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Curr ícu lo Est ru turadoCurr ícu lo Est ru turado Maria de Fátima Minetto Caldeira Silva Marcos Cordiolli Maria Letizia Marchese Irene Carmen Piconi Prestes Vilmara Sabim Dechandt Vilmarise Sabim Pessoa42 84 4 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-5115-1 9 7 8 8 5 3 8 7 5 1 1 5 1 Maria de Fátima Minetto Caldeira Silva Irene Carmen Piconi Prestes Marcos Cordiolli Maria Letizia Marchese Vilmara Sabim Dechandt Vilmarise Sabim Pessoa Currículo Estruturado IESDE BRASIL S/A Curitiba 2015 © 2015 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S/A Imagem da capa: Shutterstock IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________________________ C986 Currículo estruturado / Maria de Fátima Minetto Caldeira Silva ... [et. al.] - 1. ed. - Curi- tiba, PR : IESDE Brasil S/A, 2015. 64 p. : il. ; 28 cm. ISBN 978-85-387-5115-1 1. Educação - Currículos - Brasil. I. Mendonça, Ida Regina Moro Milleo de. II. Prestes, Irene Carmen Piconi. III. Cordiolli, Marcos. IV. Marchese, Maria Letizia. V. Dechandt, Vilmara Sabim. VI. Pessoa, Vilmarina Sabim. 15-25776 CDD: 370.71 CDU: 37.02 ________________________________________________________________________________ 20/08/2015 21/08/2015 Sumário Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarização e educação .........5 Humanização, cultura e desenvolvimento – a humanidade como seres com necessidades ....................5 A educação e a formação .........................................................................................................................7 A escolarização ........................................................................................................................................8 As heranças da cultura pedagógica brasileira .........................................................................................8 Conceito de currículo e considerações gerais ......................................................................11 O que é currículo? ....................................................................................................................................11 Os conteúdos do ensino – o que são? ...................................................................................19 A aprendizagem de saberes e a arte .........................................................................................................19 A ressignificação e a formação de valores e padrões de conduta ...........................................................21 A experienciação de sentimentos ............................................................................................................23 Conteúdos e a organização do trabalho pedagógico ................................................................................23 A função dos conteúdos do ensino no currículo ..................................................................27 A diversidade e o currículo – da exclusão à inclusão ..........................................................33 Há um sujeito entre as pessoas, há um sujeito na sala de aula ................................................................33 Algumas sugestões para a diversidade e currículo na educação inclusiva ..............................................35 A interdisciplinaridade das áreas do conhecimento .............................................................39 As disciplinas escolares e a organização dos saberes ..............................................................................39 A tradição disciplinar ...............................................................................................................................39 Áreas de referência das ciências e disciplinas escolares .........................................................................40 As relações de disciplinaridade ...............................................................................................................41 Algumas notas finais ...............................................................................................................................46 A interação professor-aluno no processo de ensino-aprendizagem .....................................49 Interação entre alunos no processo de ensino-aprendizagem ..............................................53 Sala de aula: espaço de convivência ........................................................................................................53 Referências ...........................................................................................................................59 5 Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarização e educação Marcos Cordiolli Humanização, cultura e desenvolvimento – a humanidade como seres com necessidades O s seres humanos por não serem autossuficientes, estabelecem relações entre si e com a natu-reza para satisfazerem as suas necessidades.[...] para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e alguma coisa mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material; e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos. (MARX & ENGELS, 1989, p. 39) As ações materiais e culturais para satisfação das necessidades dos seres humanos provo- cam o surgimento de novas necessidades, pois “[...] satisfeita esta primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades” (MARX & ENGELS, 1989, p. 40). Os seres humanos possuem a distinta faculdade de criar, recriar e desenvolver necessidades, en- quanto que, para os demais animais, as necessidades estão determinadas, de maneira geral, por fatores genéticos e biológicos. Mas, os seres humanos podem constituir diferentes necessidades em função de determinações sociais, de classe, de cultura, de tempo e de espaço, como o de uma bebida requintada, um automóvel, um aparelho eletrônico ou uma peça de vestuário. Teleologia e objetivação – as diferentes atividades humanas (físicas e mentais) possuem sentido/finalidade, intenção preconcebida, que se organiza com objetivo/alvo determinado, ou seja, com teleologia, com finalidades e intenções preconcebidas, e dessa maneira, são objetivações. As ações humanas expressam-se em modificações – a produção implica em modificação (de algo) e não apenas “a criação de algo do nada” – e quem trabalha também se modifica em contato com o que deseja, planeja, pensa e aprende com o outro. Tudo que é produzido/objetivado implica em teleologia e sempre modifica o ser humano. Subjetivação – os seres humanos, em suas atividades, são levados a dispor de seu cérebro, mentalizando as suas ações (planejando-as, organizando-as, avaliando-as) desenvolvendo a capacidade de compreender e explicar a realidade. Ao agir sobre a natureza os seres humanos desenvolveram (e desenvolvem) as suas capacidades mentais que permitem am- pliar a capacidade de intervenção sobre a natureza. Os seres humanos preconcebem a imagem mental de tudo que planejam executar, e toda atividade humana é um processo de mentalização e, portanto, de subjetivação. Assim, amplia-se a capacidade de pensamento e criação, que permite as diferentes manifestações da cultura e do real e as possibilidades de criar, recriar e desmontar o real e o simbólico. Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarizaçãoe educação 6 Linguagens e signos – as ações humanas e suas relações, mesmo as mais simples, contam com a experiência acumulada e são dotadas de signifi- cado. O mundo humano é carregado de significados e todas as objetiva- ções demandam um sistema simbólico específico – conjuntos de signos e linguagens articuladas que operam com repertórios finitos/limitados de recursos fonéticos e simbólicos, possibilitando infinitas combinações fônicas e semânticas. Tecnologia – as ações humanas, para satisfazer as suas necessidades, implicam na produção de tecnologia constituindo tanto os instrumentos como os saberes e técnicas. O trabalho humano, nesse sentido, é uma ob- jetivação privilegiada, pois quando essa é material, produz instrumentos e, quando simbólica, produz conhecimentos. Ação coletiva – os seres humanos, para satisfazer as suas necessidades, consti tuem novas mediações com a natureza e nas relações entre si, pois requerem a associação de indivíduos para uma ação coletiva, como o plantio, a pesca, a pecuária etc. A humanização do ser humano vai além da mediação de sua relação com a natureza por meio dos saberes, téc- nicas e instrumentos e expressa-se na ampliação da vida cultural pela ação coletiva, socialização e interação, gerando os padrões de família e parentesco e de comunidade, sociedade e civilização. Socialização dos saberes e experiências – a vida em sociedade cons- titui também processos formativos, pois os seres humanos elaboram a sua humanização espelhando-se uns nos outros, adotando, portanto, os parâmetros culturais daqueles com os quais mantêm relações. A vida em sociedade possibilita a socialização dos saberes e das experiências acu- muladas com aqueles que não sabem ou sabem de outra maneira (ou para os que não são experientes ou que possuem experiências distintas). A socialização da cultura humana ocorre por processo de interação em ambientes culturais – manifesta em ações educativas explícitas ou implí- citas – formando as novas gerações da espécie, em toda a sua dimensão – valores; padrões de conduta e regras morais; linguagens e códigos; padrões cognitivos; tecnologias e saberes; padrões estéticos; hábitos e crenças – constituindo identidades, ou seja, formas determinadas de ver e sentir o mundo. Cultura – as relações sociais criam e recriam ambientes culturais nos quais os seres humanos relacionam-se e, portanto, produzem e reprodu- zem novas relações sociais. É em sociedade que os seres humanos de- senvolvem as atividades e exercem a sua criatividade e suas capacidades de imaginar/fantasiar o mundo. Mesmo que não produzam bens mate- riais, as suas ideias, projetos, manifestações e relações, sendo formas culturais diversas, produzem cultura. Este ambiente de produção cultural é o espaço, que permite as condições potenciais para novas criações ou recriações, mas que impõe limites à práxis humana. Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarização e educação 7 Desenvolvimento humano – para Vygotsky (1989), as ações humanas, dotadas de teleologia, representam a supremacia da cultura no processo em que os elementos da inteligência prática vão se revestindo de sig- nos, isto é, de cultura. A “[…] atividade simbólica [constitui-se em] uma função organizadora específica que invade o processo do uso de instru- mentos e produz formas fundamentalmente novas de comportamento” (VYGOTSKY, 1989, p. 27). Isso implica a ligação da filogênese com a ontogênese humana, pois o controle da natureza estabelece-se dialetica- mente com o controle do comportamento, sendo que a intervenção do ser humano na natureza altera a sua própria natureza. Assim, o processo de internalização da real implica num processo interpessoal que se converte em processo intrapessoal ocorrendo numa longa série de eventos no pró- prio processo de desenvolvimento. Nesse sentido, o comportamento, na sua forma cultural, implica na “reconstrução da atividade psicológica tendo como base as operações com signo” (VYGOTSKY, 1989, p. 65). A educação e a formação A formação humana é caracterizada pelos processos de socialização e inte- ração que promovem a constituição da identidade dos seres humanos, a forma de ver e sentir o mundo, em sintonia com o seu ambiente cultural. Portanto, constitui os alicerces básicos para todas as atividades da vida humana, dotando os indiví- duos de características fundamentais que constituem o seu caráter, mentalidade e cultura. A formação relaciona-se aos processos de constituição, reelaboração e ressignificação de valores e padrões de conduta, que ocorre fundamentalmente pela e na interação entre os seres humanos em suas vidas cotidianas. A educação, por outro lado, é também característica cultural de nossa espé- cie, com pelo menos duas funções básicas: de inserção das novas gerações na cultura da comunidade a que pertencem; de socialização dos novos elementos culturais. A cultura humana expressa valores, padrões de conduta e regras morais, linguagens e códigos, padrões cognitivos, tecnologias e saberes, padrões esté- ticos, hábitos e crenças. As constituições dos elementos culturais ocorrem pela interação nos grupos de convívio e pelas influências de instituições de formação humana com as quais os seres humanos convivem por toda a vida, como a família, a igreja, a escola, os grupos de convívio, associações várias, as mídias etc. Os processos de ensino-aprendizagem constituem uma das dimensões da educação, incluindo-se entre os processos de socialização nos quais alguém que sabe mais se relaciona com outro que sabe menos ou sabe de forma diferente. Aquele – o que ensina – passa a ser o promotor do processo de aprendizagem ao orientar/organizar situações de reprodução, reflexão, transmissão ou produção de saberes. Os processos de ensino-aprendizagem, portanto, não ocorrem apenas em Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarização e educação 8 instituições escolares, mas em todos os espaços sociais, no quais os seres humanos interagem com a troca de saberes, tecnologias, habilidades, mitos etc. A escolarização A escolarização forma processo restrito entre as atividades culturais huma- nas, sendo que só recentemente, há menos de um século, passou a ser frequentada por parcelas significativas da população. A instituição escolar é também um espaço de relação cultural entre diversas gerações, particularmente entre experientes e/ou com pouca experiência ou inex- perientes, possibilitando os processos nos quais os seres humanos educam e são educados, incorporando e transformando a cultura de suas comunidades. A escola é fundamentalmente um processo institucionalizado, portanto com objetivação, e sistêmico, com espaços, tempos, regras e processos definidos. Como instituição social, caracteriza-se por efetivar processos organizados e dirigidos para o ensino-aprendizagem. A instituição escolar possui uma cultura própria que não se desvincula da sociedade na qual está inserida, mas que possui autonomia para promover mudanças dentro das possibi lidades e limites que dispõe. A escola, em suas particularidades, parece viver sempre na tensão que opõe: as possibilidades e desejos de se renovar e refazer, e o peso da tradição que também é sempre presente com intensa força em seu interior. As heranças da cultura pedagógica brasileira A cultura escolar brasileira é muito ampla e diversificada, tem importantes experiências e ampla variedade de modelos de práticas didáticas, mas padece de heranças pedagógicas tradicionais, que produziram o modelo de educação massi- ficador e rotinizado. Este modelo que serviu para atender grande número de alunos e alunas utilizando-se dos mesmos instrumentos pedagógicos, ajudou a conceber as bases culturais conservadoras para a educação fundadamentada em: concepções conservadoras de educação, oriunda dos sistemas europeus feudais e renascentistas, nos quais a educação escolar decorreria do do- mínio de saberes enciclopedistas combase de suposta erudição; concepções instrumentais de escolarização, pois seriam supostamente essas habilidades mais imediatas requeridas pela organização social do trabalho capitalista, sendo que, no momento atual de reestruturação pro- dutiva, incorpora algumas habilidades comportamentais, também de ca- ráter procedimental; concepções segmentadas de aprendizagem, acreditando que os proces- sos e situações de aprendizagem e formação seriam individualizados e especificados. Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarização e educação 9 As propostas curriculares brasileiras, como resultado dessas concepções conservadoras, são extremamente homogêneas e tradicionais, com poucas ou raras variações, caracterizadas pela seriação, diretivismo, meritocracia, individualismo e massificação. Resistem a mudanças, encontrando apoio para a sua sobrevida em pensadores educacionais importantes, em grande parte dos professores e também nos pais dos estudantes, refletindo que a cultura pedagógica conservadora ainda está profundamente enraizada na população brasileira. As experiências significativas fora do modelo hegemônico, embora restritas, ocorreram na educação popular (a partir da década de 1950), nas pequenas escolas autodenominadas “alternativas” (a partir da década de 1980) e em redes públicas de educação (a partir dos anos 1990). A cultura escolar brasileira ainda continua influenciada pelo modelo da “es- cola-funil”, forjado a partir da década de 1950, quando efetivamente as instituições escolares se abriram de forma gradativa para receber parcelas cada vez maiores das classes populares. No entanto, dados oficiais, do início da década de 80, apon- tavam que apenas um aluno a cada 100 que ingressam na escola, conseguia atingir 11 anos de escolarização e concluir o antigo 2.º Grau. Os alunos eram gradativamente excluídos da escola ao longo dos 11 anos dos antigos 1.º e 2.º Graus, pelo modelo de escolarização, que priorizou o tipo de aulas e práticas pedagógicas padronizadas, em que o professor ministrava a mesma aula para diversas turmas (e todas elas com grande número de alunos). Os processos pedagógicos eram todos diretivistas, cabendo à escola definir o que e como ensi- nar e estabelecendo também os padrões de avaliação: o aluno que progredia era aquele que melhor se adaptasse aos processos escolares e não necessariamente aquele que aprendesse mais ou que fosse mais crítico. Dessa maneira, cabia ao aluno adaptar-se ao modelo escolar. O resultado deste modelo ainda presente expõe a situação de várias gerações de alunos que concluíram a Educação Básica com sérias dificuldades de leitura, argumentação e produção de texto; de organização do pensamento; e de capaci- dade de compreender a realidade na qual está inserido. Os motivos deste proble- ma seguramente podem incluir, entre outros, o fato de que as instituições esco- lares priorizaram sempre as atividades individualistas, que representavam mais um “mérito” do aluno, do que o compromisso coletivo com a aprendizagem. Aos alunos transferiu-se a responsabilidade de obter êxito na aprendizagem e de adap- tação ao modelo escolar, enquanto as instituições escolares estavam se desrespon- sabilizando com seus objetivos e pelos seus frequentadores. O desafio da geração atual de educadores é o de desmontar a “escola-funil”, que é excludente com seus padrões de normalidade. Possuem, também o desafio de construir uma nova escola, para que os alunos não mais precisem se preparar para ela, mas que ela se prepare para os alunos. Os fundamentos do currículo – desenvolvimento, cultura, escolarização e educação 10 1. Após a leitura do texto, escolha pontos que você considerou importantes em cada subitem. a) Humanização, cultura e desenvolvimento. b) A educação e a formação. c) A escolarização. d) As heranças da cultura pedagógica brasileira. 