Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Teologia Medieval: o Islamismo Altair Ferraz Neto © 2020 por Editora e Distribuidora Educacional S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Editora e Distribuidora Educacional S.A. Imagens Adaptadas de Shutterstock. Todos os esforços foram empregados para localizar os detentores dos direitos autorais das imagens reproduzidas neste livro; qualquer eventual omissão será corrigida em futuras edições. Conteúdo em websites Os endereços de websites listados neste livro podem ser alterados ou desativados a qualquer momento pelos seus mantenedores. Sendo assim, a Editora não se responsabiliza pelo conteúdo de terceiros. Presidência Rodrigo Galindo Vice-Presidência de Produto, Gestão e Expansão Julia Gonçalves Vice-Presidência Acadêmica Marcos Lemos Diretoria de Produção e Responsabilidade Social Camilla Veiga 2020 Editora e Distribuidora Educacional S.A. Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza CEP: 86041-100 — Londrina — PR e-mail: editora.educacional@kroton.com.br Homepage: http://www.kroton.com.br/ Gerência Editorial Fernanda Migliorança Editoração Gráfica e Eletrônica Renata Galdino Luana Mercurio Supervisão da Disciplina Ana Paula Moraes da Silva Maccafani Revisão Técnica Maria Julia Souza Chinalia Ricardo Ferreira Nunes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ferraz Neto, Altair F381t Teologia medieval: o islamismo / Altair Ferraz Neto, José Tadeu de Almeida, Patrícia Graziela Gonçalves. – Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2020. 184 p. ISBN 978-65-86461-51-0 1. Islã. 2. O profeta Muhammad. 3. O Alcorão. I. Almeida, José Tadeu de. II. Gonçalves, Patrícia Graziela. III. Título. CDD 297 Jorge Eduardo de Almeida CRB-8/8753 Sumário Unidade 1 A Península Arábica antes do profeta Muhammad .................................. 7 Seção 1 As origens do Islã ................................................................................ 9 Seção 2 Escravismo e crença .........................................................................23 Seção 3 A importância da Península Arábica .............................................36 Unidade 2 Muhammad: a vida e a revelação ..............................................................51 Seção 1 O profeta e as origens islâmicas ......................................................52 Seção 2 O Islamismo para além da Península Arábica ..............................66 Seção 3 Expansão islâmica e a importância do Islã ....................................78 Unidade 3 Hijrah (Hégira) e a tomada de Makka Al-Mukarrama (Meca) .............93 Seção 1 A religião islâmica ............................................................................95 Seção 2 O Livro Sagrado do Islamismo ....................................................107 Seção 3 O Islamismo e suas influências ....................................................121 Unidade 4 Os cinco pilares do Islão, a Sunnah, os Hadiths e a Shariah ...............135 Seção 1 Os cinco pilares básicos ................................................................136 Seção 2 Sunnah e o seu papel na Lei Islâmica ..........................................150 Seção 3 A mesquita e a cultura muçulmana ............................................162 Palavras do autor Bem-vindo! É um enorme prazer dividir com você o conteúdo da disci-plina de Teologia Medieval: o Islamismo. Na construção deste livro você será nosso convidado para conhecer algumas perspectivas gerais e históricas da formação do Império Árabe-Islâmico, como ponto de partida na abordagem do Islamismo e também terá informações sobre a religião islâmica. É claro que a pretensão didática de um trabalho dessa natureza requer um apelo histórico cuidadoso e ao mesmo tempo subjetivo. Por esse motivo, colocamos um caminho como propósito deste livro, que é: entender, em termos gerais, as particularidades históricas da Península Arábica antes do aparecimento do Islamismo, a vida do profeta Muhammad e, posterior- mente, o desenvolvimento histórico em seus aspectos religiosos do Islã. A partida do livro foca uma narrativa que inicia com o século VI d.C. e aqui na nomenclatura você vai notar a utilização do nosso calendário, o cristão, para efeitos puramente didáticos, uma vez que escrevemos no Brasil e o calendário islâmico apresenta uma cronologia diferente, conforme você terá a oportunidade de conhecer no decorrer das unidades. Esperamos suscitar uma reflexão sobre os aspectos políticos, religiosos, sociais, econômicos e o fundo puramente histórico, para situá-lo no universo interessante que abrange a expansão islâmica do Império Árabe-Islâmico, como sugerem alguns autores, e das grandes conquistas e episódios que envolvem todo processo de expansão islâmica. Por isso, é com um grande prazer que dividimos algumas informações e interpretações sobre o islamismo, sem pretensão alguma de esgotar o arcabouço religioso dessa que é uma das maiores religiões que já conhecemos. No momento em que escrevemos, mais de 1 bilhão de pessoas seguem sobre os preceitos do Alcorão e os fundamentos da vida do profeta Muhammad, em uma síntese histó- rica que unificou socialmente os anseios e as crenças politeístas do passado em populações e civilizações importantes na história da humanidade. Assim esperamos, nesse percurso, contar com a sua interpretação e leitura para conhecer, explorar e dialogar sobre o Islamismo, sempre na perspectiva distanciada do etnocentrismo, despossuída de juízo de valor e na intenção pura de conhecer essa importante religião, que se tornou um império entre os impérios na história até os dias em que escrevemos. Aproveite, aprofunde seus conhecimentos. O seu autoestudo é o que fará a diferença. Desejamos a você ótimos estudos! Unidade 1 Altair Ferraz Neto A Península Arábica antes do profeta Muhammad Convite ao estudo Se hoje você pode contar com a dignidade humana garantida por lei como própria de um mundo baseado em Direitos Humanos, além de respeito às diferenças em uma realidade plural e heterogênea, é necessário lembrar que nem sempre a história nos reservou essa particularidade. É claro que muito ainda tem que ser feito e construído e, para escrever essas linhas, não esque- cemos que a própria dignidade humana foi construída sobre uma história de lutas e guerras. A história dos povos árabes serve muito ao nosso propósito. A formação do Império Árabe-Islâmico, a partir do século VI, é desafia- dora. Para nossa unidade, o ponto de partida é uma sociedade de povos nômades e com múltiplas crenças e deuses, situada geograficamente em uma península que servia estrategicamente como passagem mercantil, ainda que transpassada pelo deserto e aridez próprias daquela região. Lembre-se que estamos ainda incipientes nesse período da história da forma Estado, como a conhecemos hoje. É necessária uma observação inicial e conhecer a Península Arábica, sobretudo em sua formação social, antes de mergulharmos no islamismo, e é isso que faremos a seguir. Como as fontes e os estudos da maioria bibliográ- fica sobre o Islã começam por desenvolver a pesquisa a partir do nascimento de Muhammad, nosso primeiro capítulo tem um desafio ainda maior. Você conhecerá as características gerais do período que os muçulmanos chamam de Jahiliyyah, ou a “era da ignorância”, para a sociedade árabe. Ao contrário do que a expressão pode sugerir, a era da ignorância tem uma importância fundamental na história do Islã, e por esse dado deve ser desenvolvida em linhas gerais com as perspectivas ideológicas na PenínsulaArábica a partir do século VI. O contexto de formação islâmico a partir das características da penín- sula, da sociedade e dos povos nômades da Arábia deve ser melhor tratado nessa abertura da Unidade 1 do nosso livro. Isso se dará pelo aspecto histó- rico de importante consolidação comercial de Meca e de algumas regiões da península após o ano 500 do calendário cristão, como síntese dos valores comerciais e trocas simbólicas entre o semitismo e o sincretismo religioso presente nas diferentes tribos árabes daquele período. Em resumo, o convite que fazemos a você nesta unidade segue na busca pela importância e influência da chamada “era da ignorância” no processo de formação do Islamismo. Quais as origens dessa importante matriz religiosa que é hoje o Islamismo? Qual a influência da Jahiliyyah na construção do Islã? Como uma sociedade do século VI, escravista clássica, construiu os preceitos de uma das maiores religiões que já conhecemos? Essas questões estarão presentes nessa unidade e esperamos o seu aproveitamento como material de fontes históricas e até sociológicas para a compreensão do processo de formação do Islamismo como religião. 