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2a edição | Nead - UPE 2010 Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Núcleo de Educação à Distância - Universidade de Pernambuco - Recife Neves, Rita de Cássia Maria Antropologia/Rita de Cássia Maria Neves. – Recife: UPE/NEAD, 2009. 52 p. ISBN 1. Antropologia/história 2. Antropologia/educação 3. Produção Cultural 4. Educação à Distância I. Universidade de Pernambuco, Núcleo de Educação à Distância II. Título N511a CDD 301 U ni ve rs id ad e de P er na m bu co - U PE N EA D - N Ú CL EO D E ED U CA ÇÃ O A D IS TÂ N CI A REITOR Prof. Carlos Fernando de Araújo Calado VICE-REITOR Prof. Rivaldo Mendes de Albuquerque PRó-REITOR ADMINISTRATIVO Prof. José Thomaz Medeiros Correia PRó-REITOR DE PLANEJAMENTO Prof. Béda Barkokébas Jr. PRó-REITOR DE GRADUAÇÃO Profa. Izabel Christina de Avelar Silva PRó-REITORA DE PóS-GRADUAÇÃO E PESqUISA Profa. Viviane Colares Soares de Andrade Amorim PRó-REITOR DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL E ExTENSÃO Prof. Rivaldo Mendes de Albuquerque COORDENADOR GERAL Prof. Renato Medeiros de Moraes COORDENADOR ADJUNTO Prof. Walmir Soares da Silva Júnior ASSESSORA DA COORDENAÇÃO GERAL Profa. Waldete Arantes COORDENAÇÃO DE CURSO Profa. Giovanna Josefa de Miranda Coelho COORDENAÇÃO PEDAGóGICA Profa. Maria Vitória Ribas de Oliveira Lima COORDENAÇÃO DE REVISÃO GRAMATICAL Profa. Angela Maria Borges Cavalcanti Profa. Eveline Mendes Costa Lopes Profa. Geruza Viana da Silva GERENTE DE PROJETOS Profa. Patrícia Lídia do Couto Soares Lopes ADMINISTRAÇÃO DO AMBIENTE Igor Souza Lopes de Almeida COORDENAÇÃO DE DESIGN E PRODUÇÃO Prof. Marcos Leite EqUIPE DE DESIGN Anita Sousa Gabriela Castro Rafael Efrem Renata Moraes Rodrigo Sotero COORDENAÇÃO DE SUPORTE Afonso Bione Prof. Jáuvaro Carneiro Leão EDIÇÃO 2010 Impresso no Brasil - Tiragem 180 exemplares Av. Agamenon Magalhães, s/n - Santo Amaro Recife / PE - CEP. 50103-010 Fone: (81) 3183.3691 - Fax: (81) 3183.3664 capítulo 1 5 antropologia Profa. Rita de Cássia Maria Neves Carga Horária | 60 horas Objetivo geral Objetivos específicos Apresentação da disciplina Ementa Noções básicas sobre Antropologia: a história e o objeto de estudo. A cultura: conceitos e processos de produção cultural. A Antropologia e a educa- ção: a cultura como processo de construção do indivíduo. Compreender conceitos fundamentais da Antropo- logia, possibilitando ao aluno articular com mais propriedade o campo da educação. Compreender os processos simbólicos de constru- ção cultural do Homem; Compreender a Antropologia como o estudo das culturas humanas em sua diversidade; Reconhecer a humanidade como plural e as várias faces da educação inseridas em cada realidade histórico-social. Esta disciplina visa explorar o campo da Antro- pologia na perspectiva da educação. Pretende, no primeiro momento, discutir conceitos-cha- ves da Antropologia, tais como: cultura, alteri- dade, etnocentrismo e relativismo cultural. Em seguida, aprofundaremos questões no campo da Antropologia voltada para a educação, como: processos identitários e educação; in- terculturalidade, multiculturalismo e educa- ção; educação diferenciada. capítulo 1 7 Profa. Rita de Cássia Maria Neves Carga Horária | 15 horas INTRODUÇÃO Este capítulo trata do lugar da Antropologia social e cultural na história do pensamento do ho- mem sobre o homem. A Antropologia como campo de investigação permite descobrir a dimensão da cultura e explicar as diferenças entre os homens. Pode, portanto, ser definida como a ciência que estuda o “outro”. Na parte inicial deste capítulo, identificaremos que a história do pensamento do homem sobre o homem é tão antiga quanto a humanidade. No entanto, enquanto ciência que busca discutir o homem em sua integralidade, a Antropologia é recente e pertence ao final do século xIx e início do século xx. Em um segundo momento, discutiremos a Antropologia como campo de conhecimento que pos- sui uma abordagem integrada às Ciências Sociais, responsável pelo estudo das culturas humanas em sua diversidade. Ao final deste capítulo, trataremos das dificuldades do antropólogo no confronto com as outras sociedades. Como estudo de fenômenos complexos, na medida em que os significados mudam de acordo com o ator social, a Antropologia oscila entre unidade biológica do homem e sua di- versidade cultural. OBJETIVOS ESPECÍFICOS • Entender o processo de formação da disciplina; • Reconhecer a especificidade do campo e da abordagem antropológica; • Compreender a Antropologia como uma forma de conhecimento, cujo estudo é pautado na di- versidade cultural dos povos. princípios e conceitos antropoló- gicos capítulo 18 período do Iluminismo, no século xVIII, outros sustentam que sua origem data do século xIx, em torno de 1850. Como afirma François La- plantine (2005), embora a pergunta sobre o homem e sua sociedade seja tão antiga quan- to a humanidade, o projeto de fundar uma ci- ência do homem (Antropologia) é recente. Se a Antropologia como disciplina científica é recente, a curiosidade sobre outros povos e culturas e, principalmente, sobre o que é o homem não é recente. As primeiras perguntas sobre o que é o homem são encontradas entre os Sofistas e em Sócrates (470/469 – 399 a.C.). Ainda na Grécia clássica, as viagens de Heró- doto (484-425 a.C.) e os escritos decorrentes também tratam de um tema muito próprio da Antropologia: como devemos nos relacionar com os outros? Todos esses relatos podem ser considerados uma pré-história da Antropologia. Também existem escritos do período medieval que possuem um caráter antropológico. Marco Polo (1254-1323), em seus relatos sobre sua expedição à China, pode ser considerado um exemplo de escrito sobre outros povos e outras culturas. As grandes descobertas também tiveram im- portância para as mudanças ocorridas na Europa. As populações encontradas na Amé- rica e no Brasil provocaram estranhamentos. Os índios tinham a cor da pele avermelhada, andavam nus, falavam outras línguas, possu- íam outros costumes, etc. Todas essas ques- tões despertaram dúvidas entre os europeus. Seriam aqueles seres homens ou animais? A que espécie pertenciam? Se eram homens, en- tão Deus não havia feito o homem e a mulher prontos, como proclama a Bíblia. A humani- dade havia evoluído da mesma forma que os animais. Durante o período das grandes navegações, portugueses e espanhóis justificaram as explo- rações e conquistas no Novo Mundo, a partir da diferença entre os homens “civilizados” e os “selvagens”. Nos séculos xVII e xVIII, acen- tua-se a tendência comparativa com a multi- plicação dos relatos de viajantes. Os primeiros trabalhos considerados antropológicos, que combinam dados e teorias, foram escritos em 1. HISTÓRIA DO PENSAMENTO DO HOMEM SOBRE O HOMEM Ao dar início à disciplina Antropologia, de- vemos primeiramente responder a algumas perguntas: O que é Antropologia? Há quanto tempo existem antropólogos? Há quanto tem- po existe a Antropologia? qual o campo e a especificidade da Antropologia? Todas essas questões serão tratadas nesta primeira parte, como base sobre a qual construiremos os ou- tros temas e problemas da disciplina. O qUE É A ANTROPOLOGIA? quando nos perguntamos o que é a Antro- pologia, podemos defini-la do ponto de vista conceitual. A acepção do termo “Antropolo- gia” em seu sentido etimológico deriva das pa- lavras gregas anthropos e logia, que significam respectivamente homem e discurso, estudo. Portanto, a Antropologia, em sua definição mais curta, quer dizer estudo do homem. Afirmar, no entanto, que a Antropologia é a ciência do homem não significa muita coisa, pois diversas áreas do saber também têm o homem como campo de conhecimento (Psico- logia, Sociologia, etc.). Podemos dizer que é uma disciplina que em sua origem construiu um saber organizado sobre o homem, procu- rando estudá-lo como um todo. Alguns teóricos afirmam quea Antropologia, enquanto disciplina científica, tem origem no capítulo 1 9 meados do século xIx. Nessa época, intensifi- cou-se o número de associações folclóricas, os museus e as perguntas sobre a variedade da espécie humana. O Evolucionismo, teoria típica do século xIx, foi construído a partir das ideias de desenvol- vimento dos séculos xVII e xVIII e completa- do pela experiência do colonialismo, além das ideias de Darwin sobre a origem das espécies. No entanto, mesmo sofrendo todas essas in- fluências, a Antropologia não se transformou numa pseudociência racista, principalmente porque os antropólogos acreditavam na unida- de psíquica da humanidade. O que diferencia- vam os grupos sociais eram os estágios de evo- lução em que cada sociedade se encontrava. As sociedades estudadas pelos primeiros an- tropólogos, portanto, eram sociedades longín- quas, com dimensões restritas, consideradas exóticas e que não pertenciam à civilização ocidental. O método para estudar essas civili- zações era o método comparativo. As principais críticas ao evolucionismo afirma- vam a não-existência de uma trajetória única da humanidade, mas, formas diferentes de civilização. Ao mesmo tempo em que a histó- ria humana não se traduz por um acúmulo de ganhos, as mudanças ocorridas nessas socie- dades ao longo de sua história também não se explicavam por um único fator. Por isso, mais importante que estudar as sociedades, bus- cando encaixá-las em uma linha de evolução, era considerar o estudo descritivo dos fenôme- nos de difusão cultural. EVOLUCIONISMO: teoria que no mundo hu- mano determina uma passagem do simples ao complexo e uma melhoria dos sistemas sociais, nos domínios econômicos, políticos, parentais e religiosos. (RIVIÈRE, 2004). Lewis Morgan (1818-1881), jurista norte- americano, foi o mais notável dos evolucionistas. Em seu texto “A sociedade Arcaica” de 