2. Compare essa parte retirada do texto com os fundamentos do currículo da sua escola. Os processos de ensino-aprendizagem constituem uma das dimensões da educação, incluindo-se entre os proces- sos de socialização, nos quais alguém que sabe mais se relaciona com outro que sabe menos ou sabe de forma diferente. Aquele – o que ensina – passa a ser o promotor do processo de aprendizagem ao orientar/organizar situação de reprodução, reflexão, transmissão ou produção de saberes. Os processos de ensino-aprendizagem, por- tanto, não ocorrem apenas em instituições escolares, mas em todos os espaços sociais, no quais os seres humanos interagem com a troca de saberes, tecnologias, habilidades, mitos etc. 11 Conceito de currículo e considerações gerais Irene Carmen Piconi Prestes Maria de Fátima Minetto Caldeira Silva Caminhante, tuas pegadas são o caminho, nada mais. Caminhante, não há caminho, faz-se o caminho ao andar. Antonio Machado E screver este início não nos parece fácil, pois ao escrevê-lo temos que construir um caminho que amplie nosso horizonte de compreensão sobre o tema. O que queremos neste texto é apresentar al-guns pontos referentes ao currículo, às adaptações curriculares e suas possíveis articulações com o aluno com necessidades educativas especiais, os quais, possam servir de estímulo para a reflexão ao final desta leitura. O que é currículo? Numa perspectiva histórica, podemos contar que é por volta de 1920, nos Estados Unidos, que aparecem os primeiros estudos sobre o currículo (BOBBIT,1918). Nesse período, também acontece o processo de industrialização e os movimentos migratórios, que intensificam a busca pela escola. As- sim, o currículo, como tal, compreende historicamente uma série de dimensões, que vão desde uma proposta de organização do conhecimento, organização das disciplinas, que modela o contexto em ob- jetivos, até procedimentos, métodos e resultados mensuráveis, ou seja, concentram-se mais na técnica de “como as coisas devem ser”. “Como sabemos as chamadas teorias do currículo estão recheadas de afirmações que dizem o que fazer para que a realidade se torne o que elas dizem que é ou deveria ser” (SILVA,1999, p. 13). Numa dimensão mais atualizada do currículo, temos que constitui um campo de conhecimento, um excelente contexto para a descoberta de ideias e de conhecimento às pessoas. Concluindo, temos que o modo como o currículo é definido depende necessariamente do modo como é concebido pelos seus autores. Para ilustrar, Silva (1993, p. 15) nos aponta uma importante questão do currículo relativa à sua implicação subjetiva na constituição da identidade de cada ser humano. [...] etimologia da palavra currículo, que vem do latim curriculum, pista de corrida, podemos dizer que no curso dessa corrida que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões [...] quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está vitalmente [...] envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é uma questão de identidade. Conceito de currículo e considerações gerais 12 No quadro a seguir, Silva (1999, p. 17) revela as diferentes concepções teóri- cas a respeito das teorias do currículo. Tradicional Crítica Pós-crítica ensino ideologia identidade, alteridade, diferença aprendizagem reprodução cultural e social subjetividade avaliação poder significação e discurso metodologia classe social significação e discurso didática capitalismo saber-popular planejamento relações sociais de produção cultura eficiência conscientização gênero, raça, etnia, sexualidade objetivos currículo oculto multiculturalismo No nosso texto, entendemos que o currículo tem como foco o aluno, o qual encontra-se em determinado momento de sua vida, a infância, a adolescência, a vida adulta etc., em geral no percurso de um momento educativo na direção de outro conhecimento. Sob esse ponto de vista, o currículo carateriza-se por umaestratégia de abor- dagem do objeto, que é o aluno. Para nós, estratégia significa um modo de obser- var, de pensar e de agir do educador sobre o aluno. O termo estratégia, segundo o Dicionário Aurélio (1986), significa “arte mi- litar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, visando a alcançar posições e potenciais favoráveis a futuras ações sobre determinados objetivos”. Nesse sentido, toda estratégia tem um caráter intencional consciente, ou seja, quem a emprega deve saber porque e para que a utiliza. Com base no que foi exposto, podemos dizer que o caminho de uma estra- tégia corresponde a critérios conscientes e inconscientes, que decorrem do lugar subjetivo do educador, diante do processo de ensinar e de aprender. Esse lugar se constrói tanto a partir das teorias que suportam a formação profissional do educador como sobre a sua experiência, sistema de valores, ideologia e estilo pessoal. Acrescentamos que qualquer estudo que se proponha a uma análise da estru- tura curricular deverá levar em conta também a estrutura da escola dentro do con- texto mais amplo que a condiciona. Muitas propostas de reestruturação de currícu- lo respondem a interesses imediatistas do mercado de trabalho e deixam de lado o desenvolvimento de um projeto educativo voltado para a competência pedagógica, científica, ética e política alicerçada a partir de uma perspectiva do conhecimento. No ensino atual, sofremos da excessiva compartimentalização do saber. A organização curricular das disciplinas coloca-as como realidades estanques, sem interconexão alguma, dificultando a compreensão do conhecimento como um todo integrado, a construção de uma visão abrangente que lhe permita uma percepção totalizante da realidade. Uma das tentativas de superação dessa fragmentação tem sido a proposta de se pensar uma educação interdisciplinar (JAPIASSU, 1976; FAZENDA, 1991), isto é, uma forma de se organizar os currículos escolares de modo a possibilitar uma integração entre as disciplinas, permitindo a construção Conceito de currículo e considerações gerais 13 daquela compreensão mais abrangente do saber historicamente produzido pela hu- manidade. A partir do que foi apresentado, podemos dizer que a visão que se tem do aluno também é fragmentada, pois não permite vê-lo integralmente em seus aspectos: físico, psíquico, social e cognitivo. O aluno ao qual se dirige o professor é tão somente o aluno cognitivo. Uma possibilidade de superação dessa fragmentação nos é apontada com a proposta da Educação Inclusiva na Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96, a qual re- flete o contexto escolar como lugar de inscrição e de reconhecimento do sujeito no campo educacional. Abre-se uma nova ordem para uma postura reflexiva sobre a tarefa educativa. Vemos também a possibilidade de pensar os lugares do professor e do aluno no processo do conhecimento, de refletir sobre a singularidade, a dife- rença, o estilo de cada um no processo de ensinar e de aprender. Vamos, neste momento, refletir sobre a constituição subjetiva do sujeito, ou melhor, a construção da identidade pessoal de cada ser humano. Tomamos o re- ferencial da Psicanálise para estabelecer os pilares de sustentação na construção psíquica do sujeito. Refletir sobre as premissas do currículo nos parece essencial para um exercício profissional comprometido e responsável, já que muitas são as teorias do currículo. Dessa maneira, vamos discutir um texto que, com certeza, vai “incomodar” e expandir nosso horizonte de compreensão. Currículo: uma questão de saber, poder e identidade (SILVA, 1999, p. 147-150) A aparente disjunção entre uma teoria crítica e uma teoria pós-crítica do currículo tem sido descrita como uma disjunção entre uma análise fundamentada numa economia política do poder e uma teorização que se baseia em formas textuais e discursivas de análise. Ou ainda, entre uma análise materialista, no sentido marxista, e uma análise textualista. A cisão pode ser descrita, ainda, como uma cisão entre a hipótese da determinação econômica e a hipótese da construção discursiva; ou entre, de um lado, marxismo e, de outro, pós-estruturalismo e pós-modernismo. A tensão entre os conceitos de ideologia e de discurso, mesmo que eles se combinem em algumas análises, é uma demonstração dessa fratura no campo da teoria social crítica. É preciso reconhecer que a chamada “virada linguística” pode nos ter levado a negligenciar certos mecanismos de dominação e poder que tinham sido detalhadamente analisados pela teoria crítica. Embora seja evidente que somos cada vez mais governados por mecanismos sutis de poder [...], é também evidente que continuamos sendo também governados, de forma talvez menos sutil, por relações e estruturas de poder baseadas na propriedade de recursos econômicos e culturais. O poder econômico das grandes corporações industriais, comerciais e financeiras não pode ser Conceito de currículo e considerações gerais 14 facilmente equacionado com as formas capilares de poder [...]