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A VOCAc;AO MEDICA* Paulo Correa Vaz de Arruda Luiz Roberto Millan INTRODU<;AO o vocabulo "vocac;ao" vem do latim vocatio**. E a tendencia, propensao ou inclinac;ao para qualquer oficio, profissao, etc; indole, talento, clisposic;aonatural do espfrito; escolha, eleic;ao,chamamento, predestinac;ao. 0 sentido original da palavra . vocac;aq e teol6gico, pois temsido designado assim 0 chamamento pelo qual Deus destina urn homem a uma func;ao determinada. Essa concepc;ao deu origem aos significados modernos, tanto aos que sao de uso na linguagem corrente como aos que se empregam em tecnica cientffica e psicol6gica. Compreende-se, de modo geral, como 0 conjunto das caracterfsticas de uma personalidade, em virtude das quais urn individuo e mais apto a exercer determinada func;ao e nao outra. Ulrimamente, tem-se realizado numerosos estudos no sentido de se evitarem os desajustamentos provocados pela atuac;aode inclividuos em fun<;oes inadequadas a seu ripo de personalidade (Arruda e Col. 1998). Os problemas tecnicos acerca da vocac;ao podem ser classificados em duas grandes categorias: a dos que tern por finalidade resolver qual e a melhor profissao para um determinado individuo; e a dos que vieram a decidir qual e, dentro de urn grupo de individuos, 0 melhor para determinada profissao. Os problemas do primeiro grupo sac designados como orienta<;ao profissional. Na orientac;ao pro fissional, parte-se de urn individuo para encontrar uma profissao qqe lhe convenha; na sele<;aopro fissional, parte-se de uma dada profissao para encontrar o individuo que possa exerce-Ia. * Esse tema tambem e abordado no Capitulo 4 deste livro. ** Ellcic/opMia Bmrileira Mento, vol. 20, pr. 447, Porto Alegre, 1964. A QUESTAO DA ORIENTA<;AO PROFISSIONAL Diante de uma serie de dificuldades que atualmente envolvem a escolha da profissao de urn jovem em uma sociedade, orientas:ao vocadonal e urn campo que se vem arnpliando, tanto no ambito te6rico,como tambem no pratico.Novas publicas:oes tern surgido, rnostrando a complexidade no campo da orienta~ao vocacional: urn campo que era visto de maneira mednica e simplista, fundarnentado na antiga visao psicometrica e adivinhat6ria da escolha da profissao, foi substituido por uma abordagem dinamica e profunda que leva em conta tanto os fatores individuais (consdentes e inconscientes), quanto os fatores da realidade socioecon6rhica e cultural, atraves de diversos tipos de abordagem sobre 0 assunto. Bohoslavsky (1971) lembra que a funs:ao do orientador vocadonal e auxiliar 0 jovern a: chegar a urna dedsao responsavel e nao lhe ruzer, de forma paternal, qual deve ser a sua escolha. Para ele, as carreiras e profissoes requerem potendalidades que nao SaGespedficas e que podem modificar-se no transcorrer da vida. 0 prazer no estudo e na profissao depended. do tipo de vinculo que se estabelece com eles; 0 vinculo, por sua vez, depende da personalidade. A realidade sociocultural muda incessantemente, sendo que as carreiras, as especializa~6es e os campos de trabalho renovam-se continuamente. No transcorrer da orienta~ao vocacional, 0 psic610godeve esclarecer e, informar, e 0 adolescente deve desempenhar urn papel ativo nesse processo. Afirrna, com razao, que "ninguem pode predizer 0 sucesso, a menos que seja entendido cornoa possibilidade de superar obstaculos com maturidade". Quando a escolha vocacional diz respeito a Medicina, a visao atual deve ser bem aclarada. Antigamente, a Medicina era considerada eminentemente como urna "arte", urn conjunto de conhecimentos pragmaticos e de receitas.Na atualidade,ela esta em vias de vir a ser a ciencia das ciencias.Todas as cienciasvao, gradativamente, convergir para a sua elevas:ao.Desprezada por aqueles de visao mais estreita, a Medicina esci em vias de demonstrar que a cienciado homem e aprimeira de todas as ciencias:e aquela que deve resumir todas. Dia ap6s dia,agrega ao seu imperio a higiene,a etnografia, a antropologia, a demografia, a psicologia, a engenharia biol6gica, a fisicamolecular e a filosofia.Neste instante, ela esci pedindo conselhos as ciendas espadais. Este e urn dos aspectos mais fascinantes que ela oferece, mas que a grande maioria dos estudantes, ao ingressar nas escolas medicas, desconhece: ela oferece mUltiplas vias de adapta~ao. Dai a grande dificuldade da sele~ao vocacional, redundando verdadeiros desastres quando esta e realizada apenas atraves das aferi~6escognitivas.fu escolhas atraves dos diferentes tipos de arquetipos (Cunha, 1997), a analiseetnografica e os testes projetivos talvez sejam, ao lado das entrevistas, as melhores maneiras de captar aquilo que se denomina, ainda, como voca~ao medica. Nao devemos esquecer nunca que a Medicina e a Filosofia SaGirmas e vivem sempre juntas: "sob a pele de urn medico, digno desse nome, esci sempre