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1 MÓDULO I: DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS ANA LUÍZA A. PAIVA – 5° PERÍODO 2022/2 OBJETIVOS 1. Caracterizar a leptospirose: agente etiológico, fisiopatologia, quadro clínico diagnóstico, diagnostico diferencial e tratamento. 2. Diferenciar surto, epidemia, endemia e pandemia. 3. Relacionar fatores socioeconômicos ao perfil epidemiológico dessa e de outras DIP. REFERÊNCIAS Ministério da Saúde. Guia de Vigilância em Saúde. Brasília. 5ª ed., 2021. MARTINS, Mílton de A.; CARRILHO, Flair J.; ALVES, Venâncio Avancini F.; CASTILHO, Euclides. Clínica Médica, Volume 7: Alergia e Imunologia Clínica, Doenças da Pele, Doenças Infecciosas e Parasitárias. Editora Manole, 2016. Brasil. Ministério da Saúde. Leptospirose: diagnóstico e manejo clínico. Brasília, 2014. INTRODUÇÃO E EPIDEMIOLOGIA A leptospirose é uma zoonose que é considerada um importante problema de saúde pública no Brasil, e em outros países tropicais e se caracteriza por ser uma doença infecciosa febril de início abrupto, cujo espectro clínico pode variar desde um processo inaparente até formas graves. A OMS refere-se à leptospirose como “doença infecciosa relacionada à pobreza”. No Brasil, é uma doença endêmica; torna-se epidêmica em períodos chuvosos, principalmente nas capitais e nas regiões metropolitanas, devido às enchentes associadas à aglomeração populacional de baixa renda, condições inadequadas de saneamento e alta infestação de roedores infectados. Algumas ocupações facilitam o contato com as leptospiras, como trabalhadores em limpeza e desentupimento de esgotos, garis, catadores de lixo, agricultores, veterinários, tratadores de animais, pescadores, magarefes, laboratoristas, militares e bombeiros, entre outras. A leptospirose ocorre em todas as regiões do país com predomínio das regiões sul e sudeste, principalmente devido ao maior processo de urbanização que ocorre geralmente de forma desordenada e cria muitas vezes ambientes insalubres. No período de 2010 a 2020, foram confirmados 39.270 casos de leptospirose (média anual de 3.734 casos). Nesse mesmo período, foram registrados 3.419 óbitos, com média de 321 óbitos/ano. Entre os casos confirmados, os mais acometidos são indivíduos do sexo masculino (80%), na faixa etária de 20 a 49 anos (60%). Quanto às características do local provável de infecção (LPI) dos casos confirmados no período, quase 80% dos casos ocorreram em área urbana. Em MG no ano de 2019 houve 189 casos confirmados e 19 óbitos pela doença. No País, a doença tem grande importância social e econômica devido à sua alta incidência e percentual significativo das internações, alto custo hospitalar e perdas de dias de trabalho, como também por sua letalidade. A leptospirose é uma doença de notificação compulsória no Brasil. CONCEITOS BÁSICOS Surto: aumento localizado do número de casos de uma doença. Epidemia: aumento no número de casos de uma doença em diversas regiões, estados ou cidades, porém sem atingir níveis globais. Endemia: quando a doença é recorrente na região, mas não há um aumento significativo no número de casos e a população convive com ela. Pandemia: enfermidade atinge níveis mundiais. ETIOLOGIA E TRANSMISSÃO Leptospirose Problema 08 2 MÓDULO I: DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS ANA LUÍZA A. PAIVA – 5° PERÍODO 2022/2 O agente etiológico é uma bactéria helicoidal (espiroqueta) aeróbica obrigatória, altamente móvel, com elevada capacidade de sobrevivência no meio ambiente. Pertence ao gênero Leptospira, sendo a espécie mais importante a L. interrogans. Existem mais de 200 sorovares da L. interrogans, sendo que o tipo determinar as diversas formas de apresentação clínica no homem. No Brasil, os sorovares Icterohaemorrhagiae e Copenhageni estão relacionados aos casos mais graves. Microscopia eletrônica de varredura da Leptospira spp Os principais reservatórios são os roedores das espécies Rattus norvegicus (ratazana ou rato de esgoto), Rattus rattus (rato de telhado ou rato- preto) e Mus musculus (camundongo ou catita). Outros reservatórios menos comuns são caninos, suínos, bovinos, equinos, ovinos e caprinos. Os animais infectados permanecem assintomáticos, mantêm a leptospira nos rins, eliminando-a viva na urina, contaminando água, solo e alimentos. A transmissão resulta da exposição direta ou