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Indaial – 2019 Literatura OcidentaL ii Profª. Raquel da Silva Yee 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Profª. Raquel da Silva Yee Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: Y42l Yee, Raquel da Silva Literatura ocidental II. / Raquel da Silva Yee. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 183 p.; il. ISBN 978-85-515-0382-9 1. Literatura ocidental. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 809 III apresentaçãO Caro acadêmico! Esta disciplina pretende oferecer experiências estéticas instigantes, um contato com imagens, temáticas, reflexões, personagens e cenários que marcaram a Literatura Ocidental no século XX e as produções que vêm sendo difundidas na contemporaneidade. Por meio da literatura produzida em línguas e culturas diferentes, coexistentes em seus intercâmbios, acompanheremos as transformações do ser humano, das formas de organização social, de pensamento e de manifestação artística. Nesta perspectiva, o livro didático enfatizará a lírica, o teatro e, de modo especial, o romance e o conto – gêneros narrativos bastante difundidos durante o século XIX, como também nos séculos sucedentes. Na Unidade 1 refletiremos sobre como vários domínios da arte se renovaram no turbulento cenário europeu do início do século XX. Conheceremos o contexto histórico, as concepções ideológicas que influenciaram as vanguardas europeias – movimentos artísticos impulsionados pela liberdade, pelo desejo de criar estéticas autônomas atreladas às inquietações dos novos tempos. A partir daí buscaremos compreender a literatura do início do século XX através de seus representantes e das obras mais importantes na lírica e no teatro. Na Unidade 2 enfatizaremos as vertentes da narrativa ficcional que versam sobre os problemas sociais do mundo moderno, produções literárias com configurações estruturais inovadoras, romances que exploram o universo subjetivo das personagens e que colocam em cena as vozes femininas. Finalmente, na Unidade 3, sem que seja possível esgotar o assunto, estudaremos algumas tendências literárias contemporâneas, traços artísticos diversificados, insurgências temáticas, os caminhos trilhados pela narrativa, poesia e dramaturgia. Dessa maneira, esperamos que você estabeleça interlocuções prazerosas e frutíferas com os textos literários, interaja com as discussões, dicas e atividades apresentadas neste livro didático, mantendo uma postura investigativa e crítica. Boas leituras! Profª. Dra. Raquel da Silva Yee IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI V VI VII UNIDADE 1 – LITERATURA DO SÉCULO XX ................................................................................ 1 TÓPICO 1 – O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS ................. 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS .................................... 4 3 O PENSAMENTO EXISTENCIALISTA E INTUICIONISTA ..................................................... 6 4 AS REFLEXÕES DE NIETZSCHE E A PSICANÁLISE DE FREUD ............................................ 8 5 AS VANGUARDAS EUROPEIAS ..................................................................................................... 10 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 25 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 26 TÓPICO 2 – POESIA MODERNISTA ................................................................................................. 29 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 29 2 AS FACETAS DE FERNANDO PESSOA ......................................................................................... 31 3 DIÁLOGOS ENTRE DRUMMOND E GARCÍA LORCA ............................................................ 35 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 41 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 44 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 45 TÓPICO 3 – TEATRO MODERNISTA ................................................................................................ 49 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 49 2 A DRAMATURGIA DE LUIGGI PINDARELLO E BERTOLT BRECHT ................................. 50 3 A CONDIÇÃO EXISTENCIAL EM SAMUEL BECKETT ............................................................ 56 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 61 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 62 UNIDADE 2 – NARRATIVAS MODERNISTAS ............................................................................... 65 TÓPICO 1 – A PROSA LITERÁRIA ..................................................................................................... 67 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 67 2 VERTENTES NARRATIVAS E AS FICÇÕES DE MÁXIMO GORKI E WILLIAM FAULKNER ............................................................................................................................................68 3 AS REVERBERAÇÕES DA GUERRA EM ERNEST HEMINGWAY E O EXPERIMENTALISMO DE JAMES JOYCE ................................................................................... 73 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 80 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 81 TÓPICO 2 – A FICÇÃO FANTÁSTICA E INTROSPECTIVA ........................................................ 85 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 85 2 AS TRAMAS LITERÁRIAS DE FRANZ KAFKA ......................................................................... 86 3 NARRATIVAS INTIMISTAS DE VIRGINIA WOOLF E CLARICE LISPECTOR .................. 92 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................101 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................105 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................106 sumáriO VIII TÓPICO 3 – VOZES FEMININAS NA LITERATURA EM LÍNGUA ESPANHOLA ..............111 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................111 2 LAS SIN SOMBREROS .....................................................................................................................112 3 AS FICÇÕES DE TERESA DE LA PARRA, CARMEN MARTÍN GAITE E CARMEN LAFORET ............................................................................................................................................115 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................120 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................121 UNIDADE 3 – TENDÊNCIAS LITERÁRIAS CONTEMPORÂNEAS ........................................125 TÓPICO 1 – PROSA CONTEMPORÂNEA ......................................................................................127 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................127 2 A LITERATURA DISTÓPICA: GEORGE ORWELL E MARGARET ATWOOD ...................128 3 A INTERTEXTUALIDADE E O FAZER LITERÁRIO NAS FICÇÕES DE BORGES E RICARDO PIGLIA .............................................................................................................................134 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................138 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................139 TÓPICO 2 – A CRÍTICA SOCIAL NA FICÇÃO CONTEMPORÂNEA .....................................143 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................143 2 AS FICÇÕES DE JOSÉ SARAMAGO .............................................................................................143 3 A LITERATURA DE JAVIER CERCAS MENA, MIA COUTO E CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE ..............................................................................................................................149 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................157 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................158 TÓPICO 3 – O DRAMA E A LÍRICA .................................................................................................159 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................159 2 O TEATRO DE NELSON RODRIGUES E DE FERNANDO ARRABAL ................................159 3 POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS EM LÍNGUA ESPANHOLA .............................................167 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................172 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................176 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................177 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................179 1 UNIDADE 1 LITERATURA DO SÉCULO XX OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • entender o momento histórico e os principais acontecimentos políticos, econômicos e socias, bem como suas relações com as manifestações artísi- ticas do início do século XX; • compreender os pensamentos filosófico e científico que influenciaram a arte ocidental do século XX; • identificar os traços marcantes do projeto artístico das vanguardas europeias; • refletir criticamente sobre as manifestações do modernismo nas produções poéticas e teatrais; • reconhecer as reverberações estéticas do século passado e as renovações literárias do século XX. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS TÓPICO 2 – POESIA MODERNISTA TÓPICO 3 – TEATRO MODERNISTA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 1 INTRODUÇÃO No início do seculo XX, a Europa viveu um momento de intensa turbulência, de conflitos políticos, de desarmonia entre órgãos estruturais da sociedade, que desencadearam a Primeira Guerra Mundial, em 1914 (ano apontado como o verdadeiro fim do século XIX); a Revolução Social na Rússia, em 1917; o fascismo e o nazismo. O fascismo foi uma ideologia política surgida na Itália logo após o fim da Primeira Guerra. Afligida pelos males do pós-guerra, como desemprego, crise política e econômica, pelo crescimento dos partidos de esquerda e pretensões imperialistas frustradas, a sociedade aceitou o discurso de Benito Mussolini, prometendo levar a nação a um período glorioso. Utilizando-se do discurso populista e dos ideais nacionalistas e nostálgicos, ele logo se tornou Primeiro Ministro e em seguida, o Duce, condutor da nação. As principais concepções do fascismo, além das citadas, são o culto ao líder, o tradicionalismo, o irracionalismo, o conservadorismo, o culto à violência, o militarismo, a xenofobia, a perseguição moral e intelectual e o anticomunismo. O nazismo, por sua vez, foi uma versão alemã do fascismo, acrescida de peculiaridades do contexto germânico dos anos 1930, que teve sua ascensão na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Adolf Hitler, líder do partido nazista, acrescentou ao fascismo a famosa perseguição ao povo judeu, assim como a grupos opositores, comunistas, homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová, artistas modernos, pensadores de esquerda, além da eliminação de deficientes físicos e intelectuais. O saldo de mortes em campos de concentração, apenas de judeus, foi de cerca de 6 milhões de pessoas. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 4 DICAS Podemos encontrar um vasto conteúdo sobre os desdobramentos do contexto político-social da primeira metade do século XX produzido por historiados, literatos, artistasplásticos, cineastas, entre outros. Para ampliar seus conhecimentos, indicamos as obras Era dos extremos: o breve século XX, de Eric Hobsbawm; O diário de Anne Frank, de Anne Frank; Homens em tempos sombrios, de Hannah Arend; O fascismo eterno, de Umberto Eco. Sugerimos também os filmes O grande ditador (1940), de Charles Chaplin; A lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg; Operação Valquíria (2008), de Bryan Singer, e A onda (2008), de Dennis Gansel. O cenário de instabilidade, bárbarie e contradições instaurado no começo do século XX, marcado pelo impacto das novas descobertas tecnólogicas (telefone, rádio, cinema, avião, automóvel, equipamentos bélicos sofisticados etc.), e das descobertas ocorridas na área de saúde, como a identificação de novos agentes de doenças, as novas vacinas, a criação da penicilina, gerou mudanças significativas nas noções de realidade, ciência, sociedade, sujeito, espaço e tempo, que não podiam ser mais pautadas pelas concepções herdadas do passado. Tais acontecimentos propiciaram um movimento de efervescência artística, influenciando a pintura, a música, a escultura e a literatura. Em diversos países, artistas e intelectuais, problematizaram os impactos das inovações tecno-científicas e os conflitos bélicos entre nações. À vista disso, a pretensão, neste tópico, é refletir sobre o momento histórico, as concepões ideológicas, as singularidades e reverberações das estéticas que provocaram a renovação da literatura e de outros domínios da arte. 2 O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS Nesse contexto de transformações radicais, a literatura, inspirada pelas vanguardas euroupeias – movimentos artísticos de propostas ousadas, desejava romper com os pradrões estéticos que prevaleceram até o final do século XIX, inovando temas e a linguagem das obras, buscando respostas diferentes para as questões humanas da época. O modernismo (conhecido na Europa pelo nome genérico de vanguarda) passou a representar uma literatura "relativamente autônoma" que, segundo Carpeaux (2012, p. 22), Sofre com as dores do corpo inteiro e reflete as intervenções cirúrgicas que a guerra e revolução representam. Mas guarda sempre uma autonomia que nenhum estilo literário, desde a Renascença, possuíra. Daí a impressão de o Cubismo ou o Modernismo constituírem novidades TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 5 absolutas, contrárias a todos os canônes que, desde a Renascença, dominaram a pintura e a literatura. A evolução do estilo modernista obedeceu leis autônomas, independente da realidade social. Em vários países um número expressivo de escritores reagiram aos processos de modernização do mundo ocidental e aos conflitos bélicos, "seja refletindo-os, seja até antecipando-lhes os reflexos psicológicos", destaca Carpeaux (2012, p. 19), ao citar o grande poeta francês de origens simbolistas, Guillaume Apollinaire, e sua contudente expressão Je suis ivre d'avoir bu tout l'univers (Estou bêbado por ter bebido todo o universo), exposta no poema Vendémiaire, que reflete a atmosfera de angústia, a metamorfose do mundo, o desdobramento dos versos livres, a fluidez das palavras, as modulações do ritmo, a fantasia, a embriaguez, a poética do porvir. Como Apollinaire, os modernistas do começo do século foram grandes entusiastas que escolheram caminhos diversos que melhor se adaptassem as suas ânsias de expressão, transformando a arte e rompendo com os cânones. As estéticas de renovação, plurais em seus traços estilísticos, inspiraram-se, de algum modo, nas vertentes românticas ao evocar a liberdade de expressão como um traço comum aos diversos escritores. Surgiram diferentes modos de perceber a realidade, sem que fosse possível deixar totalmente de lado as conquistas literárias dos séculos anteriores, salienta Jozef (1989). As revoltas modernistas afloraram dentro de uma boêmia, nasceram "fora da vida literária conhecida pelo público e pelos poderes estabelecidos; muito mais 'fora' do que qualquer movimento literário novo de épocas passadas, ao ponto de o público, inclusive a crítica conservadora, durante muitos anos, não lhe perceberem a existência" (CARPEAUX , 2012, p. 12). O ambiente da boêmia, uma espécie de organização da vida literária não convencional, distante da organização social, propiciou um clima ideal para os projetos audaciosos de alguns pintores e poetas, que pretendiam romper com mundo existente e criar outro. Assim, o modernismo surgiu, quase sincronicamente, em Paris, Florença, Berlim e Nova York, contagiando, posteriormente, outros países. Antes de enfatizarmos as singularidades da literatura modernista, consideramos importante esclarecer que os conceitos de modernidade e modernismo se entrecruzam, mas são dotados de particularidades. Temporalmente, o modernismo está atrelado às características estéticas localizadas historicamente no começo do século XX, às renovadoras experiências de vanguarda; enquanto a ideia antecedente de modernidade está relacionada a uma fase de ruptura com os preceitos medievais, a um longo processo de mudanças sociais, econômicas e culturais iniciado no final do século XV. Além disso, é importante compreender que importantes concepções filosóficas e científicas inquietaram os pensadores do século XX e serviram de suporte intelectual para várias formas de manifestação artística, repercutindo um estado de espírito peculiar daquele momento, tais como as ideias de Kierkegaard, Sartre, Henri Bergson, Nietzsche, Freud, que serão apresentadas no próximo tópico. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 6 3 O PENSAMENTO EXISTENCIALISTA E INTUICIONISTA Ao estudarmos a literatura do século XIX, vimos que as discussões de Karl Marx sobre a luta entre o capital e a força de trabalho humana penetraram nas criações estéticas do Realismo e foram acentuadas nos romances experimentais do Naturalismo, principalmente sob a ótica do Positivismo de Comte e do Determinismo de Taine. O pensamento marxista também foi estudado e reelaborado nos séculos seguintes, influenciando uma parte significativa da literatura moderna e contemporânea engajada com a problemática das injustiças sociais, evidentes nas ideias de Sartre, no teatro de Brecht, nas narrativas ficcionais do chamado “realismo socialista”, como veremos adiante. Nesse contexto, D’Onofrio (2007) coloca em evidência pensadores importantes que influenciaram fortemente a literatura e a arte em geral do século XX, como os existencialistas Kierkegaard, Heidegger e Sartre, que reformularam a reflexão sobre a "existência" (aquilo que se identifica com o real), em oposição à "essência" (qualificações genéricas de seres e objetos). O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), considerado o fundador do Existencialismo, analisou questões ligadas à religião, à moral, à arte, apropriando-se das origens da filosofia grega para evidenciar que o valor da vida individual não pode ser compreendido dentro de um sistema abstrato. Para Kierkegaard, a angústia, por exemplo, é constitutiva da nossa existência, das nossas condições individuais e singulares. Entre suas obras, destacamos: Sobre o conceito de ironia; O conceito de angústia; O desespero humano. Para o alemão Martin Heidegger (1889-1976), a angústia, problematizada por Kierkegaard, não está ligada a problemas religiosos, mas com a existência do sujeito como tal, e só pode ser superada através da inquietação, na atualização contínua de suas possibilidades. As inquietações de Heidegger, expressas em obras como Ser e tempo, Que é metafísica?, Sobre a essência da verdade, Da experiência do pensar, aproximam- se da poesia, pois, segudo ele, a libertação do homem, em sua autenticidade, só é possível por meio da palavra poética. Já a corrente existencialista do filósofo, dramaturgo e romancista Jean- Paul Sartre (1905- 1980) identifica-se com o Socialismo, com as causas proletárias. Avesso a qualquer forma de opressão e militantedo Partido Comunista, Sartre defende a ideia de liberdade em todas as formas de atividade humana. Seu pensamento filosófico evidencia-se nas obras O ser e o nada, O Existencialismo é um Humanismo, Questão de método, Crítica da razão dialética. Sartre conduz suas ideias contestando a tese determinista da dependência de fatores ambientais e hereditários, considerando o homem responsável por tudo aquilo que é e faz. No âmbito das artes, ele ainda teceu importantes reflexões sobre a natureza da literatura e seu papel social. No livro Que é a literatura?, publicado em 1948, o escritor francês reflete sobre a prática de leitura enquanto "exercício de generosidade". Para o filósofo, TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 7 aquilo que o escritor pede ao leitor não é a aplicação de uma liberdade abstrata, mas a doação de toda a sua pessoa, com suas paixões, suas prevenções, suas simpatias, seu temperamento sexual, sua escala de valores. Somente essa pessoa se entregará com generosidade; a liberdade a atravessa de lado a lado e vem transformar as massas mais obscuras da sua sensibilidade (SARTRE, 2004, p. 42). Ademais, Sartre destaca que a literatura, "absorvida pela descoberta da sua autonomia, torna-se o seu próprio objeto"', ao cortar laços com limites antigos, produzindo novas técnicas e críticas. Nesse sentido, considera a arte literária uma forma de utopia, de resistência. A literatura é, por essência, a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente. Numa tal sociedade ela superaria a antinomia entre a palavra e a ação. Decerto, em caso algum ela seria assimilável a um ato: é falso que o autor aja sobre os leitores, ele apenas faz um apelo à liberdade deles e, para que suas obras surtam qualquer efeito, é preciso que o público as assuma por meio de uma decisão incondicionada. Mas numa coletividade que se retoma sem cessar, que se julga e se metamorfoseia, a obra escrita pode ser condição essencial da ação, ou seja, o momento da consciência reflexiva (SARTRE, 2004, p. 120). Dentre as concepções ideológicas que marcaram o século XX, o pensamento intuicionista do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1927, foi consagrado em obras como Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e memória, A evolução criadora, A percepção da mudança, entre outras. Suas reflexões exerceram forte influência, abrangendo muitos setores do pensamento e da vida. Na época, Bergson advertiu contra a "insuficiência da lógica, que só é capaz de interpretar o lado mecânico do universo, e contra a fé ilimitada nos sentidos, que nos iludem quanto à superfície das coisas; e inspirando nova confiança nas forças criadoras da alma humana, capaz de construir um universo autônomo" (CARPEAUX, 2012, p. 41). O filosofo francês valorizou a apreensão da realidade pela intuição, pela comunicação direta com o "eu profundo", sugerindo a noção de que a vida é um processo de existir constituído por transformações. As verdades humanas, portanto, não possuem valores absolutos, estáticos, lógicos e imutáveis, mas relativos ao sujeito, ao tempo e ao espaço. As reflexões de Bergson sobre a duração psicológica – experiência subjetiva que se manifesta de diversas maneiras no campo dos sentimentos íntimos, no âmbito da arte e da mística religiosa, por exemplo, encontraram ressonâncias na ficção modernista, especialmente nos romances que exploram o fluxo de consciência das personagens. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 8 4 AS REFLEXÕES DE NIETZSCHE E A PSICANÁLISE DE FREUD O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) marcou a história do pensamento ocidental propondo uma descosntrução das teorias de Sócrates e Platão sobre a existência de um mundo ideal, no qual residem relações dicotômicas, de essência e aparência, verdadeiro e falso, inteligível e sensível, dualismos instituídos pelos gregos na representação dos mitos de Apolo (deus da luz, da ordem, do social) e de Dionísio (deus do instinto individual, das trevas, da embriaguez). Nas obras O nascimento da tragédia, Assim falou Zaratustra, Além do bem e do mal, A vontade de poder, entre outras, Nietzsche contesta as verdades absolutas, pautadas no Divino, no Verdadeiro, no Belo, no Bom, que desembocam em diversas formas de opressão. Para o filósofo, o que existe, de fato, são alternâncias do bem e do mal, da alegria e do sofrimento. Sua postura niilista (ceticista) constesta todos os valores e acredita que nada existe de absoluto. Crítico e performativo, Nietzsche agrupou percepções diversas sobre a linguagem, o homem e suas relações em sociedade, também teceu severas críticas à sublimação do sofrimento pregada pelo Cristianismo, por entender que a doutrina cristã reforça o idealismo platônico de que mundo terreno é apenas uma passagem e que o homem precisa adquirir méritos para ascender ao céu. Ao contrariar o "eu" num ilusório estado regular de harmonia, Nietzsche coloca em pauta a problemática da subjetividade, do pensar, do escrever como uma caótica confluência de elementos, de desencontros. Interessa, afinal, o "eu" reflexivo em vias de fragmentação, os seus cacos, os seus outros. Nietzsche cria imagens que potencializam as provocações, como fez em A gaia ciência, no aforismo 124, ao direcionar ser humano, em sua natureza variável, para uma vida de multiplicidades, comparando-o a um "pequeno barco" numa viagem pelo "horizonte do infinito". — Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte – mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende com seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse mais liberdade – e já não existe mais "terra"! (NIETZSCHE, 2012, p. 137). Para Nietzsche, romper com o hábito da tradição, com os valores cristalizados no tempo, exige desprendimento, é preciso deixar a terra firme e embarcar, deslocar o pequeno barco do fluxo contínuo, cortar o laço com a ancoragem do porto, perpassar pelos inconstantes e profundos oceanos, vaguear por entre as rotas e as correntes marítimas, incitar desvios e naufrágios. A essas questões que inevitavelmente geram tensões ele também problematiza uma TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 9 linguagem que igualmente se fragmenta diante de suas múltiplas relações e interpretações, diante de sua complexidade, tal qual a alegoria do sujeito colocada na ideia de que os "pensadores nos quais todas as estrelas têm órbitas cíclicas não são os mais profundos; quem olha para dentro de si como um espaço sideral e traz vias-lácteas em seu interior, sabe também como são irregulares todas as vias lácteas; elas conduzem ao caos e ao labirinto da existência" (NIETZSCHE, 2012, p. 250). Sem dúvida, o pensamento de exaltação do humano e de suas paixões propagado por Nietzsche tornou-se bastante provocativo e polêmico, gerando