urn £16sofo" (pacheco e Silva, 1962).A Filosofia tern por objeto fundamental a pesquisa da verdade. Infelizmente, na maioria das vezes, somente no firnda carreira 0 medico se consdentiza de que a Medieina, como todas as dencias, exige urn born preparo ftlos6fico. o sucesso do jovern na carreira que escolheu e seu ajustamento futuro a ela dependem, em grande parte, da escolha inieiaImente ftita. Se esta civersido adequada, suas probabilidades de adapta<;ao e Sucesso no exerdcio profissional serao maiores. Se, por outro lado, a escolha foi inadequada, 0 ajustamento e mais dificil, e quase sempre e conseguido atraves da mudan<;a de area pro fissional ou de especialidade. Nao podemos nos esquecer de explorar tal situac;:aoem que 0 individuo se acomoda a determinada profissao apenas por medo de mudan<;as. AS CONTRIBUIC;OES DE PACHECO E SILVA o problema da voca<;ao medica e da sele<;ao profissional tem sido tema de uma serie de trabalhos apresentados em semimlrios e congressos no pais e no estrangeiro. Quem primeiramente abordou e lutou pela implanta<;ao de criterios s6lidos para a sele<;ao de medicos em nosso meio foi Pacheco e Silva (1962). Ja em 1951, apresentou urn trabalho a Congrega<;ao da FMUSP, cujos t6picos principais fazemos questao de resumir. Reconhecendo-se a importancia e a necessidade imperiosa de se pro ceder a seIe<;aodos que revelam voca<;aomedica, em quase todos os paises do mundo, na Fran<;a,na Inglaterra, nas na<;6esda Europa Central, nos Estados Unidos, na Russia, escio hoje sendo aplicados varios metodos com 0 objetivo de se escolherem os mais dotados, de vez que, em toda a parte, como entre n6s, 0 numero dos que pleiteiam matrkula nas escolas mcdicas e muito superior ao das vagas ex.istentes. Na Inglaterra, 0 Instituto Britanico de Opiniao Publica, num inquerito realizado em 1945, apurou que 7,5% dos pais ingleses desejariam que seus fJlhosabra<;assem a carreira medica. o problema nao deixade ser complexo, como assinalou um dos que mais se tem dedicado a esses estudos, 0 Professor Lucien Comil, Diretor da Faculdade de Medicina de Marselha, ao escrever: "0 problema da se1e<;aodos estudantes de Medicina, muito embora se integre no quadro da se1ec;aodas profiss6es liberais, dele se destaca em varios pontos, 0 que vem multiplicar, sob 0 ponto de vista pratico, as dificuldades de uma tal realizac;ao". Dentre todos os paises, um dos que mais se tem preocupado com a se1ec;ao dos estudantes de Medicina e sem duvida a Inglaterra. Ha 40 anos pass;dos, Sir Clifford Allbutt ponderou que 0 medico devidamente preparado e aqude em quem se acham combinadas "instruc;ao real e pratica, que esta provido de destreza tecnica, versatilidade e iniciativa, bem como iluminado por ideias e guiado pdo discernimento mental e imaginativo que nasce de uma educac;ao ampla, deliberada e inventiva". Anos depois, retomando as ideias de Allbutt, Georges Newman, num trabalho intitulado "Some Notes on Medical Education in England", resumiu os requisitos que, no seu entender, deveria possuir um futuro medico, salientando que nele "necessitamos de um homem de carater elevado, capaz e disposto a manter a verdadeira dignidade de uma grande profissao, a viver a altura das elevadas tradic;6eseticas da Medicina; de boa educac;aogeral, interessado, ativo, e com algum sal!oiljaire; um homem instruido na sua vocac;:ao,com habilidade tecnica e experiencia medica; mas, acima de tudo, um homem pratico nas ideias e sua aplica<;ao, de espirito avan<;ado, capaz de participar do crescimento e desenvolvimento da ciencia medica, treinado no metodo cientifico e inspirado pelo espirito cientifico:.. em outras palavras, urn homem de observa<;ao acurada, de habilidade na experimenta<;ao, de solido raciocinio e interpreta<;ao". Cornil e Ollivier julgam que a boa sele<;aodos candidatos ao curso medico nao deve consistir apenas na avalia<;aodas aptidoes ffsicas, sensoriais ou intelectuais, mas sobretudo num alto padrao moral. Procuraram assim, partindo desse principio, analisar as divers as aptidoes medicas, dividindo-as em menores e maiores. As aptidoes menores saD aquelas que podem perfeitamente ser supridas, tanto pela inteligencia como pelos conhecimentos. o futuro medico deve, sobretudo, possuir: • boa constitui<;ao fisica, integridade dos orgaos dos sentidos, apurada acuidade sensorial, habilidade manual e rea<;oes fisicas nipidas; • todas as formas de memoria (memoria concreta, sensorial, visual, auditiva, titil, olfativa, memoria das palavras, das cifras, dos nomes); • as divers as formas da aten<;ao (fixa<;ao,mobilidade, distribui<;ao, vigilancia); • qualidade de observa<;ao (observa<;ao analftica, sintetica, geral); • born nivel de inteligencia logica e critica; • julgamento e raciocinio sensatos; • aptidao assaz desenvolvida no que respeita a classifica<;ao, a ordem e ao metodo; • certa facilidade