1877, apresenta as etapas do desenvolvimento huma- no: selvageria – barbárie – civilização. Franz Boas (1858-1942), fundador da Antro- pologia cultural norte-americana, rejeita as dis- tinções evolucionistas entre raça superior e raça inferior; propõe uma reflexão sobre o motivo dos empréstimos culturais e as formas de incorpora- ção na cultura receptora. O Difusionismo, corrente surgida no início do século xx, propõe uma reflexão sobre as for- mas de incorporação e de empréstimos, es- tudando a distribuição geográfica dos traços culturais. Essa teoria afirmava que as culturas adquiriam traços culturais com várias origens distintas através de encontros culturais, migra- ções e influências. Além do difusionismo, outras escolas foram sendo formadas e criticadas durante todo o século xx: culturalista, funcionalista, estru- tural-funcionalista, cultura e personalidade, estruturalista, neo-evolucionista, interpreta- tivista, além de todas as correntes ligadas à pós-modernidade. Não cabe nesse momento apresentarmos cada escola e suas particulari- dades. Não é esse o objetivo principal deste capítulo. Apenas considerar que essas escolas, cada uma com suas características, contribu- íram para as principais discussões que hoje compõem a disciplina Antropologia. Você Sabia? capítulo 110 “A etnografia (escrever sobre os povos) é a dis- ciplina mais próxima dos dados empíricos e a pri- meira que praticaram os antropólogos culturais. Prepondera nela o enfoque descritivo e utiliza como técnica de coleta de dados o trabalho de campo, principalmente, e as contribuições arque- ológicas. É a base de toda a Antropologia cultu- ral, pois proporciona os elementos sobre os quais vão trabalhar os demais teóricos.” (BARRIO 2005 p. 21). 2. O CAMPO DE ATUAÇÃO DA ANTROPOLOGIA E AS FORMAS DE ABORDAGEM DISCIPLINAR Vimos, no item anterior, que a Antropologia, desde o seu surgimento, busca uma aborda- gem que considere as “múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (LAPLANTINE 2005 p.16). Para Laplantine, a vocação maior desta disciplina consiste em relacionar campos de investigação frequentemente separados, tais como a Biologia, a História, a Linguística e a Psicologia, integrando-os em uma abordagem que reconheça a humanidade como plural. Além disso, a Antropologia atual não se inte- ressa, apenas, pelas sociedades exóticas. Nessa nova conjuntura, o antropólogo percebe que o mais importante de sua disciplina não é o objeto de estudo, mas a sua forma peculiar de abordagem: “O objeto teórico da Antropologia não está ligado, na perspectiva na qual começamos a nos situar a partir de agora, a um espaço geo- gráfico, cultural ou histórico particular. Pois a Antropologia não é senão um certo olhar, um certo enfoque, que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas.” (LAPLANTINE 2005 p.16). Além do objeto de estudo, outro tema que sempre esteve presente na discussão refere-se ao método de investigação antropológica. In- dependente das questões surgidas na forma- ção da disciplina, a etnografia desempenha um papel metodológico central. Na década de 20, o antropólogo Bronislaw Malinowski inse- riu uma nova perspectiva ao trabalho de cam- po, a observação participante. Segundo essa visão, o antropólogo só poderia fazer uma boa etnografia se adotasse algumas regras, que se tornaram modelos para realizar pesquisa em grupos culturais distintos: o pesquisador deve- ria morar no campo, aprender a língua nativa e demonstrar capacidade de observação deta- lhada. Porém, como afirma Clifford Geertz no livro “Obras e Vidas: o antropólogo como autor”, “a ilusão de que a etnografia é uma questão de dispor fatos estranhos e irregulares em ca- tegorias familiares e ordenadas foi demolida há muito tempo” (2002 p. 11). Geertz, neste texto, problematiza o entendimento do que seja a etnografia, afirmando que o que os praticantes da Antropologia social e cultural fazem é etnografia. Ou seja, a etnografia não reside numa descrição minuciosa de um fato, mas numa atividade eminentemente interpre- tativa, voltada para a busca de significação. Em um texto recente, intitulado “Onde está a Antropologia?”, a antropóloga brasileira Ma- riza Peirano afirma que é comum as pessoas considerarem que toda teoria é eterna. Porém, na Antropologia, segundo Peirano, “a teoria Você Sabia? capítulo 1 11 supõe um “descentramento radical” com a ideia de que existem povos superiores a ou- tros. Além disso, a Antropologia, como ci- ência, surgida no seio da modernidade, teve como preocupação inicial a unidade psíquica da humanidade, como citado anteriormente. Isso significa que embora a Antropologia não tenha início como uma ciência racista, de certa forma, ela também surge como uma ciência que busca reduzir o outro ao mesmo. O mundo hoje é repleto de transformações. Integração econômica como o Mercosul, su- peração de fronteiras, globalização. É nesse mundo que se torna importante o debate so- bre as particularidades. Essa discussão não é nova; desde sempre, identificamos as diferen- ças presentes no contato cultural. No entanto, apenas no século xx é que essa diferença do outro que se evidencia como alteridade se de- senvolveu como conceito ético e moral. A Antropologia tomou para si essa discussão e fez da alteridade um aspecto central da dis- ciplina, sem a qual ela não se reconhece. O “outro” para a Antropologia é alteridade. Isso significa que não basta afirmar o particular, o diferente, mas o ético, moral, que afirma o ou- tro em relação. É a partir dessas questões que a Antropologia substitui a discussão de “reco- nhecimento da diferença” pela “alteridade”, ou seja, substitui o reconhecimento da exis- tência humana do outro pela compreensão de que o outro está no meu mundo e existe em relação a ele. é o par inseparável da etnografia, e o diálo- go íntimo entre ambas cria as condições in- dispensáveis para a renovação e sofisticação da disciplina.”(2006 p.7). Isso significa que, através do trabalho de campo, quando realiza- mos boas etnografias, a teoria antropológica se renova. O grande mérito da Antropologia não é o de produzir grandes teorias, mas por em suspeição teorias já existentes. Para Peira- no, as teorias mudam, mas boas etnografias podem sempre ser revisitadas e inspirarem no- vas questões. Por esse motivo, embora a teoria funcionalista presente no livro de Malinowski, “Os argonautas do pacífico ocidental” (1922) seja atualmente questionada, sua etnografia permanece fecunda. Por sua vez, a “observação participante”, mé- todo criado por Malinowski, recebeu da nova configuração antropológica características especiais. Atualmente não há condições de o antropólogo permanecer em campo, fazen- do pesquisa por dois anos, como acontecia no tempo de Malinowski. Os antropólogos também estão convencidos de que não con- seguem abarcar o todo social do grupo estu- dado. Compreendemos, apenas, parte da rea- lidade e, mesmo assim, com uma perspectiva limitada. A dificuldade resulta da posição do observador e das interações a que está subme- tido. Mesmo assim, a observação participante é imprescindível a uma boa etnografia. Na observação participante, o pesquisador deve se preparar, ler anteriormente boas et- nografias e, em campo, tentar se colocar no lugar das pessoas que analisa. Para uma boa observação, é necessário certa empatia com o grupo estudado. Além disso, o antropólogo precisa tomar notas em um “diário de cam- po”. Hoje existem outros instrumentos de ano- tações, como o notebook, no entanto a prática de anotações diárias não pode ser eliminada. Muitas vezes uma entrevista gravada que não nos parecia importante toma outra dimensão quando relemos o nosso diário de campo. quando os antropólogos buscaram compre- ender a diversidade cultural sem terem como parâmetro nossa própria cultura, perceberam que a Antropologia provocava uma mudança na forma de ver o mundo e de lidar com a diversidade de sociedades e culturas. Ela pres- capítulo 112 2.1. Divisões da antropologia A tarefa à qual a Antropologia se propõe é vasta, o que fez proliferar subdivisões sob esta denominação comum. Observamos uma di- cotomia clássica entre uma Antropologia que se preocupará com a natureza do homem, ou seja, a dimensão corpórea e biológica e uma outra vertente que se preocupará com a di- mensão sociocultural-simbólica. Essas duas divisões empíricas do saber são moldadas por uma discussão especulativa própria da Antro- pologia filosófica. Em resumo: 1) A Antropologia biológica ou física se preo- cupa com o homem enquanto organismo vivo, atendendo à sua evolução biológica dentro das espécies animais e sua relação com o meio ambiente (ecologia). 2) A Antropologia cultural e social estuda os comportamentos aprendidos que caracteri- zam os grupos humanos. Ocupa-se, portanto, dos costumes, do patrimônio material e imate- rial dos grupos, além de todos os aspectos que compõem a vida social das pessoas. A Antro- pologia cultural ou social também é chamada de Etnologia. 3) A Antropologia filosófica é uma disciplina da Filosofia que tem como objeto a interroga- ção sobre o que é o homem. Podemos esquematicamente apresentar as di- visões da Antropologia: É característica da Antropologia agregar sa- beres de outras áreas de conhecimento, ao mesmo tempo em que se distingue de diver- sas disciplinas das quais se utiliza. Distingue-se da História, pois não se limita ao documento; distingue-se da Psicologia, pois não lhe inte- ressam as individualidades; distingue-se da Sociologia, pois seu objetivo são as compre- ensões simbólicas culturais. A Antropologia se utiliza da História, da Psicologia, da Sociologia para ter uma gama de informações que pos- sam auxiliar o antropólogo a conhecer melhor seu objeto de estudo. Se a Antropologia em sua origem esteve liga- da aos povos intitulados “primitivos”, “selva- gens”, atualmente se volta para sua própria sociedade e estuda a diversidade a partir de uma alteridade próxima. São estudos de An- tropologia urbana e rural, por exemplo. 