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Formação da Cozinha Brasileira ANDREA CRISTINA SHIMA DA MOTTA A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • Uma cozinha indígena • A Cozinha do Brasil Colonial • Cozinha do Brasil: Monarquia e Império • Estudar na literatura especializada a formação da cozinha brasileira. • Resgatar e identificar algumas técnicas das cozinhas de origem. • Compreender e contextualizar os elementos formadores da cozinha nacional. • Entender a identidade da cozinha de raiz. Plano de Estudo Objetivos de Aprendizagem Introdução Nesta unidade, falaremos um pouco sobre a história e a cultura do Brasil. A minha proposta é que, por meio desse desvendar da história e da cultura, desenvolvamos fundamentos que nos tragam a compreensão da formação da Cozinha Brasileira. Abordaremos a cozinha indígena, ou melhor, a cozinha praticada pelos índios, a qual primei- ramente encontraremos no Brasil ou Terra de Vera Cruz, como foi denominado nosso país no início. O primeiro relato sobre essa cozinha está na Carta de Pero Vaz de Caminha, que narra a primeira informação sobre o cardápio e costumes locais. Ao comentarmos sobre tais costumes, desvendaremos também hábitos alimentares, técnicas de preparo desses alimentos e utensílios utilizados pelos primeiros habitantes do Brasil. Entraremos no conteúdo da Cozinha Colonial, caracterizada pelo período em que a Coroa Portuguesa inicia, de forma efetiva, a colonização do Brasil, por meio da primeira Expedição e do início do cultivo da cana-de-açúcar. Nesse sentido, temos que salientar que o Brasil se formou nesse período, no sentido de que se estruturou uma sociedade em torno da cultura da cana. Os Engenhos de Açúcar vão caracterizar essa sociedade e influenciá-la de tal maneira que observaremos resquícios do latifúndio açucareiro no Brasil atual. A casa grande e a senzala, sua estrutura e intimidade irão determinar de forma definitiva o jeito de ser brasileiro. Nesta unidade, também abordaremos a Cozinha do Império e da República: na primeira, temos a influência direta da cozinha portuguesa, ou seja, a entrada do paladar europeu por- tuguês, que irá se manifestar pelos ingredientes e técnicas: suas carnes, embutidos, temperos, suas frutas e doces. Já no outro período, inaugura-se uma república nacional, nela, teremos um Brasil com uma cara mais cosmopolita, mais moderna, afinal de contas, já teremos um Estado com a declaração da república, e o Estado Nacional se consolida. Assim, nesta unidade, nós vamos estudar os períodos de formação de nossa cozinha, para compreendermos nossa identidade gastronômica, entendermos e valorizarmos nossos ingre- dientes, nossa terra e nosso jeito de fazer cozinha. Vamos em frente! 11 C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z 13G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Uma Cozinha Indígena No presente tópico, compreenderemos o que é a cozinha indígena, suas características e sabores. Tarefa difícil essa, principalmente quando afi rmamos que essa é a cozinha mais excêntrica que temos e a que mais se manteve fi el a sua origem, sem dizer que nesse pe- ríodo existiam, só na região Amazônica, mais de seiscentas nações. Só para aguçar a curiosidade, imagine você, qual o gosto de um arubé? Se você pensa que o molho, esse instituído por Carême, era conhecido apenas da cozinha clássica, saiba que não, os nossos indígenas já o apreciavam também pelo arubé, que é um molho feito a partir da redução do tucupi. Outro exemplo é a formiga tanajura, que, segundo Cascudo (2004), é prato histórico do Brasil: “a formiga tanajura, fêmea da saúva, torrada, é prato histórico desde o século XVI, tradicional no Brasil indígena, mestiço, branco e mesmo alguns sábios estrangeiros não desdenharam gabos ao seu capitoso paladar” (CASCUDO, 2004, p. 153). Ele ainda afi rma que, entre os índios do Nordeste, mais especifi camente do Maranhão, a caça dessa iguaria era acompanhada de cantigas. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z A ntes de falarmos das característi- cas (sabores, cores e cheiros) dessa cozinha, precisamos ter, de forma clara, que essa é nossa primeira co- zinha, ou seja, a cozinha que os Portugueses, quando aqui chegaram, encontraram. O docu- mento que comprova essa afi rmativa é a carta do descobrimento, mais conhecida como a carta de Pero Vaz de Caminha (escrivão da expedição de Cabral), datada de 24 de abril de 1500. Nela, encontramos o primeiro depoimento sobre a alimentação na Terra de Vera Cruz (apud CASCUDO, 2004, p. 74-75): Dizem que, em cada casa, se recolhiam de trinta a quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. [...] Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi e nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão dessa inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. Sabe-se indiscutivelmente, pelos estudos, que esse alimento, chamado pelos portugueses de inhame, na verdade, inhame não era, pois ele virá mais tarde apenas do contato com os africa- nos. Na verdade, Caminha falava da mandioca, frutos semelhantes entre si, em função de suas raízes. A mandioca, essa sim, era a raiz que ali- mentava o brasileiro (e alimenta). Nesse sentido, afi rmava Pero de Magalhães Gandavo que “o que lá se come em lugar de pão é farinha-de-pau. Esta se faz da raiz de uma planta que se chama mandioca, a qual é como inhame” (CASCUDO, 2004, p. 77). Em relação à mandioca – Manihot esculenta, esse alimento fantástico, milenar, que até hoje se faz base da alimentação brasileira, podemos classifi cá-la, de forma genérica, em doces e amargas. As doces, consideradas não venenosas, são conhecidas por nomes diferentes, conforme a região do Brasil – macaxeiras, no Norte, ou Aipim, no Rio de Janeiro –, podem ser consu- midas cozidas, em forma de apetitosas farinhas brancas e, também, em variados bolos. Já as amargas, bravas ou venenosas, apesar de muito ricas em amido, são chamadas assim porque contêm o mortal ácido cianídrico e, por isso, necessitam de “preparo” antes do consumo. Agora, imagine você a sabedoria do ameraba, pois há uma ciência por trás dessa cultura da mandioca, para distingui-las e retirar delas uma infi nidade de subprodutos. 15G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R 15G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z A mandioca era e será, por muitos séculos, a comida base do brasileiro. Com os índios, os portugueses irão aprender a beneficiar essa raiz preciosa e irão se render ao seu paladar, o que os levou a melhorarem as casas de farinha, com máquinas e equipamentos. Essa será a comida de sustância, que “enche o bucho”, que suportará as longas viagens, seja em terras tupiniquins, seja em terras portuguesas, seja em viagens ao conti- nente Africano, as quais buscavam a mão de obra escrava. Os pães portugueses, seus biscoitos e carnes não suportarão as viagens delongadas. A história conta que, quando o escravo era ad- quirido, logo que embarcado no navio negreiro, recebia um kit de sobrevivência, chamado de ca- rapetal, que era feito de um punhado de milho e um punhado maior de farinha. Dos subprodutos da mandioca, des- tacam-se as fari- nhas e os beijus. O primeiro item era companheiro irremediável de tudo o que se comia, fosse nos dias comuns ou nos de festas. A farinha sempre foi um condu- to principal. Já o beiju, além de comida de matolagem, era consumido em ocasiões de comensalidade, sendo considerado comida de ritos. O beiju, conhecido como farinha de guerra, que era seco e grosso, resistia às viagens dos índios e, mais tarde, foi companheiro das longas viagensde navio entre as terras brasileiras e Portugal (CASCUDO, 2004, p.91). A mandioca brava, depois de ralada, é es- premida em um utensílio chamado tipiti, que deixa a massa da mandioca quase seca ao ser prensada nesse cilindro de palha. O líquido venenoso extraído do tipiti, fermentado ao sol e fervido longamente, é a manicuera ou tucupi, usado em caldos e bebidas, como o caxiri. Esse caldo precioso irá acompanhar desde carnes (peixes, caças) até raízes e frutas, sendo também a base do tacacá dos dias atuais. De sua primeira decantação extrai-se um amido, conhecido como goma fresca ou polvilho, que irá dar saborosas tapioquinhas e as farinhas de tapioca para os mingaus. Essa massa prensada, quando seca em forno, dá origem às infinitas farinhas e aos beijus, ou seja, o polvilho vem da goma da primeira água da decantação e o beiju, da mesma massa da farinha de mandioca. É da mandioca brava que se faz a maioria dos subprodutos da ali- mentação indígena, como farinhas, féculas e bebidas. Outro ingrediente basilar importantíssimo é o peixe, sendo cozido ou assado. Como bem ilustra Leal (1998, p.67): 17G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Os peixes eram um dos alimentos favo- ritos dos indígenas, sendo cozidos ou assados. Quando assados inteiros, quase sempre não eram esvaziados e nem es- camados antes. Também se fabricava a farinha de peixe, que era mais farnel para viagens ou caçada que alimento habitual. Claro que temos que considerar a disponibili- dade dos alimentos segundo a geografia. Logo, quando da ausência desse peixe, a fonte proteica era suprida pelas carnes de caça (caititus, porco do mato, macaco, anta, lagarto etc.), ou também por outro ingrediente, que nos dias atuais tem ganhado grande destaque na alta gastronomia brasileira contemporânea, que são os insetos (cupins, tanajuras cruas ou cozidas, com farinha ou paçoca, besouros e o tapuro, esse último tão saboroso, conhecido como larva de pau podre). Outro ponto a ser mencionado é que, quando falamos de um alimento assado, pre- sumimos de imediato que nossos índios já tinham a sua disposição equipamentos sofisti- cados, em sua simplória cozinha do século XVI. Entendemos, também, que havia um paladar que manifestava a preferência por um sabor: o gosto por alimentos assados e cozidos. Como bem diz a nossa cultura popular, confirmando o senso comum para essa preferência: “Comida quente é a que sustenta gente”. A cozinha indígena era enriquecida pelo uso de alguns equipamentos, conhecidos como moquém, yapuna, biaribi e tipiti (esse último, já comentamos acima). O moquém era uma trempe, ou grelha, na qual o índio podia assar suas carnes e evitar que elas apodrecessem. Dessa forma, pode-se afirmar que o moquém era muito mais que um utensílio doméstico, ele auxiliava na conservação da carne, uma vez que, ao submetê-la ao fumeiro, diminuía-se a sua umidade. E a yapuna, que era uma vasilha de barro, chamada de forno, usada para cozer a fa- rinha. Outro equipamento importante era o bia- ribi, que era um forno subterrâneo. Já o forno, o tradicional que conhecemos, só apareceu no Brasil em razão da colonização portuguesa. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Esses equipamentos irão fornecer alimentos im- portantíssimos para a dieta indígena. O moquém é utensílio de sobrevivência, para tostar e fumar o peixe, sendo usado quando misturavam esse importante ingrediente (peixe) na farinha de mandioca, com seu ionquet (sal e pimenta) ten- do-se assim, a piracuí. Cascudo (2004) conta que a carne moqueada nunca era consumida de imediato, pois era comida de matolagem, de sobrevivência. Com a yapuna, farinhas eram torradas e os beijus eram moldados. A partir do tipiti, temos a manicueira ou tucupi, que é a base do tacacá e do cauim, esse último parte das bebidas inebriantes. Em relação ao biaribi, tem-se que ressaltar que, a partir dele, teremos comidas saborosas, feitas assadas em sua cavi- dade, como completa Cascudo (2004, p. 88): De assar a caça e a pesca diretamente nas labaredas passa-se ao calor das brasas, o moquém ou o espeto fincado a distância, além do uso das panelas que fazem o serviço sem vigilância especial. Havia ainda o processo do forno subterrâneo. Conseguem dar ao alimento uma con- centração substancial, e quando retirado oportunamente, um sabor inesquecível. Outra iguaria feita pelos índios é o pirão es- caldado, feito a partir da farinha de mandioca, esse sim comido só aqui nas nossas terras. Já o pirão cozido que demanda um avanço na técni- ca, utensílios e equipamentos, pode já ser uma influência das açordas portuguesas e suas papas, demandando colheres para a sua apreciação. Já o uso do milho é influência dos índios america- nos, o que irá resultar nos angus. Essa cultura se espalhou pela região nordeste, centro-oeste e sul do Brasil. Há de se ressaltar que eles também plan- tavam e comiam abóbora, feijão, fava, cará e amendoim, sendo esse último muito aprecia- do. As frutas não eram plantadas, apenas co- lhidas, como exemplo de frutas consumidas pelos índios podem ser citadas: as pacovas, o abacaxi, a goiaba, o maracujá, o caju, o mamão, dentre tantas outras que a farta terra dava. Com a pacova ou banana da terra, sempre cozida ou assada, eram feitos mingaus, caldos e bebidas. Mais tarde, com o açúcar do engenho, iremos ter as bebidas adoçadas e os doces das frutas. E como os índios comiam essas comidas? Qual o tempero das cunhãs (índias cozinheiras) que conquistaram também a cozinha portugue- sa? Sabemos que o índio sempre apreciou as pimentas, das mais ardidas às mais doces, puras ou acompanhadas. Temos, também, que deixar claro que o hábito de temperar a comida antes de prepará-la é influência do homem branco, pois o índio sempre temperou seus manjares na boca. Para tanto, utilizava sal, que era extraído das margens dos rios, das águas represadas ou de algumas plantas. Assim, o sal e a pimenta eram pilados, dando origem a uma pasta cha- mada de ionquet. Então, o consumo, que para nós pode parecer um ritual, se dava da seguinte 19G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R forma: colocava-se um punhado de carne na boca, em seguida, juntava-se um bocado de ionquet e pronto, os sabores se completavam. Realmente, é uma experiência que vale a pena fazermos. Um precioso ingrediente aromático era o nhambi, erva que lembra o coentro, que era consumido pelos indígenas e mestiços tanto cru quanto somente para temperar. Segundo o Dicionário Informal (NHAMBI..., online), “Nhambi é uma palavra indígena que define planta que os indígenas comiam crua, ou usada como tempero em outros pratos. Também cha- mada de coentro-do-pará ou coentro-do-cabo- clo”. O uso do nhambi veio do contato da cunhã (cozinheira indígena) com a mulher portuguesa, que já usava o coentro (Coriandrum sativum) trazido pelos portugueses. E, para finalizarmos, não havia, segundo os estudiosos, indícios de temperos na panela da cunhã. O uso de condimentos importan- tes, quando ocorre, será sempre após a cocção. Esses temperos indispensáveis serão a pimenta, o ionquet e o nhambi, ingredientes indispensá- veis dessa cozinha. Da maniva, ainda usavam a folha, para preparar um tipo de guisado de várias coisas, o que dará origem à maniçoba, prato dos dias atuais da cozinha da região norte. A respeito das bebidas, poderíamos abrir uma unidade só para falar delas, pois são va- riados os tipos de bebida consumidos pelos índios: os caxiris, os cauins, a jacuba ou xibé, o cacau, as de diversas raízes, os sucos de frutas, que são heranças dos portugueses. As bebidas fermentadas pela saliva, a partir da mastiga- ção das mulheres mais velhas, tinham o seu uso relacionado ao sobrenatural, assim como tudo o que o índio faz o tem. Esse sobrenatural estará ligado à aproximaçãocom os seus deuses, motivo pelo qual eles ingeriam essas bebidas nos seus rituais, dentre elas a caxiri e o cauim. A primeira era feita a partir da fermentação da mandioca e a segunda, a partir da fermentação do milho. Já o xibe consistia em uma mistura de farinha de mandioca com água, apreciada até hoje pelos ribeirinhos, o papa xibé. Da farinha carimã ou da puba, teremos os beijus, que poderão ser feitos de formas variadas e condimentados. Nesse particular, vamos citar mais uma vez Cascudo (2004): Beiju-açu o maior destinado a fazer caxiri; beiju-caua, achatado e largo como ninho de abelhas; beiju-cica, seco ao sol, quebradiço, atraente, e às vezes de goma de macaxeira (aipim): curandá com cas- tanhas-do-pará, piladas, beiju membeca, mole podendo conter leite de castanhas, requinte posterior, variedade local da tapioca de coco nortista; beiju peteca, grosso batido, espesso, grumo áspero, mata fome porque deve ser mastigado com vagar, biju-quira, com pedaços ou sumo da fruta; beiju-ticanga, seco de farinha puba, levemente amargo, beiju toteca, meio queimado, dando bebida e o beiju turua, de tapioca delgado (CASCUDO, 2004, p. 99). C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Como podemos observar, o índio nos deixou essa herança da farinha de mandioca, esse patrimônio que dominará o paladar do portu- guês europeu, fazendo-o ampliar seu plantio em roças e melhorar as tecnologias usadas. O português melhorará as casas de farinha e irá viajar em busca de novas riquezas terra adentro, com os movimentos das entradas e das ban- deiras, nessas ocasiões, os viajantes desbrava- dores sempre deixavam uma roça pronta para a próxima expedição: a mandioca é quem irá sustentar o viajante. 21G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z 23G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R A Cozinha do Brasil Colonial Abordaremos, neste tópico, a cozinha do Brasil Colonial, a qual foi marcada pela chegada da coroa portuguesa que estava determina- da a colonizar essas terras, com o objetivo de explorar e habitar a Colônia, que sofria, em função da dimensão territorial, ataques dos holandeses, ingleses, franceses (que fi caram fora do Tratado de Tordesilhas) e de piratas. Mas como era a cozinha de Portugal desse tempo? O que fazia parte de suas mesas? Durante séculos, Portugal fi cou sob o domínio dos mouros, o que infl uenciou de forma signifi cativa a sua cozinha. Na obra Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria, do início do século XVI, encontraremos inúmeras receitas com tal infl uência, como as de doces, a pastelaria, uso de especiarias etc. Economicamente, pelo pioneirismo na expansão marítima, Portugal desenvolveu uma burguesia abastada, consumidora de uma culinária requintada apreciada em toda Europa. Os campo- neses, por outro lado, terão em suas mesas as sopas engrossadas (sempre com um cereal), os grãos (como as favas) e as carnes secas e defumadas. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Esse período no Brasil é marcado pela ex- ploração da cana-de-açúcar, pelo desenvol- vimento dos engenhos e pela exploração do trabalho escravo. Como comenta Carneiro (2003, p.157): Durante toda a Colônia, a expansão da civilização do açúcar, da sacarocracia, marcou não só a economia, como hábi- tos alimentares brasileiros. Rapadura, garapa. Aluás e captés (bebidas fermen- tadas de milho). Doces de frutas, cujas receitas, Gilberto Freire recolheu em seu livro Açúcar [...]