de expressao. Sao, em particular, as aptidoes morais. Nao se cogita da chamada "voca<;aomedica espol1.ranea".E sabido que ela existe frequentemente, no sentido nobre da palavra, e que ela e, nesse casa, urn fator multo favonlvel. Mas, nos sabemos, rambem, que SaDmuitas vezes as influencias familiares que a provocam, quer se trate de uma familia de medicos, quer tenhasido a familia impelida pdo prestigio fmanceiro ou social da profissao medica. Nesses casos e que um exame atento das aptidoes morais do candidato se irnpoe com rigor. As aptidoes maiores exprimem-se, essencialmente,por: • urn sentimento desenvolvido de respeito pe1a personalidade humana; • solido born senso (interpreta<;ao equilibrada); • objetividade; • espirito vivo e decisao; • julgamento sobre 0 plano pragmatico; • grandes possibilidades de adapta<;ao; • gosto pda responsabilidade; • curiosidade discreta; • cora<;ao, sensibilidade compreen'siva e discreta; • generosidade e dedica~ao; • estofo moral intacto. Partindo desses principios, Cornil e OIIiviersugerem uma serie de provas, as quais se deveriam submeter os candidatos a matrfcula nas escolas medicas. Todos os resultados de avalia~ao das aptidoes que acabamos de considerar poderao ser reunidos com 0 prop6sito de estabelecer um perfil fisiopsicol6gico .do estudante de Medicina, cuja representa~ao grifica e, como se sabe, em materia de sele~ao interessante a considerar. Todos esses exames nao podem chegar a dar uma expressao matematica nem um fisiopsicograma do estudante de Medicina. Como Iembramos acima, existem no dominio da aptidao a profissao medica duas ordens de dados essenciais, que subdividimos em aptidoes maiores e menores. Somente as aptidoes morais aparecem exclusivas, mas e preciso poder avalia-Ias, dando-Ihes 0 seu justo valor, suprimindo todo 0 fator subjetivo na sua cota~ao. Alias, mesmo quando isso se torna possive!, nao pensamos que uma elimina~ao, baseada em elementos certamente incompletos de um s6 exame, . possa ser considerada como absoluta. Quanto a avalia~aodas aptidoes menores, bem que estas Ultimasnao possam pretender possuir criterio de excIusao, parecem, contudo, merecer interesse. Com efeito, seria negar 0 interesse indiscutivel dos tecnicos de sele~ao, e, em particular, 0 valor dos testes, ta~ preciosos em psicotecnica, 0 deixar de reconhecer todo 0 valor, sobretudo quando empregados por aqueles que deles se utilizam com freqiiencia, o problema pratico da sele~ao dos estudantes de Medicina deve ser essencialmente encarado visando a avalia~ao das aptid6es psicomotoras (intelectuais e morais, do futuro medico, de maneira que, perfeitamente inteirado sobre 0 seu justo valor, possa, com todo 0 conhecimento de causa orientar-se nos diversos ramos de atividade medica e, portanto, melhorservir a profissao. Em 1961, no 1u Congresso Latino-Americano de Psiquiatria, realizado em Caracas, Pacheco e Silva (1962) apresentou um relat6rio eircunstaneiado dos diferentes aspectos que envolvem estudantes, professores e as inter-relac;oes entre ambos. Assim e que diz: Os problemas psicol6gicos com as quais se deparam os universitirios, em particular os estudantes de Medicina, sao extremamente complexos e exigem cuidadosas pesquisas no sentido de se apurarem as motivac;oes e os fatores que concorrem, direta ou indiretamente, para a sua incidencia. Elementos de valia nos foram fornecidos num inquerito que realizamos entre os estudantes de Medicina, com 0 objetivo de verificar a atitude por des reve1ados em face a doenc;amental e a saude mental. Os resultados colhidos se baseiam em 77 questionarios respondidos por aIunos da 4a serie da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo. Analisando os informes obtidos no referido inquerito, pudemos inferir os seguintes dados: • dos alunos submetidos a prova, 78% tinbam idade entre 21 e 24 anos, dos quais 90% eram do sexo masculino e 10% do sexo feminino. Dentre des, 86% eram solteiros e 10% noivos; • no que concerne a instru<;:aorecebida pelo pai de cada aluno, somente 39% comp1etaram 0 curso primario; 10% concluiram 0 curso secundario; 16% tinham curso superior e 9% haviam feito cursos de especializa<;:aoap6s 0 curso supenor; • quanto a principal ocupa<;:aoexercida pelo pai de cada aluno, 0 questionario revelou que 22% exerciam profissao liberal. Somente 7% eram funcionarios publicos; • dentre os referidos alunos, 29% tencionam dedicar-se a clinica geral e 71% a especialidades, sendo que 24% pr~tendem se consagrar a Medicina Interna, 27 % a Cirurgia, 6% a Obstetricia-Cirurgia, 8% a Pediatria, 10% a Psiquiatria, 6% a Neurologia, 1% a Dermatologia, 1% a Of talmologi a, 2% a Laborat6rio e 15% a outros campos da Medicina; • indagados se ja haviam pensado em dedicar-se a outra ocupa<;:aodiversa da Medicina, 12% responderam j:i ter sido cogitado seriamente, 41% nunca haviam cogitado do problema senao superficialmente e 47 % nunca haviam pens ado nessa possibilidade; • ao perguntar-lhes sobre que outra carreira escolheriam na hip6tese de nao seguirem aMedicina, 36% optaram pela Engenharia, 30% pela Psicologia, . 