. De forma similar, o poder político e militar de nações imperiais como os Estados Unidos não pode ser facilmente descrito pela “mi- crotísica” foucaultiana do poder. É também verdade que a teorização pós-crítica tornou problemáticas certas premissas e análi- ses da teoria crítica que a precederam. Assim, parece incontestável, por exemplo, o questionamento lançado às pretensões totalizantes das grandes narrativas. Não há como refutar, tampouco, a crítica feita tanto pelo pós-modernismo quanto pelo pós-estruturalismo ao sujeito autônomo e centrado das narrativas modernas. No campo mais especificamente educacional, os questionamentos feitos aos impulsos emancipatórios de certas pedagogias críticas, à medida que estão fundamentados no pressuposto do retorno a algum núcleo subjetivo essencial e autêntico, dificilmente podem deixar de ser levados em consideração. As teorias pós-críticas também estenderam nossa compreensão dos processos de dominação. Como procurei demonstrar em alguns dos tópicos deste livro, a análise da dinâmica de poder envolvida nas relações de gênero, etnia, raça e sexualidade nos fornece um mapa muito mais com- pleto e complexo das relações sociais de dominação do que aquele que as teorias críticas, com sua ênfase quase exclusiva na classe social, nos tinham anteriormente fornecido. A concepção de iden- tidade cultural e social desenvolvida pelas teorias pós-críticas nos tem permitido estender nossa concepção de política para muito além de seu sentido tradicional – focalizado nas atividades ao redor do Estado. A conhecida consigna “o pessoal também é político”, difundido pelo movimento feminista, é apenas um exemplo dessa produtiva tendência. Não se pode tampouco negar que a crítica feita pelas teorias pós-críticas ao conceito de ideo- logia tem ajudado a desfazer alguns dos embaraços do legado das teorias críticas. Particularmente, a oposição entre ideologia e ciência, que, explícita ou implicitamente, fazia parte da conceitualiza- ção de ideologia desenvolvida por várias vertentes marxistas, e não pode, depois do pós-estrutu- ralismo, ser tão facilmente sustentada. Depois do pós-estruturalismo e particularmente depois de Foucault, a oposição entre ciência e ideologia, fundamentada como é na oposição verdadeiro-falso, simplesmente se desfaz. Nesse sentido, as teorias pós-críticas, ao contrário das acusações que lhes são feitas, ao deslocarem a questão da verdade para aquilo que é considerado verdade, tornam o campo social ainda mais politizado. A ciência e o conhecimento, longe de serem o outro do poder, são também campos de luta em torno da verdade. Parece, pois, inquestionável que, depois das teo- rias pós- críticas, a teoria educacional crítica não pode voltar a ser simplesmente “crítica”. O legado das teorias críticas, sobretudo aquele de suas vertentes marxistas, não pode, entre- tanto, ser facilmente negado. Não se pode dizer que os processos de dominação de classe, baseados na exploraçãoeconômica, tenham simplesmente desaparecido. Na verdade, eles continuam mais evidentes e dolorosos do que nunca. Se alguma coisa pode ser salientada no glorificado processo de globalização é precisamente a extensão dos níveis de exploração econômica da maioria dos pa- íses do mundo por um grupo reduzido de países nos quais se concentra a riqueza mundial. Nesse contexto, nenhuma análise textual pode substituir as poderosas ferramentas de análise da socie- dade de classes que nos foram legadas pela economia política marxista. As teorias pós-críticas podem ter ensinado que o poder está em toda parte e que é multiforme. As teorias críticas não nos deixam esquecer, entretanto, que algumas formas de poder são visivelmente mais perigosas e ameaçadoras do que outras. Ao questionar alguns dos pressupostos da teoria crítica de currículo, a teoria pós-crítica introduz um claro elemento de tensão no centro mesmo da teorização crítica. Sendo “pós”, ela não é, entretanto, simplesmente superação. Na teoria do currículo, assim como ocorre na teoria social Conceito de currículo e considerações gerais 15 mais geral, a teoria pós-crítica deve se combinar com a teoria crítica para nos ajudar a compreender os processos pelos quais, por meio de relações de poder e controle, nos tornamos aquilo que somos. Ambas nos ensinaram, de diferentes formas, que o currículo é uma questão de saber, identidade e poder. Depois das teorias (críticas e pós-críticas) do currículo, torna-se impossível pensar o currículo simplesmente por meio de conceitos técnicos, como os de ensino e eficiência ou de categorias psicológicas, como as de aprendizagem e desenvolvimento ou ainda de imagens estáticas, como as de grade curricular e lista de conteúdos. Num cenário pós-crítico, o currículo pode ser todas essas coisas, pois ele é também aquilo que dele se faz, mas nossa imaginação está agora livre para pensá- -lo por outras metáforas, para concebê-lo de outras formas, para vê-lo de perspectivas que não se restringem àquelas que nos foram legadas pelas estreitas categorias da tradição. Com as teorias críticas aprendemos que o currículo é, definitivamente, um espaço de poder. O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder. O currículo é capitalista. O currículo reproduz – culturalmente – as estruturas sociais. O currículo tem um papel decisivo na reprodução da estrutura de classes da sociedade capitalista. O currículo é um aparelho ideológico do Estado capitalista. O currículo transmite a ideologia domi- nante. O currículo é, em suma, um território político. As teorias críticas também nos ensinaram que é por intermédio da formação da consciência que o currículo contribui para reproduzir a estrutura da sociedade capitalista. O currículo atua ide- ologicamente para manter a crença de que a forma capitalista de organização da sociedade é boa e desejável. Pelas relações sociais do currículo, as diferentes classes sociais aprendem quais são seus respectivos papéis nas relações sociais mais amplas. Há uma conexão estreita entre o código dominante do currículo e a reprodução de formas de consciência de acordo com a classe social. A formação da consciência – dominante ou dominada – é determinada pela gramática social do currículo. Foi também com as teorias críticas que pela primeira vez aprendemos que o currículo é uma construção social. O currículo é uma invenção social como qualquer outra: o Estado, a nação, a religião, o futebol[...] Ele é o resultado de um processo histórico. Em determinado momento, por processos de disputa e conflito social, certas formas curriculares – e não outras – tornaram-se consolidadas como o currículo. É apenas uma contingência social e histórica que faz com que o currículo seja dividido em matérias ou disciplinas, que o currículo se distribua sequencialmente em intervalos de tempo determinados, que o currículo esteja organizado hierarquicamente[...]. É tam- bém por meio de um processo de invenção social que certos conhecimentos acabam fazendo parte do currículo e outros não. Com a noção de que o currículo é uma construção social, aprendemos que a pergunta importante não é “quais conhecimentos são válidos?”, mas sim “quais conhecimen- tos são considerados válidos?”. As teorias pós-críticas ampliam e, ao mesmo tempo, modificam aquilo que as teorias críticas nos ensinaram. As teorias pós-críticas continuam a enfatizar que o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder nas quais ele está envolvido. Nas teorias pós-críticas, entretanto, o poder torna-se descentrado. O poder não tem mais um único centro, como o Estado, por exemplo. O poder está espalhado por toda a rede social. As teorias pós-críticas desconfiam de qualquer postulação que tenha como pressuposto uma situação finalmente livre de poder. Para as teorias pós-críticas, o poder transforma-se, mas não desaparece. Nas teorias pós-críticas, o conhecimento não é exterior ao poder, o conhecimento não se opõe ao poder. O conhecimento não é aquilo que põe em xeque o poder: o conhecimento é parte inerente do poder. Em contraste com as teorias críticas, as teorias pós-críticas não limitam a análise do Conceito de currículo e considerações gerais 16 poder ao campo das relações econômicas do capitalismo. Com as teorias pós-críticas, o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade. Embora as teorias críticas sustentassem que o currículo é uma invenção social, elas ainda mantiveram uma certa noção realista do currículo. Se a ideologia cedesse lugar ao verdadeiro conhecimento, o currículo e a sociedade seriam finalmente emancipados e libertados. Se pudés- semos nos livrar das relações de poder inerentes ao capitalismo, o conhecimento corporificado no currículo já não seria um conhecimento distorcido e espúrio. Com sua ênfase pós-estruturalista na linguagem e nos processos de significação, as teorias pós-críticas já não precisam da referência de um conhecimento verdadeiro baseado num suposto “real” para submeter à crítica o conhecimento socialmente construído do currículo. Todo conhecimento depende da significação e esta, por sua vez, depende de relações de poder. Não há conhecimento fora desses processos. As teorias pós-críticas continuam enfatizando o papel formativo do currículo. Diferente-men- te das teorias críticas, entretanto, as teorias pós-críticas rejeitam a hipótese de uma consciência coerente, centrada, unitária. As teorias pós-críticas rejeitam, na verdade, a própria noção de cons- ciência, com suas conotações racionalistas e cartesianas. Elas desconfiam também da tendência das teorias críticas a postular a existência de um núcleo subjetivo pré-social que teria sido conta- minado pelas relações de poder do capitalismo e que seria libertado pelos procedimentos de uma pedagogia crítica. Para as teorias pós-críticas, a subjetividade é já e sempre social. Não existe, por isso, nenhum processo de libertação que torne possível a emergência – finalmente – de um eu livre e autônomo. As teorias pós-críticas olham com desconfiança para conceitos como alienação, emancipação, libertação, autonomia, que supõem, todos, uma essência subjetiva que foi alterada e precisa ser restaurada. Em suma, depois das teorias críticas e pós-críticas, não podemos mais olhar para o currículo com a mesma inocência de antes. Os currículos têm significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, docu- mento. O currículo é documento de identidade. 