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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 1 MBA GERENCIAMENTO DE PROJETOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS PROFESSOR: GUILHERME SANDOVAL GÓES DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 2 ÍNDICE AULA 4: CAMINHOS HERMENÊUTICOS PARA A PLENA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 3 INTRODUÇÃO 3 CONTEÚDO 4 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 4 OS CAMINHOS PARA A EFETIVIDADE NA DOUTRINA ESTRANGEIRA: A NORMATIVIDADE CONSTITUCIONAL EM KONRAD HESSE E CANOTILHO 8 A CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA BRASILEIRA NO PLANO DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 15 AS NOVAS MODALIDADES DE EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS À LUZ DA DOGMÁTICA PÓS-POSITIVISTA 20 A EFICÁCIA NEGATIVA, A EFICÁCIA NUCLEAR E A EFICÁCIA POSITIVA OU SIMÉTRICA 20 A EFICÁCIA VEDATIVA DE RETROCESSO E A EFICÁCIA INTERPRETATIVA 24 ATIVIDADE PROPOSTA 27 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 28 REFERÊNCIAS 31 CHAVES DE RESPOSTA 33 AULA 4 33 ATIVIDADE PROPOSTA 33 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 33 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 3 Direitos e Garantias Fundamentais – Apostila Aula 4: Caminhos hermenêuticos para a plena efetividade dos direitos fundamentais Introdução Nesta aula, será estudado o perfil de evolução da efetividade dos direitos fundamentais, desde as contribuições do direito comparado, notadamente o pensamento de Konrad Hesse (força normativa da Constituição) e Canotilho (constitucionalismo dirigente compromissório), perpassando pelo estudo da doutrina brasileira da efetividade até, finalmente, chegar-se à análise das novas modalidades de eficácia no âmbito da dogmática pós-positivista (eficácia positiva ou simétrica, eficácia nuclear, eficácia negativa, eficácia vedativa de retrocesso e eficácia interpretativa). Objetivos 1. Analisar a contribuição do pensamento de Konrad Hesse e Canotilho na construção da normatividade dos direitos fundamentais, bem como compreender o papel da doutrina brasileira da efetividade na evolução do constitucionalismo brasileiro, identificando as novas modalidades de eficácia no âmbito da dogmática pós-positivista. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 4 Conteúdo Considerações introdutórias acerca da efetividade dos direitos fundamentais A trajetória de evolução dos direitos fundamentais já passou e vem passando por grandes transformações ao longo dos séculos. Como bem alerta Manoel Gonçalves Ferreira Filho, 1 a doutrina dos direitos humanos, no fundo, nada mais é do que uma versão da doutrina do direito natural que já desponta na Antiguidade. Com efeito, se hoje a proteção dos direitos fundamentais se encontra na centralidade do constitucionalismo pós-moderno, a situação nem sempre foi assim, ou seja, o caminho para a efetividade foi longo e tortuoso, notadamente, nos países de modernidade tardia, como é o caso do Brasil. Tal perfil de evolução entremostra uma das principais características dos direitos fundamentais, que é a historicidade, ou seja, os direitos fundamentais são históricos, na medida em que derivam de uma evolução progressiva no tempo; o que significa dizer que nascem, se desenvolvem e podem até morrer (somente com a morte da Constituição). A historicidade dos direitos fundamentais é importante para o estudo do direito constitucional, porque impede que o intérprete fundamente sua decisão em bases meramente jusnaturalistas, sem respaldo científico de uma teoria hermenêutica apropriada. Como veremos ao longo desta aula, a nova interpretação constitucional valoriza a força normativa da Constituição, tal qual vislumbrada por Konrad Hesse como meio de reaproximação entre o direito e a ética, porém, como bem salienta José Afonso da Silva, a historicidade dos direitos fundamentais 1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 9. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 5 rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas. Da mesma forma, é a ideia de historicidade que projeta a imagem das três grandes dimensões de direitos e seus diferentes caminhos rumo à plena efetividade ou eficácia social. Como visto na aula 2, a teoria dimensional dos direitos fundamentais desvela tais dimensões, ligadas respectivamente aos direitos de liberdade e de igualdade formal, aos direitos econômicos, sociais e culturais e de igualdade material e aos direitos de fraternidade e solidariedade que contêm natureza difusa. A diferença entre as dimensões não se dá apenas quanto à natureza dos direitos, mas, também, quanto à forma hermenêutica pela qual se chega à plena efetividade. Ou seja, o caminho hermenêutico que se percorre para garantir a efetividade dos direitos