17% pela Quimica, 16% pela Sociologia e 1% pela vida religiosa. Na valoriza<;:aoda preferencia por especialidades, de acordo com 0 tipo de personalidade, e interessante notar a forma pe1a qual foram considerados os cirurgioes pelos alunos: 72%, como dominadores e arrogantes; 62%, agressivos e energicos; 68%, interessantes, especialmente em seu pr6prio prestigio; 9%, extremamente pacientes e 2%, com personalidade afave1e agradavel. Em nossa opiniao, 0 estudo dos problemas psicologicos dos estudantes de Medicina e as medidas para resolve-los constituem, na atualidade, um dos pontos que merece a maior aten<;:aoe interesse por parte dos professores. Nossas conclusoes san semelhantes as que chegaram numerosos autores que se tem dedicado ao estudo destes mesmos problemas. Impoe-se, conseqiientemente, a cria<;:aode centros especializados para exames medico-psicologicos e para ajudapsicologica aos estudantes de Medicina e tambem de outras faculdades. Seria de se desejar 0 emprego da psicoterapia preventiva e curativa, de uma terapeutica pedag6gica adequada a cada caso, alem dautiliza<;:aodos tratamentos somaticos quando necessario. Na atualidade, a escolha de uma profissao tornou':'se assunto extremamente complicado, em face da multiplicidade de ocupac;:oesexistentes. Se istoe verdade, naoe, todavia, toda a verdade. Em tempos idos, embora este numero fosse profundamente mais limitado, 0 equivoco na escolha existia,fazendo com que 0 status de se formar em uma universidade jogasse 0 aluno em uma delas, pelos fatores mais diversos, entre eles 0 da facilidade de ingresso no vestibular. Este desajuste na escolha dava lugar ao chamado "escoadouro das voca<;:oesmaldefinidas", que passava a abrigar todos aqueles que, ap6s terem cursado uma faculdade, jamais exerciam a profissao! Para Hackman e Davis (1953), a escolha adequada de uma profissao depende daquilo que cham am de "identidade vocacional". Essa identidade come<;:aa ser esbo<;:adano periodo final da adolescencia, quando frequentemente 0 adolescente principia a fazer uma sele<;:aode seu campo de interesse, por meio de fatores varios, urn deles certamente ligado ao desenvolvimento da personalidade. Ginzberg (1969) procura demonstrar que, para ser atingida a identidade vocacional, 0 individuo passa por tres fases, a saber: 1. fase da fantasia: a crian<;:apensa na profissao em termos de urn sonho, sem nada compreender a respeito de sua fantasia. Neste periodo e que 0 menino da classe media deseja ser jogador de futebol, artista, bombeiro, ou seja, aquilo que no momenta ele admira; 2. fase da escolha: baseada nos valores pessoais, passa a pensar numa profissao em termos de realiza<;:aocomo pessoa humana; 3. fase realista: jana altura dos dezessete arros,come<;:aa explorar as possibilidades concretas de sua op<;:aopro fissional. A escolha da profissao e algo dinamico, orientado para 0 futuro. Quando a "identidade vocacional" estabele-se cedo, 0 individuo a segue sem maiores problemas. Quando esta identidade ainda nao se formou, de passa a agir como no processo de tentativa de erro e acerto. A idade em que uma identidade se forma apenas poupa de maiores sofrimentos os jovens, e nao tern valor significativo se ela se faz tardiamente. Poi 0 que aconteceu com 0 psic610go e fil6sofo WilliamJames, que, nas incertezas, chegou a refugiar-se na hipocondria. Escolheu a Medicina, mas foi muito mais psic610go e fil6sofo que medico. Em contraposi<;:ao,Grimberg, citado por Meleiro (1994), relata que Laennec, 0 inventor do estetosc6pio, embora passando agruras, mas em urn ambiente propicio, fez escolha precoce e acertada da profissao. A complexidade do assunto e de tao grande porte, pelas suas inumeras variaveis, que existem numerosos metodos que tentam avaliar 0 acerto da escolha pro fissional. Dentre eles temos a aferi<;:aodo grau de satisfas;ao,que deixa clara a existencia de ciclos de satisfa<;:aovocacional, que variam com as diferentes idades ou fases da vida. Dentre os aspectos pelos quais passam os adolescentes em busca do estabelecimento do seu ego, importante e a questao da defini<;:ao de sua identidade vocacional. Durante as primeiras fases em que tentam estabelecer a identidade do ego, 0 que existe na realidade e uma difusao de papeis: identificam-na com lideres do grupo a que pertencem, com her6is do esporte, cinema, enfim com her6is de todos os tipos. A difusao e de tal ordem e profundidade, que alguns deles chegam ao estado de quase perda total da pr6pria identidade de seu ego. Nesta diversidade de identifica<;:ao,raramente se identificam com seus pais; ao contra do, rebelam-se contra o dominio dos