2.2. A antropologia no Brasil No Brasil, duas tradições foram marcantes na formação da disciplina: a etnologia Indígena e a Antropologia da sociedade nacional. Se- gundo Mariza Corrêa, é um consenso que no Brasil a Antropologia existiu antes de se insti- tuir como disciplina nas universidades. A pró- pria criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Brasil da USP ocorreu em 1934, entretanto, desde o fim do século xIx, alguns brasileiros se incumbem de pesquisar e reunir coleções etnográficas. A Etnologia Indígena, apesar de ser predomi- nante nos estudos dos etnólogos estrangeiros que procuravam o Brasil, não alcançou o êxi- to que a Antropologia da sociedade nacional. Sem nos deter sobre diversos indigenistas que Antropologia Antropologia Empírica Antropologia Filosófica Antropologia Biológica - Física Antropologia Cultural ou Social capítulo 1 13 passaram pelo Brasil, sem dúvida o alemão Curt Unkel (chamado de Curt Nimuendaju pe- los índios) nos deixou inúmeros trabalhos cita- dos até hoje. Entre os seus trabalhos, o mais famoso é seu mapa etno-histórico. Nimuenda- ju estudou vários grupos indígenas, e seu com- portamento se pautava no respeito e na defesa das tradições tribais. Nesse período, entre os anos 30 e 60, tam- bém foram contratados professores estran- geiros para lecionarem na USP e na Escola de Sociologia e Política. É o período em que Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss, Herbert Baldus e Donald Pierson passaram a trabalhar nessas instituições e a realizar trabalhos sobre religi- ões afro-brasileiras e etnologia indígena. Em 1935, Gilberto Freyre assumiu a cátedra de Antropologia Social e Cultural no Rio de Janei- ro. É nessa época que, ao mesmo tempo em que vários pesquisadores se dedicam à Etno- logia Indígena, outros pesquisam a formação de uma identidade nacional, como é o caso do próprio Gilberto Freyre. Os antropólogos no Brasil se ocupavam de di- ferentes linhas de investigação, ora fazendo Etnologia Indígena, ora produzindo teorias políticas sobre o caráter nacional. É por esse motivo que, nas décadas de 50 e 60 do século xx, além de trabalhos sobre populações indí- genas, temos uma vertente política de inter- venção, outra de construção de identidade na- cional e os chamados estudos de comunidade. Muitos desses autores produziram trabalhos voltados para mais de uma dessas questões. É também por esse motivo que não podemos pensar em uma Antropologia no Brasil com uma dimensão teórica bem definida, pois dife- rentes pesquisadores dividiam o mesmo espa- ço com estudos diferentes. Com os estudos de comunidade citados, pre- tendia-se chegar a uma visão geral da socieda- de brasileira. São estudos que se voltam para mudança cultural, problemas de imigrantes, educação, folclore, entre outros temas. Esses estudos foram criticados na década de 70, do século passado, por Octavio Ianni e Klaas Woortmann que afirmavam que os estudos de comunidade desprezavam as relações com a sociedade mais ampla, tratando-as como so- ciedades isoladas. É também nessa época que a Antropologia no Brasil se expande para as cidades, iniciando uma Antropologia urbana. Os antropólogos se preocupam com problemas que afetam não só as camadas menos favorecidas mas também com problemas que afetam a classe média. Este é o caso dos trabalhos de Gilberto Velho sobre os moradores de um edifício no bairro de Copacabana. Nessa época, desenvolve-se também o estudo de fenômenos religiosos que ocorrem nas ci- dades, além de outras questões e concepções a respeito do corpo, das classificações das do- enças, hábitos alimentares, etc. Surgem, ain- da, entre os anos 70 e 80, as discussões sobre as relações de gênero, família e geração. Em relação aos temas nacionais, Roberto Da Mat- ta, na década de 1980, realiza estudos sobre o ethos nacional com seu trabalho sobre o car- navalno Brasil. Mais recentemente, temos outra tendência sendo observada. Há um intenso diálogo in- ternacional sendo produzido a partir da circu- lação de pesquisadores nacionais no estran- geiro. Muitos antropólogos têm pesquisado países do continente africano, principalmente os de língua portuguesa. Outros se voltaram para a América Latina, os Estados Unidos, a França e a Índia. Todos esses trabalhos pos- suem como eixo comum a preocupação com seu país de origem. Por outro lado, se no início da Antropologia no Brasil, pesquisadores como Lévi-Strauss vie- ram ao Brasil para ensinar e pesquisar, atual- mente há um crescente número de estudantes estrangeiros nos programas de pós-graduação capítulo 114 brasileiros. A ideia de uma internacionalização da Antropologia do Brasil passa agora pela ca- pacidade de alcance da nossa disciplina. 3. VIRTUDES E DIFICULDADES DA ANTROPOLOGIA Atualmente, há um consenso entre os antro- pólogos de que as teorias estão diretamen- te vinculadas à prática produzida no campo disciplinar. Não produzimos teorias afastadas da realidade. Peirano (2006) afirma que o tra- balho de campo e sua produção etnográfica alimentam e contestam teorias produzidas no seio da disciplina. Dentre as virtudes da Antropologia, Peirano in- dica as mais importantes: 1) A Antropologia reconhece a diversidade das culturas assim como a unidade psíquica da humanidade. Com isso, há um descentramen- to nas relações de poder. O Ocidente é apenas um caso na totalidade da experiência humana; 2) Os antropólogos estudam povos e cultu- ras situados em Estados-nações, mas não os Estados-nações em si mesmos. Com isso, não produzem grandes teorias, mas, boas etnogra- fias, que derrubam teorias mais amplas; 3) A Antropologia se desenvolveu a partir do uso de instrumentos tomados de empréstimos de outras disciplinas (biologia, linguística, psi- canálise, economia, etc.). Com isso, adquiriu uma dinamicidade útil na sua atuação; 4) A Antropologia nunca está ultrapassada. Etnografias clássicas sofrem frequentemen- te releituras que confirmam sua contempo- raneidade. A teoria com a qual a etnografia foi construída pode estar ultrapassada, mas a etnografia continua fecunda, focalizando pro- blemas contemporâneos. As dificuldades, por sua vez, podem ser obser- vadas nos seguintes elementos: 1) Na Antropologia, sujeito e objeto de estudo são os mesmos (o homem), o que dificulta o distanciamento; 2) Os fatos que são observados e etnografa- dos não se repetem. Um evento, uma festa, um casamento observado ocorre uma única vez, não se pode reproduzir a experiência no- vamente; 3) A prática da disciplina leva os antropólogos a se identificarem excessivamente com o gru- po observado e, muitas vezes, agem em nome do grupo. É preciso compreender que, embora a Antro- pologia tenha sido construída a partir de obje- tos de estudo exóticos e longínquos, o seu de- senvolvimento demonstrou que é justamente na compreensão do outro como culturalmente diverso que a disciplina mais se firmou. Por fim, dentre os diversos temas de interesse da Antropologia, independente de época e lu- gar, temos o tema da cultura, do etnocentris- mo e do relativismo cultural. Esses temas são objeto de estudo no próximo capítulo. Sobre a história da Antropologia ERIKSEN, Thomas Hylland & NIELSEN, Finn Sivert. História da Antropologia. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vo- zes, 2007. Esse livro do Eriksen possui uma linguagem sim- ples e percorre toda a história da Antropologia desde o seu surgimento até os dias atuais. Ele vai interessar às pessoas que gostariam de conhecer detalhadamente o percurso histórico feito pela disciplina. Saiba Mais: capítulo 1 15 resUMo Neste capítulo, percebemos que a Antropolo- gia é mais do que seu significado etimológico. Ela é um campo de conhecimento, cujo estudo é pautado no reconhecimento da diversidade cultural assim como por uma forma metodo- lógica de proceder através da observação par- ticipante e da escrita etnográfica. Sua história evolui da compreensão da huma- nidade como uma unidade psíquica até o es- tudo das particularidades históricas e culturais. Em relação ao Brasil, a Antropologia que aqui se desenvolveu possui dois campos de atua- ção, as sociedades tradicionais indígenas e a construção da identidade nacional. É o mo- mento também de a Antropologia se voltar para a própria sociedade numa Antropologia rural e urbana. Diante de tudo isso, constata- mos que a Antropologia construiu e foi cons- truída a partir de virtudes e dificuldades. Entre as virtudes, o reconhecimento da diversidade cultural é a mais importante. Entre as dificuldades, o fato de o antropólogo estudar sua própria espécie dificulta o distan- ciamento próprio da ciência moderna. reFerÊncias BARRIO, Angel B. Espina. Manual de Antro- pologia Cultural. Recife: Editora Massangana, 2005. (Fundação Joaquim Nabuco). GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólo- go como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. LAPLANTINE, François. Aprender Antropolo- gia. São Paulo: Brasiliense, 2005. Pp. 13-33. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pací- fico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural. 1984 [1922]. (Os Pensadores). PEIRANO, Mariza. A Teoria Vivida: e outros en- saios de Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. RIVIÈRE, Claude. Introdução à Antropologia. Lisboa: Edições 70. 2004. Sobre o objeto e método da Antropo- logia LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2005. Pp. 13-33. Nessas primeiras páginas, Laplantine apresenta o campo e o tipo de abordagem específica da An- tropologia. Além disso, neste primeiro capítulo, o autor também discute as dificuldades que esta disciplina vivencia. PEIRANO, Mariza G. S. Onde está a Antropolo- gia? Rev. Mana (3) 2 67-102. 