inclusive deturpações, como as realizadas por Hitler e Mussolini, que mal interpretaram o conceito nietzschiano de "super-homem” (o senhor de suas paixões, aquele que empreende forças para superar obstáculos) associando-o à ideia de homem superior, forte, de raça pura. Sobre essa questão, D'Onofrio (2007, p. 416) alerta que "é um grande equívoco interpretativo relacionar diretamente o pensamento do filósofo alemão com a ideologia nacionalista e racista do nazismo". Dos pensadores revolucionários citados até aqui, o neurologista austríaco Sigmund Freud (1859-1939) contribuiu de modo muito expressivo com seus estudos sobre a formação da personalidade humana, impactando a sociedade da época. Sua obra é vasta, abarca investigaçõesa respeito do inconsciente e do subconsciente – camadas mais profundas da nossa vida psíquica; que buscam entender os fenômenos psíquicos mais obscuros e arbitrários, as causas de nossos atos, a origem do sofrimento do outro, a natureza patogênica do reclaque, os primórdios da sexualidade infantil, entre outras questões formuladas pela Psicanálise freudiana, ressalta Nasio (1999). A literatura grega inspirou significativamente os estudos de Freud. A partir de uma passagem da peça teatral Édipo Rei, de Sófocles, o mito edipiano foi transformado em complexo, na tese de que toda neurosa tem origem sexual, designada por desejos e hostilidades insconscientes surgidas na infância, quando o menino sente atração pela mãe (complexo de Édipo) e a menina pelo pai (complexa de Electra). Segundo Freud, essas questões precisam ser superadas através do relacionamento afetivo com outras crianças, evitando uma dependência traumática com os pais a ponto de provocar desvios de comportamentos. Aos longo de suas investigações, Freud também indagou-se sobre a origem das imagens oníricas e suas relações com as pertubações mentais. Ao analisar seus próprios sonhos e os dos pacientes em tratamento psicanalítico, constatou que "o sonho é o primeiro membro de uma classe de fenômenos psíquicos anormais, da qual outros membros, como as fobias histéricas, as obsessões e delírios, estão fadados, por motivos práticos, a constituir um tema de interesse para os médicos"(FREUD, 2001, p.11). No prefácio da primeira edição da obra A intrepretação dos sonhos, publicada em 1899, Freud reforça que: UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 10 Todo o material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou lembrado no sonho — ao menos isso podemos considerar como fato indiscutível. Mas seria um erro supor que uma ligação dessa natureza entre o conteúdo de um sonho e a realidade esteja destinada a vir à luz facilmente, como resultado imediato da comparação entre ambos. A ligação exige, pelo contrário, ser diligentemente procurada, e em inúmeros casos pode permanecer oculta por muito tempo. A razão disso está em diversas peculiaridades exibidas pela faculdade da memória nos sonhos, e que, embora geralmente observadas, até hoje têm resistido à explicação (FREUD, 2001, p. 22). Outras importantes obras marcaram a carreira de Freud, como Estudos sobre a histeria, Psicopatologia da vida cotidiana e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Vários estudiosos, nos diversos campos do conhecimento (antropologia, sociologia, linguística, entre outros) seguiram suas pesquisas, aperfeiçoaram técnicas e métodos, como também refutaram suas teses. Estudaremos adiante como a atração pelos enigmas do inconsciente, pelo dinamismo do "eu", pelas manifestações que ultrapassam a realidade objetiva, aproximou os literatos e os artistas surrealistas das teorias elaboradas por Freud, considerado o criador da Psicanálise. 5 AS VANGUARDAS EUROPEIAS Desde do final do século XIX, a arte passou a absorver experiências estéticas inovadoras, que desestabilizaram os padrões artísticos vigentes. As produções do início século XX, denominadas vanguardas (palavra proviente do francês avant-garde, que significa "o que marcha para frente", o que capta tendências do futuro) foram ainda mais ousadas. Diferentes projetos artísticos surgiram para contestar radicalmente as concepções do século passado, dentre eles, o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo e o Surrealismo. Todas essas vanguardas apresentam concepções próprias, manifestos públicos que dão visibilidade as suas propostas, destinadas a confrontar as estéticas tradicionais e o princípio da imitação objetiva da realidade. O Futurismo foi um movimento liderado pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) por intermédio do “Manifesto futurista”, publicado em 1909, no jornal francês Le Figaro. A proposta vanguardista inicial visava a destruição de todas as formas tradicionais de cultura e a substituição por uma arte capaz de representar a era da máquina, o desenvolvimento tecnológico. Outros manifestos foram publicados para atingir vários campos artísticos, além da literatura, como também instituições políticas, sociais e religiosas. Acompanhe no manifesto a seguir as reinvidicações dos futuristas. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 11 QUADRO 1 – MANIFESTO FUTURISTA 1. Nós pretendemos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e a intrepidez. 2. Coragem, audácia, e revolta serão elementos essenciais da nossa poesia. 3. Desde então, a literatura exaltou uma imobilidade pesarosa, êxtase e sono. Nós pretendemos exaltar a ação agressiva, uma insónia febril, o progresso do corredor, o salto mortal, o soco e tapa. 4. Nós afirmamos que a magnificiência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com grandes canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia. 5. Nós queremos cantar hinos ao homem e à roda, que arremessa a lança de seu espírito sobre a Terra, ao longo de sua órbita. 6. O poeta deve esgotar a si mesmo com ardor, esplendor, e generosidade, para expandir o fervor entusiástico dos elementos primordiais. 7. Exceto na luta, não há beleza. Nenhum trabalho sem um caráter agressivo pode ser uma obra de arte. Poesia deve ser concebida como um ataque violento em forças desconhecidas, para reduzir e serem prostradas perante o homem. 8. Nós estamos no último promontório dos séculos!... Porque nós deveríamos olhar para trás, quando o que queremos é atravessar as portas misteriosas do Impossível? Tempo e Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos a velocidade, eterna, omnipresente. 9. Nós glorificaremos a guerra – a única higiene militar, patriotismo, o gesto destrutivo daqueles que trazem a liberdade, ideias pelas quais vale a pena morrer, e o escarnecer da mulher. 10. Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra o moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária. 11. Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e polifónicas nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor noturno de arsenais e estaleiros em chamas com violentas luas elétricas; estações de trem cobiçosas que devoram serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens por linhas tortas de suas fumaças; pontes que transpõem rios, como ginastas gigantes, lampejando no sol com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros que fungam o horizonte; locomotivas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos como o casco de enormes cavalos de aço freados por tubulações; e o vôo macio de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado. FONTE: <https://comaarte.files.wordpress.com/2013/06/manifesto-do-futurismo.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2019. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 12 O manifesto defende a inovação, a incorporação de elementos da modernidade à arte, que sinalizem ação e velocidade, em contraposição a um perfil artístisco estático e contemplativo atrelado à tradição cultural milenar. Por outro lado, a exposição de Marinetti gerou efeitos negativos por alimentar a ideia de destruição da tradição cultural, por propagar preceitos fascistas ao glorificar a guerra, propor a destruição de museus e bibliotecas e desprezar as lutas feministas. Em 1912, Marinetti também publicou o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, cujas reinvidicações ressaltavam a liberdade de uso das palavras, o verso livre, propostas que influenciaram as produções artísticas do Cubismo e outras tendências contemporâneas. Observe oquadro Dinamismo de um ciclista (1913), do pintor futurista Umberto Boccioni. Perceba como o artista capta a imagem de um ciclista em movimento, trabalhando com a ideia de dinamismo e velocidade. FIGURA 1 – DINAMISMO DE UM CICLISTA, DE UMBERTO BOCCIONI FONTE: <https://static.wixstatic.com/media/80b176_ea9ad8848f1049c4be49399bdb6f66dd. jpg>. Acesso em: 27 mar. 2019. Outro movimento vanguardista importante foi o Cubismo, cujo termo, inventado pelo artista francês Henri Matisse a partir da observação de uma exposição dos quadros de Georges Braque, em 1908, evoca a percepção dos planos simultâneos das artes plásticas. Braque, Pablo Picasso, Jan Gris, Férnand Léger compõem um grupo de importantes pintores cubistas, cujas propostas enfatizam a reconstrução das imagens, a sobreposição de planos, das formas geométricas, novos conceitos de proporção e perspectiva que romperam com as teorias artísticas da Renascença, com o modo de perceber o mundo a partir de um único ponto de vista. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 13 O quadro Les Domoiselles d` Avignon (As senhoritas de Avignon), de Pablo Picasso, exposto em 1907, em Paris, foi um marco para a arte do século XX. Nele, o pintor expõe os traços vanguardistas de deslocamento formal ao destacar cinco mulhes de um bordel francês com corpos e rostos deformados. FIGURA 2 – AS SENHORITAS DE AVIGNON, DE PABLO PICASSO FONTE: <https://bit.ly/2mompvN>. Acesso em: 27 mar. 2019. Bastante significativa também é a composição do quadro Guernica, pintado em 1937, no qual Picasso faz uma denúncia social no intuito de sensibilizar as pessoas a respeito dos efeitos da Guerra Civil, uma tragédia ocorrida na Espanha, na cidade de Guernica, que foi bobardeada por aviões alemães liderados pelo general Francisco Franco, com o apoio dos regimes nazista e fascista. Observe, no quadro a seguir, como a obra chama a atenção para os aspectos destrutivos e desumanos da guerra. FIGURA 3 – GUERNICA, DE PABLO PICASSO FONTE: <https://cdn.culturagenial.com/imagens/guernica-cke.jpg>. Acesso em: 27 mar. 2019. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 14 Analise mais uma vez a disposição dos elementos (fragmentados em diferentes planos), a técnica cubista de colagem, as formas geométricas, as cores (branco, preto e cinza), simbolizando o caos, as ideias de morte e de destruição, assim como as feições, as bocas abertas das personagens expressam gritos de dor e desespero. Podemos observar várias imagens representando o drama da Guerra Civil Espanhola. DICAS Assista à animação a seguir e conheça com mais detalhes os símbolos que aparecem na tela de Picasso. FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=Uv6u7FZlw4E>. Acesso em: 27 mar. 2019. Os conceitos dos artistas plásticos cubistas foram incorporados por Guillaume Appolinaire em produções poéticas, ensaios, como também no manifesto publicado em 1913, no qual propunha a representação de uma arte mais expressiva, capaz de provocar os sentidos do espectador. Na literatura, Appolinaire implementa técnicas de montagem de palavras em espaços aleatórios, cria poemas que escapam das formas convencionais, lineares. Afinal, a literatura que visa à fruição, coloca o leitor em estado de perda, desestabiliza suas referências, provoca uma crise em sua relação com o texto, lembra Barthes (2006), um dos pensadores contemporâneos mais provocativos no âmbito dos estudos sobre a linguagem. Nesse sentido, note, a seguir, como a reflexão de Barthes dialoga com o poema “La colombe poignardée et le jet dèau” (A pomba apunhalada e o jato d'água), produzido por Appolinaire e publicado em sua obra Calligrammes – Poèmes de la paix et de la guerre (1913-1916), em 1918. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 15 FIGURA 4 – POEMA "LA COLOMBE POIGNARDÉE ET LE JET DÈAU", DE APPOLINAIRE FONTE: <https://svbtleusercontent.com/tkajycbvxfr0g.png>. Acesso em: 27 mar. 2019. Ao se deparar com a produção poética de Appolinaire, o leitor certamente é surpreendido com a construção visual do texto, a disposição das palavras, as imagens polissêmicas (que apresentam múltiplos sentidos). Nesse caso, a leitura não obedece a um processo linear, a uma experiência habitual. Leia, no quadro a seguir, a tradução do poema realizada pela artista brasileira Patrícia Galvão (mais conhecida como Pagu), e perceba a integração perceptual da imagem e do texto, UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 16 uma vez que o poema cubista, igualmente marcado pelos planos simultâneos, superpostos, pretende suprimir a ideia de que os ímpetos humanos obedecem à racionalidade, e de que há sempre uma lógica formal no estado das coisas. QUADRO 2 – TRADUÇÃO DO POEMA "LA COLOMBE POIGNARDÉE ET LE JET DÈAU", DE APPOLINAIRE Doces figuras apunhaladas – Caros lábios em flor – Mia Mareye – Yette Lorie – Annie e você Marie – onde estão - vocês ó – meninas – Mas – junto a um – jacto de água que – chora e que suplica – esta pomba se extasia – Todas as recordações de outrora? – Onde estão Raynal Billy Dalize – Os meus amigos foram para a guerra – Os seus nomes se melancolizam – Esguicham para o firmamento – - Como os passos numa igreja – E os seus olhares na água parada – Onde está Crémnitz que se alistou – Morrem melancolicamente – Pode ser que já estejam mortos – Onde estão Braque e Max Jacob – Minha alma está cheia de lembranças – Derain de olhos cinzentos como a aurora – O jacto de água chora sobre a minha pena – Os que partiram para a guerra ao norte se batem agora – A noite cai o sangrento mar – Jardins onde sangra abundantemente o louro rosa flor guerreira FONTE: <https://coredeartes.files.wordpress.com/2015/05/as_vanguardas_europeias.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2019. A proposta criada por Appolinaire mescla uma variedade de formas imagéticas e verbais, compondo um caligrama – poema visual em que texto e desenho se complementam, produção literária bastante difundida pelos poetas vanguardistas. No poema, a imagem inicial do primeiro agrupamento verbal apresenta uma pomba com asas abertas, e no segundo agrupamento de palavras podemos ver o desenho de um jato de água que sai de uma bacia, como também uma boca, um olho. Os desenhos e as palavras se entrecruzam e anunciam as recordações do eu lírico, "uma lama cheia de lembranças", que chora, sangra, lamenta o drama da Primeira Guerra Mundial, os amores perdidos, os amigos espalhados, o cenário de morte, destruição e perdas. Este poema, que faz parte de uma coletânea de imagens sobre a Paz e a Guerra, é, certamente, o reflexo da necessidade de inovação que implusionou os artistas modernistas no início do século XX. Encontramos outros exemplos de caligramas na Antiguidade Clássica, como O Ovo, datado de 300 a.C. e atribuído ao poeta grego Símias de Rodes. A poesia visual também esteve presente na Idade Média, no Barroco, no Simbolismo, mas destacou-se principalmente a partir do século XX, transfigurando-se atualmente nas diversas representações poéticas digitais. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 17 FIGURA 5 – POEMA O OVO, DE SÍMIAS DE RODES, TRADUZIDO POR JOSÉ PAULO PAES Acolhe da fêmea canora este novo urdume que, animosa Tirando-o de sob as asas maternas, o ruidoso e mandou que, de metro de um só pé, crescesse em número e seguiu de pronto, desde cima, o declive dos pés erradios tão rápido, nisso, quanto as pernas velozes dos filhotes de gamo e faz vencer, impetuosos, as colinas no rastro da sua nutriz querida, até que, de dentro do seu covil, uma fera cruel, ao eco do balido, pule mãe, e lhes saia célere no encalço pelos montes boscosos recobertos de neve. Assim também o renomado deus instiga os pés rápidos da canção a ritmos complexos. do chão de pedra pronta a pegar alguma das crias descuidosas da mosqueada balindo por montes de rico pasto e grutas de ninfas de fino tornozelo que imortal desejo impele, precípites, para a ansiada teta da mãe para bater, atrás deles, a vária e concorde áriadas Piérides até o auge de dez pés, respeitando a boa ordem dos ritmos, arauto dos deuses, Hennes, jogou·a à tribo dos mortais, e pura, ela compôs na dor estrídula do parto. do rouxinol dórico benévolo. FONTE: Leite (2013, p. 26) No período do Modernismo, vários poetas da literatura latino-americana também produziram poemas visuais interessantes, a exemplo do argentino Oliverio Girondo, que no Manifesto de Martín Fierro, atribuído ao autor, publicado em 1924, teorizou sobre uma forma americana que aproveitava as concepções vanguardistas para renovar a poética. Ao lado de Girondo, destacamos o poeta brasileiro Augusto de Campos, representante do Concretismo, primeiro movimento literário de poesia visual que surgiu no Brasil na década de 1950, inspirado no experimentalismo formal das vanguardas europeias. Serão expostos a seguir dois poemas representativos do movimento vanguardista latino- americano. O primeiro caligrama é de autoria de Oliverio Girondo, publicado no livro Espantapájaros (Al alcance de todos), em 1932, e o segundo, intitulado Ovonovelo, é de Augusto de Campos, publicado em 1952. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 18 FIGURA 6 – POEMA VISUAL DE OLIVERIO GIRONDO FONTE: Girondo (1932, p. 92, apud ZILS; SOBOTTKA, 2015, p. 108) No caligrama apresentado, a imagem do espantalho se entrecruza à manifestação da angústia de uma geração diante das angústias existenciais e do reconhecimento da própria incompletude. Em Ovonovelo, Augusto de Campos, por sua vez, projeta palavras em formas ovais, arrendondadas, que contém reflexões acerca dos mistérios e do movimento cíclico da vida. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 19 FIGURA 7 – OVONOVELO (1956) DE AUGUSTO DE CAMPOS FONTE: Campos et al. (1985, p. 68) UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 20 Os caligramas são formas poéticas interessantes para trabalhar a leitura e produção textual em sala de aula. Para tornar o estudo da língua e literatura estrangeiras instigante e atual, proponha aos alunos uma reflexão sobre os poemas visuais, da antiguidade às produções digitais contemporâneas, criadas em virtude dos avanços tecnológicos. Instige a percepção estética e crítica, levando-os a perceber e a criar diferentes formas de texto poético. Procure promover um debate mais amplo sobre arte e tecnologia, sobre o uso de elementos verbo-visuais, trabalhando com os estudantes a percepção das mudanças sociais e de si mesmos. Como sugestão de leitura indicamos o artigo Uso de elementos verbo-visuais analógicos na criação de poemas digitais, de Rafael Soares Duarte FONTE:<https : / /per iodicos .ufsc .br / index .php/textodig i ta l /ar t ic le/v iew/1807- 9288.2018v14n2p134/38183>. Acesso em: 24 set. 2019. NOTA Na Alemanha, no início do século XX, um grupo de pintores implusionou o sugirmento do Expressionismo, com o proprósito de difundir a liberdade de expressão e a ideia de que a criação artítica está diretamente relacionada com a subjetividade, com o mundo interior do artista, uma expressão instintiva que vem de dentro para fora. Ao contrário do que foi proposto pelo Impressionismo, movimento artístico que surgiu na França no final do século XIX, e que considera a obra de arte um reflexo das captações do mundo exterior para o mundo interior do artista. As propostas expressionistas se revelaram ainda mais combativas, apresentando críticas às injustiças sociais, aos horrores da guerra, às condições de vida desumanas, à sociedade materialista e mecanizada, à realidade que causa dor, que oprime e deforma o artista. Além da pintura de artistas como Wassily Kandisnky, Paul Klee, Edvard Munch, o Expressionismo passou a se manifestar em outros domínios da arte, na literatura, no cinema, na dança, na música, no teatro. Como exemplo, temos a emblemática pintura O grito, de Edvard Munch, retratando um clima de aflição e angústia. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 21 FIGURA 8 – O GRITO (1893), DE EDVARD MUNCH FONTE: <https://viramundoemundovirado.com.br/wp-content/uploads/2019/08/O-Grito- Munch-Museum-768x1016.jpg>. Acesso em: 27 mar. 2019. Na cena artística do século XX também surgiu o Dadaísmo, movimento vanguardista suíço que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial, entre 1916 e 1921, e se espalhou para vários países. O termo "dadá", sem significado preciso, foi escolhido casualmente pelo romeno Tristan Tzara, líder dadaísta. De modo geral, podemos considerar que pensamento dadaísta, imbuído pelo clima hostil da guerra, busca evidenciar a degradação da civilização, através da sátira, da agressividade, do ilogismo das palavras, da desordenação, como podemos ver no trecho do Manifesto do Senhor Antipirina. Dadá é a vida sem pantufas nem paralelos: quem é contra e pela unidade e decididamente contra o futuro; nós sabemos ajuizadamente que os nossos cérebros se tornarão almofadas macias, que nosso antidogmatismo é tão exclusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liberdade; necessidade severa sem disciplina nem moral e cuspimos na humanidade (TZARA, 1987, p. 9). Para os dadaístas, a apreciação da arte se tornou uma hipocrisia diante dos horrores bélicos. Por isso, suas manifestações foram inusitadas, provocaram escândalos e estranhamentos. Caracterizavam-se por adotador um viés fortemente anárquico, expressando a rebelião dos jovens contra os poderes instítuidos internacionalmente. D'Onofrio (2007, p. 428) acrescenta que o Dadaísmo "foi um movimento antiarte por excelência, pois através das arruaças, exposições extravagantes, agitações anárquicas, banquetes excêntricos e tumultuados, os dadaístas gritavam sua trágica revolta, ridicularizando tradições e valores institucionalizados". UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 22 No âmbito das artes plásticas, o movimento aderiu às tecnicas de montagens e colagens feitas com diferentes materiais e desenvolvidas por Max Ernst e Hans Arp. Também se apopriaram da técnica do ready-made, elaborada por Marcel Duchamp, que consite em retirar um artefato industrializado de seu contexto comum, do uso cotidiano, atribuindo-lhe um valor artístico, como o famoso urinol de porcelana, exibido por Duchamp, em 1917. FIGURA 9 - URINOL DE PORCELANA, DE MARCEL DUCHAMP FONTE: <https://i0.wp.com/omeubau.net/wp-content/uploads/2012/10/readymade. jpg?resize=300%2C260>. Acesso em: 27 mar. 2019. DICAS Veja outros elementos utilizados por Marcel Duchamp em sua técnica ready- made no vídeo sugerido a seguir. Acompanhe a apresentação de Ann Temkin, curadora do Museu de Arte Moderna de Nova York, e busque compreender como Duchamp nos levou a repensar o papel da arte e do artista. FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=tqySnbbyB2U>. Acesso em: 27 mar. 2019. TÓPICO 1 | O MODERNISMO: CONCEPÇÕES IDEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS 23 Na literatura, o movimento dadaísta caracterizou-se pela rejeição da racionalidade e do equilíbrio, pela improvisação e livre associação das palavras, tal como expõe Tzara em sua receita para fazer uma poema dadaísta. Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensar dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num saco. Agite com cuidado. Seguidamente, retire os recortes um por um. Copie conscienciosamente segundo a ordem pela qual foram saindo do saco. O poema parecer-se-á consigo. E você tornou-se um escritor infinitamente original e duma sensibilidade encantadora, ainda que incompreendido do público (TZARA,1987, p. 42). Para os dadaístas Tzara, Ludwig Kassak, Francis Picabia, André Breton, entre outros, a falta de lógica, o apelo à autonomia e à lei do acaso, talvez fosse o melhor retrato do inconformismo, do cenário caótico por qual passou a Europa no período da guerra. Por conta do pessimismo dadaísta, André Breton buscou nas teorias psicanalíticas de Freud e na filosofia de Bergson possibilidades artísticas inovadorasque esboçassem a mente humana, o mundo complexo, profundo e oculto da vida psíquica. A partir daí, criou o Surrealismo, o último movimento de vanguarda, manifestando interesse pelo estado onírico, pela alucinação e loucura, pelos impulsos sexuais. No Manifesto Surrealista, publicado em 1924, na França, constatamos o desejo de fusão entre arte e psicanálise, um apelo à desconstrução do império da lógica, do racionalismo absoluto que, segundo Breton (1924, s.p.). A pretexto de civilização e de progresso conseguiu se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 24 Desse modo, o movimento Surrealista julga-se um movimento inovador e construtivo, baseado na psicanálise de Freud, nas reflexões de Bergson, como também na sociologia de Marx, culminando num conflito entre a revolução individualista e a revolução social, destaca Carpeaux (2012). Vários artistas aderiram às ideias surrealistas, propondo a superação dos limites rígidos da razão, valorizando o papel da imaginação no processo de criação artística e de produção de conhechimento científico. Nas artes plásticas, destacam-se Giorgio de Chirico, Salvador Dalí e Joan Miró. Na literatura, André Breton, Antonin Artaud e Louis Aragon. Observe como as representações surreais do inconsciente, a visão subjetiva de tempo, as paisagens transfiguradas dos sonhos aparecem na tela do pintor Salvador Dalí, intitulada A Persistência da Memória, pintada em 1931. FIGURA 10 – A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA, DE SALVADOR DALÍ FONTE: <https://cdn.culturagenial.com/imagens/clocks-cke.jpg>. Acesso em: 27 mar. 2019. Salvador Dalí apresenta uma arte cheia de simbologias, de elementos que representam a realidade e a supremacia da racionalidade distorcidas na imagem dos relógios derretidos. O tempo do inconsciente, não sendo linear e estático, se dissolve no labirinto da memória, da imaginação. A inquietação artística de Dalí sugere novas formas de perceber o mundo através da representação não realista, da perspectiva fugidia do tempo e do estado onírico. 