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POLÍTICAS DE SAÚDE UNIASSELVI-PÓS Autoria: Luciane Eloisa Brandt Benazzi Indaial - 2020 1ª Edição CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Copyright © UNIASSELVI 2020 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. S247c Sarro, Ed Marcos Comunicação empresarial, cerimonial e eventos. / Ed Marcos Sarro. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 148 p.; il. ISBN 978-65-5646-145-8 ISBN Digital 978-65-5646-146-5 1. Comunicação empresarial. – Brasil. 2. Comunicação. – Brasil. 3. Eventos. – Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 658.45 Impresso por: Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Jóice Gadotti Consatti Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Jairo Martins Marcio Kisner Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Sumário APRESENTAÇÃO ............................................................................5 CAPÍTULO 1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS ...........................................................7 CAPÍTULO 2 POLÍTICAS DE SAÚDE: UM OLHAR SOBRE O SUS...................73 CAPÍTULO 3 POLÍTICAS DE SAÚDE: CONJUNTURA ATUAL .........................149 APRESENTAÇÃO Prezado acadêmico, bem-vindo à disciplina Políticas de Saúde, a qual pretende proporcionar a você oportunidades de aprendizado que potencializem o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e competências, possibilitando compreender o cenário histórico, social, político, econômico e cultural, no qual as políticas de saúde brasileiras se conformaram. O nosso objetivo é fomentar o conhecimento referente às políticas de saúde no Brasil, sua evolução histórica e o contexto atual com a finalidade de subsidiar o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem de estudantes do curso de pós-graduação (lato sensu) em Gestão da Vigilância em Saúde. Assim, a ideia é que você compreenda e, principalmente, reflita o passado, o presente e as possibilidades futuras das políticas de saúde no Brasil, considerando os principais acontecimentos nesses 520 anos. Este material didático se propõe a oferecer subsídios teóricos à luz da revisão bibliográfica, que lhe trarão ganhos em termos de uma maior compreensão das políticas de saúde e de como elas podem afetar a população brasileira. Para tanto, a aproximação ao objeto, ou seja, a história das políticas de saúde, foi realizada a partir das referências existentes na área, sem a pretensão de esgotar o assunto. Esperamos que o aporte teórico que aqui será apresentado possa proporcionar reflexões sobre a trajetória das políticas de saúde. Para a organização deste material e facilitação do estudo, dividimos o livro em três capítulos: Capítulo 1 – Evolução histórica das Políticas Públicas de Saúde no Brasil antes do SUS. Capítulo 2 – Políticas de Saúde: um olhar sobre o SUS. Capítulo 3 – Políticas de Saúde: conjuntura atual. Para o bom aproveitamento dos conteúdos apresentados, é importante que você programe algum tempo para realizar as atividades propostas e dedique-se a pesquisar as indicações de leitura que oferecemos ao longo das seções. Colocamos a sua disposição alguns vídeos, documentários e filmes que contribuirão para o seu conhecimento e lembramos que você deve participar das discussões nos fóruns para trocar ideias e experiências. Desejamos uma ótima leitura, um excelente aprendizado e esperamos que a disciplina seja proveitosa e esclarecedora! CAPÍTULO 1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes objetivos de aprendizagem: • Entender a construção histórica e evolutiva das políticas públicas de saú de no Brasil antes do surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS). • Oportunizar e estimular uma refl exão sobre o cenário histórico e cultural no qual se conformaram as primeiras políticas de saúde. • Garantir o conhecimento sobre a formação e as transformações das políticas públicas de saúde e as formas de organização do setor saúde no Brasil. • Identifi car a sequência histórica dos modelos de políticas de saúde no Brasil. • Analisar as políticas de saúde e suas tendências no contexto histórico, as repercussões das condições de saúde da população e do sistema de saúde em diversos recortes territoriais. • Refl etir criticamente o processo histórico da construção das políticas de saúde no Brasil. • Compreender as articulações entre políticas de saúde e processos sociais, econômicos e políticos ao longo da história. 8 PoLÍTiCAS DE SAÚDE 9 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Todos nós temos um passado, uma história que pode ser contada de diversas maneiras, sob vários ângulos, mas que, geralmente, é apresentada como uma sucessão cronológica de fatos e acontecimentos. Será dessa forma que apresentaremos a você os aspectos históricos que infl uenciaram a conformação do sistema de saúde brasileiro, ou seja, um conjunto de datas que marcou o longo caminho das políticas de saúde até chegarmos à constituição do Sistema Único de Saúde, o nosso SUS. Neste capítulo, faremos uma descrição da evolução das políticas de saúde no Brasil e veremos que as concepções e ações de saúde são construções históricas e concretas. Salienta-se que essa revisão não pretende ser exaustiva, sendo apresentados os principais fatos históricos ocorridos, com embasamento na literatura especializada existente. Para uma melhor compreensão da estruturação das políticas de saúde, optou-se por uma divisão didática que distingue os períodos da história em: período colonial; Brasil Império; República Velha; Era Vargas (República Nova, Estado Novo); período Desenvolvimentista; Regime Militar e Nova República, sendo que o período Pós-Constituinte será abordado no próximo capítulo. Antes de analisarmos a história das políticas de saúde é preponderante a defi nição de algumas premissas, como o que signifi ca Estado e governo e quais as concepções de política (não a partidária) e política pública, que possuem conceitos abstratos. Ressalta-se que apresentaremos os aspectos elementares desses temas e não um detalhamento exaustivo, uma vez que não faz parte do escopo da disciplina. Existem diversas defi nições de Estado e governo, os quais, muitas vezes, são confundidos; contudo, são distintos. Na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, Sérgio Arouca, durante a abertura, explicitou essa diferença, defi nindo que o Estado é composto por território, povo e governo, que representa os interesses do povo (AROUCA, 1986). Assim, Estado envolve governo, que, por sua vez, pode ser identifi cado como um grupo político que comanda o Estado por um determinado período. O termo “política” possui muitos signifi cados e, segundo Secchi (2013), o qual é reconhecidamente especialista em políticas públicas, para que se possa 10 PoLÍTiCAS DE SAÚDE compreender as políticas públicas é preciso distinguir dois termos: politics e policy. Partindo disso, política enquanto politics está relacionada às formas de obter e manter o poder sobre os homens; enquanto que o termo policy remete à política em um sentido mais concreto de orientação para decisão e ação. Para conhecer mais sobre a defi nição de política, assista ao vídeo produzido pela Escola Virtual de Cidadania (EVC), da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IPnB8uVXSg8. Assim, o termo ‘políticapública’ (public policy) se encaixa no segundo termo, ou seja, policy, pois “trata do conteúdo concreto e do conteúdo simbólico de decisões políticas, e do processo de construção e atuação dessas decisões” (SECCHI, 2013, p. 1). Várias defi nições e interpretações são dadas à expressão “política pública”, as quais atendem aos mais variados objetivos. Em termos mundiais, a defi nição mais conhecida e concisa é a concebida por Thomas Dye, que descreve políticas públicas como o que o governo escolhe fazer ou não fazer, a qual foi por diversas vezes revisitada (DYE, 1975 apud BRASIL; CAPELLA, 2016). Embora seja bastante ampla, é específi ca ao atribuir ao governo o protagonismo, considerando que uma política será pública quando associada/emanada ao ator estatal, ainda que outros atores (públicos e privados) ajam na sua construção. Cabe salientar que existe uma enorme pluralidade de pensamentos em torno do tema das políticas públicas na literatura especializada, sendo que a própria legislação brasileira não apresenta, em seu corpus, um conceito defi nido de política pública. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o conceito de políticas públicas é: “o conjunto de programas ou ações governamentais necessárias e sufi cientes, integradas e articuladas para a provisão de bens ou serviços à sociedade, dotada de recursos orçamentários ou de recursos oriundos de renúncia de receitas e benefícios de natureza fi nanceira e creditícia” (IPEA, 2018, p. 13). Há de se considerar que, de forma geral, as defi nições de políticas públicas, embora apresentem abordagens distintas, assumindo uma visão multidisciplinar e 11 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 holística do tema, acabam guiando o nosso olhar para os governos. As políticas públicas, também denominadas por algumas literaturas específi cas como políticas sociais ou de proteção social, estão voltadas para a realização dos direitos sociais, sendo consideradas como uma das ações/ estratégias que o governo/Estado tem para intervir em problemas relacionados à educação, emprego, habitação, saúde etc., na qual as políticas de saúde estão inseridas. Por falar em direitos sociais, é bom lembrar que de nada adianta eles serem contemplados na Constituição Federal ou em outras legislações, se não houver as políticas públicas que concretizem esses direitos, ou seja, o reconhecimento dos direitos implica que o Estado proporcione meios para que eles se materializem, sendo a política pública uma forma de efetivá-los, tendo como objetivo a intervenção social, modifi cando uma situação específi ca, a fi m de promover a igualdade. As políticas públicas, de acordo com Secchi (2013), apresentam diferenciações no que se refere ao agente responsável, podendo apresentar uma abordagem estatista (somente será pública quando realizada por um ator estatal) ou multicêntrica (considera outros protagonistas, como organizações privadas, não governamentais etc., considerando-a pública a partir da qualidade do problema e não por meio do agente da ação). Ademais, elas são formadas por uma sequência de sete fases interdependentes, que são: identifi cação do problema, formação de agenda, formulação, tomada de decisões, implementação, avaliação e extinção. Não teceremos maiores comentários acerca das fases, uma vez que foge aos objetivos da disciplina. Contudo, em nosso último capítulo, abordaremos a fase da avaliação, isto é, a avaliação das políticas de saúde. Por fi m, podemos inferir que para uma política pública existir é necessário que o Estado reconheça a necessidade social, incluindo-a entre suas prioridades, e, portanto, ela é decorrente, em tese, de um equilíbrio entre o que a sociedade necessita e o entendimento que o Estado estabelece sobre ela. Assim, ela é gestada pelo Estado, formada por um conjunto de ações, materializada por meio de um documento que apresenta objetivos e metas claros a serem atingidos, com base na decisão de um agente político de nível estratégico, que se consolida por meio legal (portaria, decreto, lei etc.) e é implementada utilizando recursos públicos (HERINGER, 2018). Por tudo isso, dada a dimensão e complexidade do tema, podemos dizer que as políticas públicas são ações, atividades, programas, entre outros, que o poder público desenvolve de forma direta ou indireta, assegurando os direitos 12 PoLÍTiCAS DE SAÚDE de cidadania a todas as pessoas ou de forma específi ca para uma determinada demanda, atendendo de forma plena as necessidades e direitos da população, sendo papel do gestor público reconhecer e fomentar as políticas públicas existentes. Para fecharmos esse tópico, assista à entrevista concedida por Leonardo Secchi ao programa Conexão Pública sobre Políticas Públicas, disponível na plataforma YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=OjpLql_qfqo. O que você entende ou pensa sobre política de saúde? Primeiramente, precisamos nos debruçar sobre saúde no contexto das políticas públicas, e, para isso, consideraremos a Constituição Federal (CF) de 1988, a qual afi rma em seu Art. 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988). Assim, a partir do excerto anterior, é possível inferir o caráter de política de Estado (dever do Estado) e o princípio da universalidade (direito de todos), sendo apropriado alegar que a saúde é uma política social e intersetorial. Lembrando que antes da CF, o direito à saúde até chegar ao status de direito social, percorreu uma longa trajetória, haja vista que a saúde era sinônimo de segregação social, já que a maioria das pessoas não tinha acesso aos serviços públicos de saúde. Vale frisar que a saúde é determinada, sobretudo, pela economia, política e sociedade e que não é simplesmente a ausência de doença, sendo que a Organização Mundial de Saúde (OMS) determinou que é mais do que isso, ou seja, deve ser entendida como um bem-estar físico, mental e social. Entretanto, para que esse bem-estar seja atingido, o indivíduo deve ter direito à moradia, ao trabalho, ao salário condigno, à educação, ao saneamento, aos serviços de 13 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 saúde, entre outros, estando as políticas de saúde envolvidas nesse contexto, a fi m de proporcionar as condições necessárias para uma vida digna e decente. No que diz respeito à política de saúde, ela refl ete o momento histórico, a situação econômica, a capacidade das classes sociais de a infl uenciarem, os avanços científi cos, entre outros, em que foi criada (ACURCIO, c2020). Relativo ao conceito de política de saúde, alguns autores buscam elaborar uma defi nição abrangente, dentre eles, Paim e Teixeira (2006, p. 74), os quais consideram-na como sendo “a resposta social (ação ou omissão) de uma organização (como o Estado) diante das condições de saúde dos indivíduos e das populações e seus determinantes, bem como em relação à produção, distribuição, gestão e regulação de bens e serviços que afetam à saúde, inclusive o ambiente”. O termo política de saúde é multifacetado, tendo em vista que abarca questões relacionadas ao poder em saúde, bem como diz respeito à constituição de planos de programas de saúde e diretrizes, sendo formulada com base nas necessidades dos usuários, muitas vezes segmentada por ciclos vitais, gênero, etnias, orientação sexual, situação social, entre outras, incluindo, também, as políticas intersetoriais, as quais são importantes e necessárias para a população de modo geral. Para você chegar a uma conclusão sobre a defi nição de Políticas Públicas e contextualizar com a saúde, sugerimos que assista ao vídeo produzido pela Escola Virtual deCidadania (EVC), da Câmara dos Deputados, sobre o tema, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=406y7gDN-ZE. No que concerne à política de saúde enquanto disciplina acadêmica, ela inclui estudos sobre o papel do Estado, as relações deste com a sociedade, os movimentos sociais em saúde, as relações existentes entre as demais políticas, em especial, as econômicas e as sociais, bem como abarca a formulação e a implementação de políticas específi cas no âmbito governamental, em especial ao enfrentamento dos problemas de grupos populacionais específi cos, gestão, implantação e avaliação de programas, planos e projetos (SANTOS; TEIXEIRA, 2016). 14 PoLÍTiCAS DE SAÚDE No Brasil, temos diversas políticas públicas de saúde, as quais veremos no decorrer da disciplina e que, muitas vezes, são operacionalizadas pelos profi ssionais de saúde. Daí a importância de sabermos o que signifi ca uma política pública no contexto do Estado e da sociedade, conhecermos a sua relevância e termos uma visão mais completa sobre ela. É importante ressaltar que a história da política de saúde no Brasil se funde com a história da saúde pública e com a construção da vigilância em saúde. Após essa contextualização, convidamos você a fazer uma bela viagem no tempo, em que passaremos a conhecer um pouco da trajetória histórica da política de saúde do Brasil. Esperamos que aproveite bem os conteúdos apresentados e participe das atividades propostas. Vamos ver como tudo isso começou? 2 AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL: DO DESCOBRIMENTO AO IMPÉRIO (1500-1889) Nesta seção, abordaremos o transcorrer histórico dos cuidados em saúde no Brasil, desde a chegada dos portugueses até o Império. 2.1 PErÍoDo CoLoNiAL (1500-1822) A nossa viagem inicia no ano de 1500, virada do século XIV para o XV, Idade Moderna, no qual o “futuro” Brasil esbanjava beleza com suas riquezas naturais e seus índios nativos, dando a ideia, que se espalhou pela Europa, de um verdadeiro paraíso, originando inúmeras expedições que zarpavam para cá, trazendo pessoas que sonhavam sair do Velho para o Novo Continente, vislumbrando uma vida melhor. Contudo, logo essa idealização das terras brasileiras serem um verdadeiro paraíso tornou-se uma utopia, pois com os colonizadores vieram as doenças desconhecidas (sarampo, varíola, varicela/catapora, entre outras), a desorganização social das tribos indígenas (população nativa do Brasil) e a morte, pois o contato com o homem europeu dizimou uma parcela expressiva da população indígena brasileira (entre 1563 e 1564 milhares de nativos morreram devido à varíola, sendo 30 mil mortes em apenas três meses), que não tinha imunidade para enfrentar vírus e bactérias oriundos de outros locais (GURGEL, 2010). 15 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 Diante desse panorama, os índios não estavam adaptados a uma série de doenças que vieram com os colonizadores, modifi cando o processo de saúde e doença da época. Cabe salientar que os índios tinham suas próprias doenças, como o pian ou bouba (doença infecciosa na pele causada por bactéria do gênero Treponema), a leishmaniose cutânea, a doença de Chagas e a malária na forma mais branda, entre outras, bem como encaravam as doenças como castigo ou provação, recorrendo ao pajé, que exorcizava os maus espíritos, utilizando plantas da fl ora local para o devido tratamento (GURGEL, 2010). Portanto, nessa época, a atenção à saúde era fundamentada pelos princípios indígenas. Nesse momento histórico, o Brasil se encontrava submetido econômica e politicamente a Portugal, com a exploração econômica por meio de ciclos do pau- brasil, cana de açúcar, mineração e café, atendendo às necessidades do comércio internacional. Além disso, foi um período marcado pela colonização europeia, que tentou disciplinar e controlar os nativos, ou seja, os índios. No período em que o Brasil era colônia de Portugal, a política de saúde era praticamente inexistente, não havia nenhum modelo de atenção à saúde que atendesse à população, assim como não existia interesse por parte do governo colonizador em formulá-lo (POLIGNANO, 2004). O governo restringia-se apenas a supervisionar a comercialização de alimentos e o saneamento dos portos por onde saíam os produtos, preocupando-se somente com medidas sanitárias, visando o comércio exterior. O Brasil Colônia, por pertencer a Portugal, seguia a mesma legislação e