mesmos, e tudo 0 que as figuras parentais conseguem e uma resposta contraria a seus propositos: hi uma verdadeira necessidade de se distanciar dos desejos dos mesmos. Contudo, em, contraposi<;ao, hi necessidade quase desesperada de pertencer a urn grupo social. E ai e agora que passam a ter valor inestimivel 0 grupo de amigos e de seu grupo, que the permitem se enquadrar em um contexto social. Desta valoriza<;ao surge 0 sentimento de cla e a indiferen<;a total para com os "grupos diferentes". Segundo Erikson (1950), trata-se de ,uma defesa necessaria contra os perigos da auto difusao existente neste periodo. E 0 periodo de grande atra<;ao pelos sistemas totalitarios, formando a identidade. A "identidade democratica Ira emergir mais tardiamente, pois ela envolve a liberdade de escolha". E, conseqiientemente, 0 periodo do preto ou branco, numa dicotomia onde nao cabem as tonalidades intermediarias. Do acima referido observa-se a dificuldade e 0 perigo da escolha vocaeional, que tem de ser realizada nesta Ease. Dai as inumeras conseqiiencias desastrosas da escolha. 0 que nos leva a decidir pela Medicina, nesta periodo em questao? A mutabilidade desta fase, quando ainda se encontram, sem saber, no "reinado pelas fantasias", pode torna-los estudantes inconformados e futuros medicos frustrados. Estas condi<;6es psicossociais em que se encontram, por ocasiao da escolha, implicam a heterogeneidade dos colegas de turma, que vai desde os possuidores de urn puritanismo exacerbado ate os colegas extremamente liberais. A pos-adolescencia ou a adolescencia tardia traz consigo urn problema que e 0 da "fantasia do salvamento"; em vez de dominar as tarefas da vida, ele espera que urn ambiente benevolo venha resolver seus problemas. Esta fantasia adolescente de salvamento nao deve ser confundida com aquela descrita por Freud, em 1910, express a pelo "impulso de salvar a pessoa amada". Esta segunda e marcada pelo desejo de salvar alguem, ao passo que a primeira refere-se ao desejo de ser salvo por uma ::>essoa,atraves da sorte, ou privilegio. 0 referendal desta e 0 "SE": "se" eu Fosse ~asado, "se eu Fosse residente, "se" meu nome Fosse outro etc, ete. E aqui, neste ponto, que devemos falar no problema da voca<;ao. Quando se :ala em voca<;ao medica, a referencia se faz principalmente para as atividades clinicas ~eirurgicas, e nao para toda uma constela<;ao de disciplinas que envolve hoje a vfedicina moderna. o ideal medico deve-se constituir na vontade de socorrer, no' arnor ao proximo no espirito de sacriffcio. Em contrapartida, 0 outro componente varia con forme 0 ~mpo, porquanto cada epoca possui urn ideal medico. Cada epoca exige e aguarda Jisa diferente do medico. omedico moderno nao po de mais limitar-se a cuidar tao somente do individuo. sta compelido a participar mais ativamente da vida c6letiva. Dai a necessidade de argar seus conhecimentos no que tange aos problemas da comunidade (a automa<;ao, :omputa<;ao,o emprego de novas tecnicas bio-clinicas e de aparelhos sofisticados). ai, portanto, a abertura do "sentido vocacional", e a necessidade de novas tecnicas : aferi<;ao desse potencial vocacional, que referimos no inicio deste capitulo. Explica mbem, como vimos anterior mente, aquele fato que logo chama a aten<;ao: a terogeneidade dos colegas de turma (Meleiro, 1994). su: Es na 1m ex] de ao de da ep tar soJ me ae SUI caJ pe V1~ de Na decada de cinqiienta, ainda como estudante de Medicina, um de nos teve a oportUnidade de entrevistar 0 Prof. Pacheco e Silva e 0 sabio espanhol Gregorio Maranon, que nos visitava na ocasiao. Das anotac;oes feitas na epoca, descrevemos 0 pensamento de cada urn deles a respeito da vocac;ao medica. Para Maranon, avocac;ao medica genuina e muito parecida com 0 amor. A paixao tern caracteristicas diferentes do amor: exige exclusividade do objeto amado e absoluto desinteresse em servi-Io. Nissa se distingue do amor. Melhor vocibulo existe em portugues, que e a expressao "querer". Quer-se, por exemplo, uma mulher, mas quere-Ia e aspirar a possui-la: conseqiientemente, e uma paixao radicalmente interesseira; ao passo que 0 amor procura 0 objeto amado, sem 0 querer para si, para possui-Io. 0 mais alto exemplo e 0 seguinte: ''Ama-se, mas nao se quer a Deus". Pacheco e Silva concorda que a vocac;ao medica e uma forma· de amor, com suas atitudes espedficas: ac;aointransferivel para 0 seu objeto e espirito de sacrificio. Estes do is aspectos revelam-se: sua pratica gratuita aos pobres (e aos que tambem nao 0 sao), tantas vezes comparavel ao sacerdocio e sua estreita ligac;ao com a investigac;ao cientifica pura. A fun<;ao apostolica e 0 recurso ao born senso saG expressao da personalidade do medico. 