. Em 1530, a Coroa Portuguesa, temendo perder as terras nacionais, organizou a 1ª expedição com o objetivo de colonizar, essa foi comandada por Martin Afonso, com a missão de povoar o território, expulsar os invasores e iniciar o cultivo da cana no Brasil. Inauguramos, então, o Ciclo da Cana-de-Açúcar, produto que tinha grande demanda na Europa, o que despertou o interesse da Coroa Portuguesa, uma vez que o território Brasileiro oferecia condições ideais de adaptabilidade, pelo seu clima e solo, prin- cipalmente na região do nordeste. Dessa maneira, as terras Brasileiras darão lugar a um novo negócio lucrativo para os por- tugueses, que será a cana-de-açúcar. Como afir- mam Freixa e Chaves (2008, p. 63), Como o açúcar era uma iguaria e custava caro, um luxo permitido só aos abona- dos, isto é, a nobreza e o clero. Mesmo por estes, o açúcar era usado com mo- deração e guardado em arcas especiais, fechadas a sete chaves. Raro e caro, o açúcar também era vendido por boti- cários, pois consideravam que curavam dores de cabeça e melancolias. A cana-de-açúcar chegará ao Brasil com as expedi- ções portuguesas, sendo plantadas primeiramente em São Vicente e, mais tarde, em Pernambuco, onde irá se adaptar pelo clima úmido e solo rico em massapé. A cana chegará a outras regiões, como Espírito Santo e Bahia, mas será em Pernambuco que essa cultura irá se aclimatizar. Para melhor organizar a Colônia, a Coroa divide o Brasil em Capitanias Hereditárias aos donatários, com a responsabilidade de prote- ger, de povoar e produzir a cana-de-açúcar. Esse sistema fracassou em função da distância da metrópole e pela falta de recursos, mas 2 capi- tanias prosperaram: São Vicente e Pernambuco. A necessidade de intensificação da produção da cana-de-açúcar demonstrou a inadequação da mão de obra indígena para esse estágio da monocultura. Foi feita, então, a substituição do índio pelo negro africano, tal como nas colônias americanas, o que inaugurou o mercado escra- vagista negreiro para a Colônia. 25G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Portugal estabelece, então, o Governo Geral, sendo uma forma de centralizar o controle da Colônia. O primeiro Governador Geral foi Tomé de Souza. Nesse momento, os proprietários de terras, dentro das capitanias, clamavam por participação política. Desenvolveram-se, assim, Câmaras Municipais dentro da Colônia, que eram órgãos políticos dos quais participavam os Senhores de Engenho, proprietários de terras. Os escravos iam desembarcando dos navios negreiros, os portugueses entravam com suas famílias e se instalavam, assim nascia o povo do Brasil, que terá ascendência de índios, portugue- ses e africanos. Dessa maneira, a sociedade foi se organizando de forma estratificada, sendo que no topo estavam os Senhores de Engenho, detentores de poderes políticos, no meio, alguns trabalhadores livres e funcionários públicos e, na base, os escravos de origem africana e os índios. A chamada economia colonial estava então baseada no plantation, cujas características são a existência de Senhores de Engenho (Grandes C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Latifúndios), monocultura da cana-de-açúcar, mão de obra escrava e comercialização apenas com a Coroa, constituindo-se, assim, o Pacto Colonial. O comércio do açúcar, por ter grande valor no mercado Europeu, logo fará que a vida e, consequentemente, a cozinha desse período se desenvolvam em torno do engenho de açúcar, onde a maioria das pessoas morará. O engenho, além do local para a extração do açúcar, possuía a Casa Grande do Senhor do Engenho para sua família e escravos, a Igreja e a Senzala. A cozinheira indígena (cunhã) será substi- tuída aos poucos pela escrava negra (nhá-bas), que trazia em sua experiência uma culinária mais elaborada com técnicas e temperos, mas, independentemente de onde vinham, todas eram cozinheiras natas, que irão conquistar a Sinhá (Senhora do Engenho). Vale lembrar que o negro não tinha a esperança de retorno ao seu país de origem, o que lhe conferia uma melhor adaptação e domesticação do que o indígena. Essa trágica característica será explorada pelos Senhores da época seja na cozinha, seja na cama, seja na senzala. A Sinhá (mulher portuguesa) impõe e adapta (mais adapta) os hábitos de uma co- zinha europeia às restriçõesda colônia, uma verdadeira cozinha de subsistência focada no comer sozinho ou em pequenos grupos sem os requintes da comensalidade de além mar. 27G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R A família portuguesa ou o português que aqui che- gava nesse período trazia tudo que mais apreciava de sua terra de origem na tentativa de recriar o ambiente familiar, principalmente no tocante à comida. Cascudo (2004, p. 237) completa: Quem diz do viajante é a bagagem que leva. Instalando-se definitivamente para ficar no Brasil, o Português recriou o am- biente familiar, cercando-se dos recur- sos de curral, quintal e horta, desejando quando possível prolongar o tratamento em que se habituara, secularmente. O português trará, dessa maneira, para a Colônia seus animais (ovelhas, cabritos, bois, vacas, ga- linhas, patos, gansos) e plantará suas frutas variadas, legumes, hortas com suas hortaliças, cereais. Trará, também, sua cultura, costumes e religião, bem como suas festas, como a de São João, Natal, Carnaval e a Quaresma, com suas co- midas e danças. Das frutas, trará a laranja, o limão, a lima, o melão, as tâmaras e os figos. Dentre os cereais, o arroz. E mais, nabos, abóboras, gengi- bre, mostarda etc. Suas ervas – salsa, cominho, cebolinha, manjericão, alfavaca – e hortaliças, como agrião, espinafre, couve etc. Segundo Romio (2000, p. 37-38), O cardápio nacional se ampliava. E se ampliaria muito mais com a instituição das capitanias hereditárias. A partir daí, começaram a chegar ao país os primeiros rebanhos de gado de leite e corte, vindos das Ilhas de Cabo Verde. Estava-se no ano de 1534, e o gado era enviado pela mulher de Martim Afonso, primeiro para a capita- nia de São Vicente, da qual era donatário, e depois para a Bahia. [...]. De lá o gado subiu para o nordeste, especialmente para Pernambuco, Piauí e Maranhão, depois descendo para Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O gado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul entrou pelo país vindo da região do rio da Prata, trazido pelos jesuítas e pelos índios catequisados. Com esses rebanhos, apareceriam também no país as primeiras, caseiras e rudimentares produtoras de queijo. Assim, nasceu a cozinha da Casa Grande, a partir das receitas de família, guardadas em segredo e ensinadas para a cozinheira escrava. A mulher portuguesa ensinará comportamen- tos de boa conduta e rituais de comensalida- de. Introduzirá também na cozinha o fogão e forno, bem como panelas de fundição trazidas [...] Trata-se de uma comida retirada de um modo de produção de subsistência, ajus- tada ao meio, ao mesmo tempo em que adaptada a um paladar mais úmido, como era o português, acostumado às comidas cozidas e com caldo. Uma comida sem requinte, nem cerimônia, nem ritual, feita para se comer sozinho ou em grupos formados pelo acaso. Um cardápio ordinário e comum, composto por farinha de milho de mandioca, de peixe um pedaço de carne seca e a mistura toda molhada pelo caldo de feijão, das favas ou verduras, constituindo um tripé culinário do Brasil colonial (SILVA, 2005 p. 23). C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z da Europa. Ela adaptará os ingredientes, valo- rizando o que se encontrava aqui, por exemplo, a farinha de trigo raramente será de trigo, mas de mandioca, a qual, das mãos da portuguesa, resultará em bolos de carimã e seus mingaus, que serão adoçados com mel ou açúcar do en- genho, e beijus mais finos para molhar no leite. São exemplos das produções da cozinha dessa época os bolos de milho, as canjicas, os pudins. Todas essas alterações sociais vão trazer para a cozinha influências de diversas cultu- ras, revelando técnicas, ingredientes, saberes e sabores, dessa forma, a cozinha, fruto dessa sociedade que se constitui, não será totalmen- te portuguesa nem indígena, nem africana na maneira de preparar os alimentos. Leal (2005) acrescenta a importância do colonizador nos hábitos alimentares: “E com ele nascia a cozinha brasileira, resultado de uma primeira integração da culinária portuguesa com a indígena, que depois foi mesclada à cozinha africana, mas tendo um forte domínio do colonizador sobre os demais” (LEAL, 2005, p.70). No decorrer do século, implantou-se a divi- são entre cozinha suja e limpa. Até então, a cozi- nha era uma parte suja da casa, de terra batida com três ou quatro pedras, que acomodavam o fogo. A cozinha suja era destinada ao trato primário dos ingredientes, tais como limpeza (entranhas, pele, gordura de animais), retirada de cascas, secagem, corte, escaldagem e fervura, e feitura de doces; na limpa, as refeições eram finalizadas. Outro produto que mereceria uma unidade à 29G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R parte, pela sua importância cultural para nossa sociedade, é a cachaça, que nascerá no engenho de açúcar. Essa bebida, que tanto alegrava o trabalhador escravo, foi discriminada por sécu- los por ser bebida de gente desfavorecida. Ela era barata e de embriaguez imediata. Cascudo (2004), em seu Prelúdio da Cachaça, faz a se- guinte afirmação: A cachaça foi a revelação gostosa e catastrófica para negros africanos e amerabas brasileiros. Dissolvente dinástico, dispersador étnico, per- turbador cultural. Graças ao álcool o mercado africano exportador da es- cravaria prolongou-se, resistindo às repressões, superando os obstáculos (CASCUDO, 2004, p. 43). O homem português, entre tantas contribui- ções, deixará duas importantíssimas para a co- zinha brasileira, no tocante ao desenvolvimento do paladar: o sabor do sal e o sabor do açúcar. Vimos que o índio usava o sal com moderação e conhecia o doce apenas das próprias frutas e do mel. O sal ainda terá restrição no seu uso, influência talvez do ameraba, mas o açúcar, esse sim, irá conquistar a todos. Em resumo, são heranças portuguesas: a. Equipamentos como o fogão e o forno a lenha foram adaptados em função da au- sência/escassez da fundição do ferro, sendo uma evolução para a cozinha indígena. b. A farinha quase nunca é de trigo, sendo substituída pela farinha de mandioca ou de milho. c. As amêndoas e pinhões serão