1997. Disponível em: HTTP://www.scielo.br O texto da Peirano discute a relação entre teoria e método da Antropologia. É um texto importan- te por apresentar os problemas e as virtudes da Antropologia. Saiba Mais: capítulo 116 1. A abordagem antropológica deve ser uma abordagem integrativa, que objetiva levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano. A partir dessa afirmação explique: • Por que a Antropologia pode ser considerada como “um certo olhar, um certo enfoque”? 2. Como a Antropologia procura conciliar o dilema da unidade psíquica da humanidade e a enorme diversi- dade cultural dos povos por ela estudada? 3. Os antropólogos estudam povos e culturas situados em Estados-nações, mas não os Estados-nações. Como você compreende que esse fato ajudou a Antropologia a se fortalecer? Por quê? Atividades capítulo 2 17 Profa. Rita de Cássia Maria Neves Carga Horária | 15 horas INTRODUÇÃO Neste capítulo, trataremos da noção de cultura como basilar ao campo da Antropologia. Embora o conceito de cultura e as questões que norteiam este tema tenham sido diferentemente tratados por outras áreas de conhecimento, todos reconhecem sua filiação à Antropologia. Esse conceito também foi usado sem muito constrangimento por parte dos antropólogos adeptos das mais variadas correntes teóricas. Isso talvez porque a Antropologia sempre foi considerada como a disciplina que se preocupa com o homem enquanto ente cultural. Na segunda parte, será problematizado o conceito de alteridade a partir da compreensão do termo pela Antropologia. Isso significa que, em detrimento de uma filosofia da alteridade, dis- cutiremos a questão a partir da abordagem antropológica. Apresentaremos também a distinção entre o conceito de “diferença” e o conceito de “alteridade”, identificando a transformação da alteridade como um problema ontológico para o seu desenvolvimento como um problema ético. Ao final deste capítulo, abordaremos a compreensão do conceito de relativismo cultural, suas nu- ances e especificidades. Para concluir,estabeleceremos a relação entre todas essas questões com o problema do etnocentrismo e da educação. OBJETIVOS ESPECÍFICOS • Compreender a cultura como um conceito antropológico; • Apreender como opera a cultura; • Reconhecer a alteridade como princípio norteador do campo antropológico; • Compreender as noções de relativismo cultural e etnocentrismo. antropologia: noções e conceitos FUndaMentais capítulo 218 1. CULTURA COMO CONCEITO ANTROPOLÓGICO O termo cultura frequentemente atrai para junto de si outros termos que possuem signifi- cados distintos e que, muitas vezes, são toma- dos como oposição: cultura x natureza; cultu- ra x civilização. Além desse caráter relacional, o termo cultura apresenta-se, muitas vezes, como termo composto, descrevendo áreas es- pecíficas a serem estudadas: ecologia cultural; relativismo cultural, etc. Embora o conceito de cultura e as questões que norteiam esse tema tenham sido tratados diferentemente pelas diversas correntes teóri- cas da Antropologia, cada uma delas preocu- pada em responder questões específicas, em épocas específicas, este conceito também foi usado sem muito constrangimento por parte dos antropólogos de variadas escolas. Talvez porque a Antropologia sempre foi considerada como a disciplina que se preocupa com o ho- mem enquanto ente cultural. A palavra cultura remonta aos gregos, en- tendida no sentido de Paidéia, significando a formação da pessoa na sua cultura particular. Na França, a palavra cultura foi usada durante muito tempo na sua origem latina, significan- do o cuidado dispensado ao campo, ao gado ou à parcela da terra cultivada. Apenas na França do século xVIII, é que adquiriu o senti- do semântico moderno, ou seja, como forma- ção e educação do espírito. Nessa época, a pa- lavra cultura se associou às ideias de progresso e de razão, doutrinas centrais do pensamento iluminista. O conceito francês de cultura, portanto, é marcado pela unidade do gênero humano, en- quanto o conceito alemão de cultura (kultur) é marcado pelo seu sentido particularista. Com- preendendo o caminho percorrido por esses dois termos nas suas respectivas sociedades, compreenderemos seu uso atual na Antropo- logia e as questões que suscitaram quando re- lacionadas ao tema do relativismo cultural. quando o termo cultura passa a adquirir a ideia de progresso humano, vincula-se auto- maticamente à idéia de civilização. No final do século xVIII, cultura reflete o progresso huma- no individual, enquanto civilização passa a re- fletir o progresso humano coletivo. Dessa for- ma, como nos atesta Adam Kuper, o homem criador é colocado no centro do universo e a modernidade se estabelece: “Na tradição francesa, a civilização é representada como uma conquista progressiva, cumulativa e dis- tintamente humana. Os seres humanos são seme- lhantes, pelo menos em potencial. Todos são capazes de criar uma civilização, o que depende do dom ex- clusivamente humano da razão.” (2002: 26). Sob essa inspiração, chegamos ao século xIx com o conceito de cultura convictamente mar- cado pela ideia de unidade do gênero humano. Este conceito se transforma em cultura da hu- manidade. O termo adquire assim um cunho universalista. A cultura com essa característica adotada na França torna a Antropologia uma disciplina de caráter universalista e seu método como sendo essencialmente comparativo. Para CULTURA LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. O texto de Laraia é dividido em duas partes. Na primeira, o autor discute o dilema sobre a “conci- liação da unidade biológica e a grande diversida- de cultural da espécie humana”. Na segunda par- te, discute como a cultura opera na sociedade. Saiba Mais: capítulo 2 19 essa vertente, sem comparação explícita, não pode haver teoria antropológica. Por sua vez, o conceito alemão de cultura (kultur) adquire caráter diferente. A burguesia alemã, distante da aristocracia, preocupa-se essencialmente com os valores baseados na ciência, na arte e na filosofia. Dessa forma, há uma internalização do termo cultura, signifi- cando tudo aquilo que é autêntico e que con- tribui para o enriquecimento intelectual. A kultur alemã tem como preocupação central o destino específico da nação, porém não se refere, apenas, à nação, mas, a partir do século xx, passa a ser usado em sua forma pessoal, como cultura local, de caráter particularista. Ainda de acordo com Kuper: “Esta antítese [cultura – civilização] ganhou nova for- ça depois da derrota da Alemanha na Grande Guerra, uma guerra que fora declarada contra eles em nome de uma civilização universal. A idéia de kultur entrou em jogo na luta subseqüente para redefinir a identi- dade e o destino da Alemanha.” (200 p. 55). Na Antropologia, Franz Boas, um judeu ale- mão, que se naturalizou americano, introduz a ideia de que a cultura é o que nos modela, e não a biologia, como se acreditava na época. Além disso, Boas censura os limites do método comparativo por acreditar que não é possível encontrar leis gerais da evolução das culturas. questiona, com isso, a Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin, em vigor na épo- ca. Essa teoria embasava o evolucionismo cul- tural. As duas posições nos mostram que, no aspecto teórico-metodológico, a Antropologia oscila desde essa época entre o método rela- tivista, com ênfase nas diferenças culturais e o método comparativo, com ênfase na unidade humana e, portanto, na universalidade. 1.2. Cultura como sistema simbólico Nas ciências sociais, e especificamente na Antropologia, cultura se tornou um conceito importante. Desde a formação da disciplina, passou por inúmeras definições. No entanto, respeitando cada definição ao longo da histó- ria, a partir do desenvolvimento da Antropo- logia simbólica, o conceito de cultura passou por uma transformação significativa, e a cul- tura deixou de ser considerada como um sis- tema fixo e homogêneo, em que todos com- partilham as mesmas ideias, valores, crenças e normas e passou a ser expressa a partir da interação social, em que os atores negociam significados. Cultura, portanto, deve ser consi- derada como construção simbólica do mundo que está sempre em transformação. Segundo essa concepção, mais importante do que o conceito de cultura é a sua operaciona- lização. Apenas dessa forma, podemos enten- der sua utilização pelas mais diferentes áreas disciplinares. O termo cultura, na sua acepção moderna, tem sido largamente usado por ou- tras disciplinas desde a segunda metade do século xx. Clifford Geertz (1978), no livro “A Interpreta- ção das Culturas”, afirma que a cultura não é um agregado a mais na constituição do ho- mem enquanto tal. A cultura é a própria base de uma humanidade e deve ser vista “como um conjunto de mecanismos simbólicos para o controle do comportamento” que “fornece o vínculo entre o que os homens são intrin- secamente capazes de se tornar e o que eles verdadeiramente se tornam, um por um”. Ou ainda afirma que “tornar-se humano é tornar- se individual e nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais”. Cultura Aprendida Compartilhada Dinâmica capítulo 220 A cultura é aprendida, porque as diferenças entre os homens não podem ser explicadas apenas através da Biologia. A diferença de comportamento existente entre as pessoas de- pende de um aprendizado chamado de endo- culturação. Esse aprendizado cultural vai deter- minar como o homem e a mulher, o brasileiro, o japonês ou o americano, por exemplo, vão se comportar. A cultura também condiciona o modo de ver o mundo, os valores e as posturas corporais. São, portanto, o resultado de uma