurso no espaço gráfico. A seguir, temos uma fotografia, da série Espíritos e corpos, de Gilucci Augusto (AUGUSTO; TOUTAIN, 2016). 68 Unidade II Figura 22 – Fotografia em preto e branco Fonte: Augusto e Toutain (2016, p. 144). Lembrete Para a semiótica, a fotografia é um texto e sua linguagem visual tem sistemas sígnicos específicos. Um dos sistemas de linguagem é a cor, no entanto, na fotografia de Gilucci Augusto, a imagem não está colorida. A ausência (ou presença) de cores influencia a maneira pela qual os olhos percorrem o texto visual. Enquanto as cores podem suscitar no espectador uma interpretação menos conceitual e abstrata, a fotografia em preto e branco pode tornar mais evidente a realidade representada e reforçar o caráter simbólico da fotografia. Caro aluno, volte à leitura da fotografia de Augusto. Qual é o tema provável desse texto visual? Que interpretação você dá a ele? Verificamos que a ausência de cores nos leva a produzir ideias e conceitos variados. Questionamo‑nos se o texto trata dos arquétipos femininos, da religiosidade, do desnudamento da alma, da libertação emocional, do sagrado feminino etc. Em um processo comunicativo, o autor de um texto tem a liberdade de escolher a linguagem para sua representação, de acordo com o efeito que pretende para atingir seu propósito comunicativo. Assim, os signos forma, cor, gesto, diagramação são escolhidos e podem se complementar, criar contraste, se integrar, significando mais. 69 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Exemplo de aplicação 1) A seguir a mesma fotografia já apresentada nesta unidade, porém agora colorida. Figura 23 – Fotografia da série Espíritos e corpos – versão colorida, de Gilucci Augusto, 2016 Fonte: Augusto e Toutain (2016, p. 145). Observe a fotografia e faça a análise conforme a proposta de Roland Barthes: A) Identifique o referente (quem, o que) da fotografia. B) Verifique a posição em que está o referente e que possíveis significados podemos atribuir à pose. C) Podemos considerar a fotografia de Gilucci Augusto uma obra de arte? Que aspectos estéticos são criados neste texto? D) Em relação à noção de punctum, de que forma esta fotografia atinge você? Que elemento atrai seu olhar? Resolução A) O principal referente é um corpo feminino, mas ele não está isolado. Na fotografia, há o processo de trucagem, pois temos duas realidades: o corpo feminino e sua interação com muitas penas. B) O corpo feminino está estendido, em meio às penas coloridas, podendo ter vários significados, tais como penitência, libertação emocional ou espiritual, arquétipos sobre o sagrado feminino, desnudamento da alma etc. 70 Unidade II C) Trata‑se de uma fotografia artística, constituída de jogo de iluminação, fotogenia etc. D) A iluminação e o colorido da fotografia podem ser elementos que causam impacto no leitor. Seguindo nessa linha de Barthes, o linguista‑semioticista Georges Péninou (SOUZA, 2006) questiona sobre a comunicação quando o texto é uma imagem e recorre ao esquema de comunicação de Jakobson apresentado na unidade I. A co in cid ên cia : o nã o s en tid o A não coincidência: o sentido O ser O para si O para o outro O em si A re pr od uç ão : a le tra A derivação: a fi gura Es pa ço d a fi g ur aç ão ex pre ssiv a Espaço de retórica im pressiva Referente (função referencial) N ão a na ló gi ca I m ita tiv a A nal ógic a Axiológica Predicativa Im plicativa Imagem estética Imagem de reportagem Foto de identidade Painel roteiro Foto de moda Imagem de publicidade Caricatura Imagem de propaganda Dom inâ nci a do eu Dominância do ele Dominância do você Emissor (função expressiva) Mensagem (função poética) Destinatário (função conativa) A representação Figura 24 – Representação da comunicação e das funções da linguagem segundo Péninou Fonte: Souza (2006, p. 43). No caso da imagem publicitária, ela se movimenta em vários pontos do esquema de comunicação. Devido ao foco da publicidade ser o outro, o foco central é o receptor (destinatário); como a publicidade anuncia alguma coisa, seu ponto é também o referente; além disso, o texto publicitário pode atingir a função poética, atingindo, então, a mensagem. Enfim, a propaganda situa‑se no ponto de encontro da bissetriz direto com o arco, mas ela pode se movimentar em outras direções. A relação das outras imagens com o esquema de Péninou ocorre assim: a imagem jornalística (fotorreportagem), apesar de estar entre o emissor e o referente, é, na verdade, mais próxima do referente; a imagem artística (como uma fotografia) aproxima‑se do emissor. Uma fotorreportagem, por exemplo, é uma imagem. Em termos da teoria da enunciação, é um enunciado. Os linguistas, pós‑Benveniste (1976) e pós‑Barthes, perguntaram‑se se é possível observar marcas da enunciação na imagem. O esquema de representação de Péninou distingue a função implicativa em imagens 71 TEORIA DA COMUNICAÇÃO publicitárias, quando a imagem se dirige ao destinatário que olha para a imagem. A forma implicativa está ligada à situação frontal dos personagens e os olhos fixam‑se no destinatário que os encara. Se o olhar se fixa em um objeto ou os personagens fogem oblíquos, longe, a relação com o destinatário não existe. Observação A posição frontal, com o olhar direto no destinatário, é a marcação do eu. Ressaltamos, porém, que existem outros fatores de marca enunciativa do eu além do olhar direto. A orientação do corpo e do rosto do personagem, a grandeza do plano, a profundidade de campo e a distância são outras marcas, conforme Carontini (SOUZA, 2006), que formulou um quadro geral da enunciação visual. Quadro 14 – Variáveis da enunciação visual Direção do olhar do personagem Orientação do corpo do personagem Orientação do rosto do personagem Plano Profundidade de campo Distância Eu (nós) exclusivo Tu (você) Dirigido para o destinatário Olhar “eu” De frente Três quartos Frontal Três quartos Plano próximo Plano americano Primeiro plano Segundo plano (profundidade reduzida) Pessoal Ele oposicional Dirigido para um ponto do campo diegético ou fora do campo Olhos fechados Ausência de personagem De perfil De costas Um quarto (frontal) Três quartos De perfil Rosto virado Um quarto Plano próximo Plano americano Plano médio Close Segundo plano Terceiro plano Primeiro plano Social Nós inclusivo Olhos escondidos Dirigido para um ponto do campo diegético ou fora do campo De costas Um quarto Rosto virado Um quarto Plano próximo Plano americano Primeiro plano Pessoal Ele nãooposicional Dirigido para um ponto do campo diegético ou fora do campo Olhos fechados Olhos escondidos Ausência de personagem Perfil Um quarto De costas Três quartos De frente Perfil Um quarto De costas Três quartos Plano médio Plano americano Plano geral Primeiro plano Segundo plano Terceiro plano Social Pública Íntima (pessoal) Fonte: Souza (2006, p. 127). A postura abrange tanto a orientação espacial do corpo, do rosto e do olhar do personagem na imagem quanto sua relação com o destinatário. A distância é outra variável da linguagem do espaço, diferenciando‑se em distância íntima (em que os corpos dos personagens ficam próximos, podendo perceber o odor e o hálito), distância pessoal (é a adaptada à conversa interpessoal, em que a voz e a vista possuem intensidade moderada), distância social (o contato pessoal não é possível por causa do caráter formal necessário nas relações profissionais e sociais), distância pública (é a relação despersonalizada). 