substitu- ídas pela castanha de caju e amendoim. d. A doçaria de frutas, como as “adas”, goiabada, bananada, mangada, dentre tantas outras. e. Substituição dos embutidos portugueses pelas carnes secas. f. Criação das bebidas de frutas: refrescos, vinhos, licores, todos adoçados. g. Desenvolvem-se a cozinha suja e a co- zinha limpa. h. Os cozidos portugueses são adaptados para os ingredientes locais, tais como os guisados de bredos. i. O paladar da doçaria, que é até hoje uma característica brasileira. j. Sobremesas portuguesas: bolos, pão de ló, folheados, babas de moça, fios de ovos, cremes e manjares. Na disciplina de Cozinha Internacional, você complementará seus estudos sobre a cozinha portuguesa e todas as suas ca- racterísticas principais. Imperdivel! C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z D urante o tempo do negro escravo no Brasil, ocuparam eles tarefas nos engenhos, nas lavouras de cana, nas minas de ouro e, mais tarde, nos cafe- zais. Foram aproveitados também como escra- vos domésticos, nas dependências das fazendas, principalmente nas cozinhas, e como escravos urbanos. As mucamas eram amas de leite das crianças das sinhás. Como atesta Gilberto Freyre (2005 p. 592), em Casa Grande Senzala, “Eram elas que amamentavam as crianças brancas, as ninavam, preparavam a comida e o banho morno e contavam histórias”. Do milho, os negros faziam o angu de fubá, o mungunzá, adoçado com mel ou com rapadura. O pirão de farinha de mandioca era outra constante, foi desenvolvido um pirão escaldado especial, que era consumido com malagueta para fazer render a pequena porção de comida que recebiam. Chamaram-no de massapê pela semelhança da cor arroxeada do barro massapê. Como cantavam em suas rodas,podemos ver: Se for pirão de água pura, Não me chame para comê; Que eu morro e não me acostumo Com esse tal de massapê; Eu não sou negro d’Angola Que engole tudo o que vê (RECINE; RADAELLI, online). Essa era a base da alimentação dos escravos, com exceção do escravo da casa grande que tra- balhava na cozinha, as doceiras, as copeiras, as amas de leite, que tinham uma comida privile- giada, pois consumiam os restos das refeições do senhor. Como bem acrescenta Cascudo, nesse sen- tido (2004, p. 202-203): Para o norte, a farinha de mandioca garantia o pirão, indispensável, diário, sinôni- mo do próprio alimento geral. Pelo interior da Bahia, para o centro e sul do Brasil, estendia a geografia do milho. A farinha de mandioca não era ignorada e nem ausente no Sul e Centro, tal e qual o milho ocorria no Norte e Nordeste, mas sem predominância do primeiro elemento, característicos dos repastos [...]. Já no Rio de Janeiro a farinha de mandioca figurava inevitavelmente na comida do escravo, ao lado do feijão-negro [...]. A alimentação do negro numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-negro, toucinho, carne seca, laranjas e bananas. [...] Angu de milho, toucinho, alguma carne semanal era o regime do escravo em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. 31G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Os escravos negros trouxeram para a colônia o quiabo, a vinagreira, o inhame, o hibisco, o gengibre, o gergelim, dentre outros. Ensinaram ao brasileiro o consumo da galinha-d’Angola, que contribuirá para o cardápio nacional. Com o declínio dos negócios da cana na Europa, a Coroa e os proprietários do latifúndio açucareiro passarão a ter a necessidade de procu- rar novas riquezas no Brasil. Para tanto, surgirão movimentos financiados pela Coroa e pelos pro- prietários de terra: as Entradas e as Bandeiras, que terão o intuito de buscar novas riquezas, aprisionar índios e negros rebeldes fugitivos. As entradas e as bandeiras serão respon- sáveis pela ampliação do território além do Tratado de Tordesilhas. Serão os Bandeirantes que encontrarão as primeiras jazidas de ouro na região das Minas Gerais, o que inauguraria, no final do século XVIII, no Brasil Colonial, o Ciclo do Ouro. Guiados pelos bugres (índios escravizados), os Bandeirantes adentravam a mata abrindo caminhos e estradas. Na sua matolagem, leva- vam mantimentos, como a farinha de pau ou de guerra, que era torrada em tachos de barro. Para cozinhar, usavam uma trempe ou montavam um fogareiro com pedras e ali aqueciam seus caldeirões. A falta de comida seria suprida pelas roças de subsistência, uma vez que, por onde passavam, deixavam plantadas raízes, abóboras, milho e feijão. Comida era pouco farta, mas sempre de sustância, em que a rapadura era uma cons- tante juntamente com a farinha de milho ou de mandioca, o toucinho, o feijão e as frutas que encontravam pelo caminho. Seu café da manhã era composto pela jacuba, pirão apreciado nesses tempos, conforme podemos imaginar na descri- ção de Freixa e Chaves (2012 p. 185): “O café da manhã habitual dos bandeirantes era um prato chamado jacuba, espécie de pirão feito com fari- nha de milho socada, sobre a qual se derramava água fervente, adoçada com rapadura”. A corrida pelo ouro trará aventureiros de todo o Brasil e gente ainda de Portugal, o que promoverá um rápido desenvolvimento da região das Minas Gerais em diversas dimensões: urbana, cultural, econômica e social (geração de novos empregos). Isso implicará, inclusive, a mudança da capital da colônia para a região su- deste, ou seja, de Salvador para o Rio de Janeiro. Por outro lado, essa superpopulação causará um desabastecimento da região mineira, em relação a produtos básicos, tais como alimentos e vestuário. Os viajantes ou tropeiros terão uma grande importância nesse período, uma vez que serão eles que abastecerão as regiões mineradoras com C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z animais de carga e mantimentos. Esses animais vinham do Rio Grande do Sul, mais especifica- mente dos Pampas, em direção a São Paulo, onde os viajantes se abasteciam de mantimentos para seguirem à região mineradora. As farinhas de milho e mandioca, o charque, o toucinho, a ra- padura e o feijão não podiam faltar. No que diz respeito a sua comida, ela se assemelhava à do bandeirante, com pequenas diferenciações, uma vez que também era comida de matolagem. Usavam com maior frequência a carne de porco, deste era aproveitado quase tudo: eram salgados as orelhas, o rabo e os pés, e a banha era usada para conservar as outras partes. Uma forma de enfrentar a dificuldade de abastecimento foi o desenvolvimento das roças caseiras, que cultivarão a comida de todos os dias: a couve, o milho, o feijão, a mandioca e alguns animais, como a galinha e o porco. Já a carne de boi virá mais tarde apenas, com o declínio da mineração. Assim, teremos nesse período o desenvolvimento da cozinha caipira, de fundo de quintal, resultado da escassez de produtos e da carestia dos insumos na região das Minas Gerais. Assim, a comida de viagem se mistura com a comida de fundo de quintal, com suas farinhas, paçocas de carne, os farnéis, a carne seca, a comida de tropeiro e as roças. Em nossas aulas conceituais, aprende- remos a manipular, utilizar e cozinhar da melhor maneira muitos dos ingredientes típicos da cozinha brasileira estudados nesta unidade. Pratique bastante! 33G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R E que tal, para nosso almoço de hoje, uma receita da obra Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria, do início do século XVI? Receita de Galinha Mourisca Tomareis uma galinha crua e fá-la-eis em pedaços. Então metê-la-eis numa panela e tomareis uma cebola e salsa, coentro e hortelã, tudo verde, e segá-lo-eis como para salada, e com duas colheres de manteiga e uma talhada de toucinho tamanho como meio ovo, e isto tudo dentro da panela com a galinha e com tudo bem afogada. E dês que for afogada, deitar-lhe-ão água, quanta bastar para se cozer a galinha, porque lhe não hão-de tornar a deitar mais água. E dês que for acerca cozida, deitar-lhe-ão os adubos e deitar-lhe-ão sumo de limões. E depois que for muito bem cozida tomareis um pão e fatiá-lo-eis num prato, e deitareis a galinha em cima, e por cima da galinha poreis umas gemas escalfados, e por cima canela pisada. Fonte: Convidei... (2012, online). C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z 35G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Cozinha do Brasil: Monarquia e Império O presente período, o Brasil Imperial, apresenta uma cozinha ca- racterizada pela vinda da família real para o Brasil. Só para refrescar nossa memória, querido(a) aluno(a), Portugal, em janeiro de 1808, estava em via de ser invadida pelas Tropas Napoleônicas francesas. O príncipe regente D. João, sem condições de enfrentar Napoleão, foge com a corte para o Brasil Colônia. A vinda da família real trouxe para a Colônia o status de Reino Unido de Algarves. Com a família real, vieram assessores, funcio- nários, criados, pessoas infl uentes na corte. Trouxeram, também, muitos objetos de valor, obras de arte, dinheiro, documentos, livros e tudo aquilo que puderam trazer. E o que você acha que comia o povo brasileiro nesse período? Bom, segundo estudiosos, de maneira geral, o que se comia de carne, por exemplo, o que era mais comum nas casas da maioria, era a carne de porco, já a de vaca, era uma preciosidade, reservada para os dias de festa. E temperavam suas comidas usando gengibre, pimenta, alho, azeite e gordura. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z A Europa desse período já era uma grande consumidora da boa mesa e do bem receber, já havia, na França e na Itália, a profusão de restaurantes e casas de chá e café; o serviço im- pecável à la russe, que substitui o à la française;as louças vindas da Inglaterra ou China; os ma- nuais da cozinha burguesa; Carême, com seus molhos e sua confeitaria. Napoleão, apesar de não ser um grande gourmet, apreciava um bom champanhe, ao ponto de dizer em relação a essa bebida uma frase que não me esqueço: “se ganho mereço, se perco preciso”. A mesa francesa tinha, para ele, um sentido de diplomacia, pois era em torno dela que grandes decisões políticas eram tomadas. Assim, é nesse contexto vivido pela Europa que chega a Coroa portuguesa ao Brasil. Dessa maneira, a corte portuguesa que aqui chegou já conhecia alimentos mais sofisticados e variados, pratos elaborados e, apesar de pro- vinciana aos olhos do restante da Europa, já consumia a boa mesa, como nos orienta a autora Romio (2000, p. 109): Assim da cozinha imperial que desembarcou no Brasil, faziam parte preparos diver- sos de todo o tipo de carne – de vaca, de vitela, de carneiro, de porco, veado, coelho, galinha, frango, peru, pato, pombo perdiz, codorna. Do que vivia na água do mar e dos rios, a variedade era igualmente grande, com receita a base de peixes como dou- rados ou pagos, além de pescadas, anchovas, bacalhaus, arraias, lagostas, camarões, ostras, lampreias, mexilhões. Os molhos salgados eram muitos, verduras e legumes costumavam ser empregados mais em refogados e sopas, mas as saladas, já eram apreciadas, enquanto as massas apareciam em tortas e empadões, em biscoitos e pães, e os doces uma tradição definitiva, haviam ganho o requinte na corte. D. João, assim que chegou, tomou duas decisões importantíssimas para a economia brasileira: a Abertura dos Portos às Nações Amigas e o fim do decreto que proibia a abertura de indústrias no território nacional. A Abertura dos Portos veio a beneficiar, em particular, a Inglaterra, que havia escoltado Portugal até a Colônia, uma vez que tinha interesses comerciais (mais tarde, passará a dominar o comércio com o Brasil). Entre ações importantes, destacamos: a cons- trução de estradas, a melhoria dos portos, a entrada do chá, a volta do desenvolvimento agrícola, bem como a instituição de ministérios, como o da Marinha, o de Guerra e o da Fazenda. 37G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Foram estabelecidos órgãos para o andamento do governo, como: o Banco do Brasil, a Casa da Moeda, a Junta de Comércio e o Supremo Tribunal. Tiveram investimento também as áreas educacionais e culturais, nesse sentido, podemos mencionar a vinda da Missão Cultural Francesa, em 1816, que veio ajudar a fundar a Escola de Belas Artes. Ainda, tivemos as Escolas de Ciências, a Escola de Medicina e Cirurgia, dentre tantas outras contribuições. Nesse período, os alimentos como leite, carne e vegetais eram vendidos em feiras livres ou nas ruas pelos escravos (escravos de ganho) a mando de seus senhores. Eram vendidos também pelas escravas os quitutes, os pães de ló, os quindins de iaiá, o acarajé, os sonhos etc. Passamos então a ter em nosso território a corte, com toda a sua pompa e glamour. Por esse motivo, desenvolve-se no Rio de Janeiro toda uma estrutura de cidade, o que a tornou mais moderna e cosmopolita. Era possível fazer passeios públicos pelas praças onde havia chafarizes, nessa perspectiva as ruas e estradas, a iluminação pública, a inauguração do primeiro jornal, tudo isso foi construído para servir a corte. Com a abertura dos portos, a corte e os barões irão ter acesso aos produtos estrangei- ros: chás, carnes embutidas, amêndoas, azeite, manteiga, dentre outros. Nas suas fartas mesas, não poderiam faltar os vinhos, champanhes e a etiqueta europeia, com suas louças e talheres. Mas o povo comum continuará a ter uma alimentação escassa Os alimentos disponíveis no mercado também deixavam a desejar. A carne de boi era muito ruim, em razão da longa dis- tância entre os centros produtores e a nova sede do Reino. Transportado a pé, o gado chegava magro e cansado sendo abatido antes que pudesse se recuperar. A variedade de peixes frescos posta à venda era peque- na [...] o leite e manteiga, toda importada, eram intragáveis (ZARVOS, 2000, p. 108). Os mais abastados da capital carioca, a maioria de origem portuguesa, vão desenvolver uma cozinha que imitará a corte no uso de produtos importa- dos, adaptando-os aos pratos nacionais. A cozinha desse período será marcada por uma mistura dos costumes da capital cosmopolita e alguns requin- tes internacionais. Como exemplo, temos o chá, que passa a ser instituído nessas casas: Logo após terem se haverem reunidos todos, as senhoras sentadas, juntas em círculo ce- rimonioso e os homens em pé, geralmente em outras peças, começou a cerimonia de se tomar chá e foi dirigida mais lindamente do que na Inglaterra, os criados serviram em torno chá, café e bolos em grandes salvas de prata. Mas todas sentamos e tomamos nossos alimentos a vontade, em vez de ficar- mos em pé com as xicaras em nossas mãos (ZERON; BRUNO, 2000, p. 64). As recepções da corte, com suas mesas sempre fartas de boa comida e muita gente, eram ban- quetes, ceias e jantares. Após as tradicionais sopas de presunto, engrossadas com pães, eram 39G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R degustados patos assados com vinho, empadões de peixe, tortas de limão. D. João marcou nossa culinária, no sentido de ser um apaixonado por ela, e seus ingredientes, principalmente as galinhas, que dizia ter sabor inigualável. O rei as comia em grandes quanti- dades, em todas as refeições: “três no almoço, três no jantar e três na ceia” (ZARVOS, 2000, p. 111). Isso sem falar nos momentos de lazer, em que a galinha também se fazia presente. Também não faltavam na corte a farinha de mandioca, a carne seca, a pimenta e a banana. Eram aprecia- dos igualmente o chouriço com arroz, a galinha mourisca, o bacalhau e o pão de trigo, comum já na Europa, mas desconhecido em nossas terras. Em relação ao pão de trigo, esse que come- mos em nosso café da manhã, com manteiga e molhado em uma xícara de café, ele até então era desconhecido do brasileiro, que só comia pão de mandioca e milho. Em um primeiro momen- to, ele era exclusivo da mesa real, mas é nesse período que ele ganhará as ruas do Rio de Janeiro, como nos esclarece Romio (2000, p.113): Aos poucos, porém, a mania foi pegando, e dos fornos reais o pão de trigo ganhou as ruas, passando a ser conhecido como pão francês, segundo se supõe, pela pre- sença da missão francesa na cidade. Do mesmo modo, outras receitas com so- taque francês foram fazendo parte do almoço e do jantar nacionais, entre as quais as batatas preparadas de manei- ras diversas, tendo caído no gosto da maioria os purês. O serviço da mesa dessa monarquia era composto por aproximadamente trinta pratos (imaginem como se lavava essa louça), todos elaborados pela cozinha real, que era formada por cozinheiros reais vindos de Portugal e cozi- nheiras negras que conquistaram o paladar do rei. Não podemos deixar de comentar que, além do alto custo de sustentar toda essa corte, havia um outro problema, que era o da disponibilidade de ingredientes, que eram raros na região. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Se, por um lado, a Corte esbanjava e o Brasil se vangloriava por ter deixado de ser Colônia, em Portugal, começavam as Revoluções pela volta do rei. Em 1821, D. João volta para Portugal e deixa em seu lugar seu fi lho como Príncipe Regente. Em 7 de setembro de 1822, D. Pedro declara a Independência de nosso país e se torna, na sequência, Imperador do Brasil. Nosso imperador foi outra personalida- de apaixonada pelo Brasil, desfrutou da boa música, compondo, e da boa mesa. Como com- positor, compôs o nosso hino da independência, em sua mesa, havia preferência pela carne de porco com toucinho da terra com arroz, que era devorado apósa sopa, simples, composta por caldo de carne e legumes. Após dez anos de governo e depois de ter ou- torgado a nossa primeira Constituição, diante de desgastes políticos, o imperador abdicou de seu trono, voltando para Portugal, deixando em seu lugar o fi lho, D. Pedro II. Nesse período, caro(a) aluno(a), temos que destacar a intensifi cação da produção de café em nossos territórios e a fomen- tação da cultura (principalmente pelo perfi l de D. Pedro II, que era muito estudado e viajado), houve nessa época desenvolvimento de ferrovias e de telégrafo, que contribuiu para o progresso e, principalmente, para o fi m da escravidão. Esse grande desenvolvimento da cultura brasileira fez fl orescer a manifestação de escri- tores e pintores nacionais. D. Pedro II gostava de dançar e tinha hábitos simples à mesa: O soberano era homem de costumes simples à mesa. Comia pouco e de forma simples no cotidiano. No café da manhã tinha como hábito comer ovos e café com leite. Como contam os estudiosos, ele gostava muito de canja, que tanto podia ser prepara- da ao modo tradicional, com galinha, quanto com a ave nativa do Brasil o macuco. Até no intervalo das peças de teatro, um de seus passeios favo- ritos, tinha o hábito de tomar a sua canja. [...] tomava água com açúcar como refresco. Gostava também de doces simples como o fi go (FREIXA; CHAVES, 2012, p. 200). Isso mesmo, caro(a) aluno(a), o imperador era fanático por canja (a tomava inclusive de macuco) e, por dançar, era um pé de valsa, ou melhor, de quadrilha, dá para acreditar? Há rela- tos de que ele chegava a dançar doze quadrilhas em uma só noite. Gostava muito, também, de pratos simples, como o pirão, sem sal e tempero, que era apreciado pelas modestas casas, para acompanhar seus pratos em dias de festa, ou como prato único do dia a dia. Voltando a falar da mandioca, essa ainda será o principal ingrediente da mesa brasilei- ra, juntamente com o milho. A mandioca era plantada em todas as províncias nacionais, sendo a sua farinha a principal substituta do pão, que ainda era caro e raro. A esse respeito, podemos complementar com que diz Lima (1999, p. 69): 