9 Seção 1 As origens do Islã Diálogo aberto Seja bem-vindo ao nosso encontro com a história e formação do Islamismo. Mais do que um convite, você será levado a conhecer sobre a história dos povos árabes em consonância com a história do próprio Islã. É necessário encarar esse desafio de mente aberta e para longe das concepções que trazemos, uma vez que a compreensão de fenômenos sociais como o escravismo, presente naquela sociedade, deve ser encarado como produto histórico daquele período, e a história das religiões também entende esse grande valor que a humanidade criou e cria para subsistir nesse mundo. Portanto, o desafio já está colocado no seu contexto de aprendizagem. Nosso cenário será revelado pela busca de compreender uma sociedade heterogênea e muito peculiar dos povos do deserto, politeísta, criadora das próprias leis em constructo com a realidade nômade e comercial do século VI, especificamente pela posição estratégica da Península Arábica, a partir do ano 500 d.C. Um conhecimento histórico conduzirá ao entendimento econômico de tribos nômades e dos centros comerciais importantes da península, assim como também conduz à compreensão das relações sociais e políticas que se estabeleceram naquele período. É claro que a religião islâmica nasce com um propósito, sem o qual não poderíamos compreender, mais adiante, todo processo de expansão do Islamismo que se origina como forma de agir diretamente ligada ao desenvolvimento dos povos árabes. Por isso, esse estudo e resgate da história dos povos árabes e do desenvolvi- mento da Península Arábica no século VI, torna-se muito atual. Imaginemos um contexto de problematização em nossos dias. Um contexto em que você é professor e trabalha em uma universidade que desenvolve pesquisas na área teológica. Durante um dia de trabalho, recebeu o convite para ministrar uma palestra aberta, que envolveria um público de duas mil pessoas. O tema apontado para sua palestra foi a igualdade religiosa na Península Arábica do século VI. A sua palestra será transmitida por um canal de televisão e as pessoas envolvidas aguardam com muito interesse a sua exposição. Durante a construção e o tempo de estudos para sua apresentação, surge uma pergunta: como abordar e tratar de igualdade religiosa no século VI, se estamos falando de uma sociedade politeísta marcada por imensas desigualdades e injustiças sociais? Não esqueça que, para resolver essa questão, você deve refletir sobre 10 aspectos econômicos, políticos e sociais da Península Arábica do século VI que, didaticamente, são os conteúdos trabalhados nesta seção do livro. Esperamos que possa aproveitar essa viagem histórica como agente protagonista. Protagonista sim, com iniciativa e ponto de partida na igual- dade religiosa, conhecedor da história e na busca pelo reconhecimento do Islamismo como uma imensa religião que cumpriu inúmeros papéis histó- ricos importantes, e com a sua leitura e estudos fazer dessa pesquisa um ponto de apoio nessa busca. Não pode faltar Breve história dos povos árabes Entender a história da civilização árabe é um desafio importante a seguir. Sobretudo porque […] do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. (MARX, 2008, p. 48) É preciso entender que toda civilização se locomove pelo caminho das relações sociais, na medida em que o homem, enquanto gênero humano, é um ser social, portanto, estabelece e exerce a sua natureza coletiva. Com os povos nômades da Península Arábica não foi diferente. Estamos falando do século VI da era cristã (utilizando o calendário cristão pela localidade em que escrevemos e entendendo que a comunidade islâmica também compreende outra cronologia ligada à história do profeta Muhammad), quando tribos de beduínos nômades ocupavam a imensa península sobrevivendo, estabelecendo trocas e comércio, relacionando-se no que ficou conhecido como “vendetas” e, sobretudo, em conflitos que estariam diretamente ligados à própria história do Islamismo. A Península Arábica, antes do aparecimento de Muhammad (impor- tante lembrar que não há, segundo os islâmicos, uma tradução literal para o nome do profeta, que conhecemos mais comumente aqui como Maomé), já apresentava sua própria dinâmica de relações sociais, econômicas e políticas, importantes para entendermos a formação do Islamismo. Conhecida pela sua imensa extensão territorial e por ser uma região desér- tica, a Península Arábica hoje tem sua ligação com a exploração petrolífera 11 e grandes riquezas que contrastam com a desigualdade da atual sociedade. Como a maior península do mundo, com 3.237.500 km², está posicionada ligando o continente asiático e africano, e é cercada na costa oeste pelo Mar Vermelho, a leste pelos Golfos Pérsico e de Omã e ao Sul da península pelo Mar Arábico. Interessante percepção é a de que todo esse território é ocupado em sua maior parte por desertos e regiões em que a chuva é suficiente para permitir o crescimento de uma vegetação, em um clima quente e seco, entre a formação de espaços onde a água verte do subsolo em meio ao deserto, formando o que conhecemos como oásis. Em uma região tão agressiva como habitat, o convívio com a natureza é sempre desafiador, o que torna a história dos povos árabes rica em experiên- cias e fenômenos sociais importantes para explicar sobretudo a relação das diferentes tribos que ali viviam no século VI. Figura 1.1 | Mapa da Península Arábica Fonte: Wikimedia commons. A península guarda uma rica história. Socialmente, a partir do século VI (ano 500 da era cristã), era possível perceber a presença e particularidade das tribos que ficaram conhecidas como beduínas e sua importância na transpo- sição e adaptação às condições de uma península em que quase a sua totali- dade territorial era composta de regiões desérticas. Nenhuma tribo era igual à outra. Alguns estudos catalogam mais de 300 tribos nômades e também aquelas que se situavam nas localidades comerciais mais conhecidas, como Meca. Relata Albert Hourani em seu livro Uma história dos povos árabes: 12 A maior parte da península Arábica era estepe ou deserto, com oásis isolados contendo água suficiente para cultivo regular. Os habitantes falavam vários dialetos do árabe e seguiam diferentes estilos de vida. Alguns eram nômades criadores de camelos, carneiros ou cabras, dependendo dos escassos recursos de água do deserto; eram tradicional- mente conhecidos como “beduínos”. Outros eram agricul- tores estabelecidos, cuidando de suas safras ou palmeiras nos oásis, ou então comerciantes e artesãos em pequenos vilarejos que sediavam feiras. Outros ainda combinavam mais de um meio de vida. O equilíbrio entre povos nômadese sedentários era precário. (HOURANI, 2006, p. 21) É importante perceber que as diferenças cercavam todos os povos do deserto em que a prática escravista era comum. Em tribos com diferentes ethos, a luta pela sobrevivência sempre se colocava na escassez do ambiente, em diferentes tribos, diferentes crenças, diferentes deuses… A península estava colocada entre o que outrora fora a civilização bizan- tina e a civilização persa. Esse contexto fortalece ainda o argumento de disse- minação do cristianismo e do próprio judaísmo, para citar as religiões de matriz abraâmica, e coloca a Península Arábica no interior de uma análise muito complexa de relações. No plano social, era uma civilização que não podemos resumir em povos “nômades”; escravista e que vivia do deserto, em sua maioria. Um produto histórico do seu tempo e com influências de grandes religiões, como citamos, e que lutava pela sobrevivência em meio a essa própria condição. Mercadores, artesãos e tribos comerciantes que se estabeleciam não só no deserto, mas nos centros comerciais principais do século VI, como Meca e Medina. Era comum o domínio dos povos sedentários, lavradores dos oásis e que também viviam nas regiões onde a chuva era esparsa, pelos mercadores e nômades da península. Embora fossem uma minoria da população, eram os nômades dos camelos, móveis e armados que, juntamente com os mercadores das aldeias, dominavam os lavradores e os artesãos. O ethos característico deles — coragem, hospitalidade, lealdade à família e orgulho dos ances- trais — também predominava. Não eram controlados por um poder de coerção estável, mas liderados por chefes 13 que pertenciam a famílias em torno das quais se reuniam grupos de seguidores mais ou menos constantes, manifes- tando sua coesão e lealdade no idioma da ancestralidade comum: tais grupos são em geral chamados de tribos. (HOURANI, 2006, p. 21) Assimile Na história dos povos árabes um ponto importante está relacionado ao desenvolvimento de cidades como Meca e Medina. A cidade de Medina, local de migração do profeta Muhammad quando sai de Meca já no século VII, no episódio que ficou conhecido como Hégira, não tinha ainda esse nome e era conhecida como Iatreb. Sobre o paradigma religioso, essa cidade foi fundamental como ponto de partida na conso- lidação do Islamismo. Jahiliyyah: a “era da ignorância” para os islâmicos O período que desenvolvemos anteriormente é também conhecido como a era da ignorância pelos islâmicos. Pode-se atribuir a esse fato às diferentes crenças e deuses, como também a própria condição de vida e conflito pela heterogênea sociedade árabe no século VI, anteriormente ao aparecimento do profeta Muhammad na história. Como a Península Arábica tem proporções continentais, é possível que as diferentes crenças e tribos não apresentem as mesmas características, mas o dado marcante nesse constructo de relações é que se ligavam de alguma maneira, ora comercial, ora religiosa, ora pelo conflito. Até mesmo o nomadismo, como característica, ligava mercadores e caravanas para uma finalidade comercial, baseada no entorno dos oásis e na ligação com centros comerciais como Meca. O poder dos chefes tribais era exercido a partir dos oásis, onde mantinham estreitas ligações com os mercadores que organizavam o comércio através do território contro- lado pela tribo. Nos oásis, porém, outras famílias podiam estabelecer um tipo diferente de poder, pela força da religião A religião dos pastores e dos agricultores parece não ter tido uma forma clara. Julgava-se que deuses locais, identificados com objetos no céu, se incorporavam em pedras, árvores e outras coisas naturais; acreditava-se 14 que bons e maus espíritos corriam o mundo em forma de animais; adivinhos afirmavam falar com a língua de um saber sobrenatural. Sugeriu-se, com base em práticas modernas no sul da Arábia, que eles achavam que os deuses habitavam um santuário, um haram, um lugar ou aldeia separados do conflito tribal, que funcionava como centro de peregrinação, sacrifício, encontro e arbitragem, e era supervisionado por uma família sob a proteção de uma tribo vizinha. Essa família podia obter poder ou influ- ência fazendo hábil uso do prestígio religioso, de seu papel de árbitro em disputas tribais e de suas oportunidades de comércio. (HOURANI, 2006, p. 