indireta a urina de animais infectados. A penetração do microrganismo ocorre através da pele com presença de lesões, pele integra imersa por longos períodos em água contaminada Além disso a transmissão também pode ocorrer pelas seguintes formas, porém, com rara frequência: • Contato com sangue, tecidos e órgãos de animais infectados. • Transmissão acidental em laboratórios. • Ingestão de água ou alimentos contaminados. A transmissão pessoa a pessoa é rara, mas pode ocorrer pelo contato com urina, sangue, secreções e tecidos de pessoas infectadas. A imunidade adquirida pós-infecção é sorovar- específica, podendo um mesmo indivíduo apresentar a doença mais de uma vez se o agente etiológico de cada episódio pertencer a um sorovar diferente do(s) anterior(es). FISIOPATOLOGIA As Leptospiras patogênicas possuem capacidade de resistir à atividade bactericida do soro normal e, na ausência de anticorpos específicos, não são fagocitadas e destruídas pelos neutrófilos polimorfonucleares ou pelos macrófagos. A afinidade das proteínas de superfície da leptospira (liga e LigB) com as membranas celulares é responsável pela aderência celular e invasão do microorganismo no hospedeiro. A disseminação ocorre por via hematogênica e, após 48 horas, pode-se isolar a leptospira em praticamente todos os órgãos, inclusive no líquido cefalorraquiano. Observa-se uma resposta tipo Th1, pró- inflamatória, com níveis elevados de fator alfa de necrose tumoral (TNF-alfa), sendo relacionados à severidade do quadro clínico e à letalidade. Além disso, o peptidoglicano extraído da parede celular de Leptospira interrogans induz a liberação de TNF-alfa de monócitos humanos e ativa a aderência de neutrófilos a células endoteliais. A indução de TNF-alfa por fatores tóxicos bacterianos desencadeia a resposta inflamatória local e sistêmica, resultando, então, em dano capilar. A disfunção endotelial induzida pela leptospira determina extravasamento de líquido para o terceiro espaço e fenômenos hemorrágicos, característicos da doença, especialmente na sua forma grave. A síndrome febril pode ser decorrente da liberação de citocinas induzida por fatores de virulência da leptospira. 3 MÓDULO I: DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS ANA LUÍZA A. PAIVA – 5° PERÍODO 2022/2 Na forma grave de leptospirose os órgãos mais afetados são o fígado, o rim, o pulmão, o coração e o músculo esquelético. A disfunção hepática predomina nitidamente na excreção biliar, justificando grandes elevações da bilirrubina, mas com leves aumentos das aminotransferases. A disfunção tubular predomina no túbulo proximal, elevando significativamente a fração excretória de sódio e de potássio. Isso explica por que eventualmente a insuficiência renal aguda da leptospirose pode não ser oligúrica e frequentemente não cursa com hipercalemia. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Período de Incubação: Varia de 1 a 30 dias (média de 5 e 14 dias). Variam desde formas assintomáticas e subclínicas até quadros clínicos graves, associados a manifestações fulminantes. As apresentações clínicas da leptospirose são divididas em duas fases: fase precoce (fase leptospirêmica) e fase tardia (fase imune). FASE PRECOCE Corresponde de 85% a 90% das formas clínicas, mas poucos casos são identificados e notificados nessa fase da doença, em decorrência das dificuldades inerentes ao diagnóstico clínico e a confirmação laboratorial.Caracteriza-se pela instalação abrupta de febre, comumente acompanhada de cefaleia, mialgia, anorexia, náuseas e vômitos. Podem ocorrer diarreia, artralgia, hiperemia ou hemorragia conjuntival, fotofobia, dor ocular e tosse. Exantema ocorre em 10% a 20% dos pacientes e apresenta componentes de eritema macular, papular, urticariforme ou purpúrico, distribuídos no tronco ou região pré-tibial. Em menos de 20% dos casos de leptospirose também podem ocorrer hepatomegalia, esplenomegalia e linfadenopatia. Essa fase tende a ser autolimitada e regride entre 3 e 7 dias sem deixar sequelas. Costuma ser diagnosticada como uma “síndrome gripal”, “virose” ou outras doenças que ocorrem na mesma época, como dengue ou influenza. Sufusão conjuntival é um achado característico da leptospirose e é observada em cerca de 30% dos pacientes. Esse sinal aparece no final da fase precoce e caracteriza-se por hiperemia e edema da conjuntiva ao longo das