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1ª EDIÇÃO EGUS 2015 CÓDIGO DE LINGUAGEM IFETE - INTAEAD INTA - Instituto Superior de Teologia Aplicada PRODIPE - Pró-Diretoria de Inovação Pedagógica Diretor Presidente das Faculdades INTA Dr. Oscar Rodrigues Júnior Pró-Diretor de Inovação Pedagógica Prof. PHD. João José Saraiva da Fonseca Coordenadora Pedagógica e de Avaliação Profª. Sônia Henrique Pereira da Fonseca Assessor de Gestão de Projetos de Avaliação e Pesquisa Éder Jacques Porfírio Farias Equipe de Pesquisa e Desenvolvimento de Projetos Tecnológico e Inovadores para Educação Coordenador da Equipe Anderson Barbosa Rodrigues Analista de Sistemas Mobile Francisco Danilo da Silva Lima Analista de Sistemas Front End André Alves Bezerra Analista de Sistemas Back End Luis Neylor da Silva Oliveira Técnico de Informática / Ambiente Virtual Rhomelio Anderson Sousa Albuquerque Equipe de Produção Audiovisual Roteirista da Vídeoaula Prof. Arnaldo Vicente Ferreira Sá Gerente de Produção de Vídeos Francisco Sidney Souza Almeida Edição de Áudio e Vídeo Francisco Sidney Souza Almeida José Alves Castro Braga Gerente de Filmagem/Fotografia José Alves Castro Braga Operador de Câmera/Iluminação e Áudio José Alves Castro Braga Designer Editorial Marcio Alessandro Furlani Diagramador Web Luiz Henrique Barbosa Lima Assessoria Pedagógica/Equipe de Revisores Sonia Henrique Pereira da Fonseca Evaneide Dourado Martins Revisor Gramatical Prof. Arnaldo Vicente Ferreira Sá 7INTA Código de Linguagem Palavras do Professor-Autor ............................................11 Ambientação ........................................................................14 Trocando ideias com os autores .....................................16 Problematizando ................................................................18 1 Teorias de aquisição da linguagem Nativismo versus empirismo ....................................................................................23 Reforçamento ....................................................................................................................25 Imitação ...............................................................................................................................28 O papel da entrada .......................................................................................................30 Estratégias de aquisição ..............................................................................................32 Linguagem e cognição Introdução ...........................................................................................................................37 Linguagem, fala e pensamento ..............................................................................38 Pensamento sem fala ...................................................................................................40 Sumário 2 8 Código de Linguagem INTA Linguagem, cultura e cognição Linguagem, cultura e cognição: contribuições dos estudos neurolinguísticos. ............................................................................................................49 Linguagem, cultura e cognição: relações solidárias e constitutivas Causalidade e reciprocidade na relação entre linguagem, cognição e cultura ..........................................................................................................52 Texto Complementar - Conceitos Básicos de Psicolinguística, Linguagem e Signo ........................................................................................................59 Piaget .....................................................................................................................................61 Chomsky ..............................................................................................................................61 Vygotsky ..............................................................................................................................62 Distúrbios ou atrasos de aquisição da linguagem .......................................65 Distúrbios do desenvolvimento associados às alterações da linguagem ....................................................................................................................66 Leitura Obrigatória ..........................................................................................68 Saiba mais ...............................................................................................................70 Revisando ................................................................................................................72 Autoavaliação ......................................................................................................76 Bibliografia ............................................................................................................78 Bibliografia da Web .......................................................................................83 3 9INTA Código de Linguagem 10 Código de Linguagem INTA 11INTA Código de Linguagem Palavra do Professor-Autor Olá estudantes, Como adquirimos o conhecimento? Como aprendemos a comunicação pela linguagem? São perguntas que instigam psicólogos e linguistas a pesquisar o cérebro, o comportamento, as maneiras de aprender, a apreensão do conhecimento e sua transmissão nas mais diversas situações da experiência humana. A linguagem é, em muitos aspectos, uma das mais surpreendentes habilidades do homo sapiens, e, sem sombra de dúvidas, o fator psíquico-biológico que nos torna realmente o que somos: humanos. Sem a linguagem não conheceríamos o progresso, a tecnologia, a produção artística, a civilização como hoje se apresenta. Privados desta habilidade, ainda viveríamos nas cavernas, não teríamos sequer dominado o fogo e nem mesmo conseguido fazer rudes instrumentos de pedra lascada. Mas como adquirimos a capacidade de nos comunicarmos por meio de uma língua? Como aprendemos a balbuciar as primeiras palavras, depois juntá-las para formar pequenas frases até conseguir expressar ideias através de estruturas linguísticas mais complexas? Quais os principais problemas e dificuldades que a criança encontra na aquisição da linguagem? Tentar descobrir respostas a estas indagações é o objetivo deste despretensioso tratado que se fundamenta na opinião e pesquisas de abalizados estudiosos do assunto. Compreender como se adquire a linguagem e seus códigos é uma atividade estimulante e desafiadora. Esperamos que você também se empolgue na descoberta de novos conhecimentos nesta área da comunicação humana. O autor. 12 Código de Linguagem INTA Material original cedido pelo IFETE Colaboradores: Arnaldo Vicente Ferreira Sá Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (1985), graduação em Teologia pelo Instituto Superior de Teologia Aplicada (2010) e Especialização em Língua Portuguesa pelo Instituto Superior de Teologia Aplicada (2006) . Atualmente é Professor Substituto da Universidade Estadual Vale do Acaraú e Professor Titular do Instituto Superior de Teologia Aplicada. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Ensino Universitário. Sonia Maria Henrique Pereira da Fonseca Professora do ensino superior, Mestranda em Ciências da Educação (defesa em julho 2015), Graduação em Pedagogia com Habilitação em Supervisão Escolar, Especialista em Ciências da Educação, Especialista em Educação a Distância, larga experiência em projetos educacionais com uso das tecnologia em programas de formação e ensino com uso do radio e televisão, atualmente desenvolvimento de projetos de educação a distancia com utilização das mídias digitais . Evaneide Dourado Martins Possui graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Regional do Cariri (2005) e Especializaçãoem Educação a Distância, pelas Faculdades INTA. Atualmente é Autora roteirista multimídia de material didático da Pró- Diretoria Pedagógica de Novas Tecnologias em Educação e Educação a Distância das Faculdades INTA. Tem experiência na área de educação, com ênfase em Educação a Distância, na área administrativa e Docência em cursos profissionalizantes. 13INTA Código de Linguagem AMBIENTAÇÃO À DISCIPLINA Este ícone indica que você deverá ler o texto para ter uma visão panorâmica sobre o conteúdo da disciplina. 15INTA Código de Linguagem Olá, seja bem-vindo a disciplina... “Você já parou para refletir sobre a importância da linguagem humana? Mesmo sem muita reflexão, é fácil intuir que quase tudo na vida depende da comunicação. Os pesquisadores do assunto dizem que gastamos 70 por cento do nosso tempo nos comunicando com os outros. Para isso utilizamos diversos tipos de linguagem: a oral, a escrita, a gestual, enfim, as formas de comunicação verbal e não verbal. Mas, o que é mesmo uma linguagem? Qual a diferença entre língua e fala? Por que utilizamos códigos? Quais as teorias que tentam explicar como aprendemos a falar? Os bons dicionários concordam ao definir linguagem como “qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais” (Houaiss). Podemos dizer que a língua é um sistema específico de signos utilizado por um grupo de pessoas. A língua portuguesa, por exemplo, é a linguagem específica de brasileiros, portugueses, angolanos e outras nações. O código, por sua vez, é o sistema de signos que usamos para a expressão da língua. No caso do português, nosso código básico é construído a partir do alfabeto latino (letras e fonemas). A fala, por sua vez, é a expressão individual da linguagem. Assim, um brasileiro do campo fala de uma forma, o da cidade fala de modo diferente, mas ambos utilizam a mesma língua. Você fala de um jeito, seu amigo de outro, pois cada pessoa tem vocabulários, timbre de voz, educação, vida social e outras características diferentes. Para explicar como aprendemos a nos comunicar através da fala, surgiram pesquisas no campo da linguística e da psicologia com resultados que ora se complementam, ora se contraditam, e às vezes encontram um ponto de convergência. Empirismo, reforçamento, imitação e nativismo são as teorias mais comuns. Você está convidado a realizar a leitura da obra A criança em crescimento, nas páginas 147 a 166 na qual a autora aborda a visão de Piaget em relação ao condicionamento, imitação, bem como quais as influências no desenvolvimento da linguagem e muito mais. BOYD, Denise; BEE, Helen. A criança em crescimento. Editora: Artmed. São Paulo, 2011. TROCANDO IDEIAS COM OS AUTORES A intenção é que seja feita a leitura de obras indicadas pelo professor-autor numa perspectiva de dialogar com os autores de relevo nacional e/ou mundial. 