22) Na troca mercantil entre povos e tribos em uma sociedade escravista em condições tão adversas, o conflito era algo comum. As rotas comerciais no século VI eram importantes pontos de conquista pelos nômades da penín- sula principalmente no centro e ao norte, pelo domínio beduíno. É comum encontrarmos análises que dividem a Península Arábica entre as tribos nômades que dominavam a região central e norte do território árabe e os povos do sul da Península, mais estabelecidos nos regimes de agricultura, mas com grandes avanços na construção de diques e produção de especiarias que ficaram muito conhecidas na história. “Além de cereais, os árabes do sul produziam mirra, incenso e outras especiarias e essências, que constituíam a sua principal fonte de exportação” (LEWIS, 1990, p. 31). Segundo alguns autores, é possível interpretar as tribos que viviam no sul da península, com características monárquicas de base familiar, onde o regime parece assentar na sucessão. Os reis não possuíam, como nas socie- dades orientais, o caráter, sobretudo, divino. Como no plano político, não existia Estado do tipo centralizador nos moldes modernos; é possível que o desenvolvimento das sociedades do sul da península, estejam conectados à história dos beduínos nômades de maneira geral. O politeísmo era presente nessa sociedade de maneira interessante. Como as diferentes crenças e deuses se colocavam pela heterogênea carac- terística das diferentes tribos e regiões, esse politeísmo muitas vezes confli- tuoso deveria ser respeitado no interior dos limites da cidade de Meca, importante centro comercial do século VI. Em Meca estava localizado o que hoje os muçulmanos chamam de Caaba, um templo sagrado e que anterior- mente ao surgimento do Islã era o centro de adoração de uma multiplicidade de deuses das mais diferentes tribos. Essa questão é central para entender 15 porque os muçulmanos chamam esse período de a era da ignorância. Sobre a Caaba, trataremos posteriormente. A religião da Arábia do Sul era politeísta e apresenta analo- gias, mais de ordem geral do que de pormenor, com as de outros antigos povos semitas. Os templos constituíam centros importantes da vida pública e possuíam grandes riquezas, administradas pelo chefe dos sacerdotes. O produto das colheitas de especiarias era considerado sagrado e uma terça parte reservada aos deuses, isto é, aos sacerdotes. (LEWIS, 1990, p. 32) Se nos voltarmos para compreender as relações e a história dos povos e tribos nômades que se estabeleceram ao norte da península, certamente encontraremos ligação com o domínio de rotas comerciais importantes e que de certa forma foram fundamentais na consolidação econômica de cidades como Medina e Meca. Assimile A tribo dos coraixitas liga-se diretamente à história de Muhammad. Sua família pertencia à tribo dos coraixitas, embora não à parte mais poderosa. Os membros dessa tribo eram mercadores que mantinham acordos com tribos pastoris em torno de Meca, e também relações com a Síria e o sudoeste da península. Era a tribo predominante na cidade importante de Meca no século VI. “O traço dominante da população do Centro e do Norte da Arábia neste período crucial que precedeu imediatamente a ascensão do Islão é o do triba- lismo beduíno” (LEWIS, 1990, p.28). A subsistência dessas tribos dependia diretamente dos rebanhos, das manadas e dos saques às caravanas que se aventuravam no deserto intencionando atravessar a Arábia. É por meio dessa prática que os produtos e mercadorias provenientes de diferentes regiões chegavam às tribos no interior da península. Na sociedade beduína a unidade social é constituídapelo grupo e não pelo indivíduo. Este só tem direitos e obriga- ções enquanto membro do respectivo grupo. O grupo mantém-se unido exteriormente pela necessidade de autodefesa contra as dificuldades e perigos da vida no deserto, e internamente pelos laços de sangue de descen- 16 dência por linha masculina, que constitui o vínculo social básico. (LEWIS, 1990, p. 35) Aqui, parece ser possível uma avaliação político-econômico-social, com a Jahiliyyah, a era da ignorância, como colocada pelos muçulmanos, pelas complexas relações que se estabeleceram na Península Arábica antes da vinda do profeta Muhammad. Essas relações envolvem, no plano econômico, uma diversificada rede de comércio transarábico, pelas rotas comerciais e o próprio desenvolvimento comercial de cidades importantes. O papel tribal no plano das relações políticas, ideológicas e religiosas do período pode ser verificado pela crença baseada em vários deuses e matrizes ideológicas muito pertinentes ao desenvolvimento político das tribos que mais conquistavam. O nomadismo foi fundamental e definitivo para construir a história árabe. “Foram os elementos fixos e, particularmente, os que viviam e traba- lhavam nas rotas comerciais transarábicas, quem efetivamente moldaram a história árabe” (LEWIS, 1990, p. 40). Esse estilo de vida que se desenvolveu por meio do que descrevemos nas diferentes regiões da Península Arábica do século VI está associado à era da ignorância, que seria, na visão islâmica, um período da história em que os árabes não conheciam a os princípios e a “vontade de Deus”, de um só Deus: eram politeístas e resolviam suas contendas com “vendetas”, e foi isso que inspirou e impulsionou o período que mais à frente trataremos, o da expansão islâmica, após o surgimento e as revelações do profeta Muhammad. Reflita A característica do politeísmo nesse período da história representou um importante papel na formação do Império islâmico mais à frente. As particularidades são os traços fundamentais desse politeísmo e do nomadismo na formação da identidade dos povos árabes. A religião dos nómadas era uma forma de polidemo- nismo próxima do paganismo dos antigos semitas. As entidades por eles adoradas eram, na origem, os habitantes e seres tutelares de lugares específicos, que viviam nas árvores, nas fontes e especialmente nas pedras sagradas. Havia alguns deuses no sentido real, que transcendiam na sua autoridade as fronteiras dos cultos puramente tribais. (LEWIS, 1990, p. 36) 17 Podemos refletir: de que maneira o politeísmo é tratado em sociedades complexas como a nossa? O contexto de formação islâmica Desenvolver uma narrativa que abrace a compreensão de uma das maiores religiões do mundo não constitui tarefa simples. Temos de compre- ender a formação social do período e como viviam. E não só isso: nosso olhar não deve voltar para o senso comum uma medida de juízo de valor sobre o que os povos lá atrás convergiam. Você pôde estudar a complexidade social de diferentes tribos que se locomoviam pelo território da Península Arábica por volta do ano 500 d.C., assim como a diversidade estabelecida entre os povos e tribos nas regiões mais ao sul do território. O que com isso afirmamos é que a análise da sociedade árabe que definirá o seu percurso e as condições de vida desses povos sem dúvida formatará e colocará uma característica fundamental na expansão do islamismo a partir do século VII e a maneira como pensavam, sua ideologia e sua religião. Esse ponto é a compreensão do que os islâmicos entendem e denominam como era da ignorância. Esse período foi fundamental na construção de uma identidade do povo árabe e o que marca transformações externas e internas, comerciais, religiosas e políticas até o advento do Islamismo. Portanto, as origens do Islã devem compreender que a fé tribal é resul- tante, mas também promotora, dessa identidade dos povos árabes, assim como as sociedades dos oásis, formando essa identidade em uma estrutura rudimentar de crenças e hábitos políticos em uma espécie de diferença entre a população nômade e sedentária. A fé tribal concentrava-se à volta do deus da tribo, geral- mente simbolizado por urna pedra e, às vezes, por qualquer outro objeto. Ficava sob a custódia da casa do Sheikh, que desse modo conquistou um certo prestigio religioso. Deus e culto constituíam a divisa da identidade tribal e a única expressão ideológica do sentido de unidade e de coesão da tribo. A submissão ao culto tribal era expressiva de lealdade política. A apostasia era equivalente a traição. (LEWIS, 1990, p. 37) Somam-se a isso as rotas comerciais e a consolidação de centros impor- tantes ligados ao comércio, como a cidade de Meca e Medina, possibilitando 18 o encontro e a canalização das diferentes formas de agir, trocar e se relacionar na aspereza da península. A troca mercantil e relações que buscavam a manutenção da vida de modo direto conduziram ao choque ideológico entre os diferentes povos que já sofriam influência de grandes impérios. Exemplificando Um exemplo da importância das transformações ocorridas no século VI para a formação do Islamismo pode ser encontrado no modo de vida de uma parte importante da população da península naquele período. O oásis era a única exceção a este modo de vida nómada. Aqui, pequenas comunidades sedentárias formavam uma organização política rudimentar, e a família mais importante do oásis estabelecia, em regra, uma espécie de regime de pequena realeza sobre os seus habitantes. Por vezes, o soberano do oásis reivindicava uma vaga suserania sobre as tribos vizinhas. Algumas vezes também, um dos oásis conse- guia obter o controlo de um oásis vizinho, dando assim origem a um efêmero império no deserto. (LEWIS, 1990, p. 37) Sua forma de agir, política e religiosamente, também tem aportes materiais e comerciais com o processo que sempre estava encerrado no ambiente inóspito do deserto, e isso de certa forma identificou e marcou a construção de um dos maiores impérios que já conhecemos. Em resumo, é necessário concluir que a Arábia do período que antecede o aparecimento do Islamismo, não está isolada na sua totalidade dos impérios existentes até então, bizantino e persa. “Tanto a cultura persa