herança cultural. A antropóloga Margaret Mead (1901-1978) orientou suas pesquisas para a forma como um indivíduo recebe a cultura e forma sua per- sonalidade. Segundo Mead (2003), na Ocea- nia, ao estudar três sociedades da Nova Guiné,os Arapesh, os Mundugumor e os Chambuli, as características de masculino e feminino que aparentemente definimos como as mesmas em todas as sociedades são diferentes em cada um desses grupos sociais. Os Arapesh organi- zam a infância para formar seres dóceis, sen- síveis, servis, sejam homens ou mulheres. Os Mundugumor, através do sistema educacional, treinam a rivalidade e a agressão em ambos os sexos. Por fim, os Chambuli pensam como nós, que homens e mulheres são profundamente diferentes em sua psicologia, no entanto o ho- mem deve ter uma personalidade menos segu- ra de si e deve se preocupar com a aparência, enquanto a mulher deve ser dinâmica, empre- endedora e extrovertida, características que na nossa sociedade são destinadas aos homens. “O material sugere a possibilidade de afirmar que muitos, senão todos, traços de personalidade que chamamos de masculinos ou femininos apresentam- se ligeiramente vinculados ao sexo quanto às vesti- mentas, às maneiras e à forma do penteado que uma sociedade, em determinados períodos, atribui a um ou a outro sexo.” (MEAD 2003 p.268) quando dizemos que a cultura é comparti- lhada, significa que ela é pública, ou seja, que cada núcleo cultural define e compreende os sinais e significados dos padrões culturais, ofe- recendo uma visão de mundo e uma explica- ção de como o mundo é organizado. Isso sig- nifica que afirmamos que o comportamento individual difere do comportamento cultural e que é preciso participar da cultura para com- preender seus códigos. A cultura é dinâmica, forma-se e transforma- se cotidianamente. Além disso, de acordo com Geertz (1978), a cultura deve ser tomada como um texto, constituída de um conjunto de símbolos possíveis de serem interpretados. Dessa forma, a cultura deve ser lida, mesmo que seja uma leitura de segunda ou terceira mão, como afirma o autor. “O conceito de cultura que eu defendo [...] é essen- cialmente semiótico. Acreditando, como Max We- ber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias, e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.” (1978: 15). A ideia de “teia de significados” se dá justa- mente por acreditar que este é um jogo com- plexo de interpretações. O intérprete faz a pergunta (a procura do significado) à cultura entendida como “teia”. A resposta como tal tem que existir de forma latente na cultura. Dá-se, assim, a fusão de horizontes em que tanto o intérprete quanto o que ele interpreta encontram-se numa espécie de intersecção. E é este espaço que propicia a análise. capítulo 2 21 2. DIFERENÇA E ALTERIDADE Não podemos falar de diferença e alteridade sem falarmos sobre identidade. A identidade se reporta ao mesmo, àquilo que é. A diferen- ça, por sua vez, é aquilo que o outro é. Iden- tidade e diferença são conceitos que existem sempre em relação entre eles. Isso significa que as afirmações sobre as diferenças culturais só podem ser compreendidas quando em rela- ção com as afirmações sobre a identidade. A identidade é, portanto, o ponto original sobre o qual se define a diferença. Como já citado no capítulo anterior, o outro para a Antropologia é alteridade, é “outra pessoa”, sua diferença não é ontológica, não afirma apenas o particular, o diferente, mas o ético, moral, que afirma o outro em relação. É a partir dessas novas condições que a Antro- pologia substitui a diferença pela alteridade. Vivemos em um país em que a diversidade cul- tural é notória. No entanto, nossa matriz ide- ológica-cultural é européia. A criança negra, por exemplo, desenvolve-se nessa ideologia e nessa cultura, situando-se num referencial que não faz parte da história de sua ascendência. O outro cultural é sempre um problema, pois coloca em cheque nossa própria identidade. A questão da identidade, da diferença e da alte- ridade se torna um problema social ao mesmo tempo em que é um problema pedagógico e curricular. De acordo com Stuart Hall (1999), nesse mun- do heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, é inevitável. Vivemos em uma so- ciedade atravessada pela diferença, e isso não pode deixar de ser matéria pedagógica e cur- ricular. Como afirma Silva (2000), “o outro é o outro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente”. Do ponto de vista pedagógico, não podemos, apenas, reconhecer e tolerar as diferenças. Es- taríamos, nesse caso, apenas, reproduzindo o discurso tão comum nas escolas. A opção é tomar a alteridade como um problema ético, o que pressupõe perceber o outro inserido em relações de poder. Partindo do pressuposto de que a identidade e a diferença são produzidas nessas relações de poder, antes de, apenas, ad- mitir a diferença, é preciso compreender como ela é produzida. A Antropologia aprendeu essa lição, na medida em que esta é, de acordo com Gusmão (2008), a “ciência da inversão”. É parte de sua tradição a questão do “outro” e, com ela, a pesquisa de campo fora do “nosso” mundo. Sair do nosso mundo significa assumir e estranhar o familiar e conhecido para torná-lo objeto de nossa re- flexão. É por causa dessa reflexividade, própria da Antropologia, que, ao se impor entre o eu e o outro, se estabelece um terceiro lugar, o lugar do ponto de vista pedagógico de uma sociedade intercultural. Esta envolve comuni- cação, reciprocidade e troca. A aprendizagem, nessa concepção, começa antes da escola, na família, durante toda sua vida. 3. ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL 3.1. Etnocentrismo Como percebemos, no item sobre cultura, o homem vê o mundo através da sua cultura. Por esse motivo, tem a propensão de conside- rar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. A isso a Antropologia deno- mina etnocentrismo. De acordo com Everardo Rocha, etnocentrismo: “é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através de nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a exis- capítulo 222 tência. No plano intelectual, pode ser visto como a di- ficuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.” (2004 p.07). No texto Raça e História, publicado em 1950, o antropólogo Claude Lévi-Strauss se volta para o problema da diversidade cultural e do etnocentrismo. Afirma que, através da compa- ração entre as culturas, as sociedades huma- nas nunca se encontram isoladas e, por conse- guinte, estão sempre criando novos costumes. Por esse motivo, a diversidade das culturas é mais fruto do que nos une, a partir do conta- to, do que daquilo que nos separa enquanto diferença. O etnocentrismo, por sua vez, consiste em repudiar formas culturais diferentes daque- las que nos identificamos. No entanto, Lévi- -Strauss afirma que isto não é exclusividade da nossa sociedade moderna ocidental. Grupos diferentes, nas mais diversas regiões possuem esta mesma tendência ao etnocentrismo. A unidade humana, neste caso, está em “sermos todos etnocêntricos”. “a humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, por vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um grande número de populações ditas primitivas se designam por um nome que significa os “homens” (ou por vezes – digamos com mais discri- ção -, os “bons”, os “excelentes”, os “perfeitos”), im- plicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participem das virtudes – ou mesmo da natureza – humanas, mas são, quando muito, compostos por “maus”, “perversos”, “macacos terrestres”, ou “ovos de piolho”. (LÉVI-STRAUSS, 1985 p.54) Mais recentemente, em 1971, Lévi-Strauss publicou um texto (“o olhar distanciado”), no qual se refere à Raça e História. Diz o autor, que procurou nesse novo texto reveros exageros cometidos anteriormente. Mesmo assim, nesse texto Lévi-Strauss reafirma que certo etnocen- trismo é salutar, pois a diversidade das culturas resulta do desejo particular em se diferenciar das culturas que a cercam. Por esse motivo, a partir do etnocentrismo há um fortalecimento da própria cultura. Mesmo considerando que observamos atitu- des etnocêntricas em todos os grupos sociais, há o perigo de que essas atitudes se transfor- mem em racismo. O racismo é uma ideologia baseada em pressupostos pseudocientíficos e que está longe de ser universal. O etnocentris- mo, ao contrário, pode ser encontrado em to- das as sociedades. O etnocentrismo, portanto, é prejudicial quan- do, em nossa sociedade, muitas vezes não identificamos nossas atitudes etnocêntricas em relação aos grupos com os quais convive- mos, transformando nossas atitudes em pos- turas racistas, rotulando as pessoas pejorati- vamente de “negros”, “dondocas”, “velhos”, “paraíbas”, etc. Segundo Rocha, o caminho do monólogo etnocêntrico é: “Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Es- panto! Como é que eles fazem? Curiosidade perple- xa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!” (2004 p.09) ETNOCENTRISMO ROCHA, Everardo. O que é Etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 2004. (Coleção Primeiros Pas- sos, 124). Da coleção Primeiros Passos, o livro de Rocha faz uma discussão sobre como se apresenta o etno- centrismo em nossa sociedade. O autor inicia o texto com a discussão sobre o conceito atual de etnocentrismo. Em seguida, apresenta o desen- volvimento histórico desse conceito. Saiba Mais: capítulo 2 23 3.2. Relativismo cultural Existem ideias que se contrapõem ao etno- centrismo, sendo uma das mais importantes a da relativização. quando procuramos com- preender o “outro” em seus próprios valores e não, nos nossos, estamos relativizando. O relativismo é objeto de controvérsia por parte dos teóricos. Os filósofos criticam o relativismo como um princípio absoluto, pois admitir essa proposição significa abrir mão de qualquer de- finição, já que “tudo é relativo”. Na verdade, segundo Denys Cuche (2002), há três concepções diferentes de relativismo cul- tural, o que propicia certa ambiguidade quan- do nos referimos ao termo: 1. Relativismo como teoria. Nesse caso, cada cultura forma uma entidade separada e distin- ta. Com isso, não há comunicação nem possi- bilidade de extrair conceitos universais e, por- tanto, não resiste a uma análise científica. 