17INTA Código de Linguagem Caro estudante, agora é o momento em que você vai trocar ideias com os autores das obras indicadas. Sugerimos à leitura do livro A construção do pensamento e da linguagem no qualcondensa uma fase importante da obra de Vygotsky. Embora seu tema central seja a relação entre pensamento e linguagem, ele trata da apresentação de uma teoria original e fundamentada do desenvolvimento intelectual. Nele o autor aborda as teorias de Piaget e de Stern sobre a linguagem, e o desenvolvimento dos conceitos científicos na infância. VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Propomos também este livro A linguagem e o pensamento da criança, no qual trata dos planos da subjetividade – dos desejos, brinquedos, dos caprichos dos primeiros anos da criança – e do plano da objetividade – da linguagem, dos conceitos lógicos, da realidade, edificado pouco a pouco pelo meio social – na formação do espírito da criança. PIAGET, Jean. A linguagem e o pensamento da criança. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Estudo Guiado: Após a leitura das obras, propomos que trace um paralelo entre o pensamento dos autores, focalizando os pontos convergentes e divergentes PROBLEMATIZANDO É apresentada uma situação problema onde será feito um texto expondo uma solução para o problema abordado, articulando a teoria e a prática profissional. 19INTA Código de Linguagem Analise a seguinte situação: “Uma mãe, residente em Florianópolis, diz ter uma filha de oito anos que está na segunda série, mas que até o momento não consegue ler. Segundo a mãe, a criança só começou a falar, de uma forma que outras pessoas pudessem entender, depois dos quatro anos. Até o momento, conforme a mãe, a criança não consegue pronunciar o /r/ e tem dificuldades para pronunciar palavras com mais de três sílabas. Segundo a mãe, sua filha frequenta a educação infantil desde os dois anos e meio. Tem um irmão de 12 anos que não apresentou essas dificuldades, sempre teve acesso a um ambiente que privilegiou a leitura. Também desde os três anos a criança, no relato materno, tem atendimento de uma fonoaudióloga e psicopedagógico. Não tem problemas auditivos, neurológicos ou visuais.” Fonte: http://casosdedislexia.blogspot.com.br Estudo Guiado: Diante da situação acima relatada reflita e pesquise sobre o assunto e responda: Que tipo de problema de aquisição da linguagem você pode encontrar neste caso? Quais as melhores formas para tratar uma situação como esta? APRENDENDO A PENSAR O estudante deverá analisar o tema da disciplina em estudo a partir das ideias organizadas pelo professor- autor do material didático. TEORIAS DA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM 1 Conhecimentos Compreender as principais hipóteses e teorias que tentam explicar como se adquire a linguagem. Habilidades Identificar as correntes psicolinguísticas da aquisição da linguagem apoiando-se em critérios rigorosamente científicos. Atitude Posicionar-se criticamente em relação à consistência cientifica de cada uma das teorias analisadas. 23INTA Código de Linguagem Nativismo versus empirismo O estudo da aquisição da linguagem envolve cuidadosa pesquisa em diversos campos do conhecimento. Porém, as ciências que mais contribuem nesta área de investigação científica são a Psicologia, a Neurolinguística, a Linguística, a Sociolinguística e outras disciplinas afins. A Psicologia investiga, sobretudo, os aspectos comportamentais, cognitivos e psicobiológicos do processo, enquanto os linguistas trabalham os fatos relacionados à codificação, signos, fala e língua como fenômeno individual e social. A tendência da teoria e da pesquisa em Psicolinguística evolutiva nestes últimos quinze anos, pouco mais ou menos, tem sido ressaltar a universalidade e a existência de determinantes biológicos inatos de tal universalidade. Veremos nesta unidade de estudo os problemas filosóficos e psicológicos. Quem propôs com mais firmeza a hipótese nativista foi Chomsky (1965, 1968, 1975), hipótese que tem suscitado calorosos debates. O leitor já deparou várias vezes com essa posição. Em seu aspecto mais simples, eis o problema: tudo aquilo a que a criança está exposta é a ocorrência da fala em situações. Como chega ela a alcançar o conhecimento abstrato e fértil da língua? Chomsky argumenta que os "dados linguísticos primários" — a fala que a criança ouve — não podem ser a fonte da competência linguística. Só é possível a aquisição da linguagem, se a criança está preparada, de algum modo, para processar dados desse tipo e formar as espécies de estruturas que são características da linguagem humana. O impacto da gramática transformacional nos anos 60, junto com trabalhos em Etologia , desenvolvimento perceptivo e cognitivo,e outras áreas, reviveu o interesse dos psicólogos em aspectos inatos do crescimento da inteligência. Para muitos psicólogos, a postulação de complexos mecanismos perceptivos e cognitivos geneticamente programados está se tornando bastante plausível, se não obrigatória. O problema da aquisição da linguagem foi, por muito tempo, importante nesse debate. Nos últimos anos, o debate passou, até certo ponto, de uma discussão entre nativismo e empirismo para uma discussão acerca da qualidade de nativismo que é adequada aos assuntos de aquisição da linguagem. Etologia: Ramificação da zoologia que trata dos instintos animais. Os etologistas estudam os comportamentos instintivos, tais como corte, acasalamento, e cuidado com os filhotes. Também estudam como os animais se comunicam, e como estabelecem e defendem seus territórios. 24 Código de Linguagem INTA Pergunta-se: Terá a criança estratégias que se desenvolvam especificamente para a aquisição da linguagem, ou pode explicar-se tal processo na base de capacidades cognitivas humanas mais gerais (que também têm suas próprias bases inatas)? Tal problema está longe de ter solução, embora eu suponha que tanto os princípios cognitivos gerais, como os princípios específicos da língua, estão em jogo na construção da língua natural da criança. No final desta unidade de estudo, eu esboço algo referente a uma abordagem geral a esse problema. Antes, porém, encaremos de novo a questão seguinte: Por que é difícil explicar a aquisição da linguagem com teorias de conhecimento tradicionais e empíricas? Uma teoria empírica de aprendizagem, como o behaviorismo americano S-R (estímulo-resposta), atribui ao organismo um mínimo de estrutura inata, contando principalmente com uma capacidade inata de formar associações entre estímulos, e entre estímulos e respostas na base de similaridade e contiguidade. A estrutura existe no mundo exterior, e o indivíduo vem a refletir tal estrutura. Todavia, como temos visto frequentemente, o que a criança adquire no decorrer do desenvolvimento da língua não é uma porção de conexões S-R, mas um complexo sistema de regras internas de algum tipo. Ela nunca está exposta ao próprio sistema, mas apenas a frases específicas em situações específicas. Então, como adquire ela o sistema linguístico fundamental com base em tal evidência? Chomsky (1965, p. 58-59) apresentou o problema nos seguintes termos, sublinhando as limitações da amostra de fala disponível à criança (o que ele chama "a qualidade degradada" dos dados e o fato de que quase todas as crianças, mesmo as que tem um nível de retardoou atrasadas na fala, geralmente dominam uma gramática rudimentar, mas de grande complexidade formal. Eis as palavras de Chomsky: 25INTA Código de Linguagem [...] o conhecimento da estrutura gramatical não pode surgir pela aplicação de operações indutivas graduais (processos de segmentação, classificação, substituição, preenchimento de claros nas estruturas, associação etc.) de qualquer sorte, que já tenham sido desenvolvidas dentro da Linguística, da Psicologia, ou da Filosofia. [...] Parece claro que a aquisição da linguagem está baseada na descoberta pela criança daquilo que, de um ponto de vista formal, é uma teoria profunda e abstrata — uma gramática gerativa de sua linguagem — conceitos e princípios dos quais grande parte está apenas remotamente relacionada com a experiência por longas e complicadas cadeias de passos inconscientes e quase inferenciais. Uma consideração do caráter da gramática que é adquirida, a qualidade degradada e a extensão estreitamente limitada dos dados disponíveis e a impressionante uniformidade das gramáticas resultantes e sua independência da inteligência, da motivação e do estado emocional, sobre largas faixas de variação, deixam pouca esperança de que muita coisa da estrutura da linguagem possa ser aprendida por um organismo