1. Destaque do texto cinco palavras ou frases que são significativas para você. Conceito de currículo e considerações gerais 17 2. Questõespara serem respondidas antes desta aula. Logo após, retome-as para um exercício crí- tico reflexivo sobre questões pertinentes ao âmbito do currículo. a) O que ensinar? b) Como ensinar? c) Por que determinado conhecimento pertence a um currículo e não a outro? d) Por que alguns conhecimentos são considerados válidos e não outros? Conceito de currículo e considerações gerais 18 19 Os conteúdos do ensino – o que são? Marcos Cordiolli A definição de conteúdos na tradição pedagógica brasileira está fortemente associada a relações de saberes escolares organizados por disciplinas. Examinando tanto as propostas curriculares como os diários de classe, diversos pesquisadores constataram que apenas os saberes escola- res, de diversos tipos, são relacionados como conteúdos. Os conteúdos curriculares transcendem os saberes e abarcam diversos outros elementos. Para Williams, os conteúdos são a “porção da cultura escolarizada”, sendo esta porção considerada rele- vante para a sociedade (WILLIAMS apud VEIGA-NETO, 1995), embora, Forquin, nos alerta que os currículos escolares envolvem apenas “[...] uma parte extremamente restrita de tudo o que constitui a experiência coletiva, a cultura viva de uma comunidade humana” (FORQUIN, 1993, p. 15). Um exame mais detalhado das práticas escolares permite-nos verificar que as instituições esco- lares atuam para além dos saberes. Vamos propor aqui examinar a situação dos conteúdos a partir dos seguintes pressupostos: a) considerar que as instituições escolares exercem a função social de mediação entre a formação familiar e as demandas sociais das novas gerações de seres humanos (ARENDT, 1992), nesta perspectiva, exercem tanto a tarefa de transferir parte da herança acumulada da humanidade quanto formar para o presente e futuro da vida em sociedade; b) os educandos e educandas convivem com os colegas e com os professores e professoras efetivando diversas relações e situações questionadoras de valores e condutas; c) a escola ocupa segmentos de tempos cada vez mais importantes na vida dos seres humanos, implicando, que o tempo escolar é também vida em seus múltiplos sentidos. Esses pressupostos permitem apresentar a seguinte hipótese para a composição dos conteúdos: a) há diversos conjuntos de saberes e da produção artística acumulados pela humanidade que a sociedade e as instituições escolares acreditam que devam ser acessados e apreendidos pelos alunos e alunas; b) os processos de interação nos espaços escolares são também formadores de valores e padrões de con- duta; c) a vivência coletiva dos educandos e educandas possibilitam a experienciação de sentimentos como a emoção, o desejo e o afeto. Portanto, os conteúdos efetivamente apresentados nas propostas curriculares, nos projetos pedagógicos e nos relatos dos diários de classe são bem mais restritos que aqueles efetivamente mobilizados nas diversas atividades escolares (CORDIOLLI, 2002a). A aprendizagem de saberes e a arte A nossa espécie, em dezenas de milhares de anos de vida em sociedade, por sua diversidade acumulou uma grande riqueza em bens culturais que, de alguma forma, podem e devem ser as novas gerações. As instituições escolares selecionam, da herança cultural humana, conjuntos de saberes e ele- mentos da produção artística que consideram significativos, e os organizam na forma de currículo. As- sim, os currículos escolares selecionam determinados conteúdos (organizando-os na forma de cursos) que as instituições escolares consideram importantes para vida e a formação dos educandos. (FOR- QUIN, 1993). Portanto, os processos de organização de propostas curriculares implicam estabelecer o que vai ser disponibilizado aos alunos, mas também o que lhes vai ser sonegado. Assim, os elementos Os conteúdos do ensino – o que são? 20 da produção artística e os conjuntos de saberes escolares definidos como matérias estudadas pelas propostas curriculares representam antes de tudo um exercício de poder, pois implícita ou explicitamente definem padrões de normalidade e in- clusão e são permeados por critérios com motivações de classe, de ideologia, de gênero, de nação e particularmente de geração (CORDIOLLI, 2004). As diferenças de geração merecem, especificamente, destaque, pois impli- cam reconhecer que é a geração de adultos quem seleciona e organiza o que de- vem ou não estudar as gerações no estágio de criança, pré-adolescente, adolescen- te, jovem e adulto em escolarização. Os saberes e a arte disponibilizados podem também ser alvos de dispu- tas entre segmentos da sociedade e mesmo das equipes escolares. Em 2000, por exemplo, quando foram propostas as atividades comemorativas dos 500 anos da chegada dos europeus ao Brasil, diversos movimentos sociais questionaram o sen- tido destes eventos, em particular, estabelecendo dois polos de disputa: um que os reivindicava como expressão de processos civilizatórios de nosso território e outro que os classificava como conquista e subjugação de indígenas e africanos. A disciplina de Ciências da Natureza também é permeada por várias polêmicas e dis- putas sociais em temas que tratam dos organismos transgênicos, dos agrotóxicos, das teorias sobre o surgimento da vida, do aborto etc. Embora sejam evidentes as tensões nas propostas curriculares, poucas são aquelas cujos temas são definidos ou compartilhados pelos educandos. As diversidades de temas presentes em dife- rentes propostas curriculares, representam arranjos dentre as combinações dispo- níveis, mas seguramente são definidas pelas instituições escolares (e os adultos em particular), assim como os padrões de normalidade e de inclusão e o que os alunos e alunas vão ou não estudar. A organização dos saberes e da arte nos currículos representa também me- canismos disciplinadores dos processos de estudar e aprender. Há vários elemen- tos, mas os mais evidentes são: a) a distribuição da carga horária entre disciplinas, pois que os conteúdos com maior espaço de tempo acabam sendo privilegiados; b) o peso da tradição de alguns conteúdos que são estudados por geração após gera- ção sem serem questionados; c) as sistemáticas de avaliação que impõem padrões cognitivos; d) os exames tituladores ou selecionadores para a Educação Superior, que implicam estudos de determinados conteúdos visando exclusivamente o suces- so nesses eventos. A proposta curricular “[...] impõe certas definições sobre o que deve ser ensinado” (POPKEWITZ, 1995, p. 192), implicando critérios de seleção e orde- nação dos saberes escolares, bem como a definição de formas pedagógicas para apresentá-los aos educandos e educandas. A forma de organização dos saberes selecionados como escolares, dentre uma vasta gama de possibilidades, constitui também implicações regulativas, pois define padrões de linguagem, de processos cognitivos, além de veicular valores e padrões de conduta. Os saberes escolares e arte, na tradição curricular brasileira, são organiza- dos em disciplinas escolares. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (DCN EF), determina que os saberes e artes, organizados em áreas do conhecimento, devem ocupar pelo menos três quartos da carga horária mí- Os conteúdos do ensino – o que são? 21 nima (de 200 dias com 800 horas letivas por ano)1. As áreas do conhecimento são convertidas em disciplinas escolares nos currículos das instituições escolares, sendo que duas ou mais áreas podem ser fundidas em uma disciplina (História e Geografia, por exemplo, podem compor uma disciplina denominada Ciências Sócio-Históricas). Enquanto que uma área do conhecimento pode ser dividida em duas ou mais disciplinas (Matemática, por exemplo, por ser dividida em Álgebra, Geometria e Estatística). O programa de cada disciplina é denominado blocos de conteúdos para determinados períodos, tais como séries, etapas ou ciclos. O acesso dos educandos aos saberes e à arte faz-se em diversos proces sos pedagógicos e didáticos que constituem situações de ensino-aprendizagem. Essassituações são organizadas por uma vasta tecnologia educacional que inclui a fi- xação de objetivos, a seleção de conteúdos, o planejamento de práticas didáticas e o estabelecimento de processos e critérios avaliativos. Esses processos, embora ocupem praticamente toda a atenção dos educadores e das propostas pedagógicas e curriculares, representam apenas um dos três eixos em que se fundam os conteú- dos e as práticas escolares (CORDIOLLI, 2002a). A ressignificação e a formação de valores e padrões de conduta As instituições escolares, mesmo nos modelos mais individualistas, consti- tuem espaços de interação entre os educandos e educandas e destes com os profes- sores e professoras. Por outro lado, as propostas pedagógicas organizam as expe- riências de convívio nos espaços escolares, bem como regulam o comportamento dos educandos e educandas (FORQUIN, 1993). Efetivamente, os espaços de es- colarização efetivam-se como instituições de formação humana, que disputam a orientação de valores e padrões de conduta dos educandos com outras instituições (CORDIOLLI, 2002), transcendendo o ensinar e o aprender de saberes e da arte. No entanto, esse campo da atividade escolar está ausente da grande maioria das propostas pedagógicas e curriculares oficiais da história brasileira e das institui- ções escolares atuais. As propostas pedagógicas e curriculares, em sua grande maioria, apresen- tam apenas declarações de intenção genérica e idealista, tais como preparar para cidadania, formar valores humanistas, constituir consciências democráticas, mas efetivamente estas proposições não se traduzem em programas de ação e situações pedagógicas. As atividades pedagógicas para a formação de valores e condutas são distintas daquelas que se ocupam de saberes e arte, posto que não se trata de processos de aprendizagem, mas efetivamente de mudança da cultura dos alunos (CORDIOLLI, 2001). A atividade escolar do tema “reciclagem do lixo”, geralmente tem por objetivo a aprendizagem da importância e das formas de uso menos predatório da natureza. Esta atividade pode também fazer com que os educandos e educandas passem a as- sumir posturas efetivas como a separação do lixo e a reutilização do papel em sala de aula. Essa mudança, por vezes sutil, representa uma alteração na natureza do processo 1 As Diretrizes