72 Unidade II A distância combina com os tipos de planos. Há o plano geral (extensão vasta do cenário), médio (personagem em pé e objetos inteiros do cenário), americano (captação do personagem a partir do quadril), próximo (captação do personagem a partir do busto) e close (captação do rosto do personagem). Assim, uma distância íntima combina com o plano close. Quanto à profundidade de campo, relaciona‑se à noção de perspectiva. Permite efeito de deslocamento de um móvel, dando impressão de estagnação, efeito de simultaneidade de várias ações, ou de personagem em primeiro plano com cena vista por seus olhos em ocularização interna. Outra vertente da semiótica que também passou a se preocupar com textos visuais foi da linha americana desenvolvida por Charles Sanders Peirce (SANTAELLA, 2019). Observação Charles Sanders Peirce (1839‑1914) dedicou‑se a estudar, além de lógica, matemática, física, astronomia, química, linguística, psicologia, história e filosofia. O conjunto de sua obra é considerado a maior realização da filosofia americana. Os estudos semióticos de Peirce são decorrentes do fim do século XIX e início do século XX, mas aplicados à leitura e interpretação de imagem depois das análises de Barthes. Observação No Brasil, a partir da década de 1980, a linguista Lucia Santaella passou a ser a maior referência da semiótica de Peirce. Nas décadas de 1960 e 1970, houve uma expansão dos meios de comunicação de massa (TV, jornal, livros best‑sellers, HQ etc.) e os signos de papel ganharam outras texturas e cores, mais densidades e aromas, e uma série de dimensões que já não mais podiam ser contidas unicamente nos limites primeiramente designados pelo estruturalismo. O signo ganha vida! A Semiótica amplia‑se; confronta‑se; vela‑se; revela‑se. Peirce (1839‑1914) começa a ser relido. Novas problemáticas aderem‑se ao campo semiótico. O potencial de análise do signo verbal é acrescido de elementos não verbais (KESKE, 2007, p. 131). Pelo fato de que não existe mensagem sem signos nem comunicação sem mensagem, a semiótica estuda os processos de comunicação e torna‑nos hábeis para “compreender o potencial comunicativo de todos os tipos de mensagens, nos variados efeitos que estão aptas a produzir no receptor” (SANTAELLA, 2019, p. 59). O nível emocional, sensório e metafórico‑simbólico advém desses efeitos nos processos comunicativos que incluem a significação (representação), a referência e a interpretação das mensagens. 73 TEORIA DA COMUNICAÇÃO A análise da significação leva‑nos a explorar o interior das mensagens no que concerne às qualidades e sensorialidade de suas propriedades internas, como as formas, cores, luz, linhas, volumes, movimento etc., bem como ao contexto – aqui e agora – da mensagem. Além disso, a significação refere‑se ao que a mensagem tem de geral, convencional, cultural. A referência, por sua vez, é o que as mensagens indicam, aquilo a que se referem ou se aplicam; a referência pode ser meramente sugestiva tanto sensorial quanto metafórica das mensagens, pode indicar algo que está fora delas ou pode representar ideias abstratas e culturalmente compartilhadas. A interpretação, por fim, relaciona‑se com os efeitos que as mensagens podem despertar no receptor; os efeitos podem ser emocionais (o receptor é tomado por um sentimento), reativos (o receptor é levado a agir em função da mensagem recebida) ou mentais (a mensagem leva o receptor a refletir). Nessa perspectiva, foi preciso fazer uma revisão do papel da circunstância de comunicação. Os receptores assumem atitudes; a passividade deles só é vista no esquema estruturalista, como de Jakobson. Na verdade, os receptores apropriam‑se de determinados signos, conforme a situação comunicativa, ou transformam um código em outro, por exemplo fazem um agradecimento verbal em uma comunicação cotidiana e assumem o aplauso ao final de um espetáculo. Além dessa interferência do receptor, os fatores externos também contribuem no processo comunicacional: a sociedade atribui um valor para o signo, o qual foi usado segundo a vivência cultural dos receptores, o próprio signo tem uma história pautada na política e na ideologia, presente em um tempo e espaço, sofrendo interferência no processo de (res)significação. Peirce trabalha com a noção de signo icônico, indicial e simbólico. A imagem de uma casa, um parque, seja ela pintada, fotografada, filmada, é icônica, pois se assemelha com os objetos percebidos devido à aparência. Já o índice possui uma existência material, física, tomando corpo em algum suporte. Um bom exemplo é o da fotografia; ela e o ser capturado existem no espaço e no tempo. A figura a seguir é uma fotografia da semioticista Santaella, que mostra que a fotografia é um suporte e, portanto, um índice, e a imagem constante nela é um ícone, ou seja, uma representação semelhante ao objeto capturado pela câmera. Figura 25 – Índice e iconicidade na fotografia Fonte: Santaella (2019, p. 273). 74 Unidade II O valor de uma imagem não é estritamente pela sua semelhança com o objeto capturado (por uma câmera, por exemplo). A imagem constitui um signo simbólico, o qual é uma construção convencional. Conforme Santaella (2019), Peirce opõe‑se à noção de signo de Saussure; enquanto para este o signo é um jogo binário entre significado e significante, Peirce expande a noção de signo em vértice tríplice: signo, objeto e interpretante. Objeto Representamen Interpretante Figura 26 – A tríade semiótica de Peirce O signo (representamen) é uma coisa que representa outra coisa. Nesse caso, tanto para Saussure quanto para Peirce, o signo é simbólico e convencional, sendo essa convenção construída culturalmente. Em síntese, todos os signos são simbólicos. O objeto, por sua vez, é uma forma de representação do referente, o qual pode ser pessoa, sentimentos, produtos simbólicos como paz etc. O interpretante não é o indivíduo em si, mas o ser que representa um grupo social, um pensamento social. O interpretante é um mediador que relaciona o signo ao objeto que ele representa. O signo representa a realidade, revelando‑a para nós. Não conhecemos diretamente a realidade, porque é mediada pelos signos. Passamos por um processo para atingir o conhecimento: do quase signo ao signo simbólico, configurando o signo: • primeiridade; • secundidade; • terceiridade. Quadro 15 – Relações do signo Relações Primeiridade Secundidade Terceiridade Signo em relação ao seu objeto Ícone Índice Símbolo A primeiridade refere‑se à qualidade sensível das coisas. Quando se observa o verde, por exemplo, ou se sente um cheiro. É, deste modo, o signo presente e imediato. A secundidade é a categoria da existência em relação a alguma coisa. É a identificação do sentimento de primeiridade, portanto tem relação com conhecimentos já adquiridos. A memória é um exemplo de secundidade, pois se refere a algo já conhecido e que uma primeiridade aciona. Um exemplo da relação é uma reportagem jornalística. Não é o objeto emsi, refere‑se a ele. A terceiridade é simbólica. Produz uma síntese explicativa entre o primeiro e o segundo correlatos do signo em caráter arbitrário. Todas as palavras e frases são símbolos, assim como as logomarcas, e a cor vermelha representar paixão, por exemplo. 