inicialmente desinformado quanto ao seu caráter geral. [...] Com base na melhor informação agora disponível, parece razoável supor que uma criança não pode deixar de construir uma espécie particular de gramática |...] para explicar os dados a ela apresentados, e muito menos que ela possa controlar a sua percepção dos objetos sólidos ou sua atenção à linha e ao ângulo. Assim, bem pode dar-se o caso de que os traços gerais da estrutura da linguagem reflitam, não tanto o curso da própria experiência, mas antes o caráter geral da própria capacidade de adquirir conhecimento — no sentido tradicional, as suas ideias inatas e os seus princípios inatos. (CHOMSKY, 1965). Reforçamento Examinemos alguns dos conceitos teóricos mais importantes da teoria psicológica da aprendizagem, à luz dos argumentos de Chomsky. Uma abordagem clássica dos problemas de aquisição como vimos examinando é dizer que a criança é "reforçada" por seu desempenho (positiva e negativamente), e que, com base no reforço, ela "generaliza" seu padrão de comportamento futuro para aproximá-lo mais do que é exigido pelo agente reforçador. Imaginemos agora uma situação de reforço altamente improvável, mas teoricamente perfeita: toda vez que a criança enuncia 26 Código de Linguagem INTA uma frase gramatical, recebe reforço positivo, e quando enuncia uma agramatical recebe reforço negativo. Você acha que poderia esse esquema de reforço resultar em fala gramatical? É compreensível que poderia, mas isso nada diz do processo pelo qual a criança chegou às noções fundamentais da gramática, que tornariam possível um desempenho correto. Descobrir que havia erro num dado enunciado não diz à criança exatamente o que ela fez de errado ao produzi-lo, e certamente não lhe diz como corrigi-lo da próxima vez (se ela acaso quiser enunciar de novo essa frase). Nem o reforço positivo dá qualquer informação discriminativa acerca do que era correto sobre a construção gramatical que ela acabou de enunciar. Nós ainda ficamos com o problema de saber como a criança vem a perceber a relação própria que existe entre sons e significados; e como ela chega aos princípios de ordenação de palavras e partes de palavras que produzam sentido. Suponhamos, por exemplo, que uma criança diga I called up here depois receba reforço negativo para um enunciado agramatical. Como sabe ela o que fazer em seguida? Ela formou esse enunciado, provavelmente, por analogia com frases como I called up Kathy, "Chamei Kathy". Agora ela tem de aprender que, quando o objeto de uma construção de verbo + partícula é um pronome (como her), este deve vir sempre entre o verbo e a partícula (I called her up); mas quando o objeto é um substantivo, ele pode ir ou entre o verbo e a partícula ou depois da partícula. O simples fato de que I called up here errado não dá à criança nenhuma chave para o que é certo. Talvez ela tivesse dito I called up she, "Eu chamei ela" [erro também em português], ou Icall-uppedher, ou quaisquer outras variantes. E, mesmo que se lhe dê a forma correta, como saberá ela que generalização deve fazer? Existem muitas possibilidades, indefinidamente: talvez a regra valha somente para os pronomes femininos, ou para os seres animados; talvez funcione para alguns verbos e não para outros; ou só para o passado simples; e assim por diante. A questão é que o reforço poderia somente dizer à criança que uma frase é globalmente certa ou errada. Suas próprias habilidades cognitivas e sua perícia na aquisição da 27INTA Código de Linguagem linguagem são necessárias para ela fazer uso do reforço. E justamente essa perícia e essas habilidades é que são o interesse central da Psicolinguística. Há diversas outras coisas importantes a serem ditas a respeito do reforço. Já se viu acima (na análise sobre ultracorreção) que o reforço não poderiaser um meio muito eficaz para a modelagem da linguagem. Certamente, se as crianças recebem algum reforço com relação à sua gramática, recebem reforço negativo com referência a ultracorreções para formas do passado no inglês (past tense), ou da flexão do acusativo eslavo. Contudo, esses erros são muito persistentes. Além disso, os pais parecem dar pouca atenção, sobretudo à correção ou incorreção gramatical da fala de seus filhos. (Slobin, 1973). O que mais lhes interessa é o que a criança tem a dizer — se é verdadeiro ou adequado ou inteligente — e não as estruturas frasais que ela usa. Roger Brown e seus colaboradores, em Harvard, fizeram um detalhado estudo longitudinal de três crianças que estão nas idades de um ano e meio a quatro anos (Brown, 1973). A interação espontânea entre mãe e filho foi gravada semanalmente durante vários anos. Brown e seus colaboradores (Brown, Cazden, e Bellugi, 1969) examinaram seus dados para ver se as mães eram sensíveis à gramaticalidade dos enunciados de seus filhos. Se não são, seria difícil afirmar que a linguagem da criança evolui como resultado de intuição consciente, ou reforço, da parte das mães. No entanto, seguindo esse argumento, os pesquisadores examinaram casos em que o enunciado da criança era acompanhado de uma expressão de aprovação ou desaprovação da parte do adulto. Não houve provas de que as respostas dos pais pudessem exercer um papel na modelagem do senso de gramaticalidade da criança. Segue-se o convincente resumo de (BROWN, CAZDEN,BELLUGI, 1969, p. 70-71): Que circunstâncias governaram a aprovação e a desaprovação dirigidas pelos pais aos enunciados da criança? Erros grosseiros de escolha de palavras eram algumas vezes corrigidos, como quando Eve disse What the guy idea, "Que ideia a do cara". Uma vez ou outra, um erro de pronúncia era notado e corrigido. Na maioria das vezes, entretanto, as bases em que um enunciado era aprovado ou desaprovado [...] não eram, de modo algum, estritamente linguísticas. Quando Eve expressou a opinião de que sua mãe era uma moça dizendo He a girl, "Ele uma moça", a mãe respondeu That's right, "Está certo". O enunciado da criança era agramatical, mas a resposta da mãe não atentou para esse fato; pelo contrário, confirmou o conteúdo expresso pela frase da filha. 28 Código de Linguagem INTA No entanto, em geral, os pais encaixavam orações nos enunciados da criança, por mais incompletos ou distorcidos que eles fossem, e depois aprovavam ou não, de acordo com a correspondência entre a oração e a realidade. Assim, Her curl my hair, "Ela encrespa meu cabelo", foi aprovada porque de fato a mãe estava enrolando os cabelos de Eve. Contudo, o enunciado gramaticalmente impecável de Sarah There's the animal farmhouse, "Lá está a casa de animais da fazenda", não foi aceito porque se tratava de um farol, e o de Adam, Walt Disney comes on, onTuesday, "Walt Disney vem terça-feira", não foi aceito porque Walt Disney viria num outro dia. Portanto parece que é o conteúdo, mais do que a boa formação sintática, o que principalmente dirige o reforço verbal explícito dos pais. Isso torna ligeiramente paradoxal o fato de que o produto natural de tal esquema de ensino é um adulto, cuja fala é altamente gramatical, mas não eminentemente verdadeira. Imitação A noção de "reforço" não é, assim, uma explicação muito convincente para a evolução da linguagem. Que outras noções teriam à mão? Se perguntarmos ao proverbial "homem da rua" como as crianças aprendem a falar, ele dificilmente levará a sério a pergunta. A resposta típica é mais ou menos o seguinte: "Elas apenas imitam o que ouvem". A hipótese tradicional tem sido simplesmente que a criança adquire novas formas linguísticas da fala de seus pais, pela imitação do que eles dizem: ouve alguma coisa nova, repete-a, e assim pratica a nova forma. É somente por tal prática, pensa-se, que a fala da criança pode mudar. Durante algum tempo, a nova forma depende dos modelos dos pais; mais tarde, ela se liberta. Já apresentamos aqui uma série de argumentos contra essa resposta simplista. Mesmo quando discutíamos frases de duas palavras, descobrimos que não podíamos explicar tudo nos enunciados da criança, com base nas imitações reduzidas da fala do adulto, porque ocorrem combinações estranhas. Além disso, os exemplos de Bellugi, junto com os de Slobin e Welsh, e outros, sugerem que a criança não pode imitar estruturas que ela ainda não seja capaz de produzir por si mesma. David McNeill (1966, p. 69) cita uma passagem de impressos de Roger Brown que mostra, dramaticamente, que, mesmo estando os pais tentando vivamente ensinar ao filho uma forma linguística, esse filho persiste em imitar de acordo com suas próprias regras de gramática: 29INTA Código de Linguagem ► FILHO: Nobody don´t like me, "Ninguém gosta de mim". ► MÃE: NO, say "nobody likes me", "Não, diga nobody likes me". ► FILHO: Nobody don't like me. ► [Seguem-se oito repetições desse diálogo.] ► MÃE: No, now listen carefully; say "nobody likes me", "Não! escute, atentamente; diga nobody likes me". ► FILHO: Oh! Nobody don't likes me. Além disso, naturalmente, como acabei de mostrar acima, mesmo que uma criança pudesse imitar com êxito todos os enunciados que ouve, não poderíamos compreender como ela prossegue produzindo novos enunciados que nunca ouviu antes. Mesmo argumentos mais fortes contra a necessidade de imitação para a aquisição da linguagem vêm de exemplos de conhecimento linguístico de crianças que não se têm dedicado à imitação da fala. Estudamos um antigo exemplo num trabalho de Huttenlocher, no qual crianças no início do estágio de uma palavra, muito antes da imitação de quaisquer enunciados de muitas palavras, já compreendiam esses enunciados. No entanto evidência ainda mais notável tem nos casos de crianças que não podem de modo algum falar, em razão de algum distúrbio da capacidade de articulação, mas que podem ouvir normalmente. Eric Lenneberg (1962) relatou o caso de um menino que era incapaz de articular a fala, mas que aprendeu a entender as complexidades de enunciados ingleses. Evidentemente, em um nível profundo, a mesma competência linguística deve fundamentar tanto a produção quanto a interpretação da fala. É claro que uma criança sem fala nunca poderia ter imitado uma fala, nem ter sido reforçada para falar — e, contudo, esses empecilhos não interferem na sua aquisição da competência linguística. Por que, então, as crianças imitam a fala? A imitação parece ser um meio de praticar aquilo que a gente é no processo da aprendizagem. Vários estudos relativos à imitação (Bloom, Hood,Lightbown, 1974;Ervin-Tripp, 1964; Slobin, 1968) mostram que a criança não imita espontaneamente formas que ela já tenha dominado desde muito; nem imita formas que estejam muito além do seu alcance. Antes, ela imita aquelas formas cujo processo de aquisição está em curso. Para usarmos os termos de Piaget, a imitação é a indicação externa da tentativa da criança de acomodar seu esquema linguístico a um novo material. Assim, a imitação desempenha, sem dúvida, um papel na aquisição da linguagem, mas seu papel não é inserir novas estruturas no sistema de regras da criança. 