0 valore interesse dessas duas atitudes dependerao do uso que se fizer delas. Isto nos remete aMiguel Couto (1976), que sintetizou 0 que e voca<;aomedica, ao dizer: ''A rnatricula em urn instituto de Medicina pode ser 0 fruto de urn cilculo, de urn sonho, de urn palpite, e talvez de positiva vocac;ao;mas 0 verdadeiro estudo da Medicina s6 se faz no Hospital, de todos os modos, investigando, venda, vivendo, e parece ate respirando neste ambiente; assim como 0 verdadeiro arnor da Medicina tarnbem s6 aqui nasce e cresce, a cabeceira dos eventos, quando a piedade pelo sofrirnento nos invade 0 cora<;aoe dele se apodera,quando a luta en,tre a ciencia e a molestia nos empolga e toda nossa alma vibra ante essa luta. Aquele que for fechado a estas paixoes renuncie para logo ao exerdcio de uma arte em que ha de ser urn superfluo, urn vencido, urn incredulo, e, ao cabo, urn maldizente". Zimerman (1992), em seu artigo sobre a forma<;ao psicol6gica do medico, aponta os atributos desejaveis para que 0 medico possa exercer a sua profissao satisfatoriamente, estabelecendo uma boa rela<;aocom 0 seu paciente: 1. 0 medico deve possuir urn "esquema referencial" que consiste no conjunto de conhecimentos, afetos e experiencias, com os quais ele pens a, age e se comunica. 2. 0 medico deve ter capacidade de intuic;ao e empatia. A intui<;ao e uma capacidade que pertence a area cognitiva, que precede 0 raciodnio logico dedutivo e permite ao medico reconhecer aquilo que vai alem do que aparece como concreto e visivel. Entende-se por "ernpatia" a capacidade afetiva de poder colocar-se no lugar do paciente; difere da "sirnpatia", a qualidade de agradar e cativar. Segundo 0 autor, "e de uma adequada capacidade de empatia que derivam os essenciais atributos de respeito e tolerancia" .. 3. 0 medico deve ter a capacidade de ser "continente", ou seja, de absorver e rnetabolizar as angustias e fantasias do paciente, e devolve-Ias de forma nao assustadora, como uma mae tranqilila faz com seu filho pequeno. ''A faIta dessa capacidade e responsave1 pela atitude medica que se caracteriza por urn excesso de medica<;:ao,de encaminhamentos, de pedidos de exames, por uma devo<;:aoexagerada, ou por alguma forma de fugir do doente". 4.0 medico deve ter capacidade para se deprimir, ou seja, se responsabilizar por suas faltas e limita<;:oes, e a partir delas bus car aperfei<;:oar sua trajet6ria profissional. "Dma boa elabora<;:ao depressiva abre os caminhos para a discrimina<;:ao,individua<;:ao,autonomia, reflexao e criatividade". A ausencia dessa capacidade, por sua vez, faz com que 0 medico sempre culpe os outros por suas faltas ou que acredite que sempre esta certo, nao tolerando contes1:a<;oes. 5.E fundamental para 0 medico ter capacidade de comunica<;:ao.Essa capacidade faIta quando 0 medico nao sabe escutar seu paciente, quando tem a mente saturada por preconceitos, quando tenta catequiza-lo com julgamentos morais e padroes de comportamento, quando utiliza jargoes tecnicos que para eIe tern urn significado e para 0 paciente outro, e quando tem dificuldade de comurucar verdaqes que saopenosas para 0 paciente. Os atributos necessarios para 0 exerdcio da Medicina podem ser deduzidos dos afor1smos de Hipocrates, escritos hamais de 2.400 anos (Brunini, 1998): • 0 medico deve ter uma boa capacidade de observa<;:ao,sem qualquer tipo de preconceito. . • 0 medico deve ter uma conduta honesta, altrufsta, idealista e pouco intervencionista. • 0 medico deve ser humilde: "0 sabio e aque1eque procura aprender; quem acredita que a tudo conhece e ignorante". • 0 medico nao deve seduzir seus pacientes. • Antes de tudo, 0 medico deve evitar causar algum dano a seu paciente, confiando sempre na for<;:acurativa da natureza. Muito seculos depois a sabedoria de Hip6crates continua sendo urn parametro para os medicos. As suas recomenda<;:oes tern urn grande valor etico e, alem disso, muito antes do advento da Psicaml.lise,tocou em questoes essenciais da alma humana, descrevendo caracteristicas que, hoje, sabemos s6 existem em personalidades que alcan<;aram a maturidade e urn born desenvolvimento emocional. Nao se pode realizar 0 estudo da voca<;aomedica sem se referir ao aforismo de Ballint (1956), que diz ser 0 medico 0 remedio mais usado em Medicina. Conseqiientemente, temos que conhecer sua dosagem, a<;aoterapeutica e seus efeitos colaterais e adversos. 0 que eIepretendia com essepensamento nao era a padroruza<;:ao da "droga medico", mas sim responder a duas indaga<;oes interessantemente interligadas: 1. Por que acontece que a "droga medico", nao obstante 0 aparente cuidado com que e usada, nao produz os efeitos desejados? 