25 Neste tópico, você aprendeu que: • Marx, Bergson, Nietzsche, Freud, entre outros pensadores, desenvolveram um conjunto de ideias inovadoras a partir da segunda metade do século XIX, que influenciaram posteriormente as mais diversas formas de manifestação artística, como a literatura, as artes pláticas, o cinema, a música. • O Modernismo se vincula às tranformações radicais e profundas ocorridas no início do século XX, nos âmbitos econômico, político, social e cultural, que acabaram provocando a Primeira Guerra Mundial. • Em diversos países, artistas e intelectuais, problematizaram os impactos das inovações tecnocientíficas e os conflitos bélicos entre nações. • Nesse período, o cenário artístico também viveu um momento de grande agitação. A ruptura com o passado cultural e a liberdade de criação são marcas principais da arte moderna, o princípio que unia as diversas tendências astísticas consideradas correntes de vanguarda, surgidas durante e depois da Primeira Guerra Mundial. • A proposta do Cubismo envolvia a desconstrução dos conceitos de proporção e perspectiva, enquanto os futuristas tinham o fascínio pela tecnologia. • O Expressionismo assumiu uma postura política combativa, fazendo uma leitura trágica da sociedade, representando a realidade de maneira deformada. • O Dadaísmo propôs a abolição da lógica e das relações com o real, defendendo a espontaneidade. E o Surrealismo, estimulado pela pscicanálise, destacou os estudos do inconsciente, incorporando elementos do sonho, da loucura e dos impulsos intelectuais. RESUMO DO TÓPICO 1 26 1 (ENADE 2008) O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), talvez o pensador moderno mais incômodo e provocativo, influenciou várias gerações e movimentos artísticos. O Expressionismo, que teve forte influência desse filósofo, contribuiu para o pensamento contrário ao racionalismo moderno e ao trabalho mecânico, através do embate entre a razão e a fantasia. As obras desse movimento deixam de priorizar o padrão de beleza tradicional para enfocar a instabilidade da vida, marcada por angústia, dor, inadequação do artista diante da realidade. Das obras a seguir, a que reflete esse enfoque artístico é FONTE: <http://download.inep.gov.br/download/Enade2008_RNP/LETRAS.pdf>. Acesso em: 24 set. 2019. AUTOATIVIDADE a) b) c) Homem idoso na poltrona Rembrandt van Rijn – Louvre, Paris. Disponível em: http://www.allposters.com Figura e borboleta Milton Dacosta Disponível em: http://www.unesp.br O grito – Edvard Munch Museu Munch, Oslo Disponível em: http://members.cox.net Menino mordido por um lagarto Michelangelo Merisi (Caravaggio) National Gallery, Londres Disponível em: http://vr.theatre.ntu.edu.tw Abaporu – Tarsila do Amaral Disponível em: http:// tarsiladoamaral.com.br d) e) 27 2 No que se refere ao papel que cada movimento vanguardista desempenhou no âmbito das artes, associe os itens, utilizando o código a seguir: I- Cubismo. II- Futurismo. III- Expressionismo. IV- Dadaísmo. V- Surrealismo. ( ) Estética que valoriza a fantasia, o sonho, o interesse pelo inconsciente, baseada na psicanálise de Freud. ( ) Caracteriza-se por ressaltar o lado obscuro da humanidade, marcado pela angústia e pelo medo. ( ) Os artistas desse movimento buscavam representar os objetos em espaços descontínuos e múltiplos, decompondo-os em diferentes perspectivas geométricas. ( ) Vanguarda que exalta a guerra, a tecnologia, a velocidade, as formas do mundo moderno. ( ) Manifestação artística que anunciou a abolição da lógica, do olhar racional, destacando-se com a técnica de ready-made. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) V – III – I – II – IV. b) II – III – IV – II – V. c) III – IV – V – I – II. d) V – II – III – IV – I. e) IV – V – II – III – I. 3 Leia um fragmento do catálogo da exposição Picasso y Rivera: conversaciones a través del tiempo, organizada pelo Museo del Palacio de Bellas Artes e Los Angeles County Museum of Art, em 2017, na cidade do México. A mostra artística apresentou diálogos através de obras icônicas dos artistas Pablo Picasso (Espanha, 1881-1973) e Diego Rivera (México, 1886-1957) criadas durante a primeira metade do século XX. Como historiadora del arte Elizabeth Prettejohn ha señalado "no podemos concebir un arte modern sin considerar a su antiguo alter ego, imposible contemplar un arte antigo sin que esté contaminadao por nuestra propia perspectiva moderna". * Pablo Picasso (1881-1973) e Diego Rivera (1886-1957) se formaram originalmente al interior de una tradición académica erigida sobre valores estéticos extraídos de las fuentes del arte clásico griego y romano, lo mismo que sobre valores ideológicos que presumen la superoridade cultural europea en tanto que herdara de la tradición greco-romana. Picasso se enfrentó a estas ideologías en Europa, donde fueram creadas, mientras que Rivera, como un “marginal cosmopolita”, hizo frente a la “naturaleza vertical de la relacion” de América Latina com los centros culturales deEuropa y a su posicionamento periférico dentro da comunidade internacional. ** Tanto 28 Picasso como Rivera encontraram nuevas e creativas formas con las cuales desafiar a estos valores y proponer un canon alternativo en que las tradiciones estéticas occidentales y no occidentales pudieran coexistir. * Elizabeth Prettejohn. The Modernity of Anciente Sculpture: Greek Sculptureand Moderb Art from Winckelmann to Picasso (Londres y Neuva York: I. B. Tauris, 2012), 1-2. ** Natalia Majluf, “Ce n'esta pas le Péru, or the Failure of Authenticity: Marginal Cosmopolitans at the Paris Universal Exihibition of 1855”, Critical Inquiry 23, ném. 4 (Verano 1997), 869. FONTE: INSTITUTO NACIONAL DE BELLAS ARTES. Picasso y Rivera: conversaciones a través del tiempo. Ciudad de México, 2017, p. 4. Tomando como referência o fragmento citado acima, avalie as afirmações a seguir. I- Rivera e Picasso se sentiam insatisfeitos como o modo convencional de expressão artística. II- Picasso e Rivera, sendo artistas modernos, distanciaram-se totalmente da herança ancestral do grego clássico e da arte romana. III- Tanto Picasso quanto Rivera criaram formas artísticas criativas, nas quais coexistem tradições estéticas ocidentais e não ocidentais. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) Somente a sentença I está correta. b) Somente a sentença II está correta. c) As sentenças I e II estão corretas. d) As sentenças I e III estão corretas. e) As sentenças I, II e III estão corretas. 29 TÓPICO 2 POESIA MODERNISTA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Na primeira metade do século XX, a lírica modernista explorou vários temas, revestindo-se de múltiplas feições, adontando uma característica que talvez seja comum entre os artistas vanguardistas: o desejo de ruptura com a tradição cultural, com os automatismos linguísticos, a criação de uma nova estética que problematizasse as complexas circunstâncias políticas e sociais, as angústias existenciais, a fragmentação da vida. Os intelectuais passaram a questionar, por exemplo, a validade da cultura, os motivos pelos quais a sociedade alimenta tanto ódio, injustiça, opressão e crueldade, salienta D'Onofrio (2007). Dentre os poetas mais importantes desse período, destacamos o francês Apollinaire, citado anteriormente no movimento cubista. Na lírica em língua inglesa, Thomas Sterns Eliot (1888-1965) figura com sua poética controvertida, saudosista dos tempos clássicos e ao mesmo tempo inovadora. O poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972), de ideologia conservadora cultuada pelos fascistas, influenciou muitos poetas que o sucederam. Além de ter produzido uma vasta obra poética, elaborou ensaios de crítica literária, enfatizando de modo categórico que "Grande literatura é simplesmente uma linguagem carregada de significados até o máximo grau possível" (POUND, 2006, p. 40), além de suas convições a respeito da linguagem como principal meio de comunicação humana. "Se o sistema nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia. Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai" (POUND, 2006, p. 36). Na segunda década do século XX, na literatura italiana, sobressai o poeta Giuseppe Ungaretti, cuja obra traz a experiência com a tragédia, o cenário bélico da Segunda Guerra Mundial, como podemos ver expresso nos versos a seguir. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 30 Não gritem mais Parem de matar os mortos, Não gritem mais, não gritem Se ouvir ainda os quiserem, Se imperecer ainda esperam. Eles, sussurro imperceptível, Não fazem mais ruído Que o mato quando cresce, Alegre, onde homem não passa FONTE: Ungaretti (2003, p. 178-9) A poética de Ungaretti também assume um lado extremamente conciso, apresentando o mínimo de palavras ordenadas em torno de uma palavra-chave para tantar captar sua essencialidade. Vejamos: manhã me ilumino de imensidão FONTE: D' Onofrio (2007, p. 456) Na poesia modernista espanhola, várias tendências estéticas surgiram com Rubén Darío, Antônio Machado, Jamón Jiménez, Frederico García Lorca, Pablo Neruda, enriquecerando a produção intelectual do ocidente no século XX. Poetas que receberão maior destaque nas disciplinas específicas de literatura espanhola. Na poesia modernista brasileira, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, entre outros escritores, promoveram uma revolução cultural na literatura, assim como aconteceu na música de Heitor Villa-Lobos e nas artes plásticas de Anita Mafalti, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Lasar Segal, evidenciadas a partir da manifestação artístico-cultural da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. A produção literária de Carlos Drummond de Andrade assume igualmente um espaço fundamental na lírica modernista produzida no Brasil. Diante de tantas manifestações literárias e da necessidade de um recorte, neste tópico optamos por esboçar, de modo especial, a expressão poética do português Fernando Pessoa, considerado um dos maiores gênios da poesia modernista do século XX. Em seguida, propomos um diálogo entre Drummond e García Lorca. TÓPICO 2 | POESIA MODERNISTA 31 2 AS FACETAS DE FERNANDO PESSOA O legado de Fernando Pessoa (1888-1936) marcou gerações e continua sendo um fenômeno artístico na literatura ocidental. Suas produções se destacam pela beleza dos versos, pela manifestação aguda sobre a vida e a arte literária, mas especialmente por apresentar o mundo ficcional e irreverente dos heterônimos, autores imaginados que possuem personalidades, biografia, traços físicos, profissão e estilos literários próprios. Dos mais de setenta heterônimos inventados por Fernando Pessoa e inventariados por seus estudiosos, destacam- se Bernado Soares, autor do Livro Desassossego e os poetas Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Os autores fictícios criados por Fernando Pessoa diferenciam-se de si próprio, dos poemas assinados com seu nome verdadeiro. As múltiplas faces de seu projeto audacioso são constituídas, portanto, pela poesia ortônima (textos assinados por Fernando Pessoa) e a poesia heterônima (textos que o poeta atribuiu a seus escritores imaginados). Neste caso, não podemos confundir 'heterônimo' (outro nome) com 'pseudônimo', que significa ‘nome falso’ de uma mesma pessoa. Na poesia ortônima, Fernando Pessoa apresenta alguns traços nacionalistas e saudosistas, como os expressos na obra Mensagem, publicada em 1934. Ademais, sua poética difunde temas sobre o questionamento interior do sujeito, suas aflições e aspirações, como também evidencia o fazer literário, o processo de criação artística, que originaram poemas consagrados pelo público leitor, como os famosos versos de Autopsicografia. Autopsicografia O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. FONTE: Pessoa (1996, p. 46) O poema Autopsicografia evoca o tema da criação literária, da relação entre UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 32 o leitor e o texto literário, o jogo poético, a expeiência "fingida", imaginada, na qual confluem razão, emoção e imaginação. Na poesia heterônima de Fernando Pessoa coexistem várias vozes, diferentes modos perceber o mundo e sentir a poesia. Seu estilo multifacetado, repleto de reflexões filosóficas e estéticas, foi exposto pelo autor na carta escrita ao poeta e crítico Casais Monteiro, em 13 de janeiro de 1935. Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente. Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenosde abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia […] (PESSOA, 1995, p. 154). Sobre a criação heteronímica, Fernando Pessoa segue explicando a concepção de suas várias entidades poéticas. Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pira e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade (PESSOA, 1995, p. 158). Dos heterônimos citados pelo poeta, Alberto Caeiro, um camponês pouco instruído, de estatura media e olhos azuis, é considerado o seu mestre, assim como o de Ricado Reis e Álvaro de Campos. A poesia de Caeiro defende a simplicidade da vida e as experiências captadas pelos sentidos. Leia o fragmento do poema O guardador de rebanhos e perceba como o eu lírco procura substituir o racionalismo pelas sensações extraídas do contato direto com a natureza. IX TÓPICO 2 | POESIA MODERNISTA 33 Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. FONTE: Pessoa (1995, p. 108) O heterônimo de Ricardo Reis, um médico educado no colégio de jesuístas, que se expatriou para viver no Brasil, representa a face clássica da obra de Fernando Pessoa, defensor da simplicidade, apreciador da vida campestre, mas fatalista, angustiado com a civilização cristã em estado de decadência. As visões de mundo de Ricardo Reis são extraídas de suas abstrações filosóficas, de seu intelectualismo, do contato com a cultura greco-latina. Veja, por exemplo, como estes versos de Ricardo Reis problematizam a questão da identidade, da heteronímia, das reflexões de Nietzsche sobre as multiplicidades do ser, do caráter plural do sujeito. Vivem em nós inúmeros; Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos. Faço-os calar: eu falo. Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu escrevo. FONTE: Pessoa (1996, p. 118) UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 34 Álvaro de Campos, por sua vez, é o heterônimo mais ligado às tendências modernistas, especialmente ao Futurismo. Engenheiro naval formado na Escócia, alto, magro, entre branco e moreno, conforme biografia criada por Fernando Pessoa, é conhecido por expressar um angústia intensa com as conquistas da modernidade, com mundo envolto por máquinas, velocidade e multidões. Nos trechos do poema Tabacaria, podemos observar as considerações do eu lírico sobre si mesmo, como ele se sente diante da realidade. Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. […] Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. […] O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; FONTE: Pessoa (1996, p. 63-71) TÓPICO 2 | POESIA MODERNISTA 35 DICAS Leia integralmente o poema Tabacaria, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/163. Acesso em: 24 set. 2019. Em seguida, acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=a1IBpsuCI14 e aprecie a declamação realizada por Antônio Abujamra. Para ler integralmente a carta de Fernando Pessoa sobre seus heterônimos, acesse o link: http://www.fpessoa.com.ar/carta.asp. Para complementar seus estudos, assista ao documentário deste grande poeta da literatura universal. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4RJZsO5cDGc. Ademais, indicamos o romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, publicado em 1984, que apresenta um enredo inusitado criado a patir dos heterônimos de Fernando Pessoa. Ainda, como sugestão de atividade didática, que tal solicitar aos alunos um exercício de escrita poética? Sugira a elaboração de poemas a partir da criação de heterônimos, destacando características que definem seus perfis, visões de mundo e crenças. Os textos produzidos poderão ser traduzidos para a língua espanhola ou produzidos diretamente na língua estrangeira. Procure trabalhar as questões estilísticas dos poemas, as figuras de linguagem, rimas, os temas abordados pelos alunos, o vocabulário empregado, a introdução de recursos tecnológicos, como a produção de vídeos e áudios, entre outras. 3 DIÁLOGOS ENTRE DRUMMOND E GARCÍA LORCA O escritor modernista Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é considerado um dos maiores gênios das letras brasileiras, comparável a Machado de Assis. Drummond ganhou notoriedade por sua vasta e significativa produção poética, ao manifestar novos valores estéticos e anunciar temas que abordam a função social do poeta, o desencontro entre o ser humano e mundo, a coisificação da vida humana, o dinamismo da máquina, a complexidade do sentimento amoroso, as imagens saudosistas da família e da terra natal. Da primeira coletânea de poemas, Alguma poesia (1923-1930), selecionamos o Poema de sete faces com suas indagações sobre o mundo. Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. UNIDADE 1 | LITERATURA DO SÉCULO XX 36 O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples
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