30 Código de Linguagem INTA O papel da entrada Mesmo que a criança não aprenda a língua através da imitação e do reforço, há entre os psicolinguistas uma forte convicção de que a natureza da fala dos pais — a entrada no tocante à criança — deve desempenhar papel significativo na direção do processo de aquisição da linguagem. Chomsky foi encarregado por muitos escritores de relatar "a qualidade degradada e a extensão estreitamente limitada dos dados disponíveis" (1965, p. 58). Esses investigadores salientaram que quase toda fala dos pais em relação aos filhos pequenos se faz de frases curtas,simples, gramaticais (ver documentos em Snow e Ferguson, 1977). Se o leitor acompanhou os argumentos teóricos acima apresentados, entretanto, perceberá que o problema básico permanece. No entanto se a entrada referente à criança é perfeitamente regular na forma e adaptada a sua amplitude de processamento e capacidades cognitivas, ela ainda enfrenta o problema de descobrir uma estrutura implícita e os princípios de mapear intenções comunicativas para enunciados na língua específica à qual está exposta. A criança deve fazer uso da entrada dos pais, a fim de descobrir as regularidades fundamentais e não mencionadas de sua língua. (Isto tem sido defendido, de maneira persuasiva, por Newport, Gleitman e Gleitman, 1977, os quais têm mostrado que o meio pelo qual a criança participa da fala dos pais se modela pelo que ela já sabe a respeito da língua.) Uma entrada perfeitamente elaborada, como um esquema de reforço perfeitamente trabalhado, não explica a capacidade da criança de construir uma gramática baseada em tal entrada. Além disso, um exame cuidadoso da fala dos pais revela que o problema enfrentado pela criança é ainda mais complexo do que o que temos dito a respeito. A criança não cresce num mundo linguístico onde as situações específicas sejam igualmente mapeadas para tipos de enunciados. O problema do mapeamento não consiste exatamente em determinar o meio pelo qual uma determinada língua expressa noções como "daddy gave me a ball", porque as intenções de comunicação mapeiam-se para uma multiplicidade de formas de enunciado. Segundo Roger Brown, (1973), por exemplo, numa sessão de gravação em fita de interação com uma criança de dois anos, certa mãe está tentando que sua filha se sente quietinha, para encrespar seus cabelos. A primeira tentativa feita é quando a mãe diz: C'mon andl et me set your hair, "Venha, que vou arrumar seu cabelo". Se tal frase se repetisse muitas vezes, nós nos defrontaríamos com o problema de mapeamento já referido, isto é, a criança deve descobrir quais os aspectos da situação que têm expressão gramatical obrigatória no inglês. No entanto, em meia 31INTA Código de Linguagem hora a mãe tenta exprimir a mesma intenção geral, muitas vezes, com diferentes palavras. Todos os enunciados seguintes ocorrem, dispersos no decorrer da sessão, intercalados com outra conversa: Cmon and let me set your hair, "Venha, que vou arrumar seu cabelo". Don't you want to have curls for this afternoon? "Não deseja cabelos cacheados nesta tarde?" Why don't you lem me put your hair up?,"Por que você não me deixa pentear para cima seu cabelo?" You won't have any curls when you go down to see Betty and Alice, "Você não ficará com cachos quando descer para encontrar Bètty e Alice". Alice has lot so flittte curls in her hair, "Alice tem uma porção de cachinhos em seu cabelo". Why don't you lemme fix your hair?"Por que não me deixa arrumar seu cabelo?" You won't have any curls, "Você não terá cacho nenhum". Why don't you fix his hair [a doll's] and I’ll fix your hair? "Por que você não arruma o cabelo dele [à moda de boneca] e eu arrumarei seu cabelo [de você]?" You fix his hair and I'll fix your hair, "Você arruma o cabelo dele e eu arrumarei o seu". Sit up here on the chair so I can fix your hair, "Sente-se aqui na cadeira e assim posso arrumar seu cabelo". You'll look like MagSnatch with a pretty dress on and no curls, "Você ficará parecendo com MagSnatch, com um belo vestido e sem cachos". You'll look awful, "Você parecerá horrível". You don't want to go out and look awful, "Você não quer sair e parecer medonha". How would you like to have your face combed?"Como gostaria de se pentear?" Lemme get the snarls out of your hair, "Deixe-me desfazer suas tranças". Can I comb your hair?, "Posso pentear seu cabelo?" Let me combyour banes, "Deixe-me pentear suas franjas". Lemme fix your hair, "Deixe-me arrumar seu cabelo". Why don't you lemme fix your hair?"Por que não me deixa arrumar seu cabelo?" You gotta go lemme fix your hair first, "Você tem que deixar arrumar seu cabelo primeiro". 32 Código de Linguagem INTA Essa menina deve descobrir o equivalente semântico de set your hair, put your hair up, fix your hair, have your face combed, get the snarls out of your hair, comb your hair e comb your bangs. Ela precisa saber que os imperativos podem ser expressos diretamente ou por meio de interrogações indiretas ou por meio de descrição das consequências negativas de uma falta em concordar. É evidente que o problema do mapeamento, como nós o considerava de maneira contrastiva, apenas revelava metade do problema. No entanto essa menina de dois anos de idade deve imaginar que uma série distinta de enunciados expressa essencialmente o mesmo intento comunicativo. Para ter certeza, o que ela descobre a respeito de regras da gramática de fala inglesa deve basear-se no que ela ouviu. Mas a entrada parental não soluciona o problema da construção da teoria para a criança. Só apresenta os dados da tarefa. O modo pelo qual a criança emprega os dados baseia-se em suas capacidades linguísticas e cognitivas, a um determinado nível de desenvolvimento. Estratégias de aquisição Estamos, pois, às voltas com o problema da origem da estrutura interna. Enquanto os linguistas e os psicolinguistas salientam as impropriedades das teorias psicológicas da aprendizagem, nós temos apenas os esboços gerais de uma teoria de aquisição da linguagem, teoria essa de solução de problema e de teste de hipóteses. Uma abordagem frequente consiste em propor várias "estratégias" usadas pelas crianças em decifrar e adquirir diferentes aspectos da estrutura linguística, tais como a ordem das palavras (Bever, 1970), termos relativos a espaço (E. Clark, 1973, 1975, 1977), formas verbais temporais (Bronckart e Sinclair, 1973), estruturas morfológicas (MacWhinney, 1978), e assim por diante. O que temos aqui é uma resposta parcial à alegação de Chomsky, atrás mencionada, de que "o conhecimento da estrutura gramatical não pode surgir da aplicação de operações indutivas graduais [...] de qualquer tipo que tenham sido desenvolvidas até agora dentro da Linguística, da Psicologia, ou da Filosofia" (1965, p. 58). O objetivo é divisar novos tipos de operações, adaptadas a tipos específicos de tarefas cognitivas e linguísticas. Um conjunto de estratégias para a aquisição da linguagem não é um sistema "indutivo gradual", porque não é dirigido apenas pela entrada da fala. Pelo contrário, as estratégias limitam antecipadamente a série de resultados possíveis. Não estamos mesmo diante de uma teoria geral de 33INTA Código de Linguagem aquisição de linguagem desse tipo. Para exemplificar até que ponto nos pode levar tal tipo de abordagem, encerro esta unidade de estudo com a discussão de alguns "princípios operantes" gerais que podem desempenhar um papel na orientação do desenvolvimento gramatical, com base em dados disponíveis acerca da aquisição de umas 40 línguas diferentes, dentre as 14 principais famílias linguísticas. LINGUAGEM E COGNIÇÃO 2 Conhecimentos Conhecer e compreender os processos cognitivos que ocorrem na formação do pensamento e da linguagem. Habilidades Identificar os fenômenos envolvidos na construção do conhecimento e sua relação com a formação da linguagem. Atitude Discernir corretamente as etapas da aquisição da fala nas diversas fases do desenvolvimento infantil. 