Curricula-res Nacionais para o En- sino Fundamental (DCNEF) definem as seguintes áreas do conhecimento: (a) Língua Por- tuguesa; (b) Língua Materna, para populações indígenas e migrantes; (c) Matemática; (d) Ciências; (e) Geografia; (f) História; (g) Língua Es- trangeira (a partir do quinto ano); (h) Educação Artística; (i) Educação Física; e (j) Edu- cação Religiosa, na forma do artigo 33 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Os conteúdos do ensino – o que são? 22 pedagógico, pois efetivamente tem-se a ressignificação de valores e condutas. Uma ou- tra situação: alunos que estudaram a “discriminação” em uma ou mais de suas modali- dades podem realizar diversas atividades comprovando que aprenderam sobre o tema, mas isso não significa que deixaram ou reduziram as condutas e valores discriminató- rios em suas vidas cotidianas. Portanto, aprender diz respeito a processos cognitivos e à formação de valores e condutas referentes à formação do caráter. Na legislação de 1925 (conhecida como Reforma Rocha Vaz), o tema é trata- do pela primeira vez com a inclusão da disciplina de Instrução Moral e Cívica. Pos- teriormente, temas relativos à formação de valores foram assumidos, com ênfases e situações diferentes pelas disciplinas de Filosofia2, de Ensino Religioso e Educação Moral e Cívica. A mudança mais importante, nesta perspectiva, foi introduzida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (DCNEF) (BRASIL, 1996) ao reconhecer a necessidade da escolarização e a garantia da vida cidadã por meio da articulação entre vários dos seus aspectos como (DCNEF, art. 3, IV): a) a saúde, b) a sexualidade, c) a vida familiar e social, d) o meio ambiente, e) o trabalho, f) a ciência e a tecnologia, g) a cultura e h) as linguagens. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (PCNEF) (BRASIL, 1997) converteram essas proposições em temas transversais: (a) Ética, (b) Pluralidade Cultural, (c) Meio Am- biente, (d) Saúde, (e) Orientação Sexual, (f) Temas Locais (exclusivamente para os anos iniciais) e (g) Trabalho e Consumo (exclusivamente para os anos finais). As determinações das DCNEF e as sugestões dos PCNEF, sem prejuízo às críticas dos modelos e proposições dos mesmos, representam marco efetivo no sentido de tratar os valores e padrões de conduta, tanto no aspecto curricular como no pedagógico, pois expressam um programa de formação de valores e padrões de condutas, a inserir-se tanto nas propostas curriculares como nos projetos de orga- nização do trabalho pedagógico. As proposições das DCNEF e PCNEF não foram efetivamente absorvidas (pelo menos por enquanto) pela cultura pedagógica brasileira, pois a formação de valores e condutas continua a tratá-las como atividades de ensino (em disciplinas próprias ou como temas geradores das disciplinas escolares) ou, então, diluídas em atividades do trabalho em sala de aula, geralmente travestidas de atividades inter ou transdisciplinares, mas sem efetivamente cumprir a função de formar. As dificuldades na delimitação entre os processos de aprendizagem e de formação do caráter refletem a ausência de projetos e de práticas pedagógicas nas instituições escolares brasileiras com objetivo de propiciar situações permanentes e reincidentes para ressignificação de valores e padrões de condutas. Caberia organizar programas de valores e condutas (da mesma forma que temos os de saberes e arte), cujo exemplo mais significativo são os temas transver- sais apresentados pelos PCNEF. Nesta mesma perspectiva, caberia também orga- nizar metodologias adequadas para propiciar situações permanentes e reincidentes para ressignificação de valores e padrões de condutas, articuladas, porém distintas dos processos de ensino e aprendizagem. No Brasil, essas práticas pedagógicas passaram a ser denominadas de transversalidade em decorrência das proposições dos (PCNEF), passando a significar as ações para a formação de valores e padrões de conduta3. 2 A disciplina de Filosofia não se recuperou ple- namente desta tarefa. Em muitas instituições, esta dis- ciplina tem-se restringido ao convencimento moral por meio de discursos e ativida- des moralistas e idealistas. 3Um importante teórico brasileiro – Silvio Gallo – tem insistido quase que so- litariamente em denominar de transversalidade as ações pedagógicas de estudos que articulam temas que trans- cendem as disciplinas – prá- ticas estadas no campo da aprendizagem pelo critério classificatório definido neste presente artigo. Os conteúdos do ensino – o que são? 23 A experienciação de sentimentos O terceiro e último campo de conteúdos, que parece ainda mais excluído da cultura escolar brasileira, é o da experienciação de sentimento. Este campo orga- niza os processos ligados à afetividade, ao desejo e à emoção. Na Espanha, esse campo compõe também os temas transversais, mas no Brasil está excluído dos documentos oficiais (apenas os Referenciais Curriculares Nacionais para a Edu- cação Infantil, RCNEI, ocupam-se em alguns momentos do tema) e poucas são as instituições escolares que o incluem em suas propostas curriculares. A exceção, que se faz necessária de nota, são as práticas – algumas incluídas nas propostas curriculares – das disciplinas de Ensino da Arte e Educação Física. As instituições escolares são um espaço de interação humana, no qual os educandos experienciam diferentes sentimentos. As instituições escolares não as tomam com o objeto de ações pedagógicas, ignorando, desqualificando e, em al- guns casos, reprimindo-as. É fundamental que as instituições escolares assumam essa dimensão do processo pedagógico incluindo-aem suas propostas curriculares na organização do trabalho pedagógico, elaborando programas de ação. Faz-se importante constatar que as instituições escolares que incluem a di- mensão da experienciação de sentimentos em suas propostas pedagógicas, o fazem de maneiras diversificadas. As formas mais comuns estão associadas à psicomo- tricidade relacional, ao psicodrama e à outras possibilidades que se fundamentam na Psicologia e requerem qualificações específicas para os educadores e educado- ras, além de acompanhamentos periódicos de profissionais habilitados. Há, ain- da, aqueles que implementam vivências corporais das artes cênicas com os mes- mos objetivos. Também constatamos alguns, que se baseiam em práticas e teorias transcendentais, como a ioga e a meditação. As experiências são restritas a pequenas escolas, o número de estudos e pu- blicações sobre este tema é reduzido. Isso apenas reflete a fragilidade das práticas pedagógicas relativas à experienciação de sentimentos. No entanto, os educandos continuam experienciando os seus sentimentos nos espaços escolares em condi- ções precárias e, por vezes, até prejudiciais. Conteúdos e a organização do trabalho pedagógico Os conteúdos, seus respectivos processos pedagógicos e formas de organiza- ção podem ser expressos na tabela a seguir. Tabela 1 – Os conteúdos escolares e seus respectivos processos pedagógicos Conteúdos Processos pedagógicos Formas de organização Saberes e arte Ensino-aprendizagem Áreas do conhecimento; disciplinas escolares e blocos de conteúdos Os conteúdos do ensino – o que são? 24 Conteúdos Processos pedagógicos Formas de organização Valores padrões de conduta Formação do caráter (transversalidade) Programa de valores e condutas (temas transversais) Sentimentos (emoção, desejo, afeto) Experimentação Programa de situações de experienciação Muito se tem dito de processos pedagógicos em que alunos não aprendem (apesar dos esforços dos professores para ensiná-los), mas quase não observamos os valores e condutas que são estimulados – espontaneamente ou até inconscien- temente por professores e professoras, assim como as situações de experienciação de sentimentos por vezes negativas que ocorrem em sala de aula, mas que não são planejadas e organizadas e para as quais os docentes não estão qualificados. É im- portante que as instituições escolares reconheçam que conteúdos escolares são to- dos os processos que ocorrem com os alunos no espaço das instituições escolares. A organização dos espaços de aprendizagem, formação do caráter e expe rien- ciação de sentimento – portanto dos diversos tipos de conteúdos, ocorre, porém, de maneira integrada, por intermédio dos eixos de organização do trabalho pedagógico, escolhidos em função da proposta pedagógica da instituição e da cultura escolar. Entre os principais eixos podemos destacar: os projetos, os temas geradores; a con- textualização; problematização; a pesquisa do meio; os núcleos de complexidade; as aulas problematizadoras; as aulas expositivas e os mapas conceituais. Considerações finais Definir o que são conteúdos e o que o currículo implica em refletir sobre o que se transmite e o que se faz com os estudantes, professores e professoras. (MOREIRA & SILVA, 1999). Investigar esta problemática é importante para que compreendamos dimensões mais complexas da escolarização. Compreendo que currículo e conteúdos são imposições “[...] do conhecimento do eu e do mundo que propicia ordem e disciplina aos indivíduos. A imposição não é feita por meio da força bruta, mas por meio da inscrição de sistemas simbólicos de acordo com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir” (POPKEWITZ, 1995, p. 186). Portanto, organizar currículo e programas de conteúdos é tomar partido na formação das novas gerações da humanidade, é participar da disputa pelo futuro de nossa espécie. E que nós, adultos e professores, consigamos construir uma outra escola, na qual os alunos e alunas efetivamente escolham os seus caminhos, sejam sujeitos de suas vidas, e nos tomem como parceiros desta construção. Os conteúdos do ensino – o que são? 25 1. Retire do texto os pontos essenciais que definem os conteúdos. 