como a cultura bizantina, nos seus aspectos material e moral, penetraram através de diferentes canais, muitos deles ligados às rotas comerciais transarábicas” (LEWIS, 1990, p. 38). Assim, as trocas comerciais e culturais transformaram o caráter das relações entre os povos nômades e sedentários. O semitismo pagão teve sua representação na consolidação de centros comerciais e religiosos, como na cidade de Meca do século VI, e o período da ignorância, segundo a narrativa islâmica, deve ser analisado por uma ótica que avalie a construção de uma civilização complexa, como a que vivia na Península Arábica do século VI. 19 Sem medo de errar Após uma viagem no tempo para compreender as origens históricas do Islamismo, retornamos ao nosso contexto de aprendizagem contemporâneo. Imagine que você é professor e trabalha em uma universidade que desen- volve pesquisas na área teológica. No seu cotidiano de trabalho recebeu um convite para ministrar uma palestra aberta, que envolveria um público grande e transmissão por um canal de televisão O tema apontado para sua palestra foi a igualdade religiosa, e você deve fazer essa análise de acordo com as origens do Islamismo, lembrando as características politeístas na Península Arábica do século VI. As pessoas envolvidas aguardam com muito interesse a sua exposição. Durante a construção e o tempo de estudos para sua apresentação, surge uma pergunta: como abordar e tratar de igualdade religiosa no século VI, se estamos falando de uma sociedade politeísta marcada por imensas desigualdades e injus- tiças sociais? Não esqueça que para resolver essa questão, você deve refletir sobre aspectos econômicos, políticos e sociais da Península Arábica daquele período, conformevocê conheceu até aqui. Na sua palestra, os argumentos devem focar a igualdade religiosa, lembrando que um dos aspectos da formação do Islamismo foi a forma complexa com que as diversas tribos se relacionavam na península. Uma resposta interessante seria a compreensão de que nos centros comerciais que se desenvolveram no período, tinha que existir um consenso mínimo quanto à liberdade de crença, e isso existiu nos territórios de Meca, por exemplo. Uma outra linha de argumentação plausível pode ser adotada como resposta a essa pergunta. As diferentes tribos, em diversificadas formas de vida, nômades ou sedentárias, tinham suas crenças em deuses diversos pela sua condição de vida na península, que estava atrelada à aspereza do deserto e que levou à sobrevivência em um contexto de lutas com outras tribos. Mas temos ainda uma outra linha de pensamento e argumentação de resposta para entender a importância da igualdade religiosa, sobretudo na sociedade árabe do século VI. Sua diversificada trama social em meio à grande extensão da península ligava religião e comércio nas rotas comer- ciais de passagem pelo território. Influências externas penetravam na cultura árabe, permitindo uma ligação de diferentes crenças na criação de uma identidade árabe. Esse fato mais tarde será sintetizada pela religião islâmica, o se verifica, na compreensão muçulmana, por esse período ser conhecido como a era da ignorância. 20 Os caminhos são variados na compreensão da formação do islamismo, mas todos eles devem passar pela compreensão do que foi a construção da sociedade árabe antes da vinda do profeta Muhammad, construção essa que deve abranger aspectos históricos, econômicos, políticos e religiosos como ponto de partida. Faça valer a pena 1. Entre os grandes impérios do norte e os reinos do mar Vermelho, ficavam terras de uma espécie diferente. A maior parte da península arábica era estepe ou deserto, com oásis isolados contendo água suficiente para cultivo regular. Os habitantes falavam vários dialetos do árabe e seguiam diferentes estilos de vida (HOURANI, 2006.). A passagem denota características importantes e o espaço geográfico da Península Arábica no século VI. Agora analise as afirmações a seguir sobre algumas características sociais das tribos e povos que habitavam a península. a. Eram em sua maioria povos nômades e com características capita- listas industriais. b. Eram povos divididos em tribos nômades e sedentárias com caracte- rísticas politeístas. c. Eram povos sedentários das montanhas que não realizavam comércio e agricultura. d. Eram povos sociais desprovidos de consciência para viver no deserto, por isso desenvolveram agricultura. e. Eram civilizados nos centros urbanos e monoteístas no interior de Meca e Medina. 2. É possível, em linhas gerais, analisar a população e os traços sociais mais relevantes dos povos que habitavam o norte e as regiões centrais da Península Arábica no século VI. Sobre esses traços, analise as afirmativas: I. O traço dominante da população do centro e do norte da Arábia nesse período crucial que precedeu imediatamente a ascensão do Islã é o do tribalismo beduíno. II. Na sociedade beduína a unidade social é constituída pelo grupo e não pelo indivíduo. Este só tem direitos e obrigações enquanto membro do respectivo grupo. 21 III. Os povos pertencentes ao norte e às regiões desérticas da península desenvolviam agricultura no período das chuvas e se relacionavam com diversos deuses. Assinale a alternativa correta da questão: a. I e II, apenas. b. II e III, apenas. c. I e III, apenas. d. III, apenas. e. I, II e III. 3. A religião da Arábia do Sul era politeísta e apresenta analo- gias, mais de ordem geral do que de pormenor, com as de outros antigos povos semitas. Os templos constituíam centros importantes da vida pública e possuíam grandes riquezas, administradas pelo chefe dos sacerdotes. O produto das colheitas de especiarias era considerado sagrado e uma terça parte reservada aos deuses, isto é, aos sacerdotes. (LEWIS, 1990, p. 25) A passagem apresentada marca importantes características dos povos árabes e do que os islâmicos denominam como a era da ignorância na Península Arábica do século VI d.C. Sobre a Jahiliyyah ou era da ignorância, atribua V para as afirmativas que são verdadeiras e F para as de conteúdo falso: ( ) Várias tribos, diferentes crenças e deuses, como também a própria condição de vida e conflito pela heterogênea sociedade árabe no século VI, anteriormente ao aparecimento na história do profeta Muhammad. ( ) Várias crenças mas em um só Deus. A Jahiliyyah ou era da ignorância foi o mais importante rito do Islamismo e até hoje é celebrada pela tribo dos coraixitas, pertencentes à cidade de Meca na Península Arábica. ( ) A era da ignorância foi o período em que o profeta Muhammad sai da cidade de Meca e se estabelece em Medina, antiga Iatreb, para construir as bases do Islã, e que até hoje é celebrada pelos muçulmanos no calendário cristão. 22 Assinale a alternativa com a sequência CORRETA: a. V – V – V. b. V – V – F. c. V – F – F. d. F – F – V. e. F – F – F. 23 Seção 2 Escravismo e crença Diálogo aberto Caro aluno, a história dos povos árabes tem muito a nos acrescentar em questões sociais importantes da vida cotidiana. Se somos produtos histó- ricos, temos muito para aprender com as sociedades escravistas do século VI, em que é possível entender que diferentes crenças e deuses sempre estiveram presentes mesmo em condições nas quais o essencial “humano” era conside- rado, em si, uma ferramenta. Portanto, falar de uma sociedade como os povos que habitavam a Península Arábica é, também, compreender que a religião e a crença foram imensos valores que a humanidade criou para poder subsistir nesse mundo. Fazendo uma leitura social, é possível compreender que os povos da Arábia, em 500 d. C., possuíam uma multiplicidade de valores já analisados, como as características dos beduínos nômades ao norte da península e dos povos agrícolas do sul. Não podemos esquecer de que estamos analisando uma sociedade que considerava o escravismo. Nesse sentido, a maneira de produzir a vida passava essencialmente por esse tipo de relação e, portanto, é necessário compreender como essas relações influenciaram de maneira geral o desen- volvimento dos povos da península em sua relação com o processo de formação do Islamismo. Aqui você está convidado a passar por temas como a relação entre escra- vismo e crença na sociedade árabe do século VI. Também as múltiplas crenças e deuses que encerram na Caaba a sua importância, assim como a importância comercial e religiosa de Meca no mesmo período. As cidades e o comércio no século VI devem ser pensados nesse caminho de considerar a política, a religião, o comércio e as relações entre os povos árabes. Para essa finalidade, teremos que exercitar uma questão atual. Imagine que você faz parte de uma comunidade e é membro da associação de bairro em uma cidade brasileira. Essa comunidade é muito heterogênea e, no aspecto religioso, apresenta quase todas as religiões. No lugar onde mora, a comuni- dade islâmica é muito engajada na solução dos problemas comunitários e você, como estudioso de Teologia, observou determinados preconceitos com a crença muçulmana, traduzindo isso na afirmação que escutou em uma das reuniões da associação de bairro: “esses árabes são todos malucos!”