37INTA Código de Linguagem Introdução A Linguística Cognitiva postula que a linguagem é parte complementar da cognição humana, que reflete a interação de fatores culturais, psicológicos, comunicativos e funcionais, e só pode ser entendida e estudada sob o contexto de uma visão real de conceptualização e processamentomental. Dominar uma linguagem não é uma tarefa tão simples, embora possa parecer um processo intuitivo. Falar uma língua, organizar códigos, desenvolver estruturas de comunicação são atividades do intelecto que exigem características específicas até agora somente verificadas no cérebro humano. Por isso pode-se dizer que é a linguagem que nos faz aquilo que somos. A consistência do comportamento humano, tal como ele é, deve- se inteiramente ao fato de que os homens formularam seus desejos e posteriormente os racionalizaram, sob a forma de palavras. A formulação verbal de um desejo levará o homem a prosseguir em direção à sua meta, mesmo quando o desejo em si está adormecido. Semelhantemente, a racionalização de seu desejo em função de algum sistema teológico ou filosófico o convencerá de que ele faz bem em perseverar nesse caminho. [. . . ] Do ponto de vista psicológico, pode-se definir uma teologia ou uma filosofia como um meio para permitir que os homens realizem de sangue frio e continuamente ações que, de outro modo, eles só realizariam movidos por paixões e ímpetos, e quando seu impulso interno fosse forte e ardente. [...] Então, para o mal e para o bem, as palavras fazem de nós os seres humanos que realmente somos. Desprovidos da linguagem, seríamos como cães ou macacos. Possuindo a linguagem, somos homens e mulheres capazes de continuar no crime, não menos que na virtude heroica, capazes de realizações intelectuais além da esfera de qualquer animal, mas ao mesmo tempo capazes de sistemática tolice e estupidez tal que nenhum animal mudo imaginaria. Aldous Huxley (apud Black, 1962, p. 4-5). 38 Código de Linguagem INTA Sem a língua,não poderiam existir como nós os conhecemosa cultura humana, o comportamento social e o pensamento” (SLOBIN, 1980, p.202). Mas, embora ninguém negue o papel central da língua na vida humana, definir a natureza desse papel tem sido um problema difícil e persistente desde o início da filosofia. Para Slobin, (1980, p. 202) “embora a linguagem permeie a vida mental, ela não constitui a totalidade dos estados e processos psicológicos. Há imagens e emoções, intenções e abstrações, lembranças de sons e perfumes e sentimentos, e muita coisa mais”. O leitor encontrou neste livro, por toda parte, exemplos de ideias independentes de expressão linguística — separações afásicas de palavras e significados, estruturas abstratas subjacentes a enunciados, cognição pré-linguística no início da infância, e assim por diante. E um ponto capital na história da Psicologia tem sido equiparar linguagem e pensamento. No entanto, estudamos a asserção de que a linguagem e o pensamento são inseparáveis. No processo de modificar tal asserção, tornar-se-á claro que a cognição humana é influenciada pela linguagem, mas não é formada por ela. Antes, a linguagem é um dos muitos fatores que desempenham um papel em "nos tornar os seres humanos que realmente somos". Nas primeiras seções da unidade de estudo,a discussão gira em torno do papel da linguagem no pensamento, na lembrança, na aprendizagem e no desenvolvimento. Havendo delimitado até que ponto a língua pode moldar o pensamento e ação humana, concluímos com uma questão antiga e embaraçosa: será que pensam de maneiras diferentes aqueles que falam línguas diferentes? Linguagem, fala e pensamento A Psicologia do século XX tem tentado ser "científica". Geralmente, isto significa que a obrigação dos psicólogos é limitar-se a fenômenos tangíveis comportamento que pode ser medido, registrado e materialmente manipulado. Até pouco tempo atrás, termos como "estímulo" e "resposta" eram preferidos para significar noções como "mente", "pensamento", "ideia" e "representação mental". Ultimamente, evidenciou-se que regularidades em comportamento mensurável e observável podem ser explicadas postulando-se estruturas e processos internos; mas nos 39INTA Código de Linguagem primeiros dias do behaviorismo americano tal especulação se reduzia ao mínimo. Assim, aceitava-se muito mais conversar sobre "speech" (fala) do que fazer declarações a respeito de "thought" (pensamento). Além disso, John B. Watson, o pai da Psicologia behaviorista ameri-cana, formulou, em 1913, uma posição extrema: "[...] de acordo com meu ponto de vista, os processos do pensamento são na verdade hábitos motores da laringe". O que Watson e seus adeptos queriam dizer é que pensamento e fala é uma e mesma coisa, assim tornando o pensamento diretamente disponível ao estudo científico, na forma de medição de movimentos da musculatura da fala. Uma posição menos extremada tem uma rica história na Psicologia russa. Uma das mais antigas posições científicas tomadas em relação a esse problema foi proclamada em 1863 por Ivan M. Sechenov, pai da Fisiologia russa e mentor de Pavlov (p. 498) Quando uma criança pensa, ela invariavelmente fala ao mesmo tempo. O pensamento numa criança de cinco anos é acompanhado por palavras ou sussurros, certamente por movimentos da língua e dos lábios, o que é também — talvez sempre, mas em graus diversos — mui frequentemente verdadeiro do pensamento dos adultos. A posição russa, portanto, é de que a linguagem e o pensamento estão intimamente ligados na meninice, mas que, no decorrer do desenvolvimento, o pensamento do adulto se torna de alguma forma livre da linguagem — pelo menos, livre das respostas de fala abertas ou encobertas. Essa posição foi mais significativamente elaborada pelo grande psicólogo soviético da década de 30, L. S. Vygotsky. No seu principal trabalho, Thought and language(1962), publicado primeiro na URSS após a sua morte prematura em 1934, Vygotsky desenvolveu a noção de que tanto na filogenia quanto na ontogenia há traços do pensamento não verbal (p. ex., "pensamento instrumental" envolvido na solução de problemas instrumentais) e da fala não intelectual (p. ex., gritos emocionais), e tentou esboçar o desenvolvimento e a interação desses dois traços até o ponto em que, na evolução humana, a fala pode servir ao pensamento e o pensamento pode ser revelado na fala. No capítulo desta obra mencionada sobre a linguagem infantil, o leitor encontrou argumentos sobre os meios pelos quais o desenvolvimento cognitivo antecede e amolda o desenvolvimento linguístico. Essa posição Behaviorismo: também conhecido como comportamentalismo, é uma área da psicologia, que tem o comportamento como objeto de estudo. Filogenia: Também chamada de filogênese, é o termo rotineiramente utilizado para definir hipóteses de relações evolutivas, ou seja, relações filogênicas, de um grupo de organismos. Em outras palavras, pode ser definida como o termo que visa determinar as relações ancestrais entre espécies conhecidas. Ontogenia: Processo evolutivo acerca das alterações biológicas sofridas pelo indivíduo, desde o seu nascimento, até seu desenvolvimento final; ontogênese. 40 Código de Linguagem INTA - apresentando uma clara oposição à tradição behaviorista - baseia-se na extensa obra sobre o desenvolvimento cognitivo levado a efeito, nestes últimos cinquenta anos, em Genebra, por Jean Piaget e seus companheiros. De acordo com a escola de Piaget, o desenvolvimento cognitivo avança por si, em geral seguido pelo desenvolvimento linguístico, ou encontrando reflexo na linguagem da criança. O intelecto da criança desenvolve-se por meio da interação com as coisas e pessoas do seu meio ambiente. Na medida em que a linguagem está envolvida nessas interações, pode ampliar ou facilitar o desenvolvimento em alguns casos, mas não produz por si mesmo, crescimento cognitivo. Voltaremos ao assunto referente ao desenvolvimento mental. Antes, porém, devemos avaliar a posição da centralidade da linguagem,a fim de melhor entender o papel que a língua pode exercer na cognição. Pensamento sem fala Para começar, devemos ter o cuidado de lembrar a distinção entre língua e fala. A fala é um processo físico tangível que resulta na produção dos sons da fala, ao passo que a língua é um sistema intangível de significados e estruturas linguísticas. Assim, a posição de Watson não trata, de forma alguma, de linguagem e pensamento; antes, ele iguala fala e pensamento. Os psicólogos cognitivos, como Vygotsky e Piaget, ocupam-se da fala e do pensamento na medida em que a fala está envolvida na comunicação de conhecimento entre as pessoas. Contudo, mais especificamente, eles se ocupam com a linguagem e com o pensamento, isto é, com as relações entre linguística interna e estruturas cognitivas. Para eles, o uso interno da linguagem não precisa, necessariamente, se refletir nos movimentos articulatórios do aparelho vocal. Levantaram-se muitos argumentos contra a forte hipótese watsoniana (ver, p. ex., Osgood, 1953). A crítica mais evidente parece provir da implicação de que um homem, privado de contato com a sua musculatura da fala, perderia a capacidade de pensar. Se fosse esse o caso, seria difícil explicar os distúrbios afásicos em que o paciente não pode mais falar, mas pode compreender uma conversa e, por outro lado, conduzir-se de maneira perfeitamente normal, mostrando processos de pensamento intatos dissociados da capacidade de produzir fala articulada. A reductio ad absurdum de que o pensamento é impossível sem os movimentos da fala na boca foi também testada experimentalmente (Smith, Brown, Toman e 41INTA Código de Linguagem Goodman, 1947). Uma injeção endovenosa de um tipo de droga curare ocasiona uma paralisia transitória do músculo, na medida em que se fazem necessários o oxigênio e a respiração artificial. E. M. Smith apresentou-se, voluntariamente, como cobaia de uma difícil experiência para determinar