práticas vigentes de lá. Assim, em 1521, D. Manoel baixou, em Portugal, o Regimento do Físico-Mor (designação dada ao médico) e do Cirurgião-Mor do Reino, os quais fi caram responsáveis por zelar pela saúde da população, mas que não vieram ao Brasil devido aos perigos e aos baixos salários. Em 1550, a saúde do povo era encarregada pelos almocatéis, que, basicamente, verifi cavam os gêneros alimentícios e destruíam os que estavam em más condições (BERTOLLI FILHO, 2004). Em 1549, a Santa Casa de Misericórdia estabeleceu o primeiro hospital da cidade de Salvador (Bahia), conhecido, mais tarde, como São Cristóvão. A carência era gigantesca na área da saúde, não existiam serviços de saúde, a atenção à saúde era limitada aos recursos da terra (plantas, ervas) e aos conhecimentos advindos dos pajés, curandeiros e dos escassos médicos existentes, assim como a assistência à saúde era efetuada pelas enfermarias e Santas Casas de Misericórdia, mantidas pelos jesuítas, sendo que a população 16 PoLÍTiCAS DE SAÚDE com maior poder aquisitivo tinha acesso aos profi ssionais legais da medicina, que eram trazidos da Europa. Assim, diante das epidemias que assolavam e dizimavam a população, a única conduta era o isolamento (quarentena), sendo que na maioria das vezes, as pessoas morriam à mingua. No período de 1600, o Brasil Colônia não tinha estrutura urbana defi nida, o saneamento era escasso e o controle das doenças era incipiente. Em 1660, a população era de 184 mil habitantes, destes, 110 mil eram escravos e 74 mil brancos e indígenas (GALVÃO, c2020; POLIGNANO, 2004). Para se ter uma ideia, segundo Bertolli Filho (2004), em 1746, existiam somente seis médicos, os quais haviam se graduado na Europa, e que atendiam São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás e, conforme Polignano (2004), em 1789, no Rio de Janeiro, existiam quatro médicos exercendo a profi ssão. Diante dessa situação, houve a proliferação dos boticários (espécie de farmacêuticos) que preparavam medicamentos nas boticas e os comercializavam, sendo uma forma de assistência à saúde da população (POLIGNANO, 2004). Em maio de 1774, o regimento geral para delegados e juízes comissários do físico-mor e cirurgião-mor foi promulgado no Brasil, a fi m de intensifi car a fi scalização do exercício das artes de curar na colônia. Assim, o físico-mor e seus delegados fi scalizavam as boticas, inspecionavam os estabelecimentos e medicamentos vendidos, inclusive os preços, bem como eram responsáveis em controlar a prática da medicina por diferentes curadores ou práticos (físicos, cirurgiões, barbeiros, sangradores e parteiras). Que tal uma sessão de cinema? Assista ao fi lme “O físico”, que apresenta a história do “barbeiro-cirurgião”, o qual está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5OEpaQu5iq4. A vinda da família real para o Brasil, em 1808, tendo o Rio de Janeiro como sede, mudou um pouco o cenário, trazendo algumas mudanças signifi cativas tanto na parte administrativa como para a saúde, tornando-se necessária a criação de uma estrutura sanitária mínima (POLIGNANO, 2004). 17 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 Inicia-se, então, o processo de formação de instituições voltadas para a saúde, a fi m de efetuar o controle sanitário dos produtos consumidos e comercializados, combater a proliferação de doenças, resolver questões sanitárias e fi scalizar o exercício das profissões da área da saúde, sendo incorporado o caráter de ação denominado de Polícia Médica, originário da Alemanha (século XVIII) intervindo nas condições de vida e saúde da população com o propósito de controlar o aparecimento das epidemias (DIOGO, 2010). A atenção à saúde, nessa época, estava voltada para a profi laxia dos problemas epidêmicos, baseada no saneamento (urbanização, aterros de pântanos, dos cemitérios, criação de normas de higiene para enterros etc.), sendo que a organização dos serviços de saúde continuava a seguir as mesmas normas de Portugal. Houve também a criação dos lazaretos, que serviam para a quarentena das pessoas com moléstias epidêmicas e cutâneas e de viajantes, como forma de profi laxia das doenças contagiosas e transmissíveis, bem como a construção de ancoradouro especial para embarcações suspeitas, nascendo, assim, a vigilância em saúde (BRASIL, 2005). O órgão máximo para as questões de saúde era a Fisicatura-mor, um tipo de tribunal, com leis, regimentos e poder punitivo aos infratores, que fi scalizava as boticas e as pessoas que praticavam a cura, pois a principal preocupação da Corte com a saúde, naquele momento, resumia-se em fi scalizar o exercício da medicina. Entretanto, foi extinta após a Independência do Brasil, passando as atribuições para as câmaras municipais e justiça ordinária. Tendo em vista que Portugal não permitia a criação de faculdade em suas colônias, não existia no Brasil nenhuma faculdade de medicina até a chegada da Corte, sendo que em 18 de fevereiro de 1808, em sua passagem por Salvador (Bahia), Dom João VI criou a primeira Faculdade de Medicina do Brasil, denominada de Escola de Cirurgia da Bahia. Nesse mesmo ano, também foi criada a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro (POLIGNANO, 2004). Outro fato importante foi a criação da Junta da Instituição Vacínica da Corte, pelo decreto de 4 de abril de 1811, que tinha por atribuição a propagação da vacina antivariólica no Brasil, uma vez que a varíola era uma das maiores preocupações sanitárias da época, devido ao alto grau de letalidade. Como podemos ver, com a mudança da sede do governo português para o Brasil, a Colônia ganhou importância, sendo exigida a criação de diversas instituições até então inexistentes, bem como as preocupações com a saúde da população, especialmente com a saúde da Corte, e a necessidade de saneamento, impuseram uma nova organização para o governo, o qual buscava o controle das epidemias (BRASIL, 2005). 18 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Desta forma, podemos resumir esse período da seguinte forma, conforme demonstrado na Figura 1: FIGURA 1 – RESUMO POLÍTICO, ECONÔMICO, ORGANIZAÇÃO DA SAÚDE E PERFIL EPIDEMIOLÓGICO NO BRASIL COLÔNIA – 1500 a 1822 FONTE: A autora 2.2 PErÍoDo Do BrASiL ImPÉrio – 1822 A 1889 Como é sabido, em 7 de setembro de 1822 foi proclamada a independência do Brasil e em 1824 foi criada a primeira Constituição brasileira, que em momento algum incluiu dispositivo relacionado à saúde. Portanto, o Estado não tinha nenhuma responsabilidade constitucionalmente sobre a saúde da população. Em torno de 1829, foi criada a Junta de Higiene Pública, que apesar de passar por várias reformulações, mostrou-se pouco efi caz, não alcançando o objetivo principal, que era cuidar da saúde da população, sendo que as instâncias médicas assumem as medidas de higiene pública (BRASIL, 2011). Diante das constantes epidemias, em 1837 foi estabelecida a imunização das crianças contra a varíola, de forma compulsória, que acabou não sendo efetivada e em 1846 foi organizado o Instituto Vacínico do Império. Entre 1828 e 1840, várias epidemias assolam o Rio de Janeiro, especialmente, de febre amarela, febre tifoide, varíola e sarampo. Em 1849, uma grande epidemia de febre amarela matou mais de 4 mil pessoas no Rio de Janeiro, sendo que 19 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 esse episódio desencadeou a necessidade de reorganização da higiene pública no país (PASCHE, c2020). Até 1849, as responsabilidades dos serviços da Saúde Pública eram atribuídas aos municípios, por meio de Decreto Imperial; porém, com a situação das frequentes epidemias, a municipalização foi revogada e, em 1850, em decorrência da grande epidemia de febre amarela, a Junta de Higiene Pública foi transformada em Junta Central de Saúde Pública, como objetivo de inspecionar as vacinações, controlar o exercício da medicina e realizar a polícia sanitária, a qual pode ser considerada o embrião do que viria a ser o Ministério da Saúde (BRASIL, 2005; 2011; PASCHE, c2020). Desta forma, até 1850 as atividades de saúde pública estavam limitadas ao controle de navios, saúde dos portos e delegação das atribuições sanitárias às juntas municipais, mesmo que estas não resolvessem os problemas de saúde (BRASIL, 2011). O primeiro hospital psiquiátrico (denominado de D. Pedro II), no Brasil, foi inaugurado em 1852, no Rio de Janeiro, tendo como objetivo tratar de forma medicamentosa os “doentes mentais” (COSTA, 1985). Em 1855 ocorreu a epidemia de cólera, que em dois meses levou a óbito aproximadamente 1.700 pessoas residentes em Porto Alegre, RS (cerca de 10% da população da capital), conforme dados estimados e recolhidos entre os livros de óbitos da Santa Casa (WITTER, 2007). Salienta-se que foi uma epidemia que matou milhares de pessoas por onde passava, sendo que estimativas apontam por volta de 200 mil mortes em menos de um ano (LEWINSOHN, 2003). Durante o período do Brasil Império, ações de combate específi co a determinadas doenças transmissíveis foram realizadas, passando-se a identifi car os agentes etiológicos das doenças, devido à era bacteriológica, sendo a teoria miasmática superada. Ademais, as ações tornaram-se mais restritas ao indivíduo portador, para o qual ações de controle eram dirigidas, sendo o acesso à saúde feito de forma privada. As pessoas eram atendidas por meio da fi lantropia (Santas Casas de Misericórdia e sociedades benefi centes). Salienta-se que vários decretos foram criados, com ênfase na reorganização dos serviços sanitários, sendo que a partir do Decreto nº 9.554, de 3 de fevereiro de 1886, foi criado o Conselho Superior de Saúde Pública, bem como houve a separação dos serviços sanitários dos