. Você ficou espantado com a afirmação e resolveu ajudar a esclarecer sobre a formação 24 islâmica, combinando uma reunião e um diálogo com todos os moradores do bairro em um encontro aberto, com a ajuda da própria comunidade islâmica local. Sua conversa deve ter de responder duas perguntas iniciais na direção de romper com esse preconceito: todos os árabes são islâmicos? De onde vem o Islamismo? É um desafio e tanto, não é mesmo? Trilharemos, aqui, com o seu empenho e, mais do que isso, com a sua interpretação a respeito da complexarede de relações que se estabeleceu na Península Arábica a partir do século VI. Ótimos estudos! Não pode faltar Escravismo e crença na sociedade árabe do século VI Para delimitar e entender as relações que envolviam os povos na Península Arábica no século VI, é necessário abarcar as diferentes esferas da vida social. Isso porque, nas análises comprometidas com os aspectos da vida religiosa, temos que levar em conta que a produção material e econômica, na maneira como vivem os indivíduos daquela sociedade, tem direto impacto e formam o tecido de relações que conceberá aquela sociedade. Dito de outra forma, a consolidação e a construção de cidades como Meca e Medina no século VI resultam de influência direta do comércio que se estabeleceu na Península Arábica, e que, por sua vez, também é processo resultante de influências externas de grandes impérios na península, como o bizantino e o persa. Nos estudos sobre as religiões, essa propensão tem um caráter central, como: “Deve-se levar em conta na análise do mundo bíblico que sua literatura foi construída a partir de relações de ordem social, econô- mica, política e cultural” (ROSSI, 2005, p. 27). Mas não é só isso. Não podemos definir que o comércio foi o centro dos fatores de construção do Islamismo e nem é desejável essa interpretação aqui. O uso recorrente e histórico dos elementos para comprovação do argumento é o de que, na interação social e econômica dos povos árabes do período em que descrevemos, na manutenção e produção da própria vida, os indivíduos estabeleciam também relações determinadas e próprias do seu tempo, e claro que, com isso, a sua cultura, política e religião. Alguns clássicos métodos sugerem essa interpretação que descrevemos: […] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, indepen- dentes de sua vontade; essas relações de produção corres- 25 pondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. (MARX, 2008, p. 46) Esses aspectos estão diretamente ligados ao modo como as pessoas produ- ziam e se relacionavam, e não podemos deixar de citar alguns elementos. Em que sociedade se estabeleceram os preceitos do Islã? Que modo de produção podemos citar para falar do período de formação do Islamismo, antes mesmo do aparecimento do profeta Muhammad? Essas questões nos conduzem a entender uma outra relação: como a religião coaduna e convive com os aspectos elementares de uma sociedade escravista? Podemos afirmar que a Península Arábica a partir do ano 500 d.C. era uma sociedade total- mente escravista? Nos primeiros seis séculos da era cristã, não podemos esquecer do advento do Cristianismo e a própria história do Judaísmo nesse cenário, além de sua importância também para a formação do Islã. A Península Arábica passara, de maneira socialmente heterogênea, por diferentes fases de construção de uma identidade árabe, muito ligadas às influências bizantinas e persas. O Império Bizantino exerceu grande influência, sobretudo nas rotas comerciais que cortavam o território árabe, e com isso também coloca relações impor- tantes em outras partes da vida social na península de maneira interessante: Todas essas mudanças produziram efeito considerável na península arábica. Após esses fatos, grande número de estrangeiros chegou à Arábia: colonos, refugiados e outros grupos de alienígenas se estabeleceram na península, trazendo consigo novos costumes, artefatos e idéias. Como resultado do persistente conflito pérsio-bizantino, rotas de comércio surgiram na Arábia, bem como um movimento importante de mercadores e mercadorias. Mesmo no norte, os Estados fronteiriços reapareceram, ligados a seus patrocinadores imperiais, mas continuando como partes da família árabe. (LEWIS, 2012, p. 52) Com todas as influências externas na península, com os conflitos que existiram entre grandes impérios e o estabelecimento de rotas comerciais perpassando o território, as diferentes tribos árabes foram formadas. Na ausência de um Estado do tipo centralizado, o poder político era pendular às influências externas e comerciais dos impérios, porém, não sem passar por características importantes do nomadismo das tribos árabes adaptadas ao clima e ao ambiente, assim como as tribos sedentárias e os povos dos oásis, 26 característica central da variada cultura das tribos que há tempos habitavam a península e que são importantes elementos para entendermos todo processo histórico-social de formação do Islamismo. Figura 1.2 | Península Arábica Fonte: wikimedia commons. Na ausência de um Estado central, a consolidação de centros comerciais era plausível em um modo de produção que unira o sistema de tribos em aspectos escravistas. O modelo escravista de tipo puro e clássico não pode ser aplicado aos povos naturais da Península Arábica do século VI, assim como seus aspectos culturais tribais, suas crenças e seus costumes, que foram construídos também pela influência dos impérios e das guerras entre bizan- tinos e persas. Se levarmos em conta que um modo de produção escravista tem como principal característica uma economia baseada no escravo, não podemos afirmar que a Arábia do século VI era em sua totalidade escravista. O que é comum encontrar nas leituras do período são sociedades que possibilitavam o domínio sobre escravos. Seja por conquista ou subjugação, na tradição e luta entre tribos da península e pelas influências externas, existiam escravos. Nesse ponto, cabe sempre uma questão relevante: como é possível a existência 27 de um modo que permita a escravização e, ao mesmo tempo, religiões e a crença em deuses que justifiquem esse modelo? Como religião e escravismo convivem na história? A simples existência de escravos numa sociedade ainda não significa que possamos falar de um Modo de Produção Escravista. Também as sociedades tribais e tributárias conheceram a escravatura. Porém com um diferencial: a prática da escravidão nessas sociedades não alterava a sua estrutura econômica. O modo de organizar a sua produção da vida material não dependia da existência de escravos. O modo de produção dominante na Grécia clássica, que regia a complexa articulação de cada economia local e dava o seu cunho a toda a civilização da cidade-estado, era o escra- vista. O conjunto do mundo antigo nunca foi marcado pelo predomínio de trabalho escravo. (ROSSI, 2005, p. 30) Portanto, nas sociedades árabes do século VI e na sua heterogênea formação social, o escravismo estava adaptado a condições de domínio e não hegemo- nicamente como modo de produção, sobretudo, pela característica essencial dos povos nômades que viviam na península. Isso porque, pelo território e geografia marcando a vida das tribos no deserto, era mais difícil, com as carac- terísticas do nomadismo, transportar e manter escravos. Por isso: Pode-se dizer que somente no período da sedentarização que a escravidão assumiu proporções relevantes. As tribos nômades não podiam evidentemente levar consigo uma quantidade expressiva de escravos. Era muito mais fácil eliminá-los. Nos tempos antigos o crescimento do fenômeno da escravatura andava paralelo ao progresso dos países. Com o advento do comércio, com a criação de cidades, a construção de palácios, a abertura de estradas e a fabricação de navios, os escravos aumentam aos milhares e vêem sua sorte comprometida pelo progresso inexorável da flecha do tempo. (ROSSI, 2005, p. 32) As múltiplas crenças e deuses: a Caaba e sua importância Nesse ponto do nosso estudo, é importante entender de que sociedade e modo de produção estamos falando, assim como de que maneira esse modo de produção se constrói como um produto histórico de relações determinadas 28 pela forma como os indivíduos se relacionam, trocam e produzem a vida objetiva e subjetivamente, e convivem socialmente. Também como os indiví- duos criam suas próprias representações, dialogam e dominam o ambiente e também osseus semelhantes. Essa pluralidade convergia para o estabelecimento de rotas comerciais, cidades e pontos importantes que foram sendo construídos ao longo dessa era. Meca foi um dos principais pontos de comércio e também das religiões da península. No século VI, antes do aparecimento do Islamismo e do nasci- mento do profeta Muhammad, essa cidade ao mesmo tempo em que se consolidava como centro de comércio, reservava um espaço que até hoje é conhecido como Caaba – ou ka’ba, em árabe. A Caaba representava o centro das diversas religiões em grande parte do século VI. Nela estavam guardadas representações dos deuses de cada tribo da Península Árabe e que, reunia na cidade de Meca, inúmeras crenças. Centro do politeísmo árabe, por sua importância simbólica, após a formação do Islamismo, e como parte dela, a Caaba representaria, no século seguinte – após o surgimento de Muhammad –, o centro da crença islâmica, modificando assim o seu caráter de centro politeísta, já que o Islamismo é uma das três grandes religiões monoteístas nascidas no Oriente Médio. De 500 a 600 d.C. esse templo e santuário reuniu as imagens das mais de trezentas tribos árabes. Sua importância é fundamental para compre- endermos o próprio processo de formação e concentração das relações de poder em Meca, a cidade em que ficava esse santuário e que representava uma espécie de ponto neutro para todas as religiões árabes e o seu comércio. Figura 1.3 | Caaba Fonte: wikimedia commons. 