os efeitos dessa droga. Embora não pudesse, sob a influência do curare, produzir nenhuma resposta gestual ou vocal, ele relatou que estivera completamente lúcido, sendo capaz de recordar com exatidão o que lhe disseram e fizeram durante o período da paralisia. Deste modo, é muitíssimo claro que é possível o pensamento sem passagem pelos "hábitos motores da laringe", isto é, sem a fala. Contudo, podemos ir além da aversão behaviorista aos estados internos e indagar se é possível o pensamento sem a fala interiorista. INTERIOR,isto é, sem alguma atividade linguística interna, mesmo que não seja articulada aberta ou de forma encoberta. Há muitos processos mentais que parecem pré-linguísticos ou não linguísticos. Talvez o mais conhecido seja o desagradável fenômeno de ir às apalpadelas a busca de uma palavra ou de tentar encontrar o melhor meio de nos expressarmos. É um exemplo passageiro, em nossa vida normal, da mais duradoura desconexão entre as intenções e os enunciados observada em alguns tipos de afasia . Ninguém o descreveu melhor que o grande psicólogo William James, no seu famoso manual e ainda altamente digno de consulta, Psychology: Briefer course(1892, p.163-164): Suponhamos que estejamos tentando lembrar-nos de um nome esquecido. O estado da nossa consciência é peculiar. Há nela um vazio; mas não um simples vazio. É um vazio intensamente ativo. Uma espécie de fantasma do nome ali está, acenando-nos numa determinada direção, fazendo-nos, por momentos, vibrar com a sensação de sua proximidade e deixando-nos novamente desolados sem o tão esperado termo. Se nos são propostos nomes errados, esse vazio singularmente definido age imediatamente rejeitando-os. Não se encaixam no seu molde. E o vazio de uma palavra não é como o vazio de outra, inteiramente vazia de conteúdo, como ambas necessariamente pareceriam quando descritas como vazios. Quando tento em vão lembrar-me do nome de Spalding, a minha consciência é muito distante do que é quando tento em vão lembrar-me do nome de Bowles. Há inúmeras consciências de falta, nenhuma das quais tomada em si mesma tem um nome, mas são todas diferentes umas das outras. Curare: O Curare não é uma erva em si, mais uma mistura de ervas guardada em sigilo pelos índios amazônicos e usada na ponta das flechas como veneno para imobilizar a presa. Afasia: Distúrbio ou perda parcial ou total da fala ou da compreensão da linguagem, resultante de lesão no hemisfério cerebral esquerdo 42 Código de Linguagem INTA [... ] O ritmo de uma palavra perdida pode lá estar, sem um som para vesti- la; ou o sentido evanescente de alguma coisa que é a vogal ou consoante inicial pode zombar caprichosamente de nós, sem se tornar mais nítido. Todo mundo deve conhecer o efeito torturante do ritmo em branco de algum verso esquecido, dançando sem repouso em nossa mente e lutando para ser preenchido por palavras. [...] E nunca se perguntou o leitor a si mesmo que espécie de fato mental é a sua intenção de dizer uma coisa antes que a tenha dito? É uma intenção inteiramente definida, distinta de todas as outras intenções, portanto, um estado de consciência absolutamente distinto; e, contudo, quanto dele consiste de imagens sensoriais definidas ou de palavras ou de coisas? Alguma coisa apenas! Esperemos e as palavras e as coisas vêm à mente; lá não está mais a intenção antecipatória, a adivinhação. Mas à medida que vão chegando as palavras que a substituem, ela as vai acolhendo sucessivamente e chamando-as exatas, se concordam com ela, e rejeitando-as e chamando-as erradas se não concordam. A intenção de dizer isto e aquilo é o único nome que ela pode receber. Pode-se admitir que uma boa terça parte de nossa vida psíquica consiste nessas visões de rápida e premonitória perspectiva dos esquemas de pensamento ainda não articulados. (JAMES, Willian, 1892). Tais "esquemas de pensamento ainda não articulados" não são apenas frases inconscientes à procura de expressão. Como vimos na primitiva comparação de interferências culturais linguísticas dos vários modos de dizer "daddy gave me a ball", "papai me deu uma bola", uma frase não é um mapeamento direto de um pensamento. E, se voltarmos a pensar sobre as muitas maneiras pelas quais podemos solicitar a uma pessoa que "heat the coffee", "esquente o café", a escolha de palavras refletirá sutilezas de intenção comunicativa. Se o pensamento não fosse mais que a fala interior, por que deveríamos tatear a busca de palavras ou cuidadosamente escolher os meios de expressão? O problema foi tratado com clareza segundo Vygotsky (1962, p. 149-150): O fluxo do pensamento não é acompanhado por um desdobramento simultâneo da fala. Os dois processos não são idênticos e não há correspondência rígida entre as unidades do pensamento e da fala. Isso é especialmente evidente quando um processo de pensamento falha — quando, como diz Dostoievski, um pensamento "não se encarna em palavras". O pensamento tem sua própria estrutura, e a transição dele para a fala não é matéria fácil. [...] O 43INTA Código de Linguagem pensamento, diferentemente da fala, não consiste em unidades separadas. Quando eu desejo comunicar o pensamento de que hoje vi um menino descalço de camisa azul descer correndo a rua, não vejo todos os elementos separadamente. [...] Concebo tudo isso num pensamento, mas ponho-o em palavras separadas. Um falante, muitas vezes, leva diversos minutos para revelar um pensamento. Na sua mente, todo o pensamento está presente de uma vez, mas na fala ele tem de desenvolver-se sucessivamente. Um pensamento pode ser comparado a uma nuvem derramando uma chuva de palavras. No entanto, outra prova da independência que há entre grande parte do pensamento e da formulação verbal vêm das afirmações de cientistas, matemáticos,artistas e compositores a respeito de seu pensamento criativo. Um livrinho de Brewster Ghiselin, The creative process (1955), está cheio de ricos exemplos de um período inicial de "incubação" de uma ideia ou problema, seguido por uma súbita resolução, depois da qual o criador se defronta com a tremenda dificuldade de pôr em forma verbal o resultado de seu pensamento. As introspecções de Albert Einstein a esse respeito são especialmente esclarecedoras (apud Ghiselin, 1955, p. 43): As palavras da língua, quando escritas ou faladas, não parecem exercer nenhum papel no meu mecanismo de pensamento. As entidades psíquicas que parecem servir de elementos do pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claras que podem ser "voluntariamente" reproduzidas e combinadas. Há, naturalmente, certa conexão entre aqueles elementos e os importantes conceitos lógicos. É também claro que o desejo de chegar a conceitos logicamente conexos é a base emocional desse jogo bastante vago com os elementos acima mencionados. Mas, tomado de um ponto de vista psicológico, esse jogo combinatório parece ser o aspecto essencial no pensamento produtivo — antes que haja conexão com a construção lógica em palavras ou em outras espécies de signos que podem ser comunicados a outros. Os elementos acima mencionados são, no meu caso, de tipo visual e alguns de tipo muscular. As palavras convencionais ou outros signos têm de ser procurados laboriosamente apenas num estágio secundário, quando o jogo associativo 44 Código de Linguagem INTA mencionado está suficientemente estabelecido e pode ser reproduzido à vontade. [...] Num estágio em que as palavras intervêm de alguma forma, elas são, no meu caso, puramente auditivas, mas interferem somente num estágio secundário, como já se disse. Não deveríamos esperar que Beethoven tivesse "explicado" a si mesmo a ideia de uma sinfonia. Seus cadernos estão cheios de temas e tentativas de várias harmonias, transições e orquestrações, mas dificilmente encontramos ali palavras escritas. Todavia, ninguém vai dizer que Beethoven não tenha "estudado" a estrutura e o conteúdo de suas composições. O plano de Guernica, de Picasso, reflete-se em numerosos desenhos, e não numa folha cheia de palavras. Evidentemente, há mais pensamento do que fala, seja aberto ou encoberto. A fala é um dos muitos instrumentos do pensamento, mas não é o próprio pensamento. Investigando as relações entre língua e cognição, devemos então apresentar mais duas questões diferenciadas: • Se considerarmos a língua como uma entre muitas formas de representação mental, devemos explorar as várias formas e indagar como estão inter- relacionadas. Isso é, essencialmente, uma questão estrutural. Existem vários modos pelos quais se pode descrever a estrutura do conhecimento.A História da Filosofia é uma crônica das tentativas feitas no sentido de reduzir todo conhecimento a estruturas linguísticas, ou reduzir as estruturas linguísticas a alguma coisa mais, ou postular vários tipos de entidades mentais coexistentes e que interagem. Essa história prossegue na Psicologia cognitiva. • Se considerarmos a língua como um dos instrumentos do pensamento, devemos examinar os modos pelos quais o uso desse "instrumento" influencia os processos cognitivos e seu desenvolvimento. Isso é, essencialmente, uma questão de uso. Em que espécies de atividades mentais desempenham papel significativo o uso da língua? Será que esse papel varia com a idade do indivíduo? Varia com a língua ou dialeto específico envolvido? 45INTA Código de Linguagem LINGUAGEM, CULTURA E COGNIÇÃO 3 Conhecimentos Compreender as principais contribuições da Neurolinguística nas pesquisas sobre a construção da linguagem. Habilidades Identificar os problemas mais comuns na produção da fala e desenvolvimento linguístico da criança. Atitude Posicionar-se se criticamente sobre hipóteses e teorias relacionadas à linguagem, cultura e cognição. 