75 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Por fim, a linha semiótica de Greimas também apresenta estudos sobre a visualidade. Seguindo o esquema de Hjelmslev (figura 20), um texto é fruto da relação entre um plano da expressão e um plano do conteúdo, sendo o plano do conteúdo o significado do texto e o plano da expressão, a manifestação do conteúdo em um sistema de significação verbal, não verbal ou sincrético. Lembrete Sistema verbal: línguas naturais. Sistema não verbal: música, artes plásticas. Sistema sincrético: várias linguagens (canções, filme etc.). No caso de um texto não verbal, o plano do conteúdo é o significado do texto, por exemplo, futebol, natureza, nudez etc. O plano da expressão é a manifestação do conteúdo em um sistema de significação não verbal, tal como o linear, o pictórico etc. Vejamos um exemplo. Figura 27 – Fotografia de E. Boubat Fonte: Pietroforte (2007, p. 25). A análise do plano do conteúdo da fotografia pode nos levar à categoria do nu em tensão entre natureza e cultura. O busto nu figurativiza a natureza do corpo humano feminino, mas esse corpo nu está revestido de adereços que são culturais: o arranjo do cabelo e o tecido que envolve a cintura. Nesse sentido, o nu deixa de ser simplesmente o despido, a natureza, e passa a ser o nu articulado com valores culturais. Quanto ao plano da expressão, o nu de Boubat destaca a espádua da modelo, que está de costas e com adereços. A superfície de fundo é homogênea em contraste com as formas do corpo feminino e 76 Unidade II seus adereços. Como a fotografia é em preto e branco, os contornos e as gradações são distintos nessa falta de colorido. O estilo da fotografia segue o das artes plásticas, concernente ao estilo linear e ao estilo pictórico. O estilo linear consiste em traçado feito por meio de linhas, e o estilo pictórico constitui‑se de traçado feito por meio de manchas. Assim, enquanto as linhas fecham as formas em uma pluralidade de elementos que se tornam descontínuos, as manchas criam efeito de profundidade e formas abertas, sem os limites do estilo linear, criando unidade entre elementos por meio da obscuridade das sombras. As categorias da expressão são: Quadro 16 – Categorias do plano da expressão dos estilos das artes plásticas Linear Pictórica Desenho Linha Mancha Contorno Fechado Aberto Disposição Plano Profundidade Totalidade Multiplicidade Unidade Clareza Absoluta Relativa Para a linha greimasiana, toda imagem é passível de aplicação da teoria do percurso gerativo do sentido, que visa a uma estruturação lógica de direcionamento do sentido das imagens. O percurso gerativo é composto de três níveis: • estrutura profunda; • estrutura superficial; • estrutura de manifestação. As estruturas profundas são denominadas de nível fundamental, e nele surge a significação como uma oposição semântica mínima, ou seja, a temática é apresentada em relação dicotômica. As estruturas superficiais, que denominam o nível narrativo, organizam a narrativa do ponto de vista de um sujeito, implicando sempre a sucessão, o encadeamento e a transformação de estados. Por fim, a estrutura de manifestação encadeia temas, figuras e os efeitos de sentido no discurso. No nível profundo, a relação de sentido do tema encontra‑se em dois planos: plano da expressão e plano do conteúdo. O plano da expressão está vinculado ao visível e podemos identificar os elementos que constituem esse plano por meio, por exemplo, das linhas e cores de que uma imagem é composta. Já no plano do conteúdo, os aspectos relacionados ao sentido são destacados, pois a relação dicotômica é estabelecida com base nos elementos subjetivos da temática na qual a imagem se propõe. 77 TEORIA DA COMUNICAÇÃO O quadrado semiótico articula a lógica do percurso gerativo do sentido, estipulando parâmetros sistemáticos para o percurso do olhar no ato da leitura da imagem. A articulação lógica de qualquer categoria semântica é representada visualmente por meio do quadrado semiótico. Partindo da noção saussuriana de que o significado é primeiramente obtido por oposição no mínimo entre dois termos, constituindo uma estrutura binária. Chega‑se ao quadrado semiótico por uma combinatória das relações de contradição e asserção. Podemos afirmar que esse procedimento é estruturalista na medida em que um termo não se define isoladamente, mas sim por meio de relações entre outro elemento que contraria o primeiro. Segundo Fidalgo (1999, p. 94): Tomando S1 como masculino e S2 como feminino, o primeiro passo é negar S1, produzido assim a sua contradição ~S1, que se caracteriza por não poder coexistir simultaneamente com S1 (há uma impossibilidade de os dois termos estarem presentes ao mesmo tempo). A seguir afirma‑se ~S1 e obtenha‑se S2. Isto é, se não é masculino é feminino. Esta é uma relação de implicação. O passo assim descrito representa‑se graficamente do seguinte modo: S1 S2 ~S1 Figura 28 – Contradição ~S1 – S2 O segundo passo consiste no mesmo procedimento a partir de S2, pelo que obtemos o seguinte: S1 S2 ~S1 Figura 29 – Obtenção de ~S2 Os dois esquemas constituem, então, o quadrado semiótico. S1 S2 ~S1 ~S2 Figura 30 – Quadrado semiótico 78 Unidade II No quadrado semiótico, as linhas bidirecionais representam uma relação de contradição, as bidirecionais tracejadas representam uma relação de contrariedade e as linhas unidirecionais, uma relação de complementaridade. Dessa representação surgem seis relações: • S1 ↔↔S2, que constitui o eixo dos contrários; • ~S1 ↔ ~S2, que constitui o eixo das subcontrárias; • S1 ↔ ~S1, que constitui o esquema positivo; • S2 ↔ ~S2, que constitui o esquema negativo; • S1 ↔ ~S2, que constitui a dêixis positiva; • S2 ↔↔~S1, que constitui a dêixis negativa. As fundamentações estáveis de todo o processo gerativo têm a sua representação articulada pelo quadrado semiótico, cujo poder operatório é grande e fundamental, aplicado a qualquer instância significativa. As relações de identidade encontram‑se a partir das estabelecidas nas estruturas de profundidade. Em contrapartida, possui uma dinâmica relacional que induz ao processo gerativo. Vejamos um exemplo dado por Pietroforte (2007). A gravura de Henrique Alvim Correia (1876‑1910), a seguir, foi um dos expoentes da arte brasileira na virada do século XIX para o século XX. A obra sem título foi confeccionada em carvão e aquarela sobre papel (21,7 cm × 29,3 cm). Figura 31 – Gravura sem título, de Henrique Alvim Correia Fonte: Pietroforte (2007, p. 67). 79 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Trata‑se de uma jovem, praticamente nua, atada a um poste e exibida para a multidão de mulheres, bem mais velhas, que por sua vez bradam contra ela com gestos impetuosos e expressões agressivas. Para uma sátira de costumes, a cena pintada é bem violenta, pois mostra a beleza de uma jovem sendo massacrada covardemente pela feiura de uma multidão. Segundo Pietroforte (2007), há uma timia construída em torno dessa beleza devido a uma sensibilização fórica, ou seja, sensibilização negativa por parte da multidão, que coloca em questão a derrota das opressoras e torna a personagem castigada, de certo modo, vencedora. Podemos caracterizar um tema pela recorrência de motivos. Os temas são o produto de um conjunto de discursos sobre os mesmos tópicos culturais. Os temas variam nos domínios de abrangência e podem também se relacionar entre si. Os tópicos culturais podem ser ideológicos, políticos, sexualidade, justiça etc. Na gravura sem título de Alvim Correia identificamos dois temas principais, o mais evidente é o tema do castigo sofrido pela exposição pública da condenada, o outro tema é o da sexualidade e do tratamento dado à mulher dentro de uma concepção determinadade seu papel sexual. O fato de expor publicamente a tortura e até mesmo a morte de um condenado é comum na história das penalidades. O que se representa nesse rito social é o exemplo, uma vez que de um costume moral violado resulta um rito de castigo como consequência. Com base na análise semiótica greimasiana, obtemos, então, duas orientações possíveis: • opressão → não opressão → liberdade; • liberdade → não liberdade → opressão. Na teoria semiótica, essas operações são sistematizadas no quadrado semiótico: S1 = liberdade S2= opressão ~S1= não opressão ~S2= não liberdade Figura 32 – Aplicação do quadrado semiótico na sistematização de opressão/liberdade O que aparece na imagem da pintura é o percurso da negação da liberdade, a não liberdade, e a afirmação da opressão, de modo que a condenada presa é uma figura que representa a não liberdade, a multidão, a confirmação da opressão. Esse percurso no plano do conteúdo (PC) divide o plano da expressão (PE) do quadro, verticalmente, em dois espaços, fazendo com que o da esquerda seja o espaço da não liberdade e o da direita o espaço da opressão. 