portos e o terrestre (BRASIL, 1886). Não se pode deixar de mencionar a Abolição da Escravatura, ocorrida em 1888, que intensifi cou as correntes imigratórias, substituindo a mão de obra 20 PoLÍTiCAS DE SAÚDE escrava pela assalariada, ocasionando um crescimento populacional, tornando as condições sanitárias ainda mais difíceis, uma vez que não havia políticas sociais e de saúde, gerando uma eclosão de epidemias (BERTOLOZZI; GRECO, 1996). Ressalta-se que a fase imperial brasileira, apesar das várias tentativas, fi nalizou-se sem êxito para o enfrentamento dos problemas de saúde da coletividade, apresentando precárias condições sanitárias, vários surtos epidêmicos, ausência de infraestrutura básica e ausência de legislação e conhecimentos em saúde pública (BRASIL, 2011; PONTE, 2010). FIGURA 2 – RESUMO POLÍTICO, ECONÔMICO, ORGANIZAÇÃO DA SAÚDE E PERFIL EPIDEMIOLÓGICO BRASIL IMPÉRIO – 1822 a 1889 FONTE: A autora Por fi m, podemos dizer, de forma resumida, que, de 1500 a 1889 (do Período Colonial até o Império), o foco da Corte estava relacionado com o saneamento dos portos, infraestrutura e urbanização nas localidades de maior interesse econômico. As intervenções eram pontuais para conter as frequentes epidemias, sendo abandonadas quando a situação era contida, assim como a assistência médica limitava-se apenas às classes dominantes, sendo exercida pelos raros médicos que vinham da Europa, restando aos demais apenas os recursos da medicina popular e as Santas Casas de Misericórdia. É importante recordarmos que os problemas de saúde decorrentes da urbanização e industrialização e, consequentemente, as epidemias,não aconteceram somente no Brasil, haja vista que os países da Europa (Alemanha e França, por exemplo) também passaram por esse processo. Dessa forma, chegamos ao fi nal da primeira seção, na qual iniciamos a nossa viagem no tempo para nos apropriarmos do contexto da saúde da população na 21 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 época colonial e imperial, bem como saber a forma que as ações de saúde pública foram organizadas e como era a questão de higiene e saneamento naquela época. Nesse momento, você está convidado a testar os conhecimentos adquiridos até aqui. Vamos lá? 1 Com base na leitura e conhecimentos adquiridos, leia as afi rmativas e marque “V” para as verdadeiras e “F” para as falsas. ( ) Durante o Brasil Colônia, os serviços de saúde eram proporcionais ao número de habitantes, atendendo à população por meio dos princípios indígenas. ( ) A preocupação com a assistência à saúde, no Brasil, inicia-se com a chegada da Família Real, em 1808, no Rio de Janeiro, ocorrendo uma transformação social no país. ( ) Os índios que habitavam o nosso país não estavam adaptados a uma série de doenças que vieram com os portugueses, trazendo um processo de saúde e doença diferenciado para a época. ( ) Tanto no Brasil Colônia como no Brasil Império, somente tinha acesso aos serviços de saúde e aos médicos quem tinha recursos fi nanceiros parcos. ( ) As Santas Casas eram as instituições que cuidavam da população que não tinha condições fi nanceiras, uma vez que trabalhavam com a ideia de caridade e tinham vínculo religioso. ( ) As intervenções em saúde, no período de 1500 a 1889, estavam voltadas para as epidemias, que dizimavam a população, sendo que ações perduravam à medida que a situação era contida. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: ( ) F – V – V – F – V – F. ( ) V – V – F – F – V – F. ( ) F – V – V – F – V – F. ( ) V – V – F – F – V – V. ( ) V – V – V – V – V – V. 22 PoLÍTiCAS DE SAÚDE 3 POLÍTICAS DE SAÚDE NA REPÚBLICA VELHA (1889-1930) Prosseguiremos com a viagem que tem como destino a República Velha, com tempo de duração de 41 anos. Prepare-se para mais uma aventura! A chamada República Velha tem o seu início em 1889, quando ocorre a Proclamação da República por Deodoro da Fonseca, terminando em 1930 com Getúlio Vargas e se caracteriza por um arranjo político semelhante aos últimos tempos do Império, sendo o país governado pelas oligarquias dos estados mais ricos (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), tendo a cafeicultura como o principal setor da economia, dando poder aos cafeicultores, que aplicavam parte do lucro nas cidades, favorecendo a industrialização e a expansão populacional urbana (BERTOLLI FILHO, 2004). A Proclamação da República traz um ideal de modernização ao Brasil, tornando necessária a reavaliação dos serviços sanitários por parte do governo republicano, embora com cunho mercadológico, uma vez que o modelo de trabalho assalariado vinha sendo implementado e era premente manter a população longe das doenças, objetivando uma mão de obra hígida. Com o aumento da imigração no fi nal do século XIX e início do século XX, a população no Brasil passou de 14 para 17 milhões, entre 1890 e 1900, as necessidades de saúde se intensifi caram e a simples fi scalização já não era mais satisfatória (na verdade nunca foi), carecendo de ações mais efi cazes e com embasamento científi co (COSTA, 1985). Nesse período (1890 e 1900), as principais cidades brasileiras continuavam a ser vitimadas pelas doenças (varíola, febre amarela, cólera, peste bubônica e febre tifoide), que matavam milhares de pessoas (BRASIL, 2005). A ausência de um modelo sanitário contribuía para a vulnerabilidade, propiciando as epidemias, como malária, febre amarela, varíola e peste bubônica, que traziam consequências tanto para a saúde como para o comércio e a economia, haja vista que os navios estrangeiros já não queriam mais atracar nos portos brasileiros, pois nessa época, o Brasil já estava organizado sob uma política capitalista, fi rmado com uma economia agroexportadora (POLIGNANO, 2004; COSTA, 1985). Salienta-se que o controle sanitário, ou seja, a organização de saúde estava a cargo do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, uma vez que ainda não existia o Ministério da Saúde, sendo priorizadas, assim como nos períodos 23 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 Colonial e Imperial, as ações de saneamento e combate às endemias, visando à manutenção do modelo econômico agrário e exportador, ou seja, a preocupação era com a economia do país que estava em pleno desenvolvimento e não com a saúde da população. Nesse contexto, mais adiante, os assuntos sanitários foram assumidos por profi ssionais de Medicina, tornando-se guia do Estado, a fi m de garantir a melhoria da saúde individual e da coletividade, visando ao progresso do país (BERTOLLI FILHO, 2004). Dessa forma, os médicos higienistas, por meio de incentivos do governo, começaram a ocupar cargos importantes na administração pública (BRASIL, 2005). Vale ressaltar que, embora houvesse a tentativa do monopólio médico no que se refere às atividades de cura e prescrições de higiene e de medicamentos, os terapeutas populares não ofi ciais continuavam atuando e a população continuava a buscar seus serviços (ALVES, 2015; PIMENTA, 2003). Em 1890, por meio do Decreto nº 169, de 18 de janeiro de 1890, foi instituído o Conselho de Saúde Pública, destinado, especialmente, a emitir pareceres sobre assuntos de higiene e salubridade, bem como para reorganizar o serviço sanitário terrestre. Fatos importantes ocorreram em 1892, dentre eles a criação do Serviço Sanitário Paulista, o qual se tornou modelo para outros estados devido a sua organização de prevenção e combate às doenças e à criação dos laboratórios bacteriológicos, vacionogênicos e de análises clínicas e farmacêuticas, sendo ampliado em 1899, transformando-se no Instituto Butantan (BERTOLLI FILHO, 2004). A preocupação do poder público, no que se refere à saúde, baseava-se nas questões de saneamento urbano e dos portos e nas endemias e epidemias provocadas pelas doenças pestilentas (cólera, peste bubônica, febre amarela, varíola) e nas doenças infecciosas e parasitárias (tuberculose, hanseníase, febre tifoide) (BRASIL, 2005). Salienta-se que a Constituição de 1891 (a segunda na história brasileira), que adotou o sistema federativo, assim como a primeira Constituição (1824), também não fazia menção à saúde em nenhum dos seus dispositivos (BRASIL, 1824; 1891). 24 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Que tal ler o artigo “O princípio do fi m: o “torna-viagem”, a imigração e a saúde pública no Porto do Rio de Janeiro em tempos de cólera” e conhecer mais um pouco da história? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eh/v24n47/n47a04.pdf. No fi nal do século XIX, foram criados o Instituto Soroterápico Federal, com o objetivo de fabricar soros e vacinas contra a peste, assim como a Liga Brasileira contra a Tuberculose (criada por médicos e intelectuais), com a função de desenvolver atividades contra a doença, haja vista sua franca expansão e a ausência do Estado na promoção de ações de prevenção e de tratamento etiológico (FAP, c2020). Cabe salientar que a economia brasileira se desenvolveu de forma signifi cativa no início do século XX, no entanto, houve um aumento das epidemias, o que atrapalhou esse desenvolvimento, uma vez que os trabalhadores estavam adoecendo, sendo necessária a criação de estratégias de controle dessas doenças, como a instauração de iniciativas governamentais por meio de organizações mais estruturadas (ministérios, departamentos, conselhos) a fi m de promover saúde para a população. Em 1902, ocorreram mudanças consideráveis na condução das políticas de saúde públicacom a entrada do presidente Rodrigues Alves, tanto por meio de ações de urbanização e saneamento, no Rio de Janeiro, como ações de saúde voltadas para as doenças prevalentes da época (varíola, febre amarela e peste bubônica) (MATTA, 2007). Nesse sentido, houve a nomeação do sanitarista Oswaldo Cruz, pelo presidente Rodrigues Alves (que perdera uma fi lha vitimada pela febre amarela), como diretor-geral de Saúde Pública, em 1903, inaugurando, assim, a nova era da higiene nacional. Ademais, as atividades do Instituto Soroterápico de Manguinhos foram ampliadas, passando a se dedicar também à pesquisa e à qualifi cação de recursos humanos (PONTE, 2010; BERTOLLI FILHO, 2004). Oswaldo Cruz, com a incumbência de erradicar a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, de modo autoritário (visão militar, em que os fi ns justifi cam os meios), mas baseado no cientifi cismo europeu, propôs ações de desinfecção, destruição de edifi cações consideradas nocivas à saúde pública, implementação de programas de vacinação obrigatória em toda a população, notifi cação 25 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 permanente dos casos dessas doenças e a atuação da polícia sanitária, sendo esse modelo denominado de sanitarista campanhista e causando indignação da população devido ao uso da força nas intervenções (PONTE, 2010; BRASIL, 2005; COSTA, 1985; POLIGNANO, 2004). Em 1903, um serviço de desinfecção para os navios, mercadorias e bagagens foi inaugurado, por meio de um aparelho de gás de Clayton, sem a necessidade de fazer a descarga da embarcação, impedindo uma possível invasão de vetores (ratos, pulgas e mosquitos) e micróbios, especialmente dos ratos que saíam quando o navio atracava (REBELO, 2013). Ainda nesse ano (1903), em São Paulo, foi inaugurado o Instituto Pasteur, para produzir e comercializar produtos de uso médico-veterinário (BERTOLLI FILHO, 2004). Foi nesse período que os programas e serviços de saúde pública, no âmbito nacional, foram criados e implementados por Oswaldo Cruz (ex-aluno e pesquisador do Instituto Pasteur), que adotou campanhas sanitárias, tornando-se um dos pilares das políticas de saúde (LUZ, 1991). Conforme apontam Costa e Sanglard (2006), um fato acontecido na França, em 1902, pode ter contribuído para o Decreto nº 5.156/1904, o qual regulamentou os serviços sanitários, embora haja diferenças em determinados aspectos, ou seja, Jules Siegfried elaborou uma lei referente à proteção da Saúde Pública, a qual foi considerada a base das políticas públicas para o controle da salubridade das moradias, representando o pensamento higienista francês. De acordo com Matta (2007), Oswaldo Cruz propôs um Código Sanitário, sendo considerado como um código de tortura, tendo em vista o rigor das ações propostas, em que a polícia sanitária tinha autonomia para identifi car a pessoa doente e colocá-la em quarentena para o tratamento ou invadir casas e estabelecimentos para a desinfecção. Para erradicar a febre amarela, Oswaldo Cruz criou, em 1904, o Serviço de Profi laxia da Febre Amarela. Foram montadas brigadas denominadas de “mata- mosquito” para eliminar o vetor da febre amarela, constituídas por um verdadeiro exército formado por 1.500 guardas sanitários (popularmente chamados de equipes “mata-mosquito”), munidos de larvicidas e outros instrumentos para a desinfecção das casas, ralos, telhados, calhas etc. para eliminar depósitos de larvas do inseto, além da queima de colchões e roupas das pessoas infectadas, gerando medo e desconfi ança. Ademais, os doentes eram isolados em casa ou enviados para o Hospital de Isolamento São Sebastião e cada caso novo deveria ser notifi cado às autoridades sanitárias (POLIGNANO, 2004; ACURCIO, c2020). 26 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Os métodos utilizados por Oswaldo Cruz foram alvo de discussão, crítica e insatisfação popular, culminando com um movimento popular conhecido como a Revolta da Vacina, por conta da instituição da vacinação antivaríola obrigatória em todo o território nacional, pela Lei Federal n° 1.261, de 31 de outubro de 1904 (BERTOLLI FILHO, 2004). Dentre suas cláusulas havia a indicação da vacinação antes dos seis meses de idade e para todos os militares, revacinação a cada sete anos e exigência de atestado de imunização (candidatos a cargos ou funções públicas, para quem quisesse se casar, viajar ou matricular-se em escolas), bem como a polícia sanitária tinha total poder, devendo a população se submeter à vacinação sob pena de pagar as despesas de internação caso houvesse recusa. Nesse contexto, a revolta da vacina ocorreu devido ao povo nunca ter passado por um processo semelhante, o que assustou, bem como por desconhecer a composição e a qualidade do material utilizado para a imunização e por acharem indecoroso as moças terem que mostrar o braço para um desconhecido aplicar a vacina, apesar das ações serem divulgadas na imprensa por meio de folhetos educativos explicando as medidas adotadas (BERTOLLI FILHO, 2004). Contudo, de nada resolveu, uma vez que a maioria da população era analfabeta (FIOCRUZ, 2017). FIGURA 3 – CHARGE SOBRE A REVOLTA DA VACINA FONTE: <https://www.emaze.com/@AOLFTOCFC>. Acesso em: 21 set. 2020. outros objetos Publicado em 27 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 FIGURA 4 – NOTÍCIA PUBLICADA NOS JORNAIS SOBRE A REVOLTA DA VACINA FONTE: <https://radios.ebc.com.br/na-trilha-da-historia/edicao/2016-11/historiadora- destaca-papel-de-oswaldo-cruz-no-avanco>. Acesso em: 21 set. 2020. FIGURA 5 – NOTÍCIA PUBLICADA NOS JORNAIS SOBRE A REVOLTA DA VACINA FONTE: <https://braziljournal.com/na-previdencia-um-nova- revolta-da-vacina>. Acesso em: 21 set. 2020. As Figuras 4 e 5 representam as notícias publicadas nos jornais retratando a Revolta da Vacina. A charge (Figura 3), de autoria de Leonidas, ilustra a revolta da população contra a vacinação obrigatória, personifi cando Oswaldo Cruz (de bigodes ao centro), montado em uma seringa, tendo mais atrás um estandarte em que se lê: Vacina obrigatória. Estudantes, a população em geral e cadetes da Escola Militar, em torno de duas mil pessoas, foram às ruas protestar, houve depredação, violência, bondes 28 PoLÍTiCAS DE SAÚDE queimados e muito tumulto (Figura 4), gerando um saldo de 945 prisões, 110 feridos, 30 mortos e 461 deportados em menos de duas semanas de confl itos (FIOCRUZ, 2005). É importante frisar que, embora as ações promovidas por Oswaldo Cruz, o qual foi um dos principais protagonistas do desenvolvimento das políticas públicas de saúde no país, eram postas em prática de forma impositiva, elas eram importantes para a saúde da população. Portanto, a crítica fi ca por conta da maneira como elas aconteciam e por não serem explicadas à população do porquê eram necessárias. Outra questão a ser ressaltada é que a Revolta da Vacina foi fundamental para o desenvolvimento da participação comunitária nas elaborações das ações de saúde futuras, as quais serão discutidas ao longo da nossa disciplina. Ademais, na literatura ofi cial, a revolta fi cou estigmatizada como uma manifestação da população à vacina em si, sendo enfatizada a violência, sendo omitida as condições precárias em que a população vivia e o seu descontentamento, fatos que contribuíram para que ela ocorresse. O documentário da Fiocruz “A Revolta da Vacina” conta a história da varíola, da vacina e da revolta popular de 1904. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=7&v=amw FWGMJhUw&feature=emb_logo. Para combater a peste bubônica, Oswaldo Cruz, além da vacinação dos moradores das áreas infectadas, isolamento e tratamento dos doentes, adotou um modelo polêmico, a desratização, sendo que os funcionários encarregados deveriam recolher, pelo menos, 150 ratos por mês, sob pena de serem demitidos, e aos que ultrapassassem, seriam recompensados com300 réis por cada rato abatido. Também foi instituída a compra de ratos, sendo que a Diretoria-Geral de Saúde Pública (DGSP) pagava para cada pessoa a quantia de 200 réis para cada animal morto (FIOCRUZ, 2017). Essa medida de compra de ratos fez com que surgisse uma nova modalidade de ofício, “os ratoeiros”, que se puseram a criar ratos e até mesmo iam a outras cidades para capturá-los, a fi m de ganhar dinheiro com a venda destes. Houve inclusive novos empreendedores, como um certo Sr. Amaral, que contratou 29 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 “ratoeiros” a seu serviço, sendo, posteriormente, preso (PROJETO MEMÓRIA, 2003). Observe que o fato de ganhar dinheiro com a venda de ratos propiciou à população uma fonte de renda e, obviamente, muitas pessoas viram como uma excelente oportunidade, assim como o Sr. Amaral, em se benefi ciar desta situação. Como podemos ver, o “jeitinho brasileiro” é de longa data, incutido na cultura do país como uma solução criativa ou uma forma “especial” de se resolver um problema, geralmente por meio de esperteza, como neste caso. Assim, a prática de compra e venda de ratos, por favorecer oportunistas, objetivando lucro fácil, foi logo suspensa, sendo os ratos exterminados por envenenamento ou com gases tóxicos aplicados nas galerias subterrâneas de água e esgoto. Cabe informar que esse fato também virou motivo de piada e deboche e serviu para o surgimento de diversas caricaturas de Oswaldo Cruz, charges, crônicas e canções/marchinhas populares (FIOCRUZ, 2017). FIGURA 6 – CHARGE SOBRE A COMPRA E VENDA DE RATOS FONTE: <https://www.reddit.com/r/brasil/comments/7u3njg/charge_de_1911_ do_m%C3%A9dico_e_sanitarista_oswaldo/>. Acesso em: 21 set. 2020. 30 PoLÍTiCAS DE SAÚDE FIGURA 7 – CARICATURA SOBRE A COMPRA E VENDA DE RATOS FONTE: <https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/ enem/2019/04/25/noticia-especial-enem,1048944/precisamos-de- uma-nova-revolta-da-vacina.