2. Relativismo como um princípio ético. Nesse caso, compreende a importância da neutrali- dade do pesquisador em relação às diferen- tes culturas. No entanto, muitas vezes, essa constatação de que sua cultura não é a única possível produz uma situação de pretensa neu- tralidade em que, apenas, reconheço a dife- rença, porém me posiciono em uma situação superior. Essa atitude também pode impedir qualquer discussão sobre direitos humanos, em que o direito à diferença pode se tornar uma obrigação à diferença; 3. Relativismo como um princípio metodo- lógico. Nesse sentido, o relativismo é, apenas, operacional, ou seja, devemos estudar todas as culturas sem julgá-las antecipadamente. Dessa forma, precisamos considerar cada cul- tura como nem totalmente autônoma nem to- talmente dependente. No livro “A Interpretação das Culturas” (1978), Geertz, critica tanto o relativismo quanto o universalismo em seus excessos. Porém, mais recentemente (2000), o autor retoma o tema do relativismo, desta vez através de um texto chamado “Anti Anti-relativismo”. O texto que aparenta uma defesa do relativismo trata mais do radicalismo que tomou conta dos críticos do relativismo cultural. Para Geertz, cabe à Antropologia tratar daqui- lo que não se enquadra, da realidade desloca- da e que o relativismo não foi responsável por “matar” a razão universal dos filósofos. O rela- tivismo cultural, mesmo com todos os exage- ros, nos mostrou que “vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios polimos e que os outros nos vêem através das deles.” (GEERTZ, 2001 p.66). Aqui também encontra- mos um Geertz, que, assim como Lévi-Strauss, acredita que a cultura só se estabelece na alte- ridade e na relação com o outro. RELATIVISMO CULTURAL CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 1999. Pp. 237-244. Embora todo o livro de Cuche seja interessante para compreender a evolução do conceito de cultura nas ciências sociais, é nas páginas finais que o autor problematiza o conceito de relativis- mo cultural e sua relação com o etnocentrismo. Apresenta, ao mesmo tempo, os três tipos de re- lativismo citados neste capítulo. Saiba Mais: capítulo 224 3.2.1 Relativismo cultural e educação Embora ainda pouco explorado pela comuni- dade acadêmica brasileira, o diálogo entre os campos da Antropologia e da educação é bas- tante relevante e possui uma história antiga que ultrapassa a década de 1970, bastante di- vulgada como o início da apropriação do saber antropológico pela educação. Como mostrare- mos a seguir, tais diálogos começaram ainda no século xIx, com os antropólogos analisan- do os contextos culturais de aprendizagem. O diálogo entre Antropologia e Educação não é recente. Ambas trilharam caminhos, cujo alinhamento teórico se deu a partir do evo- lucionismo. A Antropologia buscava compre- ender o outro numa escala evolutiva, única e homogênea. A educação, por sua vez, busca- va modelar o diferente do modelo ocidental, branco e cristão, fazendo evoluir e civilizar os “outros”. Tanto uma quanto a outra tinha por referência a unidade da condição humana. Nessa perspectiva, a cultura e a diversidade não tiveram lugar. No final do século xIx, como vimos no início deste capítulo, o antropólogo Franz Boas, cha- mou a atenção para o fato de que não exis- te uma “cultura” e sim “culturas”. Afirmou também que cada costume, hábito só poderia “ser explicado se relacionado ao seu contex- to cultural” (CUCHE, 2002, p.45). As questões levantadas por Boas abriram as portas para a fecundidade e a multiplicidade de pensamen- tos que orientarão novas abordagens teóricas no início do século xx, inclusive em relação à educação. Boas nos alertou para o fato de que tínhamos um modelo pedagógico oci- dental que nos conduziria a uma pedagogia da violência por não considerar a diversidade cultural. Historicamente, a nossa sociedade e a escola, que lhe é própria, não desenvolveram mecanismos democráticos perante a diversida- de social e cultural. Para Boas, a escola inexiste como instituição independente e, como tal, não possibilita a independência e autonomia dos sujeitos. A discussão iniciada com a escola Culturalista Americana prosseguiu nas gerações de antro- pólogas formadas por Boas, culminando na escola “Cultura e Personalidade” entre os anos 30 e 40 do século xx. Nessa época, antropó- logas, como Margareth Mead e Ruth Benedict, dedicaram-se aos estudos do campo educativo e da diversidade das culturas. Suas preocupa- ções giravam em torno das seguintes questões: Como opera a cultura dentro dos processos educativos nos primeiros anos de vida? qual o papel da educação formal e informal? quais os ciclos de desenvolvimento? A relação entre a adolescência e a formação da personalidade, entre outros temas presentes nas obras dessas autoras. Contudo, apesar das mudanças em curso no conhecimento estabelecido, os siste- mas educativos e os mecanismos pedagógicos desse tempo ainda seguiam as diretrizes de uma educação pautada em um modelo único, ao qual a instituição escolar estava submetida. Outra corrente da época, de origem inglesa, também propiciou um campo de mudanças em relação ao evolucionismo e na maneira de olhar as sociedades estudadas. O funcionalis- mo, centrado na concepção de função e siste- ma, compreende a sociedade de uma forma integrada,em que o todo resulta de partes interligadas, ao mesmo tempo em que as par- tes contêm em si o todo. No funcionalismo, as necessidades de um grupo ou sociedade, bem como as respostas que esses grupos dão a tais necessidades, decorrem da cultura. Esta se destina a suprir as necessidades individuais e coletivas através de instituições como a escola. Ambas as correntes, a corrente americana, com Boas, Mead e Benedict e a corrente bri- tânica com Malinowski atribuíram a mesma importância ao trabalho de campo, redimen- sionando com isso o conhecimento científico. Será através dos trabalhos de campo realizados capítulo 2 25 por esses antropólogos que - ao relativizarem os saberes e aprofundarem os estudos sobre educação - possibilitou repensar a educação e a escola na primeira metade do século xx. Sob inspiração do modelo funcionalista, a Antropologia da educação ganhou força como uma ciência aplicada, indo até os anos 1950/1960, quando as teorias de desenvol- vimento legaram à cultura popular o empe- cilho à modernização. A escola passou a ser um instrumento do desenvolvimento, um dos componentes fundamentais de uma ordem de mudança das realidades ditas “atrasadas”. Em meados de 1950 a meados de 1960, sur- giram dois caminhos para a Antropologia da educação: no primeiro campo, alguns antro- pólogos consideravam a cultura tradicional e popular como veículo de conscientização. Para estes, a escola, através da educação popular, era um instrumento do verdadeiro desenvolvi- mento. Entre 1960 e 1970, os debates em tor- no da cultura popular e de massa, no confron- to com as culturas de elite, darão o impulso necessário à emergência dos estudos culturais norte-americanos. No Brasil, o movimento de resgate da cultura popular através da educa- ção e da escola tem como referência Carlos Rodrigues Brandão. Simultaneamente, entre os anos 1950 e 1970, surgiu a discussão sobre a pretensa neutrali- dade da ciência que, em sua postura clássica, afirmava a separação das atividades realiza- das no campo científico da universidade, das ações sociais do campo político em que atua os cidadãos comuns. Dessa forma, a ciência começou a rever suas práticas sob pressão dos movimentos sociais emergentes. A Antropolo- gia também não ficou alheia a essas questões. O trabalho dos antropólogos, defrontando-se constantemente com o Outro e seu universo, possibilitou a descoberta de si mesmo e do seu próprio mundo. A cultura começou, então, a ser percebida como fato relacional, e a Antro- pologia, que emergiu desse período, não esta- va alheia ao contexto de mudança, reconhe- cendo este como um campo de contradição e conflito. Na segunda metade do século xx, de acordo com Gusmão (2008), a África impôs ao mundo sua presença através das lutas pela indepen- dência, confrontando o colonialismo ainda em sobrevida. Além disso, duas guerras mundiais dilaceraram as certezas do mundo Ocidental, e a questão da humanidade, reconhecidamen- te diversa, estava em debate. A diversidade sociocultural presente na sociedade moderna impunha como necessidade ser reconhecida e dimensionada dentro e fora da escola. No entanto, o processo de reconhecimento não poderia mais limitar-se ao reconhecimento das diferenças, mas na alteridade, como citado an- teriormente. A Antropologia como ciência desenvolveu-se, portanto, preocupada em superar o etnocen- trismo, que resultou do encontro entre a civili- zação ocidental e outros povos e que implicou distorções e violência sobre esses povos e suas culturas. Dessa forma, a Antropologia nasceu de relações historicamente construídas entre os homens e, por sua natureza, buscou com- preender o outro diferente de si e de seu mun- do de origem. Como afirma Gusmão (1997), “ao ser confrontado com outros universos, pressupõe interesses diversos postos numa re- lação de alteridade (o eu e o outro em relação) mais do que de diversidade (o eu e o outro)”. Ou seja, o que o antropólogo estuda e des- cobre