49INTA Código de Linguagem Linguagem Cultura e Cognição: Contribuições dos estados neurolinguísticos* Edwiges Maria Morato O pensamento chinês pode muito bem haver inventado categorias tão específicas como o tao, o yin e o yang: nem por isso é menos capaz de assimilar os conceitos da dialética materialista ou da mecânica quântica sem que a estrutura da língua chinesa a isso se oponha. Nenhum tipo de língua pode por si mesmo e por si só favorecer ou impedir a atividade do espírito. O voo do pensamento liga-se muito mais estreitamente à capacidade dos homens, às condições gerais da cultura, à organização da sociedade do que à natureza particular da língua. (BENVENISTE, 1988, p. 79-80). NEUROLINGUÍSTICA: ciência que estuda a elaboração cerebral da linguagem. Ocupa-se com o estudo dos mecanismos tdo cérebro humano que suportam a compreensão, produção e conhecimento abstrato da língua, seja ela falada, escrita, ou assinalada. Trata tanto da elaboração da linguagem normal, como dos distúrbios clínicos que geram suas alterações. Os estudos dos processos cognitivos e linguísticos nos ajudam a entender como o ser humano desenvolve suas habilidades comunicativas além de identificar os principais problemas que podem afetar estes processos. A partir de um determinado momento de desenvolvimento cognitivo, a criança depara-se com um novo tipo de sistema de informações. A ausência de um sistema é uma diferença psicológica importante que distingue os conceitos espontâneos, apreendidos até então, dos conceitos científicos ou formais. Esses conceitos apresentam um sistema para apreensão e estabelecem relações de generalidade. Dificuldades na fala, distúrbios na leitura e escrita, de origens e causas variadas, são objeto das incessantes pesquisas nessa área. A tarefa de repor os elementos excluídos da tradição estruturalista (entre eles o sujeito e a história) tem sido assumida, ainda que a partir de diferentes interesses, pelas teorias enunciativas, pragmáticas e discursivas. Reuni-las em torno de uma criteriosa arbitragem interdisciplinar torna-se uma tarefa exigida pela complexidade 50 Código de Linguagem INTA dos fenômenos, tais como os neurolinguísticos. Articular tal contribuição linguística com uma concepção do funcionamento corticocognitivo epistemologicamente compatível já é uma autêntica construção teórica cujo devir é proporcional às respostas que puder oferecer às antigas indagações filosóficas: "Como é possível que a alma fale? Como é possível que signifique?". A questão do sentido, assim, encerra um imenso desafio que os objetos neurolinguísticos podem propor à ciência da linguagem. Sendo assim se a Neurolinguística, por um lado, parece ser um campo de investigação promissor para os estudos que relacionam linguagem, cérebro e cognição, por outro é capaz - sobretudo por meio da inserção definitiva da cultura na configuração da cognição humana - de prover a Linguística de melhores contornos explicativos para o problema do sentido e da significação. Porém, é preciso sublinhar que o problema da significação não está reservado à Linguística e nem está confinado ao sistema linguístico, isto é, à língua. Há muitas outras coisas excêntricas envolvidas na constituição do sentido e no processo de significação. Dessa maneira, pode-se afirmar que a língua significa parecer ser um truísmo . Podemos estar todos, linguistas, filósofos, psicólogos, pedagogos etc. de acordo com o princípio segundo o qual o problema do sentido vincula-se com algum tipo de ciência ou de conduta interpretativa. Responsáveis pelo processo de percepção do real, pela decifração do mundo e pela humanização de nossas cognições, os diferentes processos de significação atuam de maneira seletiva, concorrente e heurística em relação a diferentes propósitos discursivos.Tomemos, pois, alguns fatos de linguagem: a manipulação de provérbios, chistes e piadas, que exigem determinados procedimentos linguísticos e discursivos para serem reconhecidos enquanto tais; os atos falhos ou lapsos que permeiam de maneira largamente inconsciente nossas atividades linguístico-cognitivas; as regras pragmáticas ou leis conversacionais que presidem a utilização da linguagem em contextos sociais determinados (seja relevante! seja informativo! seja verdadeiro!); a injunção ético-discursiva em relação à mentira; a polissemia existente entre a língua e o interdiscurso; a intertextualidade; os procedimentos léxico-sintáticos relacionados com a manutenção de determinadas práticas discursivas, como o chauvinismo ou o racismo; a neologia e todos os processos de criação lexical; as formações ideológico-discursivas que orientam ou especificam a mentalidade de um segmento social; as atividades inferenciais que implicam o conhecimento de mundo; as propriedades interativas humanas, arbitradas linguístico- Epistemologicamente: Estudo sobre o conhecimento científico, seus diferentes métodos, suas teorias e práticas, sua evolução na história e no desenvolvimento das sociedades; teoria da ciência. Truísmo: Verdade banal, notória, que por sua evidência não merece ser enunciada; tautologia; redundância. Chistes: Dito que contém humor e sagacidade; gracejo ou facécia. Propriedade daquilo que tem graça; comicidade. Heurística: Conjunto de regras e métodos para chegar-se à invenção, à descoberta ou à resolução de problemas. Método de ensino pelo qual se incentiva o aluno a aprender com as próprias tentativas e erros. 51INTA Código de Linguagem discursivamente; as diversas formas meta-enunciativas relativas ao dizer próprio e alheio. O que têm todos esses expedientes linguístico-discursivos em comum, além do fato de que mostram o poder da linguagem? Todos é um testemunho expressivo da presença da cultura na língua e no discurso. Manejar inadequadamente todos esses expedientes pode ser indicativo, entre outras coisas, de que o sujeito é ainda uma criança cujo "domínio" da significação ainda está em construção; pode também implicar que o sujeito é um estrangeiro e não domina integralmente as contingências antropoculturais da interpretação; também pode ser um indício (ou, às vezes, evidência) de que o sujeito tem uma patologia mental, como bem observa Possenti (1992). Esses expedientes, além disso, parecem exigir do sujeito diferentes reflexões com e sobre a linguagem (e quanto a isso, tanto a aquisição da linguagem quanto as patologias têm mostrado evidências empíricas indiscutíveis). Mas o contexto da inadequação (digamos assim) não interessa - por si só - à Neurolinguística. Na realidade, o que se busca compreender é como se produz e constrói o sentido; é como o homem se transforma nesse "animal semiótico", para usar uma expressão de Peirce. O estudo da relação entre linguagem, cognição e cultura é importante para a Neurolinguística porque parece ser parte da resposta a tais questões. O tipo de relação que mantêm entre si poderia ser explorado por meio de uma proposição aparentemente trivial: a linguagem, sob o viés do discursivo, "culturaliza" a cognição. Podemos dizer com isso que a ponte conceitual entre o linguístico e o cognitivo é uma relação que depende dos processos de significação e na qual intervém a cultura. Os estudos neurolinguísticos, para serem promissores, dependem inteiramente da identificação do problema que envolve a relação entre linguagem, cognição e cultura como parte da resposta à questão do sentido, essa "fascinante cabeça de Medusa", na feliz expressão de Benveniste. 52 Código de Linguagem INTA Linguagem, cultura cognição: relações solidárias e constitutivas. Uma das tarefas fundamentais da perspectiva discursiva em Neurolinguística seria apontar uma relação de mútua constitutividade entre linguagem e cognição. Essa relação fundamenta-se em uma tese básica que qualifica, sob inspiração de Vygotsky, o tipo de mediação entre o linguístico e o cognitivo. A face empírica de tais postulados encontra-se descrita e analisada em inúmeras investigações de patologias cerebrais (e do contexto patológico de uma maneira geral), em diversos estudos voltados para a aquisição de linguagem pela criança, em modelos ou construtos (cognitivos) de organização da linguagem ou em trabalhos que tratam do processamento sociocognitivo do texto e da construção da textualidade. É preciso lembrar, contudo, que não são muitos os domínios da Linguística que demonstram um interesse explícito pelas relações entre linguagem, cognição e cultura. Nos últimos anos, algumas áreas da Linguística vêm elaborando quadros e categorias teóricas que procuram estabelecer pontes conceituais e metodológicas entre esses fenômenos. Naturalmente, as idiossincrasias são inúmeras e variadas, levando em conta que a Pragmática Conversacional, a Linguística Textual, a Sociolinguística, a Filosofia da Linguagem, a Psicolinguística Interacionista, a Semântica Enunciativa, a Análise do Discurso ou a Neurolinguísticas e não são entre si excludentes têm objetos distintos e semiologias muito particulares. Todas essas abordagens têm mais semelhanças que diferenças entre si. Estaria a aproximá-las uma perspectiva interacionista da aquisição e do desenvolvimento cognitivo, além da consideração do papel mediador tributário da linguagem diante das relações entre as referências do mundo biológico e as do sociocultural. O que poderia também aproximá-las seria uma visão dinâmica e dialética do funcionamento corticocerebral, tendo em vista as relações (não formais, apriorísticas ou meramente causais) que o cérebro mantém com a atividade linguístico-cognitiva, isto é, com as práticas simbólicas de apreender e significar o mundo. De qualquer modo, a atitude do linguista que se interroga a respeito de qualquer evento que signifique, não é absolutamente diferente da de outros investigadores que se colocam diante da mesma questão, ainda que de postos de observação diferentes. Resta saber que tipo de desafio a Neurolinguística, um dos domínios da Linguística cuja tradição híbrida reporta-se tanto às ciências da cognição quanto às teorias linguísticas, Constitutividade: Que constitui essencialmente uma coisa, que entra na composição de: elementos constitutivos de um corpo. Que é essencial, indispensável, Algo peculiar, distintivo. Idiossincrasias : Particularidade comportamental própria de um indivíduo ou de um grupo de pessoas. Semiologias: Semiologia: Ciência que se dedica ao estudo dos signos, dos modos que representam algo diferente de si mesmo, e de qualquer sistema de comunicação presentes numa sociedade. 