80 Unidade II PC não liberdade PE esquerda opressão Direita Figura 33 – Percurso da negação da liberdade Fonte: Pietroforte (2007, p. 67). PC Não liberdade opressão PE Não luz sombra Figura 34 – Percurso da não liberdade/não luz – opressão/liberdade Fonte: Pietroforte (2007, p. 67). São essas as orientações de sentido que constroem o tema do castigo. Há, então, a categoria da semântica fundamental vida × morte no tema da sexualidade. Na gravura, o que é pintado é a negação da vida e a afirmação da morte, respectivamente, representadas na moça amarrada e na plateia que a condena. De acordo com o quadrado semiótico, o que aparece no desenho, no seu plano de conteúdo, é o percurso não vida → morte. 81 TEORIA DA COMUNICAÇÃO PC Não vida morte Figura 35 – Percurso não vida/morte Fonte: Pietroforte (2007, p. 67). Orientado o sentido no plano do conteúdo, a categoria vida × morte também está relacionada com a categoria de expressão luz × sombra. No lado esquerdo da gravura, a moça é desenhada de tal modo que ela é um ponto de luz englobado por sombras que, no lado direito, vão se transformar na multidão. Se a luz pode ser descrita por meio da categoria de expressão luz × sombra, a figura da moça realiza o termo luz e a figura da multidão, o termo sombra. A figura que realiza a liberdade é a moça desnuda e relacioná‑la à não liberdade deve‑se ao fato de ela estar amarrada em um tronco para ser castigada. Já a multidão é a figura que realiza a opressão, pois a confirma em seu julgamento sobre a condenada. Portanto, a figura da moça realiza no plano do conteúdo a liberdade e no plano da expressão, a luz; contrariamente, a figura da multidão realiza no plano do conteúdo a opressão e no plano da expressão, a sombra. PC Não liberdade x opressão PE Não luz x sombra Figura 36 A gravura pode ser lida em um percurso a partir da esquerda no plano do conteúdo como a liberdade que está sendo negada, quando a moça é amarrada e exposta nua. Já no plano da expressão, a luz é negada pela sombra quando a luz é envolvida pelas sombras englobantes. No espaço direito, há no plano do conteúdo a opressão afirmada pela multidão julgadora e no plano da expressão a afirmação da sombra. Também é possível articular as categorias de expressão em um quadrado semiótico de modo que o semissimbolismo determinado vai seguir o percurso da não liberdade/não luz para a opressão/sombra. 82 Unidade II Exemplo de aplicação 1) A noção de signo ultrapassa a língua na área de semiótica. Os linguistas‑semioticistas procuram identificar os signos não verbais, entre eles há um muito interessante e presente em diferentes textos: o ritmo. A palavra ritmo é polissêmica, significando tanto um andamento da música (um signo), a velocidade com a qual se executa uma peça musical, e, nesse sentido, classifica‑se em adágio, andante e alegro, quanto um gênero musical; por meio de uma divisão regular de acentuação de tempos fortes e fracos, temos: samba, baião, maracatu, rock, jazz etc. A) Pesquise os ritmos adágio, andante e alegro. Procure na internet vídeos que apresentam sonoramente a diferença entre os ritmos. B) Ouça a música “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Tente analisar a partitura a seguir. Figura 37 – Partitura da música “Garota de Ipanema” Fonte: Jobim e Moraes (1963, p. 2). 83 TEORIA DA COMUNICAÇÃO C) A música “Garota de Ipanema” é dividida em duas partes. Cada parte segue um ritmo diferente. Identifique cada ritmo ou anote suas impressões, mesmo sem o conhecimento técnico. D) Sabendo que o ritmo da música “Garota de Ipanema” é andante e há contraste rítmico entre a primeira parte e a segunda parte da música, monte um quadrado semiótico, na linha da semiótica greimasiana, apontando justamente esse contraste: • 1ª parte da música: descreve o desfile da garota de Ipanema; o ritmo é mais acelerado; há mais acentos tônicos; essa parte é mais rítmica que melódica; • 2ª parte da música: descreve o estado passional do enunciador‑enunciado; ritmo menos acelerado; essa parte é mais melódica que rítmica. 2) Se há um ritmo acelerado e outro desacelerado em uma música, podemos falar em uma pintura acelerada e em outra desacelerada? Compare as duas pinturas, ambas de Mondrian. Qual das pinturas tem mais ritmo, é mais acelerada? Como os significantes estão construídos na tela para dar ideia de ritmo? A) Composição com traços cinzentos B) Composição com amarelo Figura 38 – Duas pinturas de Mondrian Fonte: Pietroforte (2007, p. 109). Resolução 1) O ritmo, da primeira para a segunda parte, não muda a batida ou andamento, mas a forma de subdividir os acentos tônicos e átonos. A tonicidade estabelece a forma na qual os acentos podem ser sentidos em relação a essa extensão. Assim, quanto mais acentos tônicos, mais marcações e mais ritmo; quanto menos ritmo, mais duração melódica. 2) Na música, as marcações tônicas são da ordem do tempo e sua realização é uma duração; na pintura, são da ordem do espaço e sua realização é uma localização. As muitas linhas existentes e próximas umas das outras, na pintura Composição com traços cinzentos, causam impressão de aceleração, ou seja, mais ritmo. 84 Unidade II No que diz respeito à comunicação e à enunciação, a linha discursiva da semiótica considera a comunicação um processo das ações humanas. A comunicação possibilita relações intersubjetivas e fundadoras da sociedade. Comunicar implica: a quem o eu se dirige, o saber desse enunciatário, o que será comunicado, de que maneira etc. Nessa perspectiva, um esquema de comunicação mostraria que o processo é instável e dinâmico, e ela se materializa pela enunciação. Na enunciação, um eu se dirige a um tu e ambos são considerados actantes, pois participam da ação enunciativa. O enunciatário não é apenas o receptor da comunicação; na verdade, é um sujeito que também produz o discurso, porque a leitura é um ato de linguagem (ato de significar) da mesma maneira que a produção de discurso propriamente dita. Nesse sentido, enunciador e enunciatário são chamados, na vertente da semiótica greimasiana, de sujeito da enunciação devido justamente ao fato de cobrir as posições actanciais de enunciador e enunciatário. Por conseguinte, o processo de comunicação se caracteriza por ser intrinsecamente dialógico. Em síntese, a semiótica visual é adotada por grandes vertentes da semiótica para estudar a linguagem da visualidade, que pode ser o espaço em si, a arquitetura, os textos visuais (como a pintura, a fotografia, o anúncio publicitário, entre tantos outros), mas a visualidade pode ser construída em texto verbal e é igualmente estudada. Ressaltamos que cada vertente da semiótica possui suas teorias e métodos de estudo, como verificamos nesta unidade. 5.2 Comunicação em linguagem sincrética Bordenave (2006), por meio de incríveis exemplos, destaca que a comunicaçãoocorre em todas as esferas socioculturais e se concretiza por meio de diferentes e diversas linguagens. Caro aluno, visualize mentalmente um estádio gigantesco de futebol. Vemos as fumaças dos rojões que quase escondem os tambores, foguetes e bandeiras coloridas; a arquibancada está lotada; fotógrafos e repórteres acompanham e transmitem a partida pelas mídias; às margens do campo, técnicos e outros especialistas gritam orientações, aguardam, agitam‑se. Temos excesso de ruídos e gritos: dos sistemas áudios do estádio, informações sobre os times e eventuais substituições; torcedores gritam seu apoio caloroso (ou ofendem o rival); o “zumbido constante que vira pandemônio quando estoura um gol” (BORDENAVE, 2006, p. 12). Além disso tudo, há enormes telas que rodeiam o campo com anúncios. 