são realidades complexas, marcadas por relações antagônicas, contradições e conflitos. Ainda de acordo com Gusmão (1997), a his- tória da Antropologia a conduziu em direção à afirmação da diversidade sócio-cultural e ao relativismo. Procurava explicar a diversidade social humana a partir das singularidades. A história da educação, por sua vez, a conduziu na afirmação permanente da homogeneidade. capítulo 226 A educação, atrelada aos universais humanos, tem como desafio admitir as diferenças e esta- belecer o diálogo. É parte da tradição antropológica a questão do “outro”. Como afirma Gilberto Velho (1997), sair do nosso mundo pode significar sair do nosso lugar social. Transpondo isso para a edu- cação, “sair do lugar” pode significar também a possibilidade de um diálogo transdisciplinar. Ou seja, uma Antropologia em diálogo com o campo da educação e com a sua dimensão prática: a pedagogia. Uma possível relação en- tre Antropologia e educação revela-se através da recomendação de que o olhar do educador se estenda para além dos muros da escola, dei- xando de lado a ilusão da igualdade e consi- derando as diferenças oriundas das trajetórias individuais de cada aluno. O aluno ao chegar à escola não é uma “tábua rasa”, mas carre- ga consigo seu aparato cultural e social. Por isso, a tarefa de educar não pode ser reduzi- da à simples transmissão de conhecimento de forma homogênea, sem cair na ingenuidade de que basta apenas o reconhecimento da di- ferença para salvar a educação. O desafio da educação seria, então, construir pontos com os diversos contextos de aprendizagem, sem reduzi-los, e a Antropologia, através de suas diversas abordagens e de sua metodologia, propicia o diálogo entre campos de conheci- mento diversos e suas especificidades. resUMo Neste capítulo, discutimos que mais importan- te que o conceito de cultura é a sua opera- cionalização, ou seja, seu significado quando aplicado a uma realidade específica. Em se- guida, percebemos que o conceito de cultura está associado ao conceito de etnocentrismo e que todo grupo social tem certa tendência a ser etnocêntrico, o que não significa a mes- ma coisa que racismo. O racismo é ideológico, enquanto o etnocentrismo é uma tendência a acreditar que o grupo ao qual pertenço é o melhor. O etnocentrismo tem um caráter posi- tivo, quando serve para manter o grupo coeso com uma identidade e possui um caráter ne- gativo quando se revela em preconceito. O et- nocentrismo, por sua vez, tem como oposição o conceito de relativismo cultural. Este pode se expressar como um princípio teórico, ético ou metodológico. Apenas como um princípio metodológico, o relativismo cultural contribui para a discussão sobre o diálogo em campos de atuação distintos, como o da educação. reFerÊncias CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciên- cias Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 1999. 256p. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 323p. ______. Nova luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 247p. GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Antropo- logia, Estudos Culturais e Educação: desafios da modernidade. Pro-Posições, v.19, n.3 (57) – set/dez. 2008. ______. Antropologia e educação: origens de um diálogo. Cadernos CEDES v.18 n.43. Cam- pinas, dez,1997. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-mo- dernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólo- gos. Bauru, SP: EDUSC, 2002. 324p. capítulo 2 27 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um concei- to antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estru- tural. 5. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. 456p. (Biblioteca Tempo Universitário 7). ______. Raça e História. In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1985. [1950]. Pp. 47-87. MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. ROCHA, Everardo. O que é Etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense,2004. (Coleção Primeiros Passos, 124). SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e Di- ferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. Pp.73-102 VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: no- tas para uma Antropologia da sociedade con- temporânea. 4. ed. Rio de Janeiro. 1. Pense e disserte sobre as seguintes afirmativas: a. A cultura é dinâmica; b. A cultura condiciona a visão de mundo de homem. 2. Em todas as discussões sobre o homem enquanto ser cultural, deparamo-nos com o dilema entre a ênfase na unidade dos seres humanos (todos participamos de uma mesma humanidade) ou a ênfase na diversida- de cultural (temos culturas diferentes). Como sair desse dilema? 3. O governo federal atualmente tem como lema: “Iguais na diferença!”. O que isso significa? Como essa questão pode ser vivenciada em uma realidade prática? Essa concepção fere os direitos universais do ho- mem? Explique. Atividades capítulo 3 29 Profa. Rita de Cássia Maria Neves Carga Horária | 15 horas INTRODUÇÃO Este capítulo tratará da discussão da educação e da Antropologia no contexto da pós-modernida- de. Para isso, discorreremos sobre as diversas concepções de identidade desde a sua constituição na modernidade até sua transformação na chamada pós-modernidade. Para a compreensão da construção da identidade cultural, discutiremos sobre a construção da nação, o sentimento de nacionalidade e as consequências do processo de globalização cultural. Procuraremos, ainda, compreender o que vem a ser multiculturalismo e sua origem. Em seguida, apresentaremos as questões que estão na raiz da discussão sobre uma educação multicultural. Ainda nessa ocasião, discutiremos os principais questionamentos em relação ao tema do multi- culturalismo, para logo depois analisar a substituição deste pelo conceito de interculturalidade, possibilitando um novo prisma social educacional. Por fim, para concluir, analisaremos a proposta de uma política educacional intercultural a partir da discussão sobre o Pluralismo Cultural, consi- derado um “tema transversal” nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). OBJETIVOS ESPECÍFICOS • Compreender a constituição da Identidade na Pós-modernidade; • Apreender as relações entre os processos Identitários e o papel da educação no con- texto atual; • Relacionar a identidade cultural com a for- mação da nação, e a construção do nacio- nalismo; • Compreender as diferentes concepções de multiculturalismo, Interculturalidade e a sua aplicação no campo da educação. antropologia e edUcação no contexto da pós-Moderni- dade capítulo 330 isso, chegamos à conclusão de que a identida- de do indivíduo está ligada à identidade cultu- ral e não se separa dele. Mas, o que é a identidade cultural? No campo da teoria social, a identidade cultural deve ser percebida como a maneira que o indivíduo se vê dentro da sociedade em que vive e através da qual vê os outros em relação a ele próprio, ou seja, é o sentimento de pertencer a um de- terminado grupo social. Entre os teóricos da questão, podemos identificar duas concepções de identidade cultural: uma concepção objeti- vista e uma concepção subjetivista. A concepção objetivista concebe a identidade como preexistente ao indivíduo. É uma essên- cia que não se transforma, cabendo ao indi- víduo se moldar a ela. A pessoa, a partir de sua herança genética, praticamente nasce com os elementos que constituem sua identidade. Na perspectiva objetivista, com ênfase cultu- ralista, a origem está na herança cultural que recebemos de nossos ancestrais. Nela o indi- víduo interioriza os modelos culturais que a sociedade lhe impõe. A identidade cultural é possibilitada a partir de vínculos baseados em uma genealogia comum. Na concepção subjetivista, a identidade cultu- ral não é uma identidade recebida definitiva- mente como um atributo. Como afirma Cuche (2002), para os subjetivistas, a identidade é, na verdade, um sentimento de vinculação. Os subjetivistas criticam o determinismo biológi- co e todo tipo de essencialismo da concepção objetivista. Levada ao extremo, porém, esse tipo de compreensão da identidade pode dar a impressão de que a identidade é apenas uma questão de escolha arbitrária, uma elaboração fantasiosa. Com isso, alguns autores passaram a criticar as abordagens ou puramente objetivistas ou puramente subjetivistas. Frederik Barth (1998 [1969]) propõe no texto “Grupos étnicos e suas fronteiras” que a identidade seja vista como manifestação relacional, ou seja, para Barth, a identidade resulta das interações entre os grupos e dos procedimentos de diferencia- ção que os grupos utilizam em suas relações. Isso significa que a identidade se constrói e re- constrói constantemente. A identidade, então, 1. IDENTIDADE OU IDENTIDADES? Do capítulo anterior, podemos concluir que a discussão sobre cultura está presente em di- versas áreas do conhecimento. É um conceito que se expandiu para além das ciências sociais. Como afirma Adam Kuper (2002), a cultura está em voga, e até os pós-modernos falam sobre ela sem constrangimento. Há, porém, outro termo que frequentemente se liga ao termo cultura e que está cada vez mais presente no discurso dos cientistas, que é o conceito de identidade. Como já percebe- mos anteriormente, a identidade parece um tema simples, porque cada pessoa sabe quem é. Porém, quando paramos um pouco para pensar, percebemos que não é tão simples, pois a identidade é um tema que não pode ser tratado isoladamente. O que somos está sem- pre ligado ao que não somos. Eu sou brasileira, porque não sou americana, chinesa, etc. Ou seja, a identidade se reproduz na alteridade, no encontro com o outro, diferente de mim. Além disso, há uma tendência de se confundi- rem as noções de cultura com identidade cul- tural. A cultura pode existir