2. Escreva um pequeno texto sobre os conteúdos e a organização do trabalho pedagógico. Os conteúdos do ensino – o que são? 26 27 A função dos conteúdos do ensino no currículo Vilmara Sabim Dechandt C urrículo não pode ser concebido como um elemento natural, fixo e estável, mas como um ar-tefato histórico, social e passível de mudanças e transformações.Tendo em mente estas questões, as escolas seriam uma forma particular de vida organiza- da com o objetivo de produzir e legitimar a cultura, sendo essa a função dos conteúdos de ensino. A cultura, para Giroux (1999), é uma esfera pública que amplia as capacidades humanas, a fim de habilitar as pessoas a intervir na formação de sua própria subjetividade e a serem capazes de exercer poder para transformar as condições ideológicas e materiais de dominação, em práticas que promovam o fortalecimento do poder social e demonstrem as possibilidades da democracia. Deve ser uma cultura que leve em conta como as transações simbólicas e materiais do cotidiano fornecem a base para repensar a forma como as pessoas dão sentido e substância ética às suas expe- riências e vozes. A cultura baseada em um currículo crítico, procura questionar de que forma podemos trabalhar para a reconstrução da imaginação social em benefício da liberdade humana. Na ótica sociopolítica de Herbert de Souza (Betinho), a cultura está presente nos pressupostos filosóficos do movimento Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida. Betinho insere na palavra vida, não apenas o alimento físico, mas a defesa pela vida digna e pelos direitos humanos. Sua luta é contra a pobreza e a desigualdade. Ao articular ações buscou mudar a face do Brasil de desumana para humana, do tomar para dar, da agressão para o abraço, da fome para a fartura, do desrespeito para a união, da ignorância para a educação igualitária, da ausência absoluta da cidadania e dos direitos para o estado e o exercício da cidadania. Na concepção de Betinho, esse movimento que quer recriar o país depende essencialmente da confiança que cada um deve ter em si mesmo, na cidadania, na ação solidária e conjunta para trans- formar a realidade. Essa ação de cidadania aposta na consciência, na mudança de visão que vai se transformar em ação e “virar” comida, emprego, sociedade, educação eficiente e democracia. Ao analisar a sociedade, Betinho aponta categorias que, no conjunto, podem ser estudadas como elementos da “representação da vida”. Essas categorias citadas por Betinho foram utilizadas por Marx em seu estudo da Revolução Francesa, no 18.º brumário. Uma das categorias definidas é a dos atores, que representa um determinado indivíduo ou grupo social. Este ator social significa uma ideia, uma representação, uma interferência na sociedade (SOU- ZA, 1996, p. 12). O professor é um ator social, pois é um elemento de ação política (efeito-causa) com base na possibilidade de interferência na sociedade. Essa interferência tem articulação com a história, com relações sociais, econômicas e políticas, tudo isso num contexto. Na escola, quando o professor não apresenta compromisso sociopolítico e competência técnica, sua ação torna-se um “apartheid” educacional, separando o conhecimento para os alunos de clas- A função dos conteúdos do ensino no currículo 28 se média e para alunos de classe trabalhadora. Indignado com essa situação, Betinho projetou na sua campanha o sonho de despertar em cada um de nós o sentimento da solidariedade, da igualdade e justiça social capaz de mudar a fisionomia do país. A democracia é qualificada como uma realidade na qual se congregam si- multaneamente cinco princípios: liberdade, igualdade, solidariedade, participação e diversidade (SOUZA, 1993, p. 30). Esses princípios têm que estar presentes emtodos os tipos de relação, e a educação é uma das referências para que isso se concretize, por meio da relação afetiva e compromissada do professor com todos seus alunos – tirando-os do esta- do de passividade para o despertar da consciência –, da interpretação do mundo, da descoberta do eu, da possibilidade da conquista, da construção da vida, do co- nhecimento da própria história. No espaço da sala de aula tem que haver generosidade, amizade e atenção, amor, bem-querer e afetividade. A escola e o educador/ator/trabalhador deveriam promover uma educação com o máximo de desenvolvimento das capacidades cognitivas e afetivas de todos os indivíduos, e esse desenvolvimento pode ocorrer de maneira rica ou medíocre, de- pendendo das relações interpessoais que se estabelecem. A luta do sociólogo Betinho novamente se mostra imprescindível, por en- tender que todo aluno tem o direito de ingressar na escola, de aprender, de receber uma educação significativa e prazerosa. A estrutura escolar e o trabalho do pro- fessor devem oportunizar o espaço para a prática da cidadania, existindo respeito à voz do educando e ao seu voto. O aluno, como centro do processo educacional, deve apresentar avanços cognitivos que o capacitem a interagir na sociedade, compreendendo-a e refletindo sobre os acontecimentos da conjuntura nacional. Deve tornar-se um cidadão par- ticipante, tomando decisões refletidas e conscientes, contribuindo para a história do nosso país. O conteúdo do ensino, que tem como função perpetuar a cultura como com- promisso político com a aprendizagem de seus alunos, compõe a ação do profes- sor direcionada à responsabilidade socioeducativa de garantir a permanência dos alunos em sala, ressignificando seus saberes e construindo novos conhecimentos. Comungando com essas concepções, Dimenstein (1997, p. 73) afirma que currículo, cultura e cidadania determinam a participação e o direito de viver plena e decentemente. A ideia de que todos são iguais diante a lei e dos direitos é uma conquista da humanidade que “deve ser exercida, vivenciada e praticada, exone- rando o cidadão do papel de ser passivo e inativo”. Seguindo a mesma linha de pensamento, Arendt contempla a perpetuação da cultura pelo currículo escolar como participação em todos os segmentos da so- ciedade, em todas as instituições e relações humanas, pois sem ação e decisão não existe cidadania, que nesse caso seria mera somatória de excluídos e analfabetos políticos e tecnológicos. A função dos conteúdos do ensino no currículo 29 As relações interpessoais, principalmente entre professor e aluno, devem ser de respeito, afeto, provocando participação e conquista (ARENDT, 1992, p. 73). No pensamento de Paulo Freire, a cultura e o currículo se opõem à opressão e estão relacionados a criar, recriar, ir adiante, viver seus direitos, biografar-se, existenciar-se, historizar-se. Neste sentido, ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, é a ação pela qual um sujeito criador dá forma, alma, a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das di- ferenças, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Ensinar é mais que verbo transitivo/ intransitivo, pede objetos direto e indireto: quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. Só existe ensino quando resulta em aprendizado, ou seja, o que foi ensina- do realmente se tornou conhecimento. Esta é a vivência autêntica ensinada pela prática de ensinar-aprender. É uma experiência total diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética. O educador democrático, crítico e comprometido com sua prática docente deve forçar a capacidade de crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmis- são. Para isso, precisa ser um educador criador, instigador, inquieto, extremamente curioso, humilde e persistente. Freire acredita que a escola deve respeitar os saberes construídos pelos alu- nos na prática comunitária e discutir com eles as implicações sociais, políticas e ideológicas da sociedade. Tudo isso deve permear o currículo para que a cultura historicamente acumulada tenha valor. Ensinar exige querer bem aos alunos e à própria prática educativa da qual se participa. Essa abertura significa que seriedade docente e afetividade não são in- compatíveis. Quanto mais metódica e rigorosa é a prática da docência, tanto mais alegre e esperançosa é a aprendizagem. A educação, especificidade humana, é um ato de intervenção no mundo, intencionando tanto mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação etc., quanto, pelo contrário, imobilizar a história e manter a ordem injusta, alunos pas- sivos e esquecidos pelo professor no espaço de sala de aula. A educação não se torna política por causa da decisão deste ou daquele edu- cador. Ela é política e sua raiz se acha na própria educabilidade do ser humano, que se funde na sua natureza inacabada e da qual tornou-se consciente. O ser humano, assim, tornou-se um ser ético, um ser de opção, de decisão. O educador crítico pode mostrar que é possível mudar o país, e isso reforça a importância de sua tarefa político-pedagógica. Ele sabe o valor que tem para a mo- dificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo. Sabe que sua experiência na escola é um momento importante que precisa ser au- tenticamente vivido e socialmente compartilhado com seus alunos, acolhendo todos num grande, afetuoso e intelectual “abraço”, no qual esta afetividade seja concebida como direito político de todo aluno de ser respeitado e jamais excluído da sociedade. A função dos conteúdos do ensino no currículo 30 Restrepo (2001, p. 32) reivindica a cultura como componente da ação pedagógica subentendendo que “a educação corre paralela ao erotismo, incen- tivando a relação de sedução que se estabelece entre o mestre e o aluno numa identificação apaixonada”. Iguala em uma analogia a reelaboração da cultura pelo currículo; na relação professor-aluno como mão, “ uma mão revestida de paciência que toca sem ferir e solta para permitir a mobilidade do ser com quem entre em contato. Mão compassada que tenta reproduzir em seus movimentos a dinâmica caprichosa da vida. Mão que renuncia à posse e que aprende do outro num suave galanteio” (RESTREPO, 2001, p. 5). A educação inexiste se não for para ser socializada. De nada serve guardar arquivos com conhecimentos que não vão ser compartilhados com os alunos. Não há razão para manter em sigilo produções que não vão enriquecer a vida cotidiana da existência humana. Nenhum sentido tem acumular verdades que não se trans- formam em contribuições para toda a sociedade. 