85 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Figura 39 – Estádio de futebol Disponível em: https://bit.ly/3zDhY0I. Acesso em: 28 ago. 2021. Nesse exemplo, verificamos as diversas linguagens, desde a visual (as cores das bandeiras de cada time, dos uniformes dos jogadores até as formas e movimento dos anúncios nas telas), a auditiva (o apito do juiz, o ritmo dos tambores etc.) até a verbal (as orientações berradas, o apoio ou xingamentos dos torcedores, entre outras situações orais, e nomes das marcas anunciadas na tela e outros dizeres escritos). Há também toda a linguagem corporal incessante: os gestos, os dribles experientes, as emoções percebidas nas faces. Essas linguagens todas comunicam o quê? Um texto: a partida de futebol. Comunicam sobre o processo da partida, os efeitos das orientações dos técnicos e as tomadas de decisão dos jogadores, a reação dos torcedores, a oportunidade de anunciar propagandas em eventos populares, entre outras informações e interações. Exemplo de aplicação Agora, faça um levantamento das possíveis linguagens presentes nos exemplos seguintes e o que elas comunicam. 1) Feira livre A feira livre, aquela montada nas ruas e ao ar livre, ocorre todos os dias da semana, porém, para nosso exemplo, imagine que seja sábado e o início da feira está a 50 metros de sua casa. Os feirantes são sempre os mesmos a cada semana e você até sabe o que cada um fala para chamar atenção da freguesia. Muitas mulheres e homens se esbarram – ou pior, esbarram o carrinho nos nossos pés – com carrinhos, sacolas grandes coloridas, passam apressados ou apreciam com tranquilidade as frutas, cheiram os peixes, experimentam a laranja. Lá no fim da feira ou no começo dela, há a aglomeração esperada de assíduos compradores de pastel e caldo de cana‑de‑açúcar. 86 Unidade II 2) Câmara dos Deputados Todo fim de ano, os políticos eleitos fazem a famosa paradinha de descanso. Visualize, então, o primeiro dia de sessão depois do recesso: o local ocupado, um agito maior do que o comum devido à votação de um projeto audacioso, grupos da direita em antagonismo com o pessoal da esquerda; as galerias lotadas com os gritos de populares admitidos ou não na Câmara. Há também um policiamento mais visível e os jornalistas com seus microfones em registro do confronto. De casa, muitos telespectadores acompanham todo o drama político. Resolução Em ambas as cenas, percebemos a linguagem verbal (conversas, textos escritos), um enxame de informação visual, linguagem sonora (gritos, batidas etc.). São cenas ricas em linguagem e a comunicação se efetiva na interação dos elementos da linguagem. As cenas descritas (estádio de futebol, feira livre etc.) mostram‑nos que a comunicação é construída pelo meio ambiente social. No estádio de futebol, a comunicação aparece nos gritos das torcidas, nas cores das bandeiras, nos números das camisetas dos jogadores, nos gestos, apitadas e cartões do juiz e dos bandeirinhas, no placar eletrônico, nos alto‑falantes e radinhos de pilha, nas conversas e insultos dos torcedores, em seus gritos de estímulo, no trabalho dos repórteres, radialistas, fotógrafos e operadores de TV. O próprio jogo é um ato de comunicação (BORDENAVE, p. 2006, p. 15). A comunicação também está na feira e a interação entre as pessoas ocorre na própria exibição de produtos, na plaquinha de preços, na barganha entre feirantes e compradores. A comunicação existe na vida em sociedade, ou, em outras palavras, não existe sociedade sem comunicação e vice‑versa. São inúmeros microambientes em que a comunicação ocorre, é desenvolvida e faz crescer a interação humana. Entre esses ambientes, temos a cidade. Para a semiótica, a cidade é um texto. Saiba mais A cidade é um texto. Estranhou, caro aluno? É isso mesmo! A cidade passou a ser estudada como texto, principalmente da década de 1970 para cá. No Brasil, uma das especialistas é Lucrécia Ferrara, com várias obras publicadas sobre o assunto. FERRARA, L. d’A. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel, 1988. 87 TEORIA DA COMUNICAÇÃO A semiótica estuda o ambiente urbano, seguindo o método de leitura que não privilegia o verbal. Na cidade, a comunicação verbal perde sua hegemonia logocêntrica (a palavra como centro) e constitui‑se de vários signos de leitura: cheiros, sons, tamanhos, texturas, formas e tantos outros. A leitura apoia‑se, então, no uso e na imagem física da cidade. De acordo com Ferrara (1988), uma leitura semiótica da cidade consiste, metodologicamente, em: • observação; • documentação e depoimentos em jornais e revistas; • documentação iconográfica: mapas, croquis, fotografias, desenhos, plantas; • documentação audiovisual (vídeo), documentação visual (fotografias); • entrevistas. Roland Barthes (2007) é um grande exemplo de leitor da comunicação cheia de signos, de linguagens. Esse notório linguista e semioticista analisou situações comunicativas bem diferentes da esfera da língua (seja oral, seja escrita). Barthes, por exemplo, trouxe‑nos um estudo incrível sobre fotografia, como já apontamos anteriormente. Outro estudo que nos encanta é a leitura semiótica que ele fez do Japão. No início da década de 1970, após sua viagem ao Japão, ele publicou a obra O império dos signos, na qual nos apresenta uma leitura de descobertas de múltiplos signos: sensoriais, icônicas, visuais e tantas outras. Saiba mais Para se encantar, leia a obra de Barthes. A obra trata de várias situações comunicativas, em que os ambientes do cotidiano do Japão e sua cultura tiveram uma leitura semiótica, em sua pluralidade de linguagem, por parte do autor. BARTHES, R. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Barthes (2007), em sua obra, analisou a forma poética do haicai, buscou uma interpretação do pensamento zen, experimentou os tipos de comida, se interessou pela maneira como os japoneses comem e verificou o lazer japonês. Leia um trecho da obra como degustação: Mesmo sem considerar emblemático o jogo conhecido das caixas japonesas, alojadas uma na outra até o vazio, podemos já ver uma verdadeira meditação semântica no menor pacote japonês. Geométrico, rigorosamente desenhado e no entanto assinado em algum lugar por uma dobra ou um laço assimétricos, pelo cuidado, pela própria técnica de sua confecção, a combinação do papelão, da madeira, do papel, das fitas, ele já não é o acessório passageiro do objeto 88 Unidade II transportado, mas torna‑se ele mesmo objeto: o invólucro, em si, é consagrado como coisa preciosa, embora gratuita; o pacote é um pensamento; […]. Assim, a caixa brinca de signo: como invólucro, écran, máscara, ela vale por aquilo que esconde, protege e contudo designa; […] como se a função do pacote não fosse a de proteger no espaço, mas a de adiar no tempo; é no invólucro que parece investido o trabalho da confecção (do fazer), mas exatamente por isso o objeto perde algo de sua existência, torna‑se miragem: de invólucro a invólucro, o significado foge, e, quando finalmente o temos (há sempre qualquer coisinha no pacote), ele parece insignificante, irrisório, vil: o prazer foi experimentado: o pacote não é vazio mas esvaziado: encontrar o objeto que está no pacote,ou o significado que está no signo, é jogá‑lo fora: o que os japoneses transportam, com uma energia formigante, são afinal signos vazios. Pois há, no Japão, uma profusão daquilo que poderíamos chamar de instrumentos de transporte; eles são de toda espécie, de todas as formas, de todas as substâncias: pacotes, bolsos, bolsas, malas, panos (o fujo: lenço ou xale camponês com que se embrulha a coisa), todo cidadão tem, na rua, uma trouxa qualquer, um signo vazio, energicamente protegido, apressadamente transportado… (BARTHES, 2007, p. 23). Observação Precisamos lembrar que na época, nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, o Japão ainda era um país em recuperação político‑econômica, e, de forma geral, pouco conhecido em sua cultura pelos ocidentais. Por conseguinte, encontramos na obra de Barthes (2007), por exemplo, o termo “palito” em vez de hashi. Em sua leitura plurissígnica, Barthes comparou a maneira de a população do Ocidente comer com a maneira japonesa. Figura 40 Fonte: Löbler et al. (2019, p. 26). 