negativos de defesa (primeira dimensão) é bem distinta daquele que garante a efetividade dos direitos estatais prestacionais (segunda dimensão). Portanto, nosso objetivo nesta aula é percorrer o caminho da efetividade dos direitos fundamentais de um modo completo, ou seja, a nova interpretação constitucional tem como elemento nuclear a busca da normatividade de todas as dimensões dos direitos fundamentais. Aliás, a busca de efetividade dos direitos fundamentais talvez seja a característica mais marcante do constitucionalismo contemporâneo, na medida em que simboliza a obrigação dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) de garantir efetivamente a realização do conteúdo jurídico das normas fundamentais. Daí a crescente teorização sobre a efetividade dos direitos fundamentais, que inclui relevantes construções teóricas, tais como a força normativa da Constituição (Konrad Hesse), a doutrina brasileira da efetividade (Luís DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 6 Roberto Barroso), a teoria do núcleo essencial (Gilmar Mendes) e muitas outras. Com efeito, estudar o caminho da efetividade dos direitos fundamentais é compreender o modo pelo qual o exegeta deve interpretar o texto constitucional, vale dizer a partir de um bloco monolítico sistêmico, capaz de harmonizar aquelas normas constitucionais que se encontram em conflito aparente (princípio da unidade constitucional) como, por exemplo, o direito à propriedade versus sua função social, ou, a livre iniciativa versus o valor social do trabalho, ou, ainda, a liberdade de imprensa versus direto à imagem e à honra. Tudo isso faz ressaltar outra característica central dos direitos fundamentais, qual seja, a sua relatividade ou limitabilidade. Ora, é de sabença geral que não existem direitos fundamentais absolutos, isto é, todos os direitos fundamentais são relativos ou limitados. Nem mesmo o direito à vida é absoluto quando confrontado com a pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º, inciso XLVII, alínea a da CRFB/88). Nesse sentido, é certo dizer que, juntamente com a característica da efetividade, a relatividade dos direitos fundamentais é um dos pilares de sustentabilidade da nova interpretação constitucional (neoconstitucionalismo), na medida em viabiliza a aplicação direta das normas constitucionais a partir da técnica da ponderação de valores. Isto significa dizer que a colisão de direitos fundamentais é solucionada a partir dessa característica de relatividade, vale explicitar, todos os direitos fundamentais são relativos, logo sua aplicação depende da ponderação de valores feita no caso concreto. Enfim, o que importa compreender é o fato de que todas estas características dos direitos fundamentais (historicidade, complementaridade, relatividade, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 7 limitabilidade, efetividade, etc.) estão interligadas e servem de pano de fundo para o desenvolvimento da avançada dogmática dos direitos fundamentais.Como já amplamente visto na aula passada, a dogmática pós-positivista faz avançar a efetividade dos direitos fundamentais a partir da leitura moral da Constituição. É a estrutura aberta dos princípios constitucionais o ônibus que conduz à construção de novas fórmulas hermenêuticas capazes de realizar o sentimento de justiça e de reaproximação com a ética. Nossa Lei Fundamental de 1988 não é chamada de “Constituição Cidadã” sem uma razão: reconhece e busca garantir direitos inerentes ao indivíduo comum, assegurando-lhe o pleno exercício do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de oportunidades. E o faz a partir de uma Carta Constitucional que garante um amplo rol de direitos fundamentais, não bastando apenas a proteção das liberdades civis e políticas, mas atribui também aos poderes constituídos a tarefa de realizar os direitos sociais e coletivos. É o próprio preâmbulo constitucional que consagra os valores do bem-estar, desenvolvimento, igualdade, justiça e pluralidade, entre outros. Tudo isso mostra o caráter compromissório da Constituição de 1988. Com efeito, a Constituição do Estado brasileiro abandona a tradição de neutralidade da norma constitucional em favor de um sistema axiológico baseado em direitos fundamentais de todas as dimensões. Com isso, tenta, a um só tempo, consagrar os valores da democracia liberal e da social democracia. É razoável afirmar, nesse contexto axiologicamente dividido entre o liberalismo e o socialismo, que a efetividade dos direitos de segunda dimensão fica dificultada com a falta de recursos financeiros do Estado. Esta temática será estudada com detalhes na próxima aula. Por ora, o que importa compreender é o longo caminho percorrido pela interpretação constitucional para alcançar seu atual estádio hermenêutico que garante a efetividade de todas as dimensões dos direitos fundamentais. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 8 Assim, a dogmática pós-positivista caracteriza-se pela aplicação direta das normas constitucionais, sem a obrigatoriedade de participação do poder constituinte derivado reformador. Para tanto, exige-se do exegeta o uso do discurso axiológico-indutivo de lógica ponderativa para a solução dos hard cases. É nessa esteira que despontam as novas modalidades de eficácia da dogmática pós-positivista, quais sejam, a eficácia positiva ou simétrica, a eficácia negativa ou paralisante, a eficácia vedativa de retrocesso e a eficácia interpretativa. Dessarte, nosso objetivo agora é examinar os principais movimentos constitucionais que fizeram avançar a efetividade dos direitos fundamentais de todas as dimensões dentro de um contexto constitucional compromissório que almeja salvaguardar, ao mesmo tempo, a democracia liberal e a social democracia, valendo, pois, iniciar pelo exame da doutrina brasileira da efetividade capitaneada pelo Ministro Luís Roberto Barroso com base na construção teórica de Konrad Hesse. Os caminhos para a efetividade na doutrina estrangeira: a normatividade constitucional em Konrad Hesse e Canotilho Foi longa a trajetória da efetividade dos direitos fundamentais tanto na Europa como na América Latina e, em particular, no Brasil. Neste segmento vamos examinar o contributo epistemológico que nos foi legado pelo pensamento de Hesse e seu método hermenêutico-concretizador e pela teorização de Canotilho e sua tese de dirigismo constitucional. Na sequência dos estudos, vamos examinar a doutrina brasileira da efetividade desenvolvida, sobretudo pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Sem nenhuma dúvida, é a obra de Konrad Hesse o grande divisor de águas em termos de eficácia das normas constitucionais. Em contraposição ao conceito sociológico de Ferdinand Lassale e sua ideia de que a Constituição escrita seria uma mera folha de papel se não estivesse em consonância com a Constituição real concebida pelos fatores reais de poder, a concepção de DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 9 Constituição normativa de Hesse opera o deslocamento do modelo da supremacia do parlamento para o da supremacia da Constituição. Tal mudança de paradigma desloca a norma constitucional para a centralidade do sistema jurídico e, mais do que isso, imprime-lhe status de norma jurídica com seu correspondente caráter vinculativo e obrigatório para todos os poderes constituídos. Já não se pode mais falar em supremacia do parlamento, na medida em que as disposições constitucionais ganham a imperatividade peculiar da norma jurídica. Em resposta ao pensamento de Lassale, a Constituição normativa de Hesse não só nega a Constituição real advinda dos fatores reais de poder, como reafirma que toda norma constitucional deve ser revestida de um mínimo de eficácia jurídica, sob pena de figurar “letra morta em papel”. É bem de ver que a concepção de Konrad Hesse entende que a Constituição normativa não configura apenas o “ser” (a Constituição regula a realidade social a partir dos princípios basilares de formação do Estado), mas um “dever ser” (a Constituição tem um papel emancipador que deve moldar a realidade jurídica do Estado em consonância com a evolução da realidade social). Neste sentido, a Constituição não tem apenas o papel de regular a vida nacional, mas, principalmente, o de moldá-la de acordo com os preceitos constitucionais. Aqui, o caro aluno deve captar a imagem de que a concepção de Hesse (Constituição imprimindo ordens e moldando a realidade política e social) traz no seu bojo a essência da reconstrução neoconstitucionalista do direito. A imposição de imperatividade vinculante às normas constitucionais, reconhecendo-lhes o status de norma jurídica, exige uma nova postura do intérprete que deve agora ler o direito sob a lente da Constituição, ou seja, cabe ao exegeta constitucional interpretar as normas constitucionais de tal modo que a eficácia jurídica dessas normas seja plena, máxima, de aplicabilidade direta. Com tal tipo de intelecção, a Constituição ganha força DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 10 normativa, porque passa a ser capaz de gerar de per si direitos subjetivos para o cidadão comum, sem depender de regulamentação infraconstitucional. Em decorrência do reconhecimento da força normativa da Constituição, abre- se o caminho em direção à plena efetividade dos direitos fundamentais (componentes da parte dogmática da Constituição), ou seja, os elementos tradicionais de interpretação do direito são superados no sentido de que a norma constitucional é norma jurídica e nessa condição é capaz de gerar direito diretamente. É nesse diapasão que despontam as grandes categorias do neoconstitucionalismo