fissuras palpebrais. Sufusão conjuntival Com a progressão da doença, os pacientes também podem desenvolver petéquias e hemorragias conjuntivais. Geralmente, a leptospirose é associada à intensa mialgia, principalmente em região lombar e nas panturrilhas. FASE TARDIA Cerca de 15 % dos pacientes com leptospirose evoluem para manifestações clínicas graves, que se iniciam geralmente após a 1ª semana da doença. A manifestação clássica da leptospirose grave é a síndrome de Weil, caracterizada pela tríade de icterícia, insuficiência renal e hemorragia, mais comumente pulmonar. Icterícia: geralmente surge entre o 3° e 7° dia da doença e apresenta uma tonalidade alaranjada muito intensa (icterícia rubínica). icterícia rubínica 4 MÓDULO I: DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS ANA LUÍZA A. PAIVA – 5° PERÍODO 2022/2 Hemorragia pulmonar: caracterizada por lesão pulmonar aguda e sangramento pulmonar maciço. O comprometimento pulmonar da leptospirose apresenta-se com tosse seca, dispneia, expectoração hemoptoica e, ocasionalmente, dor torácica e cianose. A hemoptise franca indica extrema gravidade e pode ocorrer de forma súbita, levando à insuficiência respiratória (síndrome da hemorragia pulmonar aguda e síndrome da angústia respiratória aguda – SARA) e ao óbito. Outros tipos de diátese hemorrágica, frequentemente em associação com trombocitopenia, também podem ocorrer, além de sangramento nos pulmões, fenômenos hemorrágicos na pele (petéquias, equimoses e sangramento nos locais de venopunção), nas conjuntivas e em outras mucosas ou órgãos internos, inclusive no SNC. Insuficiência renal aguda: ocorre em 16% a 40% dos pacientes e é caracterizada por ser não oligúrica e hipocalcemia, devido à inibição de reabsorção de sódio nos túbulos renais proximais, aumento no aporte distal de sódio e consequente perda de potássio. Incialmente o paciente apresenta débito urinário normal ou elevado, creatinina e ureia elevadas e o paciente pode desenvolver hipocalcemia moderada a grave. Com a perda progressiva do volume intravascular, os pacientes desenvolvem insuficiência renal oligúrica devido à azotemia pré-renal. Nesse estágio, os níveis de potássio começam a subir para valores normais ou elevados. Devido à perda contínua de volume, os pacientes podem desenvolver necrose tubular aguda e não responder a reposição intravascular de fluidos, necessitando de início imediato de diálise para tratamento da insuficiência renal aguda. Outras manifestações frequentes na forma grave da leptospirose são: miocardite, acompanhada ou não de choque e arritmias agravadas por distúrbios eletrolíticos; pancreatite; anemia e distúrbios neurológicos como confusão, delírio, alucinações e sinais de irritação meníngea. A leptospirose é causa relativamente frequente de meningite asséptica. CONVALESCENÇA E SEQUELAS A convalescença dura de 1 a 2 meses. Nesse período podem persistir febre, cefaleia, mialgias e mal-estar geral por alguns dias. Além disso, astenia e anemia podem ser observadas. A icterícia desaparece lentamente, podendo durar por semanas. A eliminação de leptospiras pela urina (leptospirúria) pode continuar por 1 semana até vários meses após o desaparecimento dos sintomas. CRITÉRIOS DE INTERNAÇÃO EM UTI Os seguintes critérios deverão ser considerados para internação do paciente em UTI: a) dispneia ou taquipneia (FR > 28 ipm) b) hipoxemia (PO2 < 60 mmHg em ar ambiente) c) escarros hemoptoicos ou hemoptise d) tosse seca persistente e) infiltrado em radiografia de tórax, com ou sem manifestações de hemorragia pulmonar (hemoptoicos ou hemoptise) f) insuficiência renal aguda g) distúrbios eletrolíticos e ácido-base que não respondem à reposição intravenosa de volume e/ou eletrólitos h) hipotensão refratária a volume i) arritmias cardíacas agudas j) alteração do nível de consciência k) hemorragia digestiva A queda de hemoglobina, especialmente para o paciente hidratado e sem exteriorização de sangramento, pode sugerir, precocemente, sangramento pulmonar. 