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020. Antes de continuar a leitura do nosso material, convidamos você a assistir ao vídeo produzido pela TV Senado, o qual retrata a situação da época, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6i6v9f_aWjg. Por incrível que pareça, em 2001, a imprensa noticiou um programa da prefeitura de Nova Iguaçu, RJ, sobre a compra de ratos, pagando R$ 5,00 por quilo de rato a fi m de eliminar a leptospirose, conforme pode ser visualizado no link a seguir: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u40218. shtml. Sugerimos a leitura do artigo Não é meu intuito estabelecer polêmica: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 59702013000501271&lng=pt&nrm=isso. Conforme Polignano (2004), foi um período marcado por grandes acontecimentos, em que Oswaldo Cruz buscou organizar a diretoria-geral de saúde pública, incorporando ações de saúde, criando o registro demográfi co 31 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 a fi m de conhecer os fatos vitais da população, a inspetoria de isolamento e desinfecção, um laboratório bacteriológico para assessorar no diagnóstico, um serviço de engenharia sanitária e de profi laxia da febre amarela e o instituto soroterápico, transformado, posteriormente, no Instituto Oswaldo Cruz. Observe que o registro demográfi co proposto por Oswaldo Cruz signifi ca elaborar ações e estratégias de saúde baseadas nas reais necessidades da população, à medida que é realizado um diagnóstico situacional, o que pode ser transportado para a realidade atual, por intermédio do SUS. Desta forma, o modelo campanhista de Oswaldo Cruz, apesar das arbitrariedades e dos exageros cometidos, obteve êxitos signifi cativos no controle das doenças epidêmicas, erradicando a febre amarela, em 1907, rendendo a ele uma medalha de ouro, recebida no 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografi a, além de participar de uma Exposição de Higiene, realizada na Alemanha, naquele mesmo ano (PROJETO MEMÓRIA, 2003; FIOCRUZ, 2017), o que fortaleceu o modelo, tornando-o hegemônico como proposta de intervenção na área da saúde pública/coletiva durante décadas. Vale lembrar que as ações em saúde, voltadas para a lógica do neocolonialismo, visando mão de obra estrangeira, comercialização e exportação do café, ou seja, com foco no desenvolvimento econômico do país e não no bem- estar e saúde da população, estavam direcionadas para as capitais, estando a população interiorana desassistida, fi cando à margem dessas ações (ESCOREL; TEIXEIRA, 2008). Em 1909, Carlos Chagas descobre a doença provocada pelo Trypanosoma cruzi (doença de Chagas), identifi cando o primeiro caso em Minas Gerais (município de Lassance), numa menina de dois anos, chamada Berenice. Nesse mesmo ano, Oswaldo Cruz deixa a Diretoria-Geral de Saúde Pública, dedicando-se ao Instituto de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz), onde criou o primeiro curso de pós-graduação na área biomédica (Curso de Aplicação de Manguinhos) e a revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, bem como lançou expedições científi cas, possibilitando um maior conhecimento da realidade sanitária do interior do país, recomendando algumas medidas a serem implantadas aos operários da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, como exames médicos periódicos aos empregados, fornecimento durante a viagem e diariamente de quinino (com desconto no salário caso não ingerisse e gratifi cação para quem não contraísse malária), aconselhou que galpões telados fossem construídos para alojar os operários, sendo disponibilizados água fervida, locais específi cos para defecação e uso de calçados (PROJETO MEMÓRIA, 2003). 32 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Para conhecer mais sobre a vida de Oswaldo Cruz, assista ao fi lme “Sonhos tropicais”, o qual permite diversas abordagens didáticas, envolvendo o contexto histórico, social, biológico/saúde, ambiental, cultural, político, entre outros. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fi eH3FqzrZ0. É no fi nal da década de 1910, conforme Lima, Fonseca e Hochman (2005), que se pode apontar como o início efetivo das políticas de saúde no Brasil, tendo em vista o encontro de um movimento sanitarista organizado em torno de uma proposta de saneamento e de políticas de saúde devido aos efeitos negativos, assim como a substituição da fase de coerção pela persuasão. As publicações de Belisário Penna (médico sanitarista) no jornal Correio da Manhã (1917) e o livro Saneamento do Brasil (1918), alcançaram repercussão nacional, demonstrando a necessidade de uma reforma da saúde pública e saneamento dos sertões, contribuindo para a criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil, em 1918 (FINKELMAN, 2002). De 1910 a 1920, vários acontecimentos importantes podem ser enaltecidos, como: Fundação Rockefeller (fundação norte-americana), que desempenha papel importante para a implementação de ações para a saúde pública no Brasil, junto ao movimento sanitarista (1916); morte de Oswaldo Cruz (1917); Carlos Chagas assume a direção do Instituto Oswaldo Cruz (1917); criação do Serviço de Profi laxia Rural (1918); pandemia de gripe espanhola (1918), a qual corroborou para a constatação da precariedade dos serviços de saúde e a necessidade de reformá�los; reforma de Carlos Chagas, com a reorganização dos Serviços de Saúde Pública; a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP); a criação de um extenso Código Sanitário; a contemplação dos cuidados com a maternidade e a infância; assistência hospitalar e combate à tuberculose, à sífi lis e à hanseníase (1920), entre outras ações. Ressalta-se que Carlos Chagas inovou o modelo campanhista, que era fi scal e policial, ao introduzir a propaganda e a educação sanitária, criar órgãos especializados contra a lepra, tuberculose e doenças venéreas (como eramchamadas na época as Infecções Sexualmente Transmissíveis), contemplar a higiene industrial e expandir as atividades de saneamento para outros estados (POLIGNANO, 2004). 33 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 Contudo, ainda existiam ações impositivas, como no caso da lepra, em que as pessoas eram obrigadas a realizar exame diagnóstico em casos suspeitos, o isolamento compulsório dos doentes e a proibição de pessoas com a doença viajarem sem autorização sanitária (FINKELMAN, 2002). Nesse enfoque, salienta-se que Carlos Chagas foi um importante sujeito histórico nas condições de saúde populacional, promovendo articulações políticas e práticas importantes para o desenvolvimento da saúde pública brasileira. Tendo em vista o contexto atual, devido às semelhanças com a COVID-19, merece destaque a gripe espanhola. No Brasil, a epidemia chegou em setembro de 1918 e, na época, o governo não deu a devida atenção, pois acreditava-se que o oceano impediria a chegada até aqui (qualquer semelhança não é mera coincidência). Diante do desconhecimento de medidas terapêuticas para evitar o contágio ou de cura, as autoridades simplesmente aconselhavam que se evitassem aglomerações e a imprensa divulgava inúmeras receitas, sem evidências científi cas, para combater o mal. As ruas fi caram vazias, foram construídos cinco hospitais emergenciais e 27 postos de atendimento no Rio de Janeiro. Estima- se que, entre outubro e dezembro de 1918, 65% da população adoeceu e que em todo o mundo morreram de 20 a 40 milhões de pessoas durante a pandemia (1918-1919). No Rio de Janeiro foram registradas 14.348 mortes (população de 910.710 habitantes) e em São Paulo 2.000 pessoas morreram (GOULART, 2005; ROCHA, c2020). Cabe pontuar que, inicialmente, para a população e, em especial, aos grupos oposicionistas do governante, à época, Wenceslau Braz, o combate à gripe espanhola era pretexto para intervir na vida da população, imperando a ideia de que se fazia muito alarde por causa de uma simples doença (gripe). Após a constatação de que se tratava realmente de uma doença avassaladora, a situação instituída pela epidemia foi encarada com descaso, negligência e incompetência governamental por não ter nenhuma estratégia para lidar com as ameaças que amedrontavam o país, fatores amplamente explorados pelos jornais, inclusive com charges, as quais apresentavam críticas à Diretoria-Geral de Saúde Pública (GOULART, 2005). 34 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Quer saber mais sobre as semelhanças entre a gripe espanhola e COVID-19? Acesse: http://www.revistahcsm.coc.fi ocruz.br/ coronavirus-e-a-gripe-de-1918-19-paralelos-historicos/ e https:// www.ufrgs.br/coronavirus/base/uma-comparacao-entre-a-pandemia- de-gripe-espanhola-e-a-pandemia-de-coronavirus/. Você também pode assistir ao fi lme “Gripe Espanhola: os mortos esquecidos”, o qual retrata os primeiros esforços médicos para proteger a população de Manchester da Pandemia de Gripe Espanhola em 1918. Ou ao documentário apresentado pela BandNews, em 16 de abril de 2020, disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=fFZ6j2rUpwc. É oportuno destacar que Monteiro Lobato teve papel importante na saúde pública do país, participando de campanhas sanitaristas, principalmente por meio do seu personagem Jeca Tatu (Velha Praga e Urupês – publicados em 1914), um caipira genuinamente brasileiro, vítima da pobreza, das péssimas condições de higiene, saneamento e saúde a que estava exposto. Em 1918, criou o Jeca Tatuzinho, o qual foi associado à indústria farmacêutica, tornando-se garoto- propaganda do Biotônico Fontoura (antianêmico). Também foi criado o Almanaque do Jeca Tatu, que explicava a transmissão do ancilostomídeo e a importância de andar calçado, numa linguagem acessível e simples para a população, assim como o Jeca Tatu ilustrou diversas cartilhas educativas elaboradas pelo poder público (SOARES, 2014). Lobato também criou o Zé Brasil, um personagem que representava o trabalhador rural explorado, mas não passivo, formando uma tríade de imagens simbólicas (Jeca Tatu, Jeca Tatuzinho e Zé Brasil), relacionando-os à saúde pública e à educação (SANTOS, 2012). Antes de prosseguir, recomendamos a leitura do artigo Jeca Tatu, um ilustre opilado: o movimento sanitarista e o combate à ancilostomíase na obra de Monteiro Lobato (Brasil, décadas de 1910-1920), o qual está disponível em: http://seer.upf.br/index.php/ rhdt/article/view/8599/114114260. 