89 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Enquanto os europeus têm modo bárbaro, usam a faca como instrumento agressivo, sem delicadeza, misturando os alimentos nos pratos, os japoneses dão ao ato de comer: • Função dêitica: o palito mostra a comida, designa o fragmento, faz existir pelo próprio gesto da escolha. • Função de pinçar o alimento: nunca fura, corta, fende, fere; apenas colhe, vira, transporta. • Função de separar, afastar, bicar o alimento: nunca de cortar e espetar; nunca violentar o alimento. • Função de trasladar: faz deslizar o alimento até os lábios. Outro aspecto que chamou a atenção do linguista foi a ausência de nome de rua ou placas indicadoras de nomes. Os japoneses criaram um esquema para representar o endereço: desenhado no momento comunicacional ou impresso. O levantamento geográfico situava o domicílio a partir de um ponto de referência conhecido entre os interlocutores. Figura 41 – Representação de caderno de endereço Segundo a tradutora Leyla Perrone‑Moisés, Barthes inventa o próprio Japão; um Japão “desejado, sonhado, saboreado, transformado em texto único, texto barthesiano – o mais prazeroso e deslumbrante de sua obra” (BARTHES, 2007, n.p.). Exemplo de aplicação 1) Leia o texto a seguir. Trata‑se de artigo científico, fundamentado em teorias para analisar a cidade. Durante a leitura: A) Comprove que a cidade é considerada um texto. 90 Unidade II B) Faça um levantamento das linguagens da cidade que são analisadas no artigo. C) O autor analisa a cidade sob algumas perspectivas teóricas: cidade percebida e cidade comunicada. Que aspecto da cidade é analisado em cada perspectiva? D) Escreva um texto breve, refletindo sobre as várias situações comunicacionais entre a cidade e as pessoas. Cidade, modos de usar: um ensaio sobre leitura […] Ler o urbano na cidade No final dos anos 50, Kevin Lynch (1999) fez uma das pesquisas pioneiras sobre a leitura do espaço urbano pelos cidadãos e sua sistematização conceitual e metodológica, chegando a um conjunto de elementos físicos preponderantes na criação de uma imagem da cidade. Tendo esse estudo por base, Ken‑Ichi Sasaki (2000) discorda do privilégio atribuído à visualidade presente nos cinco elementos identificados por Lynch como estruturadores da cidade, principalmente quando são reforçados como receita para que uma cidade se torne de fácil apreensão e, assim, “bela”. Na verdade, nesse estudo inaugural Lynch não preconiza esses elementos (vias, barreiras, regiões, cruzamentos e marcos referenciais) como partido de projeto; ele apenas detectou, a partir das entrevistas e desenhos de seus entrevistados, os elementos preponderantes e reincidentes que poderiam ser considerados como estruturais da imagem coletiva das cidades pesquisadas. O que muito aconteceu foi o fato de, em novas pesquisas, desconsiderando as características específicas, tanto físicas quanto culturais das cidades, autores procurarem, a todo custo, identificar os cinco elementos de Lynch – e não perceberem que os elementos estruturais não são dados a priori, e sim resultantes da vivência urbana. Nesse sentido, Sasaki propõe a ideia de tatilidade urbana, na qual a vivência corpórea traria o conhecimento mais profundo da cidade. Michel de Certeau (1996, p. 171) já havia debatido que no “corpo a corpo” dos pedestres com a cidade é que passamos a conhecê‑la, como se “uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada”. Nessa cegueira exploratória, portanto sem possibilidade de construção de uma visibilidade urbana, e convergente à apreensão tátil de Certeau (1996, p. 176), Sasaki coloca seu conceito de tatilidade urbana. Tendo a cidade de Tóquio e suas montanhas como exemplo, Sasaki afirma que o Monte Fuji, a quilômetros da cidade, é um ordenador determinante da paisagem urbana, e pode ser encarado como uma referência visual; porém, com mais força no cotidiano urbano estão as montanhas internas à cidade, sobre as quais ela se espalha, não se configurando, portanto, como referências visuais, mas sim – e isso é seu destaque – como referências táteis. Experiência semelhante de cidade montanhosa sem marcos visuais flagrantes, na qual a estrutura urbana geral para seus habitantes e o senso de localização ocorrem pela diferença de relevo, podemos encontrar em São Carlos, interior do estado de São Paulo, onde os bairros são identificados por serem altos ou baixos (estes junto de rios), e mesmo os poucos marcos referenciais na avenida principal estão bastante vinculados à sua distribuição no relevo. 91 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Porém, Sasaki nos parece apresentar a mesma deficiência que ressalta, ao contrapor a tatilidade à “exclusiva” visibilidade observada nos estudos de Lynch: ele não apresenta alternativas metodológicas. Uma pergunta que sempre deveria ser posta a críticos – de preferência por eles mesmos, antes de publicarem suas ideias: se não isso, o que sugere? O corpo, a tatilidade como forma de conhecimento urbano é uma ideia proveitosa, e com a relevância de outros elementos não visualizáveis (como o imaginário), estes vêm sendo trabalhados como essenciais para se entender a percepção e o uso do espaço – incluindo, portanto, o espaço urbano. Porém, duas questões, interligadas, ficam em aberto: como representar a cidade tátil; e como tornar essa apreensão tátil em instrumental de análise, planejamento e gestão das cidades? Sem o enfrentamento dessas questões, a tatilidade urbana aparece como uma iluminação, mas ainda não uma ideia. Se não é possível generalizar um conhecimento e representá‑lo de modo a outras pessoas terem acesso a ele por sua representação, de que vale apenas a argumentação, se há outro conhecimento possível? E se não se consegue sistematizar esse conhecimento e suas representações, de modo a torná‑lo instrumental para análise e ação sobre tal objeto, há os riscos de: a) na análise, nunca haver um mínimo de fatores comuns que permitam comparar situações distintas; b) na ação, asseverando haver um conhecimento ligado ao uso corpóreo da cidade, mas não o sistematizando, aceitar, tacitamente, nada se poder fazer; a vida urbana, seu planejamento e sua gestão são procedimentos vazios, os quais nunca conseguirão lidar com a multiplicidade das vivências urbanas. Ora, claro que não pressupomos haver um planejamento centralizado a ditar como a cidade deva ser ou uma gestão que enquadre a vida urbana em estruturas definidas; mas não enfrentar o desafio conceitual e metodológico de criar instrumentos de análise e ação, a partir de uma ideia de a cidade ser os modos de vivenciá‑la, é proteger‑se em uma crítica arguta, mas que não avança. Cartografando as vivências urbanas Geógrafos, urbanistas, sociólogos e gestores urbanos têm, nos mapas, um instrumento fundamental de trabalho. Uma representação que, ante a impossibilidade de contato direto constante com a cidade, torna‑se plano de reflexão e de ações urbanas. Há um distanciamentoevidente entre o mapa da cidade e a cidade – e não há como ser diferente. Toda representação é algo que substitui um objeto a alguém, transmitindo algumas de suas características em sua ausência. Por meio de representação compreende‑se um objeto sem ele estar presente. O caráter representacional é intrínseco a qualquer forma de reflexão, e portanto, instrumento de mediação também às ações sobre determinada realidade. Tendo