2. Quais as causas deste efeito e como evita-lo? Com isto, Ballint nos leva obrigatoriamente ao estudo do mEdico em si, conseqiientemente das motiva<;:oesque 0 levaram a ser este tipo de profissionaL Da mesma maneira que temos como fundamental a obra de Ballint, em nosso meio, falar de vocas:ao medica e falar de Mello Filho (1978,1982), Hoirisch (1978), Capisano (1969), Nogueira Martins (1994) e Meleiro (1994), correndo 0 risco de cometer grandes injustic;:asao nao mencionar outros mais. Nao nos identificamos com uma entidade, a Medicina, mas com pessoas concretas exercendo a rvIedicina. Para que as motivac;:oesaparec;:am,e preciso que 0 individuo possa se envolver pessoalmente, concretamente e por urn perfodo suficientemente longo. Na falta desses criterios, 0 estudante calcara em seu comportamento os conhecimentos artificiais que servirao apenas para isoIa-lo de sua vivencia real. Os fatores que levam 0 individuo a estudar Medicina SaGpluriformes e de natureza a mais variada. Para satisfazer uma necessidade diditica, SaGresumidos em duas subcategorias, aceitas universalmente pelos autores: ados fatores conscientes e, aqueles outras, de natureza inconsciente. 0 primeiro deles e mais superficial, enquanto 0 outra, por ser mais profundo, seu conhecimento e proveniente, em sua maioria, do estudo analitico dos estudantes. Nao temos a inten<;aode enumerar todos os elementos que venham a contribuir para a escolha da prafissao medica. Seriaquase impossive! faze-loe sem grande interesse, uma vez que estes dados de natureza vocacional resultam de uma multiplicidade de fatores ligados a formac;:aode uma personalidade. Vamos enumerar alguns elementos muito mais para reflexao que como valor objetivo. Le-se em Jeammet (1982), em sua PsicologiaMidica, a sintese dos trabalhos de Sambuc eMissenard a respeito do assunto. Vale a pena fazer referencias aos mesmos. Sambuc, atraves de entrevistas com 200 estudantes de Marselha, relacionou em ordem decrescente as principais motivas:oes que surgiam de imediato neste experimento. Sao elas: • compreender • ver • prestigio de saber • desejo de contato • prestigio social • aliviar os que sofrem • atrac;:aopdo dinheira • necessidade de tomar -se util • atras:ao peIa responsabilidade • atra<;aopela reparac;:ao • profissao liberal • necessidade de seguranc;:a. Trata-se de uma lista de motiva<;oes que, embora expressas de maneira consciente, puderam ser separadas, atraves de analise fatorial, daquelas que, embora manifestas, seriam na realidade uma expressao inconsciente de elementos vocacionais, desta forma c1assificadas: • as cinco primeiras poderiam estar re1acionadasa puklO voyeurista-exibicionista (desejo de ver e de se fazer ver); • as cinco seguintes entram como elementos decorrentes da pulsao sadica anal: atra<;aopela responsabilidade, reparar, aliviar os que sofrem; • 0 Ultimo grupo pode ser considerado como de interesse socioecon6mico e pessoal. Nnda com carater de natureza estatfstica, Missenard separou tres nucleos por conterem estritas rela<;oesentre si, a saber: • interesse hUl71anitario:desejo de cuidar, de curar, de se dedicar, prazer por contatos; • interesse dent[ftco pela biologia, ciencias experimentais e humanas; interesse cientffico teorico (desejo de experimentar, de transgredir, associado ao gosto do saber, da curiosidade do conhecimento do corpo, de ver); • posifdosocioecom)l71icae pessoal: interesse pecuniario, posi<;ao social, busca de prestigio, desejo de seguran<;apessoa1. Este ultimo parametro e menor no inicio do curso e aumenta gradativamente, o que pode ser interpretado como consequencia de uma perda consecutiva das motivac;oes de carater humanitario. A par de tudo 0 que se disser a respeito das motivac;oes que levam pessoas ao estudo de Medicina, nao se pode deixar de esquecer que, alem delas, existem os fatores individuais, pr6prios de cada pessoa, fruto de aconteeimentos, relac;oes e situac;oes especiais. Estes fatores individuais correm quase sempre por conta de elementos de natureza circunstancial da vida de cada um. De inkio, devemos ressaltar que inumeros destes fatores conscientes sac circunstanciais e nada tem a ver com possiveis questoes de natureza vocacional propriamente ditas, enquanto outros ja dizem respeito a dons, maneiras de ser dos individuos e ja permitem aquilo que se convencionou chamar como voca<;aomedica. Dentre os assim chamados por circunsdncias, devemos chamar a atenc;aopara aqueles que nos parecem de maior interesse, quer pela sua frequencia como pela for<;a com que se apresentam. Este tema foi desenvolvido no capitulo intitulado ''Alguns aspectos psico16gicos ligados a formac;ao medica". Os auto res, de modo geraI, nao divergem muito na enumerac;ao dos principais elementos inconscientes que levam 0 jovem a.estudar Medieina. A selec;ao desses elementos, na grande maio ria dos casos, advem da analise profunda de pessoas interessadas. Estao ligados as seguintes categorias: • 0 desejo de ver • 0 desejo de reparar • 0 desejo de poder Eles nos reportarn a necessidade de repara<;ao(reparo por impoteneia, por rejeic;ao emocional), nega<;ao da dependencia, procura da impotencia com defesa contra a doen~a, sofrimento e morte. 