29 “Caravanas de toda a Arábia costumavam peregrinar até Meca com o objetivo de adorar os diversos deuses e essas peregrinações estimulavam o comércio da cidade” (VICENTINO, 2016, p. 195). Por essa percepção, rotas comerciais importantes passavam por cidades como Meca e Medina, assim como as influên- cias externas dos Impérios Bizantino e Sassanida (Persa) adentraram a Península Arábica pelas principais rotas comerciais no território árabe. Por volta do século VI, mais de trezentas tribos de origem semita habitavam a região, incluindo as tribos urbanas que ocupavam a faixa costeira do mar Vermelho e do sul da península – área que tinha melhores condições climáticas e maior fertilidade do solo. Essas tribos concentravam-se principalmente em Meca, sua principal cidade, e em Iatreb, mais tarde chamada de Medina. (VICENTINO, 2016, p. 195) Assimile Você sabia que em uma das faces do templo da Caaba está a chamada Pedra Negra? A Pedra Negra é reverenciada pela crença muçulmana como um recado enviado por Deus (Alá) e que teria sido oferecida por Alá a Ismael, filho de Abraão, considerado aquele que deu origem ao povo árabe. Alguns pesquisadores acreditam que a Pedra Negra é um meteorito que havia caído na região e que fora colocado na Caaba como forma de representação de Alá. Hoje, a Pedra Negra está encravada em um dos cantos da Caaba, bem ao centro da grande Mesquita de Meca, território da Arábia Saudita. No entorno desse santuário há uma área circular onde os muçulmanos se concentram quando fazem a peregri- nação a Meca para dar sete voltas em direção ao sol. A importância da Caaba está na sua representação e junção das várias crenças e deuses. Quando analisamos o processo de formação do Islamismo, encontramos um significado da Caaba antes da vinda do profeta e outro depois das revelações expressas no Alcorão. É preciso entender que o signi- ficado simbólico da Caaba é também material e está diretamente ligado às relações comerciais localizadas em Meca como centro comercial e religioso no século VI, o que torna fundamental a análise do conteúdo histórico da cidade de Meca. 30 As cidades e o comércio no século VI: a importância comercial e religiosa de Meca no século VI É preciso chamar atenção para duas principais interpretações sobre as fontes de riqueza da população árabe. No século VI, a importância social e econômica de algumas localidades do território da Península Arábica, como algumas rotas de comércio e a própria cidade de Meca, orientam as relações e o intercâmbio das tribos. Dentro dessa afirmação é possível, segundo alguns estudos, perceber na literatura duas importantes linhas de pensamento sobre a formação de centros comerciais e religiosos como Medina (antiga Iatreb) e Meca. Esse retrato de Meca como um pólo comercial relevante, de onde chegavam as grandes rotas comerciais internacionais e de onde partiam caravanas importantes para a Síria, o Iêmen e a Etiópia, foi alvo de uma série de controvérsias sobre a história do surgimento do Islã. (LANNES, 2013, p. 47) A primeira interpretação liga o desenvolvimento dos povos árabes e das cidades como Meca ao comércio de longa distância e às caravanas. A segunda, passa pela localização da cidade de Meca como estratégica. Ambas as determinações são passíveis de debate. Para nós, é importante o resgate histórico de elementos que nos forneçam compreensão da sociedade árabe a partir do século VI e no processo de formação do Islã. Portanto, é importante a compreensão de que: Meca detinha uma importante localização geográfica e que as grandes rotas comerciais passavam por ela. Além disso, sua importância residia no fato de ser um crucial ponto de apoio logístico para as caravanas que compunham essas rotas comerciais, além de ter um santuário, a Caaba, no qual os viajantes poderiam fazer as suas orações. (LANNES, 2013, p. 54) Reflita Já imaginou a importância da religião e da crença nas diferentes socie- dades humanas? Em todos os períodos da história das sociedades, a religião foi um imenso valor criado socialmente, e como tal é possível que aspectos econômicos, políticos e ideológicos tenham implica- ções na formação também do Islamismo. Mesmo em uma sociedade 31 heterogênea como a dos povos que habitavam a Península Arábica, em aspectos politeístas, a religião cumpriu um grande papel. Com isso, o que o Islamismo e a formação do Islã representaram para os povos árabes naquele período? Compreender as relações que envolviam a formação do islamismo é entender em que contexto foi possível uma sociedade tão heterogênea quanto a árabe passar de diferentes crenças e deuses para o monoteísmo. Isso só foi possível com a fundação do Islã. E a formação de uma das maiores religiões do mundo também vê na vida do profeta Muhammad sua interpretação. Muhammad cresceu na península na tribo dos coraixitas. Essa tribo dominava o comércio e as relações políticas na cidade de Meca, que se forta- lecia como centro político, religioso e comercial. “No seio de uma família da tribo coraixita nasceu, em 570, aquele que seria considerado por muitos o grande condutor do povo árabe: Maomé. Aos 40 anos de idade, Maomé passou a difundir uma nova fé” (VICENTINO, 2016, p. 197). E antes mesmo de estabelecer as bases da fé Islâmica, o próprio profeta também foi produto do seu tempo. Exemplificando Podemos recorrer a exemplos importantes na história de fatores sociais diversos que expliquem o crescimento das cidades e das religiões. Ainda no período que analisamos podemos citar Constantinopla, que deslocou o eixo da centralidade capital do Império Romano. Ao longo da história, a capital do Império Bizantino recebeu vários nomes: Bizâncio, Constantinopla e Istambul. Istambul é hoje a maior cidade da Turquia e preserva impressionante memória arquitetônica, com museus, mesquitas, palácios e igrejas. Essas construções atraem muitos turistas e estudiosos de diversas partes do mundo. (COTRIM, 2016, p. 137) Em resumo, é necessária uma conclusão em acordo com o processo histó- rico que desembocou na formação do Islamismo. Os aspectos sociais, econô- micos e religiosos das diferentes tribos da Península Arábica, conduziram a formação de uma religião ao redor do profeta Muhammad que rompe com o politeísmo dos povos árabes, e esse rompimento aparece na história como a formação de uma identidade árabe que mais à frente conduzirá todo 32 conteúdo de expansão do Império Árabe-Islâmico. Isso não seria possível sem a compreensãodos pontos de formação econômica da Península Arábica no século VI e da consolidação de Meca como principal centro religioso e comercial da história árabe. Sem medo de errar Você descobriu que a formação dos povos árabes tem influência direta no contexto de construção do Islamismo. Esse contexto é complexo e tem que levar em conta a maneira como as diferentes tribos e sociedades árabes produ- ziam e reproduziam sua vida em meio às condições do deserto, dos povos dos oásis, nômades e sedentários na península de dimensões continentais. A história nos forneceu elementos para entender que grandes impérios transitavam e tinham interesses comerciais sobre a Península Arábica. De um lado o conhecido Império Bizantino e, de outro, os Sassânidas ou Persas estabeleciam conflitos e reações pelas rotas no interior da península, tanto quanto o século VI foi marcado pelo Cristianismo. É um complexo contexto para entendermos a formação do Islã. Centros comerciais, como a cidade de Meca, fornecem importantes conselhos quando analisamos as relações na antiga Arábia e, com isso, o estabelecimento do comércio e as crenças ao redor da Caaba; hoje o templo consagrado pela religião islâmica, foi antigamente um importante aglutinador das diferenças religiosas e das crenças de uma sociedade com valores tribais e escravistas. Não podemos afirmar que os povos árabes no século VI se estruturavam em um modelo escravista clássico, apesar das características escravistas encontradas em várias formações sociais do período. A relação tribal e escra- vista foi um importante elo entre as rotas comerciais na península e o que consolidou centros importantes como a cidade de Meca. A religião, as diferentes crenças e deuses, pautaram as relações heterogê- neas de uma complexa realidade na Península Arábica a partir do ano 500 da era cristã. Ainda hoje vivemos em uma sociedade plural, heterogênea e com diferentes formas de pensar e se relacionar, incluindo as religiões em diferentes matrizes. Por esse motivo você foi convidado a imaginar que faz parte de uma comunidade e é membro da associação de bairro em uma cidade brasileira. A nossa situação-problema é atual e entende que essa comunidade é muito heterogênea e no aspecto religioso, com pessoas que professam quase todas as religiões. No lugar onde mora, a comunidade islâmica é muito engajada na solução dos problemas comunitários e você, como estudioso de Teologia, 33 observou determinados preconceitos com a crença muçulmana, traduzidos na afirmação que escutou em uma das reuniões da associação de bairro: “esses árabes são todos malucos! ”. Você ficou espantado com a afirmação e resolveu ajudar esclarecer sobre a formação islâmica, combinando uma reunião e um diálogo com todos os moradores do bairro em um encontro aberto, com a ajuda da própria comunidade islâmica local. Sua conversa deve ter de responder duas perguntas iniciais na direção de romper com esse preconceito: todos os árabes são islâmicos? De onde vem o Islamismo? Compreendemos que nem todos os árabes são islâmicos, assim como hoje, nem todos os muçulmanos são árabes. Essa religião conquistou a sua história e é hoje uma das maiores do planeta. O respeito às diferenças deve ser buscado em todas as frentes pelo estudioso de Teologia, e isso fica claro quando analisamos o processo de formação do Islã. Diferentes crenças e deuses são encerrados na Caaba, em um templo e canal de relações na Península Arábica do século VI, e suas relações comer- ciais, em centros que se consolidam como importantes referenciais do sincre- tismo religioso e contradições fundamentais. Faça valer a pena 1. A simples existência de escravos numa sociedade ainda não significa que possamos falar de um Modo de Produção Escravista. Também as sociedades tribais e tributárias conheceram a escravatura. Porém com um diferencial: a prática da escravidão nessas sociedades não alterava a sua estrutura econômica. (ROSSI, 2005, p. 27-36.) A passagem apresentada demarca teoricamente a leitura sobre o escravismo. Sobre esse conceito, assinale a alternativa que aponta para a principal carac- terística do modo de produção escravista: a. Uma economia baseada no escravo. b. Uma economia baseada na crença. c. Uma economia baseada em relações de troca. d. Uma economia com base na política. e. Uma economia baseada no modo de vida tribal. 