isso claro, não há razão para se delongar em críticas condenatórias de os responsáveis pela ação, em um determinado ambiente, não terem contato com a realidade e tomarem suas decisões em gabinetes, enclausurados sobre representações frias do mundo real. A reflexão e a ação sobre um meio, principalmente na escala urbana, sempre se farão mediadas por representações. Desse modo, a única questão realmente válida é: essas representações dão conta dos 92 Unidade II aspectos que se pretende trazer à reflexão e subsidiam ações de intervenção e gestão urbanas? Se não, por que não? E como contribuir? Michel de Certeau (1996, p. 205) lembra que a forma representacional dos mapas atuais (com seus códigos, elementos aceitos etc.) está diretamente ligada ao nascimento do discurso científico nos séculos XV ao XVII, e, aos poucos, deixou de estar ligada à marcação dos percursos que definiam um território, as etapas a cumprir e as distâncias medidas por dias de marcha. Tal codificação científica dos mapas fez com que essas representações tivessem vínculos cada vez mais estreitos e interdependentes entre si (os novos mapas atualizam os anteriores, os agrupamentos populacionais devem ser encaixados em regiões precisamente delimitadas, em mapas os quais, por sua vez, devem “casar” com a carta hidrográfica que será cortada no fim da área mapeável, independente das nascentes ou foz), nem sempre acompanhando as dinâmicas socioeconômicas, tecnológicas e culturais que reconstroem o espaço habitado. O resgate de representar‑se a complexidade e as singularidades das vivências urbanas é um tema constante não só das disciplinas que lidam diretamente com a cidade, mas também da filosofia. Heinz Paetzold (2000), ligando as metáforas filosóficas às cidades, argumenta que, enquanto René Descartes (no século XVII) defendia que a ciência seria mais coerente se pautada por um sistema lógico homogêneo de parâmetros, assim como as cidades barrocas e renascentistas, edificadas sob as ordens de único arquiteto inspirado por um único regente, Ludwig Wittgenstein (no século XX) discutia que a linguagem não se baseava em elementos semânticos básicos e originários, mas em jogos de linguagem provenientes de seu uso, os quais criariam possibilidades de linguagem, como subúrbios ou a formação espontânea das cidades antigas. Nessa mesma época, continua Paetzold, Ernst Cassirer e Georg Simmel defendem: nem a lógica científica ligada à física e à matemática nem os insumos da linguística seriam suficientes para se tornarem modelos da filosofia contemporânea, mas tão somente quando essa filosofia tomar como instrumental as formas simbólicas e tornar‑se uma filosofia da cultura. A multiplicidade de singularidades mutáveis e interdependentes é que forma uma cultura, e, na cidade, essa é uma definição sucinta das vivências urbanas. Representar tais singularidades é um primeiro passo que já vem sendo dado por diversos pesquisadores a debruçarem‑se sobre a percepção e leitura urbana; o desafio que se coloca cada vez mais é representar sistematicamente essa multiplicidade, esse coletivo de singularidades interdependentes, pois só com a sistematização de representações de coletivos estaremos aptos a fornecer insumos àqueles envolvidos em intervenção e gestão urbanas. Croquis urbanos Colocarmo‑nos como observadores do modo como as pessoas vivenciam essa região seria como se ocupássemos uma posição fora desse cotidiano, apenas descrevendo e analisando as maneiras como as pessoas usam a cidade, pareceria um distanciamento crítico que, na verdade, ocultaria a inevitável cultura do observador impregnando a observação e a análise. Nesse sentido, colher diretamente daqueles que vivem a cidade (moradores, trabalhadores, usuários esporádicos, passantes), suas próprias percepções e representações da vivência urbana, é fundamental. Armando Silva (2003, p. 24) comenta que a riqueza dos croquis está em guardarem “os limites evocativos e metafóricos, aqueles de um território que não admite pontos precisos de corte, por sua 93 TEORIA DA COMUNICAÇÃO expressão de sentimentos coletivos ou de profunda subjetividade social”. A passagem dos croquis aos mapas é um dos desafios para se instrumentarem os processos de intervenção e gestão urbanas; porém, além de transportar às cartas urbanas o que foi desenhado nos croquis por aqueles que vivenciam uma região, é importante analisar os aspectos qualitativos desses croquis, desprendendo‑se das escalas e equidistâncias geográficas para explorar indícios de vivências urbanas as quais se colocam no papel por escalas subjetivas, por proximidades afetivas. Claro que, em um primeiro momento, corre‑se o risco de buscar, nesses croquis, os elementos estruturais da leitura urbana propostos por Kevin Lynch (vias, barreiras, regiões, cruzamentos e marcos referenciais) – mas isso ofuscaria ao mesmo tempo a riqueza conceitual e metodológica de Lynch e a multiplicidade possível de abordagens provenientes dos habitantes, potencialmente variáveis de acordo com o contexto urbano, a cultura perceptiva da população e a relação entre essa cultura e o contexto. A ideia, portanto, é, justamente, partir dos croquis e, sem quaisquer pressupostos classificatórios, estar atento às similaridades de leitura urbana que esses croquis possam apresentar – lembrando ser possível que, ao longo de diversas análises, encontremos categorias reincidentes, mas também, em diferentes contextos aos quais a pesquisa for aplicada, outras categorias de percepção podem surgir, seja pela cultura da população entrevistada, seja pelas variantes no contexto urbano. Para fazer da análise dos desenhos instrumento de sistematização de leitura urbana, a ser incorporado em projetos de intervenção e processos de gestão urbanos, propomos três caminhos: 1 – ao possuir um conjunto significativo de desenhos e conseguir agrupá‑los em categorias definidas a partir de suas características gráficas, podemos ter ideia de como as pessoas apreendem determinada região – privilegiando seus trajetos cotidianos, por exemplo. Tal característica pode servir de guia para orientar intervenções urbanas, tanto as que interferem diretamente no sistema viário quanto aquelas que podem se apropriar dessa apreensão preponderante para se estabelecerem; 2 – ao deixar que os habitantes representem livremente o bairro, sem a restrição do código da palavra em entrevistas e a relação indissociável com o referente na fotografia, temos, no desenho, a possibilidade de vislumbrar relações subjetivas entre elementos físicos (vias, edifícios), comportamentais (trânsito) e imaginários (bairro arborizado, boemia). Como insumo a intervenções e gestão urbana de determinadas áreas, é possível destacar algumas dessas características que, se não são quantificáveis, guardam fagulhas da vivacidade da vivência urbana; 3 – ao analisar os desenhos, identificar todos os elementos representados que possam ser mapeados. Essa transposição do croqui, com forte carga subjetiva, para a exatidão da carta urbana, é o desafio e intuito principal deste estudo, buscando produzir mapas das vivências urbanas, os quais se tornem instrumentais para urbanistas, arquitetos e gestores urbanos. Conceitos operacionais Importantes análises da paisagem urbana vêm sendo feitas no Brasil a partir das representações que os usuários de uma região fazem da cidade, usando diferentes metodologias fundamentadas nos 94 Unidade II trabalhos de Kevin Lynch (FERRARA, 1993; SANTOS, 1988). Mas essa perspectiva metodológica, a qual chamamos cidade percebida,traz‑nos o seguinte questionamento: ela privilegia o presente, o modo como, hoje, as pessoas percebem um ambiente urbano. Para ampliar a leitura da cidade, buscando nela traços do fenômeno urbano que a constitui, procuramos dois caminhos