5 MÓDULO I: DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS ANA LUÍZA A. PAIVA – 5° PERÍODO 2022/2 A queda súbita da hemoglobina, especialmente se associada a manifestações de comprometimento pulmonar (tosse, taquidispneia, alterações radiológicas), assim como a presença de escarros hemoptoicos ou hemoptise são critérios indicativos de internação em UTI. DIAGNÓSTICO EXAMES INESPECÍFICOS • Hemograma (anemia, plaquetopenia, leucocitose com desvio à esquerda) • Ureia e creatinina (elevados) • Bilirrubina total (elevada com predomínio da fração direta), • Potássio (normal ou diminuído) • CPK (elevada – lesão muscular grave) • AST, ALT (normais ou com aumento de três a cinco vezes o valor da referência) • Gama-GT e fosfatase alcalina (normais ou eleva- das) • Radiografia de tórax (infiltrado alveolar ou lobar, bilateral ou unilateral, congestão e SARA) • ECG (fibrilação atrial, bloqueio atrioventricular e alteração da repolarização ventricular) • Gasometria arterial (acidose metabólica, hipoxemia). EXAMES SOROLÓGICOS ESPECÍFICOS O método laboratorial de escolha depende da fase evolutiva em que se encontra o paciente. Fase precoce: visualização de leptospiras no sangue por meio de exame direto em cultura, inoculação em animais de laboratório e por meio da detecção do DNA do microrganismo pela técnica da reação em cadeia da polimerase (PCR). A PCR não dá nenhuma informação sobre sorovar infectante. Além disso, a OMS recomenda a confirmação pelo MAT de todos os soros que derem resultados de PCR-positivo. Fase tardia: os mais utilizados na rotina são: Microaglutinação (MAT): realizada a partir de antígenos vivos é considerada como o exame laboratorial “padrão ouro”, recomendada pela OMS, porque detecta anticorpos específico e classifica os sorovares isolados. Recomenda-se comparar duas amostras de soro: 1ª na fase aguda da doença e a 2ª, 2 a 3 semanas após o início dos sintomas. +: aumento de 4 vezes ou mais (2 ou mais diluições) no título de anticorpos da 1ª para a 2ª amostra OU resultado não reagente na 1ª amostra e um resultado reagente >= a 200 na 2ª amostra (soroconversão) OU 1 amostra >800. ELISA-IgM: pode tornar-se positivo um pouco mais cedo do que o MAT, mas pode haver resultados tanto falsos positivos, como falsos negativos, não dando nenhuma indicação do sorotipo infectante. Não são confiáveis, e não se deve considerar isoladamente, os resultados do teste de ELISA. DIAGNOSTICO DIFERENCIAL a) Fase precoce: dengue, influenza (síndrome gripal), malária, riquetsioses, doença de Chagas aguda, entre outras. b) Fase tardia: hepatites virais agudas, dengue hemorrágico, hantavirose, febre amarela, malária grave, febre tifoide, endocardite,riquetsioses, doença de Chagas aguda, pneumonias, pielonefrite aguda, apendicite aguda, sepse, meningites, colangite, colecistite aguda, coledocolitíase, esteatose aguda da gravidez, síndrome hepatorrenal, síndrome hemolítico- urêmica, outras vasculites incluindo lúpus eritematoso sistêmico, entre outras. TRATAMENTO A antibioticoterapia está indicada em qualquer período da doença, mas sua eficácia costuma ser maior na primeira semana do início dos sintomas. Fase precoce a) Adultos 6 MÓDULO I: DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS ANA LUÍZA A. PAIVA – 5° PERÍODO 2022/2 • Amoxicilina: 500 mg, VO, 8/8h, por 5 a 7 dias ou • Doxiciclina 100 mg, VO, 12/12h, por 5 a 7 dias. b) Crianças • Amoxicilina: 50 mg/kg/dia, VO, divididos, 8/8h, por 5 a 7 dias OBS: a Doxiciclina não deve ser utilizada em crianças menores de 9 anos, mulheres grávidas e em pacientes portadores de nefropatias ou hepatopatias. A azitromicina ou claritromicina são alternativas para pacientes com contraindicação para uso de amoxicilina e doxiciclina. Fase tardia a) Adultos • Penicilina G Cristalina: 1.5 milhões UI, IV, de 6/6 horas; • Ampicilina: 1 g, IV, 6/6h; • Ceftriaxona: 1 a 2 g, IV, 24/24h ou Cefotaxima: 1 g, IV, 6/6h. • Alternativa: Azitromicina 500 mg, IV, 24/24h b) Crianças • Penicilina cristalina: 50 a 100.000 U/kg/dia, IV, em quatro ou seis doses; • Ampicilina: 50-100 mg/kg/dia, IV, dividido em quatro doses; • Ceftriaxona: 80-100 mg/kg/dia, em uma ou duas doses, ou Cefotaxima: • 50-100 mg/kg/dia, em duas a quatro doses. • Alternativa: Azitromicina 10 mg/kg/dia, IV Duração do tratamento com antibióticos intravenosos: pelo menos 7 dias PREVENÇÃO As medidas de prevenção e controle devem ser direcionadas aos reservatórios, à melhoria das condições de proteção dos trabalhadores expostos e das condições higiênico-sanitárias da população, e às medidas corretivas sobre o meio ambiente, diminuindo sua capacidade de suporte para a instalação e proliferação de roedores.
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