34 2. Sobre a cidade de Meca no século VI da era cristã, julgue as afirmativas a seguir em V (verdadeiras) ou F (falsas). ( ) Meca detinha uma importante localização geográfica e as grandes rotas comerciais passavam por ela. ( ) A importância de Meca residia no fato de ser um crucial ponto de apoio logístico para as caravanas que compunham essas rotas comerciais, além de ter um santuário. ( ) Meca e Medina dividiam espaço como centro religioso, porque a Caaba, templo no qual os viajantes poderiam fazer as suas orações, ficava em Medina. Assinale a alternativa com a sequência correta. a. V – V – V. b. V – V – F. c. V – F – F. d. F – F – V. e. F – F – F. 3. Por volta do século VI, mais de trezentas tribos de origem semita habitavam a região, incluindo as tribos urbanas que ocupavam a faixa costeira do mar Vermelho e do sul da península – área que tinha melhores condições climáticas e maior fertilidade do solo. Essas tribos concentravam-se principalmente em Meca, sua principal cidade, e em Iatreb, mais tarde chamada de Medina. (VICENTINO, 2016, p. 195.) Com a referência da passagem apresentada, podemos lembrar da impor- tância da Caaba como centro religioso e que exerceu uma influência signifi- cativa na formação das cidades como Meca e Medina. Dentro desse assunto e sobre a Caaba especificamente, analise as afirmativas a seguir: I. Caravanas de toda a Arábia costumavam peregrinar até Meca com o objetivo de adorar os diversos deuses na Caaba, e essas peregrinações estimulavam o comércio da cidade. II. Todas as rotas comerciais assavam pela Caaba na Península Árabe. Foi essa a verdadeira motivação do profeta Muhammad sair de Meca para Medina, porque o templo estava bem ao centro da mesquita em Iatreb. 35 III. A Caaba representava o centro das diversas religiões em grande parte do século VI. Nela estavam guardadas representações dos deuses de cada tribo da Península Árabe e que reunia, na cidade de Meca, inúmeras crenças. Considerando o contexto apresentado, é correto o que se afirma em: a. I e II, apenas. b. I e III, apenas. c. II e III, apenas. d. III, apenas. e. I, II e III. 36 Seção 3 A importância da Península Arábica Diálogo aberto Caro estudante, chegamos ao final de uma etapa de construção dos antece- dentes históricos do Islamismo. Como é próprio de todo estudo introdutório, você será convidado, nesta parte, a refletir sobre a sociedade árabe do século VI d.C., com um olhar nas relações sociais que estabeleceram as bases para a construção de uma das grandes religiões e um gigantesco império que se estabeleceu a partir do século VII da era cristã. Como podemos entender a origem do Islã? Podemos refletir sobre os elementos que formaram uma grande matriz religiosa entre os séculos VI e VII? Quais os principais pontos de compreensão da origem do Islamismo? Todas essas questões têm necessariamente que passar pela compreensão social. Seja da ação dos indivíduos à compreensão de que a história material é um ponto de partida, as origens do Islamismo também estão ligadas ao próprio desenvolvimento social dos povos que habitavam a Península Arábica. A Península Arábica guarda uma rica história. E para conhecê-la faremos um exercício de reflexão, imaginando que você é professor de uma faculdade que tem como tarefa desenvolver um diálogo sobre a formação das diferentes religiões e principalmente conduzir seus alunos para um entendimento sócio-histórico de influência dos impérios na formação dos povos árabes dessa península. Neste exercício você, como professor, escolhe dividir a turma em grupos deestudo que apresentarão, como avaliação, seminários, e cada seminário tratará sobre uma matriz religiosa. Na equipe responsável por desenvolver as origens do Islamismo surge uma questão interessante: o que, de fato, o surgi- mento do Islamismo representou para os povos árabes dos séculos VI e VII? Podemos lembrar que os fatores históricos devem vir acompanhados pela compreensão econômica, social e política dos povos árabes, e com isso orientar os seus alunos para refletirem a sociedade na Península Arábica do século VI, sua formação, relações e desenvolvimento em meio ao dois grandes impérios dos quais conhecemos na história: o Império Bizantino e o Persa. Aqui você verá alguns elementos que delimitaram a construção e início do Islamismo. Também conhecerá o que influenciou de maneira direta a 37 formação das sociedades árabes, principalmente a partir do ano 500 d.C., e que será determinante no caminho de expansão do Islã. Não pode faltar A importância estratégica da Península na história das civilizações Qualquer história contada sobre o Islamismo deve passar pela compre- ensão das relações sociais que formaram as sociedades árabes. Para esse fim, é necessário que compreendamos, juntos, a história e a importância da Península Arábica no século VI d.C., antecedente à narrativa histórica do profeta Muhammad. Território, sociedade e história podem guiar nosso argumento aqui. É possível que você tenha encontrado observações sobre a história dos povos árabes como as que elencamos, porém, é também necessário compreender que a Península Arábica e seu território, no período de nosso estudo, estava posicionada no meio de dois grandes impérios conhecidos na história: o Império Bizantino e o Império Persa. Mas o que esses dois grandes impérios têm de relevante para a formação dos povos da península em 500 d. C.? A palavra “bizantino” vem de Bizâncio, uma antiga cidade da Grécia que, mais tarde, ficou conhecida como Constantinopla, a capital do Império Romano em sua porção Oriental. Constantinopla foi a capital do Império Romano no ano de 330 d.C. e teve sua história contada até o ano de 1453 d.C., quando foi conquistada pelos turcos, que alteraram seu nome para Istambul. O Império Bizantino e sua capital Constantinopla ligavam a Europa com a Ásia e, geograficamente, sua capital exerceu uma influência importante no comércio e cultura entre as sociedades de dois continentes, e principalmente na Península Arábica. Devida à grandiosidade do Império Romano e a proporção de um dos impérios mais expansionistas que já conhecemos, não é possível deixar de notar e entender a influência que suas relações exerceram nas sociedades de então, sobretudo nos povos árabes. Reflita Você sabia que as relações sociais dos povos árabes, principalmente as tribos nômades da Arábia, também influenciaram de maneira significa- tiva a trajetória do Império Bizantino no século VI? Os árabes eram mais um empecilho ao comércio do que uma preocupação militar, mas suas depredações 38 eram cada vez mais ousadas. Ataques de beduínos à Síria tinham começado sob o governo de seu tio, e esperava-se de Justino que desse continuidade à política de pagar a quantia de extorsão para mantê-los afastados das rotas comerciais e das comunidades de fronteira do império (LEWIS, 2010, p. 16) Lembramos que a expansão árabe-islâmica se consolida no século VII, com a construção do Islã e a história do profeta Muhammad. O comércio e o domínio de rotas comerciais importantes são centrais para compreendermos como os povos da península exerciam influência no território, e podem nos contar sobre e ajudar na compreensão da formação do Islamismo. É possível que você já saiba a narrativa da história sobre a conquista do território bizantino pelo Império Árabe-Islâmico no século VII, mas é um ponto que ainda será desenvolvido. O importante é perceber como grandes impérios, de certa maneira, influenciaram a própria formação dos povos árabes. Constantinopla estava posicionada ligando o Oriente ao Ocidente e ligava comercial e religiosamente esses dois lados, expandindo também a influência cristã para a Península Arábica. Essa cidade conciliou muito bem a representação entre o comércio e a religião. Sua moeda era aceita em vários lugares e o cristianismo exercia influência para além do Império Romano. É comum encontrarmos análises que dizem da importância estratégica dessa cidade, e isso denota uma carac- terística importante a ser por nós aceita: a de que o comércio e a religião foram pontos basilares na formação dos impérios, e isso como traço também de construção do Império Árabe-Islâmico no século VII. A perseguição aos cristãos foi anulada pelo famoso “Édito de Milão”, promulgado por seu sucessor Constantino, que reunificou o Império, mas manteve a divisão administrativa entre Império ocidental e oriental. Seu reinado foi um marco em vários sentidos. Fundou uma nova capital, Constanti- nopla, no estreito do Bósforo, que seria a Nova Roma do Oriente. Com relação aos cristãos, não apenas autorizou o culto, mas também o apoiou fortemente, doando terras e riquezas e retirando, dos templos não cristãos, quase toda subvenção estatal. (GUARINELLO, 2013, p. 165) 39 Quando passamos para uma análise da civilização persa, no século VI d.C., temos que lembrar da sua importância expansionista e histórica. É importante ressaltar que quando falamos de grandes impérios estamos também marcando uma característica histórica: o expansionismo. A luta entre os impérios Sassânida e Bizantino movimentou e marcou diretamente os povos árabes, sobretudo porque no centro dessa luta entre os impérios estava a Península Arábica. O Império Sassânida é o último do período pré-islâmico. Como Império Persa, podemos encontrar na história um conflito direto, principalmente no século VI d.C., pelo comércio e importância estratégica de alguns pontos no continente, e cabe lembrar das rotas comerciais na Península Arábica. Isso é tão importante ao ponto de selar e obrigar um certo entendimento dentro de uma relativa paz entre os impérios em algumas regiões para permitir o comércio. As “tribos semitas permaneceram, em sua maior parte, fora do radar geopolítico das duas superpotências que dominavam o Crescente Fértil” (GUARINELLO, 2013, p. 2), e esse fator permitiu com que produtos e mercadorias circulassem e que o comércio fosse intensificado, alicerçando o crescimento de cidades como Meca. Assimile O “crescente fértil”, é a região conhecida como “berço da civilização”. Leva esse nome porque na história das sociedades humanas foi a região responsável pelo processo de sedentarização dos povos e sociedades que desenvolveram agricultura ao redor de rios importantes, como o rio Nilo e Eufrates. Hoje o crescente fértil está localizado na região da atual Palestina, Jordânia, Israel, Líbano, Kuwait e Chipre, além de algumas partes do Egito, da Síria, do Irã e da Turquia. E uma curiosidade sobre a região é o seu “formato de lua”, que circunda a Península Arábica, ligando o Mar Vermelho, o Mediterrâneo e o Golfo Pérsico. 