complementares: um que resgatasse indícios de uma cidade não mais existente em sua inteireza, mas ainda a determinar padrões urbanos e vivências atuais; e outro que identificasse, na cidade, atual projeção de como se pretende que ela seja e já estejam sendo aplicadas sobre a cidade atual, constituindo um imaginário urbano. Assim, por um lado consideramos importante dar voz às pedras, buscar indícios na concretude da cidade que nos indicasse usos e vivências anteriores de uma região e que, ainda hoje, alimentam a vivência, percepção e representação da cidade. A esse encaminhamento metodológico chamamos rastros urbanos. Por outro lado, enfatizando que a percepção e representação da cidade estão diretamente ligadas a um imaginário urbano, e este ser formado por objetos e ações as quais não se inscrevem tradicionalmente no campo do urbanismo, mas operam pela projeção de signos de uma cidade desejada na cidade atual, buscamos identificá‑los nos meios de comunicação – estratégia de pesquisa a que chamamos cidade comunicada. A seguir, desenvolvemos os três conceitos (cidade percebida, rastros urbanos e cidade comunicada), buscando ilustrá‑los com alguns exemplos. Cidade percebida Da compreensão de como diferenças sociais, etárias e culturais daqueles que vivenciam uma região percebem, apreendem e incorporam em seu imaginário depende, em boa medida, o sucesso da implantação e gestão de projeto urbano. A intenção de abrirmo‑nos à compreensão da cidade pelas representações das pessoas as quais nela vivem, necessariamente deve assumir que a cidade concreta não é o único referencial. Isso pode parecer contraditório: afinal, a intenção não é analisar como as pessoas representam a cidade, e sim como percebem e representam essa percepção. No primeiro caso, na análise da representação da cidade, teríamos, de um lado, uma cidade que está lá, a qual se conhece de antemão, e, de outro lado, representações as quais as pessoas fazem dessa cidade. A análise só permitiria relacionar representações múltiplas a uma cidade única, variadas a uma cidade definitiva, ou seja, o objeto cidade estaria fundamentalmente definido e dele pode‑se representar o que se quiser, mas sempre será o que é: um parâmetro imóvel de análise. Por isso é importante ressaltar que se trata, aqui, do segundo caso, da análise da percepção da cidade por aqueles que a vivenciam. Isso significa que consideramos ser a cidade tanto a sobreposição irregular das cidades anteriores a ela, nela, que foram o antes dela, como também a justaposição das vivências urbanas de seus habitantes e seus usuários. Estes, por sua vez, percebem a cidade por estímulos de elementos urbanos que dela “provêm”, mas também a percebem por estímulos (imagens, desejos) os quais projetam sobre a cidade. A cidade se torna, assim, também, um caleidoscópio projetivo de várias e variadas percepções que a imantam, induzindo outras percepções e tornando‑se cidade. 95 TEORIA DA COMUNICAÇÃO Vejamos, por exemplo, um bairro considerado violento, mesmo nele não ocorrendo mais crimes ou assaltos do que em outros. Mas as ruas são escuras e há uma favela. O primeiro sintoma indica apenas um problema de iluminação pública, que pode ser questão de número de luminárias, potência das luzes, ou arborização frondosa; o segundo sintoma, a favela, é uma formação territorial que indica problemas socioeconômicos e fundiários na cidade. No entanto, esses dois fatores podem dar a sensação de insegurança para quem vivencia esse bairro, e tais impressões são passadas de um para outro – e se, efetivamente, ocorre algum problema de violência, ele se impregna desses elementos relacionados, no imaginário urbano, à falta de segurança: cria‑se, assim, a impressão de um bairro inseguro, oriunda da percepção dos moradores. Assim, essas percepções urbanas são tanto apreensões de elementos concretos da cidade como projeções feitas sobre ela – e é na relação de reflexão e projeção de estímulos que se dá a percepção urbana, a qual direciona, por sua vez, as vivências urbanas e a ideia concebida de uma região. A metodologia usada na cidade percebida, então, procura reter, daqueles que vivem uma região, alguns indícios do que absorvem e projetam sobre a cidade e formam sua percepção. Para a intervenção ou gestão urbana a cidade percebida nos parece fundamental, pois é nesse âmbito que uma atuação desatenta ou desastrada leva ao risco de frustrar um projeto o qual, no gabinete, demonstra sucesso. Quando, aos moradores da região junto do rio Belém, o único inteiramente dentro do município de Curitiba e altamente poluído, foi pedido que desenhassem o rio na cidade, os resultados mostram a diversidade da percepção de um mesmo elemento urbano […]. Rastros urbanos “E percebemos que não somos mais do que os muitos que viveram nesses lugares” (Benedetta Tagliaube). A cidade é formada por uma sobreposição de camadas de outras cidades que existiram antes – ou melhor, a mesma cidade que se sobrepõe a si mesma, ao mesmo tempo reafirmando‑se como única e distinguindo‑se de si própria. A alma da cidade encontra‑se na sobreposição de vivências urbanas que formam a cidade cotidianamente. Parte dessas camadas é apagada pelas vivências que as sucedem; mas uma outra parte resta como seu testemunho. A busca de indícios dessas vivências tem menos a intenção de reconstituir o passado e entender mais como a cidade em que vivemos hoje é como é, em duas vertentes principais de análise: a) em qual medida e modo a cidade de ontem determina a cidade de hoje; e b) quais indícios da cidade de ontem podem direcionar ações sobre as vivências urbanas atuais. Ambas as vertentes corroboram a necessária compreensão de, para se implementarem alterações de usos, ser imprescindível entender que outros usos construíram a região tal como ela se encontra – talvez usos que não mais existam, mas deixaram rastros urbanos na região, rastros contidos na arquitetura de certas edificações, na implantação de outras (morfologia urbana), em remanescentes urbanos, no imaginário histórico impresso na cidade atual. […] 96 Unidade II A busca de rastros urbanos implica em vasculhar a cidade, procurando elementos que despertem dúvidas: O que faz isto aqui? Por que esta rua tem esta forma? São tanto elementos concretos, a levarem‑nos aos documentos históricos, quanto o caminho inverso, ao se analisarem projetos ou planos antigos, que tinham um projeto urbano claro, e buscar, na cidade, seus indícios. […] Cidade comunicada É ingenuidade imaginar que edifícios com destaque arquitetônico, alterações urbanísticas, mudanças na legislação e políticas socioeconômicas são autossuficientes ou, mais ainda, são as únicas formas legítimas para promover mudanças e incrementos sociais, econômicos ou culturais, em detrimento da construção da imagem dessa região. Há relações de interdependência entre o espaço urbano construído e o espaço simbólico. Mais ainda, poderíamos afirmar que a cidade “é o que é”, tanto quanto dizem que ela é. Vimos isso, em parte, na cidade percebida, formada pela apreensão de índices da cidade concreta, mas também de signos projetados sobre a cidade – que formam a cidade percebida, a cidade vivenciada. Se isso é verdadeiro para a cidade presente, aquela da vida cotidiana, quão forte não deverá ser a imagem de uma cidade desejada para ela se inserir na cidade mental, de modo a enxergar e viver a cidade que ainda não está lá. É o uso futuro da cidade que se busca inserir na cidade presente, para já formá‑la no imaginário urbano. A cidade comunicada se faz por reflexão ou projeção. Na primeira, busca‑se verificar como uma determinada região aparece nos meios de comunicação, e, consequentemente, como ela é refletida de volta à cidade (pelos leitores
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