35 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 Durante a República Velha temos o primeiro movimento de reforma sanitária, liderado por jovens médicos higienistas, que obteve conquistas importantes, como a criação do DNSP, por exemplo. Foram estabelecidas bases para a criação de um Sistema Nacional de Saúde caracterizado por ações verticais e concentradas no governo (BRASIL, 2011). Face ao exposto, o movimento sanitarista pode ser dividido em dois períodos: 1903 a 1909, o qual foi marcado pela gestão de Oswaldo Cruz, privilegiando o saneamento urbano da cidade do Rio de Janeiro e o combate às epidemias (febre amarela, peste bubônica e varíola) e 1910 a 1920, com destaque para a Liga Pró-Saneamento, com ênfase no saneamento rural, a atuação da Fundação Rockefeller, criando um serviço de combate às verminoses e na qualifi cação de recursos humanos. Assim, pela primeira vez, nos anos 1920, a saúde surgia como questão social no Brasil, ganhando novos contornos (LIMA; PINTO, 2003). Em meados do século XX, ocorre o processo de industrialização de forma mais ativa no país, e, consequentemente, há uma evolução histórica no que se refere à saúde e ao saneamento, uma vez que a criação de indústrias nos centros urbanos traz necessidades específi cas, como mão de obra especializada, gerando uma migração da população rural para a cidade, ocasionando uma urbanização crescente e expansão das periferias e favelas no Brasil. Associado a isso, ocorre uma importação de trabalhadores da Europa, uma vez que a população brasileira não dava conta da demanda industrial. Convém elucidar que esses sujeitos tinham conhecimentos das leis trabalhistas, que aqui no Brasil ainda não eram difundidas, e que ao chegarem no Brasil se deparavam com uma realidade totalmente diferente, iniciando, assim, a promoção de reivindicações para que seus direitos fossem garantidos, criando os primeiros movimentos trabalhistas nacionais, bem como desencadeou na criação de uma legislação para a realidade trabalhista do Brasil. Assim, em 1923, com a Consolidação da Lei Eloy Chaves, que cria e regulamenta as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), temos o ponto de partida para a criação da Previdência Social, considerada o marco da medicina previdenciária e a era da institucionalização da atenção à saúde privada no Brasil (modelo médico-assistencial privatista) (BRASIL, 2013). Portanto, as CAPs são as primeiras iniciativas governamentais que garantem à população trabalhadora contribuinte (com carteira assinada) acesso aos serviços de saúde e de previdência social (aposentadoria). As CAPs tiveram origem com os ferroviários (devido à importância do setor 36 PoLÍTiCAS DE SAÚDE para a economia), estendendo-se aos portuários (estivadores e marítimos), mineradores, servidores públicos e telégrafos, sendo organizadas por empresas e não por categorias e mantidas de forma bipartite (empregadores – 1% da receita bruta – e empregados – 3% do salário), restritas às grandes empresas públicas e privadas (BRASIL, 2005; 2011; POLIGNANO, 2004; ACURCIO, c2020). Elas possuíam características parecidas com o modelo implementado na Alemanha (modelo bismarckiano), ou seja, o trabalhador somente teria direito se pagasse por ele, sendo descontado do seu salário. Além das pensões e aposentadorias (seguridade social), as CAPs ofertavam serviços médicos, funerários e de “socorromédico” (conforme denominado no Decreto), bem como descontos em medicamentos, pensão para herdeiros em caso de morte, assistência aos acidentados no trabalho, conforme os Arts. 9 e 27 do Decreto nº 4.682/1923 (BRASIL, 1923). De acordo com alguns estudiosos, com a criação das CAPs temos o início da responsabilização do Estado para regulamentar políticas sociais direcionadas para o bem-estar do trabalhador de carteira assinada, que contribuía para isso, promovendo a saúde deste. Contudo, enfatiza-se que a implantação das políticas sociais no Brasil se iniciou pela saúde, ainda que atrelada às questões da Previdência Social e com caráter excludente, contemplando somente os trabalhadores formais. Você pode estar se perguntando: por que os primeiros processos de construção de políticas sociais no Brasil aconteceram no âmbito do trabalho? A resposta é simples: o foco prioritário do governo era a questão econômica e, portanto, os trabalhadores formais contribuíam para que ela se efetivasse, o que justifi ca serem estes os protagonistas das políticas sociais. O Decreto nº 16.300/1923 colocou em vigor o primeiro código sanitário nacional, incorporando a expressão Vigilância Sanitária de forma indistinta, isto é, empregada para controle sanitário de estabelecimentos, locais e pessoas doentes (BRASIL, 2005). Assim, é na década de 1920 que a saúde pública começa a ser prioridade, fazendo parte da agenda política do governo, com marcada distinção entre a proteção médico-assistencialista e as ações voltadas para a saúde pública, tendo como base dos serviços de saúde os estabelecimentos fi lantrópicos, por meio das Santas Casas, e privados, voltados para a atenção individual e daqueles que podiam pagar (GERSCHMAN; SANTOS, 2006). Finkelman (2002), em seus estudos sobre as políticas públicas de saúde, identifi cou, nesse período, duas fases das ações sanitaristas, ou seja, uma 37 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 fase direcionada a combater as epidemias urbanas e a outra relacionada ao saneamento rural. Nesse período, as questões epidemiológicas e sanitárias perpassam por todo o país, sendo que as doenças transmissíveis eram as mais comuns. Vale lembrar que a transição do tipo de doença também acompanha os acontecimentos ocorridos no momento, o que justifi ca as ações voltadas para as áreas portuárias, vacinação e endemias. Em síntese, esse período foi marcado pela assistência à saúde de baixa qualidade e resolutividade, com ações que tinham como objetivo controlar as doenças epidêmicas, emergindo nessa conjuntura o sanitarismo campanhista, liderado por Oswaldo Cruz, com foco no curativo privatista e a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões, dando início à assistência médica previdenciária, restrita aos trabalhadores de determinadas empresas. Para complementar o que foi apresentado até aqui, propomos que assista ao documentário “Políticas de Saúde no Brasil: um século de luta pelo direito à saúde”, parte 1, disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=TbXvEKP1wic. FIGURA 8 – RESUMO POLÍTICO, ECONÔMICO, ORGANIZAÇÃO DA SAÚDE E PERFIL EPIDEMIOLÓGICO REPÚBLICA VELHA – 1889 a 1930 FONTE: A autora 38 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Sugerimos que leia o artigo Origem das políticas de saúde pública no Brasil: do Brasil Colônia a 1930. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/origem_politicas_ saude_publica_brasil.pdf. 1 Tomando como base o conteúdo apresentado, propomos que você elabore um mapa mental, que pode ser de forma manual ou no computador, de acordo com suas habilidades. Lembre-se de que seu mapa deve conter os principais fatos ocorridos durante a República Velha. Nunca fez um mapa mental? Não se preocupe, segue um link para você aprender: https://www.sbcoaching.com.br/blog/mapa-mental/. Então, mãos à obra! R.:____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 4 POLÍTICAS DE SAÚDE: DA ERA VARGAS ATÉ A NOVA REPÚBLICA (1930-1988) Nesta seção analisaremos os nexos entre as políticas de saúde e sociedade, refl etindo sobre os principais acontecimentos, “mergulhando” no contexto político, econômico e social das respectivas épocas. 39 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 4.1 ErA VArGAS – 1930 A 1945 Getúlio Vargas foi presidente do Brasil em dois períodos (totalizando 15 anos) e fi cou conhecido como o “Pai dos Pobres”, por ter criado diversas leis sociais e trabalhistas, além do volume de políticas sociais que implementou. A Era Vargas acontece de 1930 a 1945, período em que ocorre a expansão do processo de industrialização no Brasil, promulgação de uma nova Constituição (1937), reivindicações dos trabalhadores, regulamentação da justiça do trabalho (1939), homologação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (1943), entre outros acontecimentos. Contudo, essa concepção teórica pode ser considerada até 1964. Ao assumir a presidência do Brasil, Getúlio Vargas institui uma política de privação de liberdade, não participativa da comunidade, cancelando a votação presidencial, realizando uma reforma administrativa. Ao mesmo tempo, cria medidas importantes que garantirão a assistência social e de saúde à população, as quais veremos no decorrer do nosso texto. Assim, a hegemonia política da classe dominante, relacionada, especialmente, ao café, teve seu fi m com a Revolução de 1930, tendo em vista que Getúlio Vargas promoveu uma reforma administrativa e política, inclusive suspendendo a Constituição de 1891, governando por meio de decretos até 1934, quando foi aprovada a nova Constituição, reforçando o centralismo e a autoridade presencial (BERTOLLI FILHO, 2004; BRASIL, 2011; ACURCIO, c2020). Até a Revolução de 1930, as políticas sociais