0 desejo de ver ou saber diz respeito aos dois grandes tabus da humanidade: 0 sexo e a morte. Ate ha pouco tempo, 0 medico era 0 unico elemento capaz de transgredi-los. Quase todos des se imbricam, e falar de urn de1es leva inevitave1mente a explanar sobre os outros. o desejo de reparar origina-se no desejo de reparar a mae, outrora atacada, ou seja, reparar nossos impulsos agressivos. 0 reparo por impoteneia nasce da cren~a de que uma das figuras parentais foi abalada, seja pela impossibilidade de prevenir bu curar uma propria doen~a na crian~aou no irmao. 0 reparo por rejei~ao emoc1onal seria como uma rea~ao de adapta~ao a fragilidade sentida ou a baixa estima, quase sempre encontrada em filhos de pais distantes devido a sua atua~ao de trabalho (lvfeleiro,1998). o desejode poder, seguido da fase edipiana, traz em seu bojo os elementos de onipotencia, defesa contra a doenc;a, sofrimento e a morte. Seria aquilo que Simon, em 1971, denominou como "complexo tanatolico", que tern como base 0 desejo universal de imortalidade. Sao fantasias de urn ser onipotente, capaz de retardar, deter ou anular a ameac;a de morte inerente ao homem. Nao poder lidar com este mecanismo podeJevar 0 individuo, ainda quando estudante, e mais tarde como pro fissional, a sentimentos de culpa, pela ferida nardsica oriunda da perda do estado de onipotencia. Nos dias de hoje, POtem, com a perda de prestigio do medico e com as dificuldades que enfrenta em seu cotidiano pro fissional (tres empregos, ma remunerac;ao, mas condic;oes de trabalho etc.), e difieil manter "a. ilusao e a conseqiiente sensa~ao de ser urn pouco deus. Nem para si proprio, nem para os demais" (Bellodi, 1998). Se no passado Piragoras proclamava "0 homem e mortal por seus temores e imortal por seus desejos" (Meleiro, 1994), este desejo de imortalidade encontra-se hoje bastante vinculado as· pesquisas cientificas que procuram 0 prolongamento "eterno" das d:lulas. E born lembrar que todas as culturas reve1am individuos ou agrupamentos encarregados de exercer a funs:ao "tanatolitica". Sao os sacerdotes, curandeiros, divindades, ete. Na cultura ocidental, 0 novo curandeiro passa a ser 0 medico, mas, na falta deste, recorre-se ao auxilio sacerdotal, para "anular a morte". e renascer para a "vida eterna". A existencia destes elementos e que levaria 0 homem a poder tentar decifrar 0 enigma da escolha da profissao: 0 que levaria urn jovem a seencaminhar para viver proximo daquilo que mais teme, 0 sofrimento e a morte? Aprofundando mais, a respeito das razoes da escolha acima referidas, vamos tecer outras considerac;oes. Segundo Simmel (1926), a crians:a ve no medico a possibilidade de realizar tudo que e proibido, tal como mexer com 0 sexo, ver mulher nua, 0 que levou Numberg (1938) a denomina-lo como 0 "rilagico das zonas erogenas". Durval Marcondes (1932) mostra que na "brincadeira infantil de medico" a crians:a se coloca na posis:ao do "adulto todo poderoso". Capisano (1969) eita Melanie Klein (1952), que qualifica como identificas:ao com 0 objeto, e Anna Freud (1946) como "identificas:ao com 0 agressor". Para BIaya (1972), trata-se de urn desejo inconseiente de curar a si mesmo atraves da pessoa do paeiente - assim lida com aspectos infantis e regressivos; ou seja, BIaya referiu-se a projes:ao que implicitamente 0 medico faz no paciente, de suas proprias dificuldades. Sem duvida alguma, a sublimac;ao e a reparac;ao estao freqiientemente presentes. Vamos aprofundar a ques6io da reparac;ao. Meleiro, em 1998, analisando a posic;ao de Klein (1952), como sendo a possibilidade de dar aos outros uma tentativa de reparac;ao na idade adulta daquilo que gostaria ter recebido, ou seja, reparac;ao por impotencia ou por rejeic;ao emocional, discorre sobre estas duas formas da seguinte maneira: curar uma doenc;a na propria . '-cnanc;a ou lrmao. Reparo por rejeic;ao emocional- filhos de pais medicos (que passam menos tempo com seus fIlhos do que outros pais devido a obrigac;oes do trabalho) podem fazer a escolha da Medicina como wna reac;ao de adaptac;ao ao fragi! sentido do ED e a baixa auto-estima. o desprendimento emocional e a negac;ao de sua vulnerabilidade pessoal SaG incentivados pela escola medica. Como conseqiiencia esses fatores poderao gerar wna distorc;ao na dinamica medico-paciente. Essa distorc;ao favorecera 0 surgimento de uma depressao ou ansiedade no proprio medico (Lucbina, 1965). A quesrao da vocac;ao medica continua sendo um dos grandes misterios da psicologia humana. Os autores citados neste texto buscaram, generosamente, colaborar com ta~intricado problema, trazendo hipoteses e sugest6es para que futuros pesquisadores possam dar novos pass os na elucidac;ao desse tema. ARRUDA, P.V(1990). "Rela<;ao Medico-Paciente". Em: A.A.LAUDANNA, Gastr%gia C/fttica. Ed. Santos, Sao Paulo, pp. 18-23. 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