41G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R A casa do imigrante, normalmente possuía uma cozinha fora do corpo principal, em torno da qual tudo girava. Nesse compar- timento, além da atividade óbvia de cozi- nhar, faziam-se as refeições, praticava-se a higiene diária, que consistia em lavar pés, mãos e rosto, depois de um dia de trabalho, e ainda reuniam-se as famílias para rezar o terço, após o jantar. Era aí, que no caso dos italianos, que se dava os fi lós, reuniões com conhecidos e vizinhos, em que se conversava, jogava, cantava e inicia- vam os namoros. A cozinha era construída fora da moradia, em função do temor de incêndios, especialmente no caso dos ita- lianos, que cozinhavam sobre o “fogolaro”, um buraco na terra, feito no meio desse compartimento, em cima do qual se colo- cava a lenha a que ateavam fogo. Fonte: Lima, (1999, p.122). C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z A farinha continuava a substituir com- pletamente o pão, era consumida pura, sem nenhum preparo, ou com qualquer substância, como carne, feijão, toici- nho etc., em todas as refeições. Para o estrangeiro, era algo estranho, ver na mesa alguém moldar com a ponta da faca, ou fazer pequenas bolas de farinha, molhada, que depois, metia na boca. Mas a mesa imperial mantinha seu requinte por meio do modelo francês, inclusive com seus cozinheiros únicos e com o desenvolvimento de menus (aliás é nesse período em que essa palavra aparece no Brasil). Enfim, há um afran- cesamento de tudo. O luxo ainda era obrigatório, ferramenta de diferenciação das classes, o que a corte sabia muito bem e a alta sociedade que se desenvolvia, também. Nas festas oferecidas ao imperador e à imperatriz, todo o protocolo era cumprido, desde a sequência clássica de um menu até o aparato de sala e serviço, os quais eram todos de prata ou de ouro. No tocante aos cozinheiros, temos algo muito importante, que é a figura do cozinhei- ro do imperador, que era quem comandava a cozinha do palácio, nesse sentido, veremos pela primeira vez no Brasil o destaque dessa pro- fissão. Aparece então nesse período o nome de R.C.M., que se manteve no anonimato pela importância do cargo (seria uma questão de sigilo e segredo de estado), afinal era ele quem preparava as comidas do imperador. Outro ponto importante é o desenvolvi- mento dos primeiros livros de cozinha, no ano de 1840, teremos o primeiro livro escrito e pu- blicado no Brasil, O Cozinheiro Imperial, que é um apanhado das receitas de R.C.M. Outra obra de destaque que aparecerá anos mais tarde e retratará também os costumes da corte será O Cozinheiro Nacional. Ambos, apesar de seguirem a estrutura portuguesa, com receitas lusas de influência francesa, não deixam de destacar a nossa cozinha, sendo um marco para a culinária brasileira: “Se O Cozinheiro Imperial quer suprir a falta de um manual dos artistas da cozinha, O Cozinheiro Nacional busca ser um manual de co- zinha nacionalista, cozinha em tudo Brasileira” (BRUIT, 2008, p. 28). E, por último, não posso deixar de falar do café, afinal de contas, essa bebida caiu no gosto do brasileiro, dessa época até os nossos dias. O café terá nesse período um grande desenvol- vimento da sua produção, vindo a dominar a produção mundial. Foi através do desenvolvimento dessa cultu- ra que grandes famílias prosperaram, formando os barões do café, como bem foi ilustrada a cul- tura popular brasileira na novela Sinhá Moça. As fazendas cresceram e prosperaram, principal- mente na região do oeste de São Paulo, abrindo estradas, preparando mão de obra, primeira- mente, escrava, e posteriormente, imigrante. A riqueza do café trouxe as estradas de ferro e suas estações, bem como o porto de Santos 43G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R (onde se negociava o café, seu preço), por onde chegavam os viajantes, os negociantes, as pesso- as indo e vindo, as quais ora estavam a trabalho, ora em busca de entretenimento nas Cafeterias, nas Confeitarias e nos Restaurantes da capital paulista e carioca. Apesar dessa aristocracia, formada pelos barões do café, copiar a influência francesa, a sua cozinha cotidiana será aquela cozinha do interior paulista (formada pelo tropeiro, ban- deirante) e será essa que prevalecerá, como podemos detalhar: No almoço comia-se, por exemplo, frango ensopado, cuscuz e virado à paulista. Na ceia, à luz do lampião de querosene, havia caldos e sopas. No café da manhã ou da tarde, não faltavam o bolo de fubá com erva-doce, o pão de queijo, a geléia de laranja-cavalo azeda e os sequilhos (FREIXA; CHAVES, 2012, p. 203). Com a chegada do imigrante, que veio para subs- tituir a mão de obra escrava, teremos mais uma grande contribuição para a formação da nossa cultura gastronômica, tema sobre o qual tra- taremos nos próximos tópicos de forma mais minuciosa. Para concluirmos, chegaram ao Brasil, no porto de Santos, imigrantes vindos da Europa, Oriente Médio e, mais tarde, Japão. Inicialmente, a maioria era originária da Itália, que se estabeleceu nas fazendas de café do in- terior, ou na capital paulista, trabalhando nas fábricas que já começavam a se desenvolver. Em suas malas, trouxeram uma cozinha nova que irá se adaptar ao paladar do brasi- leiro: suas macarronadas, seus molhos, a po- lenta, suas sopas, antepastos, pizza, técnicas de produção de queijo, salames, o vinho e as cantinas. E foi dessa maneira, querido(a) alu- no(a), que foi se consolidando a sociedade brasileira. No final do século XIX, as famílias mais abastadas mandavam seus filhos para a Europa estudar e copiavam tudo da França. A Belle Époque influenciaria também o Brasil, sendo uma oportunidadepara a elite apare- cer, em suas confeitarias, teatros, com suas roupas, por meio da sua comida e comporta- mento à mesa. Encontraremos também nesse período a abertura da mais antiga confeitaria brasileira, a Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro. Complemente seus estudos e aprimore seus conhecimentos revisitando o material didático da disciplina de História e Cultura Brasileira! C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z co ns id er aç õe s fi na is Enfim, querido(a) aluno(a), chegamos ao final de nossa primeira unidade, espero que tenha sido tão gratificante para você quanto foi para mim. Gostaria de deixar claro a você, aluno(a) do EaD de Gastronomia, que uma cozinha se forma a partir de uma cultura, de um sentimento de pertencimento, de uma identidade: não há cozinha sem memória. Dessa maneira, considero muito importante conhecer as bases da formação da gas- tronomia brasileira. Em um primeiro momento, como tivemos a oportunidade de ver, nossa cozinha foi influenciada pela cultura indígena, que deixou a maior de todas as he- ranças, que permanece até os dias de hoje, a ciência da mandioca. Nesse sentido, pudemos observar a infinidade de coisas da qual é possível obter de um único ingrediente. Hoje, por exemplo, ministrei uma aula de cozinha indígena e pude reafirmar juntamente com meus alunos o quanto esse ingrediente é versátil. Da sua polpa, extraímos os polvilhos, que resultarão no pão do brasileiro (beiju e a tapioca), e infinitos tipos de farinhas; já de seu suco, podemos obter, por exemplo, o tucupi. As mandiocas doces, quando cozidas, podem ser consumidas pura, com mel, na gordura, no mingau etc. Vimos, também, que nossa cozinha não ficou só nisso, o português trouxe na sua bagagem as técnicas, tecnologias, novos ingredientes e novos sabores, dentre eles, po- demos citar os embutidos, os doces, o vinho. Foi da mão da mulher portuguesa que o brasileiro comeu galinha, conheceu o ovo, apreciou muitíssimo a doçaria, os cozidos, a fritura, o azeite doce, a manteiga, o porco e, mais tarde, o boi. A mulher portuguesa tem um papel decisivo em nossa cozinha, trouxe técnicas e receitas, que foram adaptadas por ela em nossa terra. Foram os portugueses, principalmente com a chegada da família real, que trouxeram o requinte para a mesa, para as festas, para o cardápio e a pompa. Já da cultura africana, vamos ter a ginga dessa cozinha, pois a técnica será do por- tuguês, mas a execução no dia a dia será feita pela negra escrava habilidosa, que colocou a sua pitada de sabedoria na técnica portuguesa. Será a negra quem dará o tempero, quem dará a cor a essa culinária com sua criatividade. Dessa maneira, essa cozinha brasileira terá na sua base a mistura do índio, do negro e do português. Será miscigenada, com a influência de cada um desses povos. 45G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R at iv id ad es d e es tu do1. Em relação à mandioca, classifique-a segundo a sabedoria indígena e discorra sobre seu uso nessa cozinha. 2. O índio costumava temperar sua comida? Se sim, de que maneira ele fazia? 3. Fale um pouco sobre a alimentação dos bandeirantes. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z le it ur a co m pl em en ta r O marco inicial para a construção do presente trabalho foi o trabalho escravo no Brasil. Observa-se certa invisibilidade histórica, no campo da nutrição, quando se trata da ali- mentação dos escravos e de sua relação com o processo de trabalho, dado que os artigos analisados, em sua maioria, contextualizam o tema tomando como ponto de partida a criação do Saps. Tal escolha, por parte dos autores, pode ser explicada pelo papel desse serviço no âmbito da alimentação do trabalhador brasileiro, uma vez que é considerado o primeiro órgão responsável por uma política social de alimentação no Brasil, sendo uma referência não apenas para a alimentação do trabalhador, mas também para a própria gênese do campo da nutrição brasileira. Os escravos formaram os primeiros coletivos de trabalhadores agrícolas e das minas, nos serviços da era colonial. Antes de aportarem no Brasil, muitos morriam ainda nos navios negreiros, em virtude das péssimas condições em que eram transportados. Em que pese o fato de a alimentação do escravo no país não ter sido tema central dos artigos analisados, algumas publicações trazem questões importantes que serão aqui apresenta- das. Pessoa (2005), por exemplo, em “O escravo negro nos primeiros escritos coloniais (1551- 1627)”, contabilizou sete citações em torno da alimentação dos escravos. Três delas, as que seguem, segundo o autor, estão no Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares: A primeira é sobre um tubérculo muito utilizado na ração dos moradores do Brasil, especialmente dos negros: da ilha de Cabo Verde e da de São Tomé foram à Bahia inhames que se plantaram na terra logo, onde se deram de maneira que pasmam os negros de Guiné, que são os que usam mais dele; e colhem inhames que não pode um negro fazer mais que tomar um às costas. Os dois trechos seguintes são sobre uma espécie de milho com ocorrência em todo o Brasil, denominado ubatim pelos índios: “milho de Guiné, que em Portugal chamam zaburro”. A propósito de sua utilidade disse o letrado: “plantam os portugueses este milho para mantença dos cavalos e criação das galinhas e cabras, ovelhas e porcos; e aos negros de Guiné o dão por fruta, os quais o não querem por mantimento, sendo o melhor de sua terra”. Acerca das espécies de bananas existentes na América Portuguesa: “há outra casta que os índios chamam pacobamirim, que quer dizer pacoba pequena, que são do comprimento de um dedo, Marco inicial – da senzala ‘invisível’ ao Serviço de Alimentação da Previdência Social 47G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R le it ur a co m pl em en ta rmas mais grossas; essas são tão doces como tâmaras, em tudo mui excelentes”. Sobre quem mais as tinham em boa conta como alimentação, disse o letrado: “os negros da Guiné são mais afeiçoados a estas bananas que às pacobas, e delas usam nas suas roças”. Nem tudo na América Portuguesa, no entanto, em relação à alimentação, era ‘tão doces como tâmaras, em tudo mui excelentes’... “os mantimentos, de que se sustentam os moradores do Brasil, brancos, índios e escravos de Guiné, são diversos, uns sumamente bons, e outros não tanto”. Na base alimentar dos moradores do Brasil, por ordem de importância, estava: a mandioca, o arroz e o milho. O último desses alimentos interessa-nos particularmente, pois, “é mantimento mui proveitoso pera sustentação dos escravos de Guiné e Índios, porque se come assado e cozido e também em bolos, os quais são muito gostosos”. O Aquês, uma espécie de coco, era um outro mantimento comum na dieta alimentar dos habitantes do Brasil, com qual se “sustenta grande parte do gentio da terra e dos negros de Guiné”. Haveria, ainda, que mencionar os caranguejos, outro alimento da terra, que se tornaram o verdadeiro “sustento dos pobres, que vivem nela e dos índios, naturais e escravos de Guiné”, como também a cana-de-açúcar, da qual se extrai um vinho “que para o gentio da terra e escravos de Guiné é maravilhoso” (p.35). Fonte: Araujo (2010, p. 975-992). C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z m at er ia l c om pl em en ta r História da Alimentação no Brasil Luís da Câmara Cascudo Editora: Global Ano: 2004 Sinopse: Obra de referência nessa primeira unidade. Essa obra é de uma grandiosidade singular, por retratar a cultura brasileira, com uma riqueza até então não conhecida. Cascudo é o primeiro estudioso a tratar do cotidiano do brasileiro – a alimentação. Considerada obra imprescindível para todo brasileiro, princi- palmente nós que ansiamos conhecer a nossa cultura alimentar. A formação da culinária brasileira Carlos Alberto Doria Editora: Três Estrelas Ano: 2014 Sinopse: Obra incrível, inovadora e polêmica.Combinando eru- dição e clareza, sólida pesquisa, estilo polêmico, o autor apre- senta a trajetória da nossa cozinha até os dias de hoje. O autor encerra o livro com um conjunto de propostas para a renovação da gastronomia brasileira. A cultura nacional da cachaça foi cantada pela cantora e compositora Inezita Barroso, em Marvada Pinga. Confi ra essa “moda da pinga” no link: <https://www.youtube.com/watch?v=x0aevIBTMi8>. Acesso em: 19 out. 2015. Revista Nossa História Acesse o link a seguir e leia um interessante material sobre a mestiçagem dos alimentos. Disponível em: <http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portu- gues/revista13-mat2.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2015. 49G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R m at er ia l c om pl em en ta r Mauá o Imperador e o Rei Ano: 1999 Sinopse: Considerado o primeiro empreendedor brasileiro, Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), ao longo do século, foi responsável por uma série de inciativas modernizadoras que mudariam o Brasil. O fi lme retrata a época do ápice da escravi- dão e sua decadência, mostrando a importância das fazendas de café e seus barões, bem como a formação da sociedade brasileira nesse período. Mauá defendia o fi m da escravidão e o desenvolvimento da indústria brasileira e era contra as ideias das oligarquias do café. A Muralha Ano: 2000 Sinopse: A trama se passa por volta de 1600, época em que os bandeirantes buscavam terras cultiváveis, riquezas e índios para serem vendidos como escravos. A muralha do título refe- re-se à serra do Mar, o maior obstáculo às incursões ao centro do país. Do outro lado da muralha, nas cercanias da vila de São Paulo, na fazenda de Lagoa Serena, mora Dom Braz Olinto (Mauro Mendonça), um patriarca que lidera sua família e sua bandeira com muito trabalho e sacrifício. Sua luta principal é dominar e vender mão de obra indígena, adquirida por meio das emprei- tadas feitas ao interior. Nisto se difere de seu fi lho Tiago Olinto (Leonardo Brício), que vê na conquista do ouro a grande razão para seu empenho pessoal. Criado no Colégio dos Jesuítas, Tiago é contra a dominação e o desrespeito aos índios, o que torna o confl ito entre ele e seu pai inevitável. Cozinha Regional Brasileira: o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste ANDREA CRISTINA SHIMA DA MOTTA A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • Cozinha Regional: Região Sul • Cozinha Regional: Sudeste – São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo • Cozinha Regional: Centro-Oeste • Estudar na literatura especializada a formação da cozinha regional. • Resgatar na literatura especializada a formação da cozinha regional. • Compreender e contextualizar os elementos formadores da cozi- nha de cada região. • Entender a identidade da cozinha dessa região. Plano de Estudo Objetivos de Aprendizagem IntroduçãoIntrodução Olá, querido(a) aluno(a), estamos de volta, agora, em nossa segunda unidade para continuar nosso bate-papo sobre a cozinha brasileira. Se na primeira unidade falamos sobre a formação da cozinha de raiz, neste momento, trataremos das cozinhas regionais. A nossa cozinha é resultado de uma miscigenação de povos e culturas, sobretudo, do índio, do português e do negro, em um primeiro momento e, posteriormente, dos europeus e de outros povos que aqui chegaram na busca de uma terra melhor para se viver, de uma terra que tudo que se planta dá, como dizia Pero Vaz de Caminha, em sua Carta, descrevendo essa nossa terra. Poderemos observar que a essência de nossa cozinha pode ser considerada, de certa manei- ra, muito simples, cotidiana talvez, mas nem por isso fácil e comum. Tomemos como exemplo alguns ingredientes, como o jambu, que, quando colocado em uma moqueca paraense, torna esse prato único pela complexidade de um único ingrediente. Consideramos, neste estudo, que a culinária é patrimônio cultural de um povo. Essa é a bandeira do Instituto ATÁ1 no slogan “Gastronomia é cultura que se come”. É preciso diferenciar o povo e a comida regional, que é uma poderosa ferramenta para diferenciar o ser brasileiro. O que gostaria de propor é uma sistematização dessas regiões e um estudo delas, tomando por base a divisão tradicional proposta pelo IBGE, que divide o Brasil. Nessa perspectiva, cada cozinha irá mudar de região para região, cada uma delas irá apresentar suas comidas, suas pre- ferências, suas técnicas e sabedoria, sendo isso o que torna o nosso país tão rico e farto. Vamos reconhecer as pamonhas de milho, que aparecem em minas e no centro-oeste, nessa região, podem ser feitas com linguiça e queijo; no sul, teremos o arroz carreteiro do Sul e suas abóboras que mudam de nome conforme subimos o mapa do Brasil, bem como outros exemplos. Essa é a cozinha regional do brasileiro. Vamos seguindo! 1 Disponível em: <http://www.institutoata.org.br/pt-br/index.php>. Acesso em: 03 nov. 2015. 53 C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z 55G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Cozinha Regional: Região Sul Para falarmos do Sul do Brasil, convido você para sentar na roda do chimarrão e participar dessa conversa. A região sul, conhecida como uma das regiões mais ricas do Brasil, economica e cultural- mente, é formada pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Só para nos situarmos, a título de conhecimento, há de se comentar que, no início da colonização portuguesa, a região do Paraná fazia parte da Capitania de Santo Amaro e, em 1539, passou à autoridade da Capitania de São Vicente, nesse período, era habi- tada por descendentes de portugueses, espanhóis, índios e negros. No século XVII, já existiam as vilas de Paranaguá e Nossa Senhora dos Pinhais – Curitiba. Como nas demais regiões brasileiras, seu povoamento se deu, em um primeiro momento, pela busca de riquezas, o ouro e a prata. Já no século XVIII, após o ciclo do ouro, criadores de gado ocupavam esse território, e tropeiros já eram responsáveis pelo comércio entre o Sul e Sudeste brasileiro. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Dessa maneira, as figuras do tropeiro e do bandeirante se farão presentes também nessa região, que receberá, a partir do século XIX, um grande fluxo de imigrantes. A cozinha do Sul será primeiramente desenhada pelos bandeiran- tes, mas foi a influência do imigrante europeu, a partir do século XIX, que realmente definiu essa cozinha regional da maneira como é conhecida hoje. Em relação à alimentação desse período, podemos destacar o milho, o feijão e a mandio- ca, dentre outros ingredientes. Como afirmam Fisberg, Wehba e Cozzolino (2002, p. 83): Tinham, ressalvando-se algumas dife- renças regionais, como base de sua ali- mentação o milho, o feijão, o aipim, a batata, o trigo, o arroz, o charque, a carne de suínos e em menor escala a de bovi- nos, além de leite e de alguns derivados. Haviam também na região plantações, e se consumiam frutas e hortaliças, como laranja, pêssego, ameixa, amaça, jabuti- caba, pera marmelo, limão e uva, além de couve cebola e batata. No litoral, o peixe e a mandioca, eram amplamente utilizados. Esta última, transforma- da em vários tipos de farinha, era um componente indispensável em pratos como tapioca, pirão, o virado de feijão e os bolinhos que são típicos do litoral paranaense. A presença dos tropeiros também foi decisiva na cultura paranaense, colaborando com o sur- gimento de povoados e introduzindo pratos, como seu feijão tropeiro e a quirera. Essa última é prato típico da região dos Campos Gerais, da Lapa – Quirera da Lapa, região que recebeu forte influência dos tropeiros. Mas de onde vem essa cozinha tão diver- sificada que aparece nos traços do seu povo? O sul do país teve uma decisiva contribuição do imigrante, que veio em duas etapas, tendo a primeira (metade do século XIX) o intuito de desenvolver e ocupar a região sul;já a segunda leva veio como uma solução encontrada pelo governo e proprietários de terra para a falta de mão de obra escrava, ocasionada pelo fim da escravatura (abolição em 1888). Dessa maneira, vieram na primeira leva o italiano, o alemão e o açoriano e, na segunda leva, os sírio-libane- ses, os árabes, os ucranianos, os poloneses e os japoneses. O Paraná, estado que tem como símbolo a araucária, árvore que produz o pinhão (co- nhecido como pinheiro-do-paraná), é o estado que teve maior diversidade étnica do Brasil. Vieram alemães, italianos, ucranianos, japo- neses, árabes, holandeses, portugueses, dentre tantos outros. Observaremos que o imigrante se espalhou, no Sul principalmente teremos uma cozinha com forte influência dos alemães, ucranianos e italianos. No sudeste, gaúchos e catarinenses. Já no norte do estado, dentre tantos povos, o japonês se destacou. O alemão trouxe suas festas e danças tí- picas, juntamente com suas comidas, sendo grande mestre da charcutaria, trouxe as suas salsinhas a serem degustadas com mostarda 57G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R preta, o einsben, o repolho azedo e sua cerve- ja. Os ucranianos, presentes principalmente em Prudentópolis e Mallet, apresentaram-nos as sopas, como a borshe (à base de beterra- ba), o pirohei, feito em todas as casas, o trigo mourisco, como chama o sarraceno. O pirohei, ou pierogi do polonês, é um pastelzinho que, normalmente, é recheado com requeijão (que lembra uma ricota) ou batata e é servido com cebola queimada. Uma amiga que tem essa ascendência sempre o prepara, servindo de sobremesa a torta de ricota. Na páscoa, em cidades com forte influência ucraniana, preser- va-se a pêssanka, tradição de pintar/decorar a casca do ovo de galinha. E m Curitiba, capital paranaense, ob- servamos a diversidade da influên- cia do europeu, a qual resultou em uma cidade onde encontramos o artesanato ucraniano, as casas de chá polone- sas, os inúmeros restaurantes alemães e um bairro italiano, chamado Santa Felicidade, onde é servido, além de outras tipicidades, um legítimo frango caipira com polenta e radicci (almeirão). Na rica gastronomia pa- ranaense, também cabem o leitão desossado e recheado, o porco no rolete, o carneiro ao molho de vinho e o quase primitivo carnei- ro no buraco, muito consumido em Campo Mourão. C o z i n h a B r a s i l e i r a d e R a i z Em razão do desenvolvimento da pecuária, a carne tornou-se o principal ingrediente da alimentação, dando origem aos mais variados pratos, dentre eles, o prato típico desse estado, o barreado, que teve origem nas regiões de Antonina e Morretes, e é servido principalmente como um prato especial da noite de ano novo. Como podemos acrescentar: Nos sítios dos pescadores do litoral, o barreado comemorava a noite de 31 de dezembro. Comia-se a carne bovina por singularidade, já que ao ano se ali- mentavam de peixes, mariscos e pirão de farinha de mandioca. A população desejava um alimento não comum na passagem do ano, precedido de pinga. O barreado foi servido a caboclos que iam às vilas levar produtos da lavoura e incorporou-se ao entrudo, precursor do carnaval. Independentemente do uso, é símbolo de fartura, festa, alegria. Sua provável origem está nos moqueados indígenas, envolvidos em folhas de ba- naneira, enterrados e cozidos por doze horas, ao calor da fogueira acesa sobre eles. Não se esqueça da influência por- tuguesa (ARAÚJO, 2005, p. 62). Destacam-se, ainda, na sua gastronomia ingre- dientes como o pinhão, que não poderia faltar, típico dessa terra, fruto do pinheiro, que vem da araucária. Ele é consumido no inverno por toda gente, sendo cozido nas casas e servido em ocasiões como as festas juninas. Pode ser preparado cozido ou na brasa, chapeado ou com- pondo pratos como a paçoca de pinhão, como os cozidos de carne e doces. Em Santa Catarina, outro estado dessa região, rica pelo seu litoral e suas serras, fica a terceira cidade mais antiga do Brasil – São Francisco do Sul. Fundada quando chegaram os exploradores portugueses, habitavam seu litoral os índios carijós do grupo tupi-guarani. Essa região começou a ser realmente habitada com a chegada dos bandeirantes e mais tarde com os primeiros imigrantes portugueses e alemães. A região norte do estado tem forte influência dos alemães e italianos, na sua cultura alimentar. Já no litoral, a colonização foi predominante- mente portuguesa e espanhola, o que se observa pela preferência por frutos do mar e frituras. Dos hábitos herdados pelos descendentes europeus, principalmente alemães, podemos destacar suas festas, como a Oktoberfest que ocorre em Blumenau, conhecida em todo o Brasil, sendo um evento em que o principal atrativo é o chope alemão. No litoral catarinense, fixaram-se quase to- talmente os açorianos, principalmente na ilha de Florianópolis – conhecida como a capital da ostra (a região de Florianópolis é a maior produtora de ostras do país), onde organizaram comunidades que vivem da pesca. Até os dias de hoje, entre os meses de maio e junho, realizam a pesca artesanal da tainha, que rendeu à região pratos saborosíssimos com esse ingrediente. A respeito desse assunto, Freixa e Chaves (2012, p. 250) descrevem: 59G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Feita com rede, os cardumes são arrasta- dos até a beira da praia. A abundância e predileção pelo pescado resultaram em muitas receitas típicas, como tainha escaldada (seca ao sol feita na brasa) e recheada com farofa (feita da ova), está última uma iguaria muito valorizada no exterior. Os pratos são geralmente servidos com pirão de caldo de peixe ou pirão d´agua. Concentram-se no litoral de Santa Catarina a pesca farta, o segundo maior porto do Brasil (localizado em Itajaí) e um grande parque in- dustrial, onde há grandes indústrias têxteis e os maiores frigoríficos de carne suína. Da in- fluência alemã, houve a preferência pela carne de porco e de marreco e seus derivados, como as salsichas e linguiças – em Blumenau, por exemplo, elas são típicas e são servidas sempre acompanhadas de chucrute, mostarda e chope. Dessa influência, não podemos deixar de co- mentar a importância dos fartos cafés coloniais, com seus embutidos, tortas, cucas, e os pães com chimia e nata, parada obrigatória, na região de Blumenau. Da mistura das culturas, todos deixaram sua contribuição, seja na língua, seja em seus ingredientes, dos quais podemos citar alguns, principalmente os mais relevantes, como batata, mandioca, milho, pinhão, repolho, beterraba, e das frutas, a maçã. Os catarinas, quando longe de sua terra, têm doces lembranças da paisagem das macieiras carregadas e também das sopas, companheiras para aquecer os dias frios. O pinhão também é um ingrediente típico de Santa Catarina. No Sul, quando é época de produção de pinhão, o encontramos em todos os mercados e até na beira das estradas. O sulista, ao ascender o seu fogão econômico dentro de casa, para manter a água do chimar- rão quente, aproveita a chapa para chapear o seu pinhão. Ele aparece principalmente nas cidade de Lages (onde ocorre a Festa do Pinhão) e região, em que a maior parte dos pratos leva esse ingrediente: Na fazenda Dourados, no município de Lages, sua proprietária Katia cos- tuma mostrar a seus hóspedes inúme- ras formas de preparar o pinhão. Uma delas é o pinhão sapecado. Kátia conta, que essa maneira teve origem com os tropeiros que adoravam se alimentar de pinhões. Conta também que os tro- peiros, ao descartar alguns pinhões ao longo das trilhas, foram responsáveis pela germinação de muitos pinheiros. Inicialmente é preciso juntar as grimpas, ou seja, coletar os inúmeros galhos secos da araucária que caem pelo chão. Depois basta amontoá-los um em cima do outro e achar alguns pinhões. Estes são coloca- dos no meio
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