eram emergenciais e fragmentadas e as questões de saúde pública, por parte do Estado, eram voltadas para as situações emergenciais das epidemias que ocorriam nos centros urbanos, sem contar com um programa de ação (FINKELMAN, 2002). A literatura reconhece o primeiro governo de Getúlio Vargas como um marco histórico na confi guração das políticas sociais brasileiras, uma vez que as mudanças institucionais promovidas durante o seu mandato estabeleceram um arcabouço jurídico, moldando a política pública do Brasil, conformando o sistema de proteção social por muito tempo (BRASIL, 2011). Desmembraremos a Era Vargas em dois períodos: República Nova (de 1930 a 1937) e Estado Novo (de 1937 a 1945), para melhor compreensão. Período da República Nova – 1930 a 1937 40 PoLÍTiCAS DE SAÚDE Um dos fatos marcantes para a área da saúde foi o Decreto nº 19.402, de 14 de novembro de 1930, que criou a Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública (BRASIL, 1930), incorporando o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) com a denominação de Departamento Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social (LIMA; PINTO, 2003). Todos os assuntos relacionados à saúde da população estariam sob a responsabilidade do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), exceto os da área da medicina previdenciária, os quais estavam a cargo do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Assim, era de sua incumbência prestar serviços para os desempregados, pobres e aos que exerciam atividades não formais, identifi cados como pré-cidadãos, isto é, aos que não usufruíam dos serviços previdenciários e das CAPs (BRASIL, 2011). De acordo com Lima, Fonseca e Hochman (2005), essa dualidade acabou por se tornar umamarca do sistema de proteção social de saúde brasileira, fazendo uma distinção e separação da área da saúde, marcando as ações de políticas públicas de saúde. Com a criação do MESP, houve a remodelação dos serviços sanitários e o anúncio de que o Estado assumiria o compromisso em zelar pelo bem- estar sanitário do povo brasileiro, sendo que os estados que contavam com pouca assistência fi caram satisfeitos, enquanto que os demais, que já estavam organizados de forma descentralizada, acharam essa intervenção desnecessária e centralizadora (BERTOLLI FILHO, 2004). Ressalta-se que o primeiro governo de Getúlio Vargas foi marcante na trajetória dos direitos sociais, com políticas de proteção ao trabalhador que benefi ciavam a classe trabalhadora, como defi nição da jornada de trabalho (8 horas diárias); licença-gestante; direito a férias remuneradas e regulares; lei do salário mínimo; obrigatoriedade da carteira de trabalho, entre outros. No que se refere à implementação de serviços e programas de atenção médica, desde o início da Era Vargas, foi impregnada de práticas clientelistas, ancoradas nos sindicatos de trabalhadores que auxiliavam na criação das normas adequadas às estratégias das elites sindicais e governamentais (LUZ, 1991). Nesse contexto, por volta de 1933, as CAPs foram substituídas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), passando a ser por categorias profi ssionais, dando oportunidade para os empregados de pequenas empresas se fi liarem, ampliando a cobertura. Os IAPs eram centralizados no governo federal, a gestão passou a ser tripartite (empregadores, trabalhadores formais e Estado), 41 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 sendo que o Estado usava o dinheiro dos tributos cobrados dos trabalhadores formais e informais, ou seja, na verdade, o Estado não contribuía, e sim era o trabalhador formal que contribuía duas vezes e o trabalhador informal pagava de forma indireta, mas não usufruía. O primeiro IAP a ser criado foi o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos (IAPM), sendo que ao longo da década outros institutos foram surgindo (comerciários – 1934; bancários – 1935; industriários – 1938; empregados em transportes e cargas – 1938; ferroviários e empregados em serviços públicos – 1953), durando até 1966, sendo que cada Instituto dispunha de uma rede ambulatorial e hospitalar para a assistência dos trabalhadores (POLIGNANO, 2004; FINKELMAN, 2002; MOROSINI; CORBO, 2007). De acordo com Finkelman (2002), os IAPs, por variarem de órgão para órgão, possuíam legislações distintas, as quais apresentavam restrições, colocando os serviços de saúde em segundo plano, sendo que essas disparidades normativas contribuíram para o surgimento de um sistema menos desigual e unifi cado, o que não era bem-visto por alguns, uma vez que haveria o risco de centralizar e concentrar o poder no Estado. Contudo, os IAPs enaltecem a desigualdade social, haja vista que os benefícios proporcionados por eles eram específi cos para quem tinha um trabalho e quem não tinha fi cava à margem, ou seja, sem acesso à saúde, gerando um distanciamento entre o trabalhador formal e o informal ou o não trabalhador. A Constituição de 1934 trouxe inovações, dentre elas: garantia da assistência médica; legislação trabalhista; voto secreto; voto feminino e autonomia dos sindicatos. Naquele ano, foram criadas oito delegacias federais de saúde para colaborar com os serviços locais, assim como as Conferências Nacionais de Saúde e Educação e a implementação de programas de assistência médica aos trabalhadores visando o processo de industrialização (BERTOLLI FILHO, 2004; ESCOREL; TEIXEIRA, 2008; BRASIL, 2009). Período do Estado Novo – 1937 a 1945 A quarta Constituição foi outorgada no dia 10 de novembro de 1937, sendo que nesse mesmo dia a ditadura do Novo Estado foi implantada, por meio de um golpe de Estado. Em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, o Ministério da Educação e Saúde Pública passou a denominar-se Ministério da Educação e Saúde (BRASIL, 1937). Também, nesse ano, foi criado o Conselho Nacional de Saúde (CNS), com caráter normativo e consultivo, caracterizado como um colegiado, o qual era formado por especialistas em saúde pública. 42 PoLÍTiCAS DE SAÚDE O Departamento Nacional de Saúde (DNS), a partir do golpe, foi reestruturado, englobando diversos serviços, centralizando as atividades sanitárias e ampliando a rede pública de postos e centros de saúde, além de instalar hospitais gerais, leprosários, sanatórios etc. Dessa forma, a política de saúde do Estado Novo foi centralizadora, sendo que nesse período o sanitarismo campanhista, da época de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, intensifi cou-se (LIMA; PINTO, 2003). Ainda de acordo com os autores supracitados, o primeiro serviço de saúde pública na esfera nacional foi o Serviço Nacional de Febre Amarela (1937), desenvolvido pelo DNS juntamente à Fundação Rockefeller, que também foi responsável por outros serviços nacionais de saúde, como o Serviço de Malária do Nordeste (1939). A direção do DNS fi cou sob a responsabilidade de João de Barros Barreto, entre 1938 e 1945, sendo a autoridade que mais tempo fi cou à frente da política nacional de saúde, consolidando a estrutura verticalizada dos serviços de combate às doenças, assim como priorizou os registros estatísticos das campanhas de saúde pública, contribuindo para que um sistema de informação das doenças transmissíveis fosse implantado (FINKELMAN, 2002). Como estava a realidade da saúde pública no que se refere à assistência à saúde até esse momento? De modo geral, de acordo com a literatura especializada, havia uma centralização da assistência à saúde em alguns setores específi cos (IAPs e privados), o foco estava no tratamento das doenças específi cas, com a preocupação em cobrir uma demanda pontual (a população doente), uma vez que não existiam ações preventivas e de promoção à saúde, sendo priorizadas as patologias já instaladas, tendo saúde como sinônimo de ausência de doença. Getúlio Vargas, durante seu governo, prioriza o modelo curativo, centrado em grandes hospitais e em equipamentos sofi sticados. Conforme Morosini e Corbo (2007), a política de saúde pública, com a instalação dos postos e centros de saúde, na década de 1930, estabeleceu formas mais permanentes de atuação, bem como alguns programas foram criados (vacinação, puericultura, pré-natal, tuberculose, hanseníase, entre outros), os quais foram organizados com embasamento nos saberes tradicionais e da velha epidemiologia, sem considerar os aspectos sociais e denominados de programas verticais. Fazendo-se valer o parágrafo único do Art. 90 da Lei nº 378/1937, em 1941, aconteceu a I Conferência Nacional de Saúde, por proposição de Gustavo Capanema (ministro da Saúde e Educação), apresentando quatro temas principais: a organização sanitária estadual e municipal; a ampliação das 43 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ANTES DO SUS Capítulo 1 campanhas nacionais contra a lepra e a tuberculose; o desenvolvimento dos serviços básicos de saneamento e o plano de desenvolvimento da obra nacional de proteção à maternidade, à infância e à juventude (FIOCRUZ, c2020; BRASIL, 2009). Em 1942, o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) foi criado, em conjunto com a Fundação Rockefeller (antes de sua saída do Brasil), para atuar na Amazônia (produção de borracha) com o intuito de combater a febre amarela e a malária, as quais estavam a dizimar os trabalhadores dos seringais (LIMA; PINTO, 2003). Vale salientar que o SESP, originalmente concebido para promover o saneamento nas regiões da borracha e de minerais, passou a implementar um modelo de estabelecimento de redes integradas de saúde, contrastando com o modelo verticalizado, bem como atuou em áreas geográfi cas carentes e distantes, sendo o pioneiro
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