40 Figura 1.4 | Crescente Fértil Fonte: Wikipédia. A ideologia islâmica e a síntese dos valores tribais: o contexto político- -social da Península Arábica No decorrer do século VI do calendário cristão, o conflito entre os dois grandes impérios dominantes no Oriente Médio leva essas “superpotências” (GUARINELLO, 2013) ao desgaste de maneira rápida, e com isso aparecem relações comerciais e ideológicas muito particulares ao universo árabe. Uma espécie de identidade árabe surge muito alicerçada pela influência que os Impérios Sassânida e Bizantino, Romano e Persa exercem na península. E, mais do que isso, essa identidade dos povos nômades da Península Arábica se constrói na retração desses impérios, ao mesmo tempo que os árabes dominam o comércio e se posicionam à margem das guerras desses impérios. A maioria das tribos do interior da península Arábica, cujas caravanasque saíam de cidadezinhas de oásis chegavam até a Jordânia ao norte e até o Iêmen ao sul, conseguiu escapar de ser sugada pelos imensos furacões imperiais da região até o final do século VI. Seus membros eram 41 espectadores remotos que desempenhavam, na melhor das hipóteses, papel marginal no Crescente Fértil. (GUARI- NELLO, 2013, p. 2) O contexto político-social da Península Arábica será determinado pelo esgotamento das duas potências imperiais dominantes no Oriente Médio, e a ideologia dos povos árabes está imediatamente ligada aos elementos que condicionarão esse esgotamento, como a crise do Império Romano e o modo de vida das tribos. O importante é notar como os aspectos militares são desenhados no interior das tribos árabes, muito delineados pela influência entre os impérios e que formata valores essenciais nas relações entre as tribos da Arábia. Prepara, de uma certa maneira, a interpretação e o protagonismo que as tribos desempenharão nas conquistas islâmicas no século que estaria por vir. Com o tempo, essas guerras estafantes possibilitariam a ascendência militar improvável dos seminômades de um canto da Arábia. Esse povo ocupou com velocidade incrível um dos lugares de maior destaque da história — mas só depois de as duas superpotências da Ásia Menor se exaurirem em destruição prolongada e mútua. No papel de espectadoras fascinadas do que foi, de fato, a maior rivali- dade destrutiva da história, as tribos do coração da Arábia se viram de posse de um dos bilhetes premiados da história e se tornaram protagonistas, quase automaticamente, de uma nova rivalidade. (GUARINELLO, 2013, p. 2) Política e ideologicamente, os povos que viviam na Península Arábica na primeira metade do século VI d.C. serão importantes protagonistas no processo de formação do Islamismo. Isso porque as relações de poder presentes na heterogênea sociedade dos povos que habitavam a Península Arábica aparecem pela síntese dos valores tribais, conquistados antes mesmo do aparecimento do profeta Muhammad. Isso explica as variadas crenças e deuses. O politeísmo árabe no século VI só será modificado com a projeção e o surgimento do Islã, cuja base sinte- tiza pela luta os valores que hoje sustentam uma das maiores religiões que conhecemos. 42 A ideologia do Islã será construída por alguns elementos importantes: • A síntese dos valores, modo de vida e crença da heterogênea socie- dade árabe discriminada entre os povos dos oásis, os nômades e sedentários. • A existência do conflito e a influência dos grandes impérios que se situavam no “gargalo” da Península Arábica. • A posição estratégica da Península Arábica frente aos Grandes Impérios, na consolidação de rotas de comércio e o trânsito de mercadorias. • Uma sociedade tribal e escravista, que dominava como ninguém a vida no deserto em suas diferentes regiões. As caravanas de Meca, carregadas de tâmaras, especiarias, perfumes e escravos saíam do deserto, para o norte e para o oeste, até a Palestina judaico-cristã e a Síria cristã, ou para o sul, até o Iêmen, e para o oeste, atravessando o mar vermelho até a Etiópia cristã. Uma dessas fileiras de camelos que passou pela cidade de Bostra (Busra), na fronteira da Síria, por volta de 582, carregava Muhammad ibn ‘Abd Allah (Maomé), com 11 ou 12 anos, para fora da Arábia pela primeira vez, junto ao tio que era seu guardião, Abu Talib. Bostra era uma cidade grande e agitada, localizada na inter- seção de cinco rotas comerciais. Sua sé episcopal tinha sido autorizada pela imperatriz Teodora, simpatizante do monofi- sismo e a imponente capital de Bostra atestava a devoção próspera da comunidade. (GUARINELLO, 2013, p. 30) Preâmbulo do Islamismo: diferentes clãs e tribos No livro Os Árabes na História, Bernard Lewis expõe que um traço marcante e que prevalece na população árabe no século VI antes do apare- cimento do Islã é o do tribalismo nômade. Isso marca principalmente as sociedades que viviam na porção central e Norte da península e tem uma importância fundamental em todo processo de construção do Islamismo. “A principal restrição social à anarquia dominante consistia na vingança pelo sangue” (LEWIS, 1990, p. 36). 43 Exemplificando Para explicar o que significa a “vingança pelo sangue”, podemos dizer que consistia na prática que obrigava e impunha à família, clã ou tribo exigir pela força a vingança de um homem assassinado. Esse funcio- namento social estava muito baseado em uma normativa própria das tribos e a sua religião traduzia esse caráter: A vida da tribo era regulada pelo direito consuetu- dinário, a Sunna, ou prática dos antepassados, cuja autoridade advinha da veneração pelo passado, e encontrava a sua única sanção na opinião pública. O Majlis tribal era o seu símbolo formal e único instru- mento. (LEWIS, 1990, p. 36) A exigência em casos de assassinato estava na mesma moeda: exigia-se a morte de um dos membros da tribo em que se cometeu o fato. É bom lembrar que a religião de cada povo estava diretamente ligada a essa prática, assim como à prática do escravismo. O modo tribal e escravista das sociedades árabes era diversificado. Porém, algo mantinha a unidade das diferentes tribos e clãs, seu funciona- mento e suas relações. Podemos dizer que a religião, ao mesmo tempo em que traduzia e sintetizava os valores da tribo, ditava o compasso das relações e das leis daquela sociedade. “A religião dos nómadas era uma forma de polidemonismo próxima do paganismo dos antigos semitas” (LEWIS, 1990, p. 36), o que nos coloca diante de um importante elemento em todo processo de formação do Islã. Como o politeísmo das tribos árabes estava ligado aos deuses das mais variadas formas, ligados ao aspecto regional e local de cada tribo, divindades das árvores, pedras sagradas, fontes etc., havia uma ligação forte com os laços familiares. Esse elemento foi o que impulsionou a formação do Islamismo, sobretudo pela síntese de o Islã fundamentar a crença em um Deus único. As entidades por eles adoradas eram, na origem, os habitantes e seres tutelares de lugares específicos, que viviam nas árvores, nas fontes e especialmente nas pedras sagradas. Havia alguns deuses no sentido real, que transcendiam na sua autoridade as fronteiras dos cultos puramente tribais. (LEWIS, 1990, p. 36) 44 Como o comércio entre as rotas que cruzavam a Península Arábica traziam relações externas e internas, a crença dos mais variados deuses das tribos nômades e sedentárias da Arábia estava encerrada na Caaba, que ficava em Meca. Esse dado revela a condição de importância dessa cidade no século VI e consolida rotas de importante ligação entre os povos árabes. Na origem das sociedades árabes, o comércio e a religião formaram valores que identificariam as relações sociais em uma espécie de identi- dade árabe. Como a Península Arábica estava colocada em uma gigantesca rota de ligação entre os continentes, o fator inicial foi a expansão comercial atrelada ao modo de vida das sociedades que ali viviam, suas crenças, hábitos e relações. A fé tribal concentrava-se à volta do deus da tribo, geral- mente simbolizado por urna pedra e, às vezes, por qualquer outro objeto. Ficava sob a custódia da casa do Sheikh, que desse modo conquistou um certo prestígio religioso. Deus e culto constituíam a divisa da identidade tribal e a única expressão ideológica do sentido de unidade e de coesão da tribo. A submissão ao culto tribal era expressiva de lealdade política. A apostasia era equivalente a traição. (LEWIS, 1990, p. 37) Os diferentes clãs e tribos da península sintetizaram os valores próprios de uma identidade árabe que marcara já no final do século VI d.C. os elementos para uma “revolução” monoteísta. Essa reunião de elementos conduz, mediante as influências também advindas do Cristianismo e do Judaísmo, uma espécie de pensamento próprio, principalmente das tribos que dominavam o comércio nos centros como Meca e Medina no século VI: os coraixitas.
Compartilhar