53INTA Código de Linguagem representa para a questão do sentido que, afinal, permeia a (inter)relação entre linguagem, cognição e cultura. A afirmação de que a relação acima não é simplesmente eventual seria um truísmo não fosse também verdadeiro o fato de que a solidariedade entre essas três dimensões da experiência humana não se dá de maneira alguma de forma óbvia ou direta. Há muito se interroga a respeito das relações singulares das ciências humanas e biológicas com a cultura. Um dos mitos mais fortes é que a aproximação das ciências humanas e sociais com os temas cognitivos deve ser necessariamente reacionária. De todo modo, o antibiologismo simplesmente deixou de ser uma posição construtiva até mesmo para o interacionista menos obsequioso . Assim, se considerarmos que a um modo de funcionamento da linguagem deva ajustar-se um modo de funcionamento cognitivo epistemologicamente compatível, qual a concepção de cérebro que poderia ser proposto? Semdúvida, uma concepção de cérebro que, longe de uma definição apenas fisiológica, estruturalista ou fenomenológica, leve em conta seu funcionamento integrativo, sistêmico e dinâmico (à maneira da neuropsicologia de inspiração vygotskiana e luriana). Um cérebro capaz de manusear não apenas formas linguísticas e cognitivas, mas, sobretudo seu funcionamento; que se defina pela relação que mantém com seu exterior. Um cérebro que não seja concebido in absentia, que seja capaz de explicar "como o sujeito se move na linguagem" ( Possenti, 1992), e não apenas na gramática. Um cérebro com conhecimento. Causalidade e reciprocidade na relação entre linguagem, cognição e cultura. Levando em conta os propósitos deste texto, destacaremos apenas duas questões com as quais a Neurolinguística se depara quando está em jogo a noção de cultura. Ambas, podem nos ajudar a compreender melhor porque as teorias que negligenciam a solidariedade entre cognição, linguagem e cultura tornam-se apenas parciais. A primeira questão diz respeito ao reconhecimento da polissemia dos termos linguagem, cognição e cultura, bem como ao fato de que todos eles mantêm entre si uma relação polifônica . É precisamente esse reconhecimento (que os limites deste texto impedem de analisar) o que Polissemia: Multiplicidade de significados de uma palavra In absentia: ,Diz-se do julgamento que se realiza sem a presença do réu Polifônica: Por meio de vários sons ou vozes simultâneos e harmônicos 54 Código de Linguagem INTA nos leva a abordá-los epistemologicamente. Em outras palavras, se há entre eles uma relação estreita, de mútua constitutividade, encontra-se justificada a tese da mediação simbólica depreendida dos postulados de Vygotsky, segundo a qual não há possibilidades integrais de pensamento ou de conteúdos cognitivos fora da linguagem nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos humanos, contingenciados sociocultural. MORATO (1996). O que se tem como resultado dessa preocupação de ordem epistemológica? A ideia de que se é bem verdade que o mundo (e, portanto a cultura, a história) não é produto original da linguagem (como já havia dito HUMBOLDT,1836/1972), ele é - digamos - de sua responsabilidade, dada a sua capacidade reflexiva de voltar-se sobre si mesma e de se referir a outros sistemas de signos não verbais, sendo por estes enfermadas. Tomemos as palavras de Franchi: A linguagem, pois, não é um dado ou o resultado; mas o trabalho que dá forma ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do vivido, que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como um sistema de referência em que aquele se torna significativo. (1977, p. 22) Já a cognição guardaria forçosamente um caráter ambíguo deixado à Linguística como herança pela Filosofia e pela Psicologia. Resumidamente, cognição diz respeito tanto ao que a Filosofia entende por "percepção" do real quanto a diversas formas de conhecimento que se definem pelo conjunto de processos cognitivos (memória, atenção, percepção, pensamento, compreensão etc.) voltados para sua expressão e interpretação. Por sua vez, a ideia de cultura que interessa destacar é constituída pela sua relação com a história. Assim, se de um lado a cultura não deixa de ser compreendida antropologicamente, a partir de um verdadeiro tecido de conexões simbólicas regido por regras de gestão social; de outro, ela é contingenciada pelas ações humanas e processos sociais, isto é, pela história. Com isso ressalta-se a tradição do pensamento que enfatiza a solidariedade da cultura com a história, que vai de Hegel a Marx. Importa salientar, entretanto, algo que parece ser essencial na reflexão de Marx (e inexistente em Hegel): a cultura-histórica produz e é produzida pelas relações sociais. Essa ideia de cultura como história é interessante por vários motivos: pode abrigar tanto a ideia de sociedade quanto a de comunidade, trabalha tanto com a noção de ideologia (importante, por exemplo, para a Análise do Discurso, para a Sociolinguística e para a Linguística Textual), quanto com aspectos antropológicos e sociológicos (importantes para a Neurolinguística, para a Psicolinguística e para as teorias enunciativas) e - o que é fundamental - é capaz de explicitar a maneira pela qual o natural se distingue do social (o que é crucial para os rumos da Neuropsicologia 55INTA Código de Linguagem e de várias disciplinas que estão sob a égide das ciências cognitivas). Afinal, para o estudo da cognição humana, é importante verificar o que muda, em termos teóricos, quando a cultura passa a ocupar o lugar antes reservado à natureza. Isso é importante para os debates em torno da plausibilidade do chamado cognitivismo "forte" (isto é, inatista), que se pauta pela ideia de um substrato biológico bruto e fixado anteriormente às experiências significativas do sujeito com o mundo social. A segunda questão importante para esta reflexão diz respeito ao surgimento da Linguística como ciência ao final do século XIX e à própria trajetória científico- filosófica acerca da mente. Assim, é preciso lembrar que a Linguística se firmou como ciência por meio da exclusão da relação entre esses três termos. Além disso, é preciso considerar que tradicionalmente a relação entre linguagem e cognição estabeleceu- se a partir da ótica da exterioridade (DASCAL,1983), que as toma como elementos logicamente heterogêneos entre si e pertencentes a mundos não compossíveis (ou seja, linguagem nada mais é que uma espécie de "vestimenta" de nossos conteúdos mentais internos, aparentemente inacessíveis ao investigador). Como resultado do dualismo ontológico, tanto a relação da linguagem com a cultura quanto a da linguagem com a cognição têm sido vistas tradicionalmente em termos de causalidade. Com isso, muitas questões permanecem como um segredo de polichinelo ou de esfinge: a natureza da relação entre linguagem, cognição e cultura seria um truísmo ou um mistério. Precisamente por isso, destaquemos o problema da causalidade como fundador das relações entre linguagem, cognição e cultura no interior da pesquisa neurolinguística. Se admitirmos uma causalidade orientada da cultura para a linguagem (à maneira da chamada hipótese Sapir-Whorf, por exemplo), seria necessário também que estabelecêssemos variações concomitantes entre os dados de linguagem de uma parte e eventos sociais que não sejam dados de linguagem, de outra parte. Em outras palavras, seria necessário saber a conexão causal entre aquilo que é da linguagem (da cultura, da cognição) e aquilo que não é da linguagem (da cultura, da cognição). A questão que se coloca quanto a este ponto é: podemos admitir dados sociais concebidos à margem da linguagem e do linguístico? Se, ao contrário, admitimos uma causalidade orientada da linguagem para a cultura estaríamos correndo o risco de reduzir a linguagem a uma visão de mundo, transformando-a no único instrumental cognitivo. Ou, ainda, de reduzir o real ao que a linguagem vê. De onde quer que se olhe, a questão da causalidade e suas determinações são sempre muito complicadas. 56 Código de Linguagem INTA Em ambos os casos postula-se a existência de entidades separadas (linguagem e cognição ou linguagem e cultura); estuda-se uma "através" da outra, sem saber ao certo a natureza da relação que mantêm entre si. Em geral, nesse caso, linguagem é apenas um instrumento para o estudo da cognição ou da cultura, estes sim os objetivos (os "alvos") do conhecimento. Afinal, em que temos estabelecido os elementos de concomitância e de determinação entre linguagem, cultura e cognição? Já não mais vão além do senso comum as conclusões elaboradas por estudos sociológicos que fazem uma
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