1. Leia a obra de José Elias, Uma escola assim eu quero para mim, e categorize as diferentes fun- ções do conteúdo de ensino que o texto apresenta. A função dos conteúdos do ensino no currículo 31 2. Como está sendo enfocada a cultura presente nos currículos escolares? Qual sua função (domes- ticação ou emancipação)? A função dos conteúdos do ensino no currículo 32 33 A diversidade e o currículo – da exclusão à inclusão Irene Carmen Piconi Prestes Maria de Fátima Minetto Caldeira Silva Igualdade de oportunidades é um amplo conjunto de valores comuns e de propósitos que estão subjacentes ao currículo e ao trabalho das escolas. Eles também incluem um compromisso com nossa própria valorização, de nossa família e de outras relações, dos grupos abrangentes aos quais pertencemos, da diversidade em nossa sociedade e do ambiente em que vivemos. Peter Mitler M itler (2003, p. 139) é fatídico ao afirmar: “inclusão e exclusão começam na sala de aula”. Por mais comprometidos que estejam a sociedade e o governo com a inclusão, são as relações cotidianas em sala de aula que oferecem ou não a possibilidade de experiências de apren- dizagem. As interaçõesentre os membros da comunidade escolar promovem a inclusão e podem, se for a sua intenção, prevenir a exclusão. Para o autor, aí está o cerne da qualidade de viver e aprender. Quando o aluno não entende o professor e suas solicitações, sente-se excluído. O professor, por sua vez, deve estar atento a essas situações e investir fortemente no restabelecimento da comunicação. Quanto menos ele percebe essa ruptura na relação, menos tenderá a restaurá-la. Assim questionamos: será que a criança que experimenta com frequência essa dificuldade de entender e ser entendida, de compreender e ser compreendida, acreditará que a falha está exclusivamente nela? Será que essa falha não é responsabilidade da escola, do currículo, do professor ou do planejamento das atividades? Esse texto está voltado para os profissionais da educação que têm interesse em refletir sobre os valores, a palavra, a subjetividade, a identidade presentes, mas nem sempre conscientes na estrutura curricular da educação brasileira. Ressaltando para nós que é o processo curricular educativo, entendido aqui enquanto uma vivência, em que cada um busca sua forma de pesquisar, seguindo cada um o seu próprio caminho, podemos admitir que o currículo seja “individual”, se o entendemos em uma visão particular, que considere cada situação como singular. Há um sujeito entre as pessoas, há um sujeito na sala de aula Vamos, neste momento, refletir sobre a constituição subjetiva do sujeito, ou melhor, a construção da identidade pessoal de cada ser humano. Tomamos o referencial da Psicanálise para estabelecer os pilares de sustentação na construção psíquica do sujeito. A diversidade e o currículo – da exclusão à inclusão 34 Como um primeiro aspecto temos o contexto social, histórico e cultural como o espaço e o tempo das relações interpessoais, permeadas pelas tradições e pelos costumes, pelas necessidades e pelos desejos, ou seja, as pessoas atadas aos lugares que ocupam numa rede de relações e histórias coletivas. Assim, dizemos que a sociedade e suas instituições representam um conjunto de vozes que enun- ciam um discurso com referenciais identificatórios. Nesse conjunto sucessivo de vozes identificatórias do meio, no contexto de uma sociedade letrada, a escola muito cedo ocupa um lugar de substituição primeira e imediata dos referenciais parentais. E o que esperam do sujeito é que reproduza o “modelo almejado”, na família, na escola e na sociedade. Esse modelo é o sujeito ideal do meio. Reconhecemos que, nesse projeto identificatório, é a relação entre o sujeito e o outro (mãe-filho, professor-aluno) que está sempre em causa, em todos os tem- pos da construção da identidade. Por exemplo, desde antes do nascimento a criança existe no discurso dos pais; assim, para esse sujeito individual, esses referenciais são anteriores ao seu nascimento. Revelam a expectativa dos pais, inseridos num meio específico e sob a influência da condição social que o determina. Portanto, esse su- jeito nasce onde atuam o discurso e o desejo do casal que o concebe. Concluímos que as palavras representam as pessoas, as coisas, de forma que em certas circuns tâncias observamos como somos reduzidos a elas, por exemplo, depois de mortos pelas ob- ras que produzimos e, antes de nascermos pelo nome que recebemos, o enxoval do bebê, e as mudanças que impomos ao casal parental frente à nossa vinda ao mundo. Por tudo isso que apresentamos, torna-se inegável a marca da história de vida pessoal de cada sujeito na definição de suas opções no presente, esteja ele atuando em qualquer espaço de sua existência, inter e intrapessoal. Por exemplo, no espaço relacional da criança no ato de brincar e no processo da escolarização. A criança situa na brincadeira as coisas do seu mundo em uma nova ordem. Na brincadeira de bandido e mocinho, de esconde-esconde, nos jogos de montar e desmontar, nas histórias que conta e quer ouvir. Desenvolve aí um trabalho não apenas lúdico, mas também de significação psíquica das coisas do mundo para si mesma, assumindo seus direitos e deveres. Esse é seu trabalho diário, e cada ato faz com que atinja uma nova posição: para que algo nasça, algo será perdido. É nesse movimento que parece estar, e buscar seu lugar de pertença; entre a neces- sidade de ser reconhecida como adulto e o desejo de permanecer criança. Essa constatação talvez possa explicar, por exemplo, os casos tão frequentes de termos ou não afinidades, até mesmo à primeira vista, com pessoas que aparen- temente nunca nos deram motivos objetivos para qualquer dessas posturas. Pode ser que algum traço de comportamento nelas nos remeta, sem termos consciência, a um padrão de relação, agradável/desagradável, vivido junto a algum daqueles modelos originais. Por esse raciocínio, pode-se levantar a hipótese de que, na verdade, grande parte daquela dificuldade ou facilidade, localiza-se mais em nós mesmos, do que propriamente no objeto relacional. E ainda, quando se trata de A diversidade e o currículo – da exclusão à inclusão 35 uma convivência próxima, cotidiana e estreita entre pessoas, como ocorre no caso das relações familiares e de trabalho, mais presentes e misturadas poderão se tor- nar essas transferências. Por isso, no jogo das relações, quanto mais cada um dos envolvidos consegue apropriar-se dos determinantes histórico-subjetivos de suas ações no presente, mais clara e descontaminada fica a possibilidade de estabelecer uma relação de intercâmbio com o outro. Com o que foi apresentado, observamos que é assim que vamos entender o aluno, como um ser de desejo e de palavra. É na escola, na sala de aula que ele encontrará a possibilidade de refletir sobre essas referências identificatórias, desde que encontre um espaço aberto que esteja interessado em suas questões. Algumas sugestões para a diversidade e currículo na educação inclusiva Estar na escola não significa que o aluno esteja aprendendo. Atualmente, a escola preocupa-se muito com a aprendizagem e pouco com o sujeito que está aprendendo. A escola tem um projeto educativo inclusivo quando reconhece a com- plexidade das relações humanas (professor-aluno) e a amplitude e os limites de seus objetivos e ações. O espaço relacional da escola deve dar lugar à fala, ao discurso, pois é ele que pode fundar um laço social, a possibilidade de reconhecimento do “Eu” (identidade pessoal), e o lugar dentro do grupo. Quando se estabelece o diálogo com a situação do cotidiano escolar, o vínculo torna-se imprescindivelmente dinâmico, atualizado e forte. O comportamento é expressão do contexto mais amplo, em função de uma relação dialética professor-aluno, e não linear. Dessa perspectiva teórica, assumimos que os processos psicológicos são constituídos nas práticas sociais, sob as condições histórico-culturais. Torna-se essencial conhecer o aluno no campo das relações sociais nas quais ele está envolvido. Essa proposição nos permite redimensionar as ideias ainda vigentes sobre a deficiência, principalmente as nossas for- mas de pensar sobre a deficiência mental, visto que é na diversidade das relações com as mais diferentes formas de conhecimento, participando delas, que nos constituímos como sujeitos de um determinado tempo, de uma dada cultura, ou seja, construímos nossas possibilidades de ser, de fazer e aprender sobre nós e sobre o mundo. A diversidade e o currículo – da exclusão à inclusão 36 Desaprendendo a lição (SANT’ANNA, 1994, s.p.) “Há uma idade em que se ensina o que se sabe, mas em seguida vem outra idade em que se ensina o que não se sabe”. Esta frase de Barthes é instigante. Desmistifica a prática usual do ensino. Por isso, ele continua seu pensamento afirmando que é preciso “desaprender”, “deixar trabalhar o imprevisível” até que surja a chamada “sapiência”, uma sensação de “nenhum poder, um pouco de saber”, mas “com o maior sabor possível”. E num seminário em Paris praticando a errância do saber, propôs aos alunos que o encontro
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