sem que se tenha a consciência da identidade. Temos a impressão de que, ao nascer, adquirimos uma identidade que nunca se altera no tempo. É como se fosse uma identidade permanente, em que as mu- danças que ocorrem parecem ser simples rou- pagem, acúmulo de conhecimento, que não altera a essência da pessoa, aquilo que ela é. No entanto, o que eu sou está tão impregna- do do lugar onde estou ou da cultura em que estou inserido que não se separa de mim. Com capítulo 3 31 senvolve, mas que permanece idêntica a ele ao longo de sua existência. Na medida em que a sociedade capitalista mo- derna se torna mais complexa, as leis clássicas da economia liberal precisaram ser revistas, e a complexidade do mundo moderno passou a afirmar que o sujeito autônomo do Iluminis- mo é, na verdade, formado na relação com outras pessoas. A identidade do sujeito socio- lógico, que emerge nessa época, ainda tem um núcleo estável, porém sua identidade é formada na interação com a sociedade. Esse modelo sociológico é um produto da primei- ra metade do século xx, momento em que as ciências sociais assumem a forma atual. A imagem de uma natureza humana constante, independente do lugar e do tempo, como afir- ma Geertz, pode ser uma ilusão, “que o que o homem é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que acredita, que é inseparável dele.” (1979 p.47) Essa concepção de identidade afirma que ela é construída ao interagir com a sociedade. Rejei- ta, portanto, o sujeito do Iluminismo, centrado e unificado e é um prenúncio de uma iden- tidade do sujeito pós-moderno. Devemos ter claro que o termo pós-moderno não é consen- so no campo filosófico, sociológico nem edu- cacional. O consenso se dá apenas no fato de que todos concordam que há inegavelmente mudanças na economia, na produção cultural, no campo filosófico e no campo educacional (para falar apenas em alguns) que ocorreram na segunda metade do século xx. Dentre as mudanças mais visíveis, devemos considerar que o século xx ficou marcado pela ênfase na ciência e na tecnologia, que transfor- é sempre uma negociação entre a autoidenti-dade (definida por si mesma) e a exo-identida- de (definida pelos outros). Com outra compreensão, Stuart Hall (1999) afirma que existem três concepções diferentes de identidade vivenciada na história: a) Sujeito do Iluminismo; b) Sujeito Sociológico; c) Sujeito pós-moderno. A modernidade libertou o indivíduo das amar- radas medievais da tradição e da estrutura social hierárquica, em que se acreditava que a sociedade era divinamente estabelecida. O humanismo renascentista do século xVI e o Iluminismo do século xVIII romperam com o passado, instaurando a modernidade. O Iluminismo concebe que há uma natureza humana invariável. As leis, as modas, as épocas podem ser diferentes, mas a natureza huma- na é imutável. O indivíduo, que emerge dessa concepção, é totalmente centrado, unificado, tendo por princípio o predomínio da razão. Porém, de acordo com Abbagnano (1998), a razão no Iluminismo está ligada à esfera da ex- periência: “De fato, só a atitude empirista garante a abertura do domínio da ciência e, em geral, do conhecimento, à crítica da razão, pois consiste em admitir que toda verdade pode e deve ser colocada à prova, eventual- mente modificada, corrigida ou abandonada.” Na concepção do sujeito do Iluminismo, ao nascer, este adquire uma identidade que de- Stuart Hall é conhecido por ter sido um dos fun- dadores do Centre for Contemporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, Ingla- terra, tendo sido diretor de 1970-79. Pioneiro no campo dos Estudos Culturais, atualmente é pro- fessor da Open University, Inglaterra. “Por Iluminismo moderno entende-se o período que vai dos últimos decênios do Século xVII aos últimos decênios do Século xVIII. (...) Linha filo- sófica caracterizada pelo empenho em estender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência humana”. (ABBAGNANO, 1998) Saiba Mais: capítulo 332 psíquicos inconscientes. Essa descoberta faz com que se questione o sujeito racional, provi- do de uma identidade fixa e unificada. Ainda como uma ruptura do discurso moder- no, o feminismo, como parte dos novos mo- vimentos sociais, surgidos nos anos sessenta do Século xx, questionou a noção de que ho- mens e mulheres possuem a mesma identida- de (fazem parte da humanidade), colocando em cena a questão da diversidade sexual. A identidade que emergiu da quebra do para- digma da modernidade e, a partir dessa série de rupturas apresentadas acima, não é “fixa, essencial, permanente, pois ela é formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1999). E, nesse contexto da pós-modernidade, o discurso da globalização é um importante fator a ser considerado na construção de identidades, na medida em que nossas vidas podem ser facilmente afetadas por qualquer coisa que aconteça em qualquer lugar do mundo. O que se configurou, no final do século xx, portanto, foi uma crise nas instituições próprias da modernidade, entre elas o Estado-nação, a família e a escola. Mesmo que o diagnóstico da crise seja diferente entre os pensadores, pois uns consideram que esta é apenas uma nova face da modernidade, outros, como Jean François Lyotard e Jean Baudrillard, assumem a ruptura e anunciam a pós-modernidade. De acordo com Lyotard (2006 [1979]), em “A condição Pós-moderna”, se queremos tratar do saber na sociedade contemporânea, preci- samos decidir qual a representação que se faz dessa sociedade. As alterações ocorridas no mundo contemporâneo formam uma imagem de sociedade que nos obriga a revisar os en- foques estabelecidos como alternativas. Nessa nova configuração, os Estados-nação, os par- tidos, os profissionais e as instituições são de- compostos, dissolvidos seus vínculos, passan- do de uma coletividade social às relações mais complexas e móveis. O vínculo social passa a ser um jogo de linguagem. mou rapidamente os usos e costumes. Dentre as transformações, destacam-se a automação, os transportes ultrarrápidos, a comunicação eletrônica, que se potencializou através da ex- pansão da internet. Tudo isso provocou, como afirma Hall (1999), em uma compressão do espaço-tempo, com consequências em todos os campos do conhecimento. Provocou também uma série de transforma- ções, de rupturas nos discursos do conheci- mento moderno. Entre as diversas rupturas, podemos citar os escritos de Karl Marx, que, embora tenham sido pensados no Século xIx, foram retomados na década de 1960, de for- ma que seus novos intérpretes, ao revisitar os trabalhos de Marx, possibilitaram críticas fun- damentais, entre elas a de que não há uma essência fundamental no homem. Outra grande ruptura no pensamento moder- no veio da descoberta de Freud, do incons- ciente. Ou seja, as nossas identidades e sexu- alidades são formadas a partir de processos quando Hall fala da compressão do espaço-tem- po, está se referindo ao processo de globaliza- ção em que há uma “aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor, e as distâncias, mais curtas que os even- tos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância.” (HALL 1999, p.69). Saiba Mais: capítulo 3 33 Compondo essa discussão, Benedict Anderson propõe trabalhar com a ideia de “Comunidade Imaginada”. Essa vem valorizar os elementos subjetivos na definição de nação. Pressupõe a ideia de um coletivo que não conheço, mas pelo qual posso morrer. Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvi- rão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão (ANDERSON, 2005). Smith, Connor e Anderson completam-se na posição de que a nação oscila entre a unidade cívica territorial e étnica bem como está ligada à consciência que se adquire aos poucos. É, por fim, uma comunidade política imaginada como limitada e soberana. Toda nação tem um mito, uma história co- mum, cerimoniais, monumentos e um discur- so sobre si próprio. São práticas simbólicas que acabam por empreender valores e normas de comportamento através da repetição. Eric Ho- bsbawm (1984) chama de “tradição inventa- da” às práticas que visam firmar valores e nor- mas de comportamento através da repetição. A lógica do mito é puramente simbólica e pas- sa pelo emocional. É uma narração que impli- ca fé e que vai estabelecer a organização do universo e ensinar como devem ser as relações sociais dos indivíduos. Em relação à nação, mi- tos fundadores são criados e atualizados cons- tantemente. Marilena Chauí (2000) define mito fundador como aquele que não cessa de encontrar no- vos meios para exprimir-se. Em seu livro, Chauí constrói um histórico do mito fundador da sociedade brasileira, concluindo com o cará- 2. NAÇÃO, NACIONALISMO E GLOBALIZAÇÃO CULTURAL As nações modernas como as conhecemos se consolidaram a partir da revolução francesa, no século xVIII. Anthony Smith (1991), entre outros autores, afirma que o nacionalismo não foi inventado com a Revolução Francesa como grande parte dos cientistas sociais afirmam, mas já existiam nações constituídas anterior- mente. Para ele, o que ocorreu no século xVIII foi apenas a incorporação maior pela popula- ção da ideia de nação. A nação pode ser definida como um corpo de cidadãos, cuja soberania coletiva os constitui como Estado. Ela nasce da vontade de coin- cidir nação e Estado. quando isso ocorre, há o Estado-nação, quando não, podemos ter nação sem Estado, ou distribuída por vários Estados. Smith nos diz também que identidade nacio- nal e nação são construções complexas que misturam dimensões cívicas, territoriais, étni- cas e genealógicas, em proporções variadas. São essas dimensões múltiplas e diversas que têm feito da identidade nacional algo forte e presente na modernidade. É na oscilação en- tre nação vista
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