e da dogmática pós-positivista tais como os princípios da dignidade da pessoa humana e igualdade material, as colisões de normas constitucionais de mesma hierarquia, a ponderação de valores a partir da incidência dos elementos fáticos e jurídicos do caso concreto e a argumentação da decisão como elemento componente da correção normativa do direito. Com efeito, consolida-se na nova dogmática pós-positivista o método hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse, no qual predomina a força normativa da Constituição a partir de uma postura exegética ativa e construtiva do intérprete da Constituição. Isto significa dizer que o processo hermenêutico constitucional deve ser desenvolvido sob a égide do protagonismo interpretativo de juízes e tribunais com o fito de guardar as normas constitucionais. Em sentido amplo e diametralmente oposta ao pensamento de Lassale, a concepção de Hesse defende o papel emancipador e transformador da Constituição, o que significa dizer maior intervenção do Estado na economia para garantir os dispositivos da ordem econômica e social, e.g., o desenvolvimento nacional com justiça social, bem como determina a necessidade de formulação de políticaspúblicas voltadas para a consecução do catálogo jusfundamental do cidadão comum. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 11 Em essência, o método hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse defende que toda e qualquer norma constitucional deve ter a sua “pretensão de eficácia”, simbolizando, pois, sua força normativa. Para Hesse, 2 tal pretensão de eficácia surge com sua vigência, uma vez que a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, mas, sim, o objetivo de que a situação que ela regula seja efetivamente concretizada na realidade. Enfim, fácil é perceber as diferenças entre as concepções de Lassale e Hesse, a primeira desconsidera por completo a força normativa da Constituição e defende a tese de uma Constituição real feita pelos detentores do poder político, já a segunda é a sua antítese, isto é, reconhece o papel transformador da Constituição, que não deve apenas regular a realidade política e social, mas, também, moldá-la de acordo com os ditames constitucionais. As figuras abaixo sintetizam tais argumentos em visão panorâmica. Fatores reais de poder Enfoque Sociológico Constituição Escrita Constituição Real Constituição (mera folha de papel) CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO DE LASSALE FALTA DA PERSPECTIVA NORMATIVA DE KONRAD HESSE 2 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 14-15. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 12 Observe pela figura que a perspectiva lassaleana desconsidera completamente a força jurígena, vale dizer, a força de dizer o direito da Constituição. Ou seja, o modelo constitucional de Lassale não se pauta na supremacia da Constituição escrita, mas, sim, na Constituição real concebida e engendrada pelos fatores reais de poder, isto é, pelos detentores do poder político, social, econômico e militar. Totalmente diferente é a construção teórica de Konrad Hesse e seu método hermenêutico-concretizador, como a figura abaixo busca destacar. NOME DA AULA – AULA1 NOME DA DISCIPLINA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO DE KONRAD HESSE Forte influência no direito pátrio notadamente no importante movimento que resultou na elaboração da doutrina brasileira da efetividade de Luís Roberto Barroso. Norma constitucional é norma jurídica:capaz de gerar direito subjetivo de per si Reconstrução neoconstitucionalista do direito: A Constituição como um sistema aberto de regras e princípios CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NORMATIVA Na mesma linha de pensamento, é importante agora destacar a visão de Canotilho e a característica dirigente e compromissória do seu conceito de Constituição, ou seja, o constitucionalismo dirigente-compromissório busca controlar a ação do Estado, vale dizer “constituir-a-ação”, como quer Lenio Streck, 3 mormente porque, no Brasil, nunca constituiu. No texto da Constituição de 1988, há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um 3 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, op. cit., p. 96. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 13 conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado (o ideal moral transforma-se em obrigação jurídica). Com efeito, no âmbito do direito não saxônico, será a célebre tese de doutoramento do autor português J. J. Gomes Canotilho, publicada em 1982, sob o titulo de Constituição dirigente e vinculação do legislador que difundirá as ideias de que a Constituição também é formada por normas fixadoras de fins e tarefas do Estado. Observe, portanto, que este é o primeiro passo dado no sentido de constitucionalizar a política interna do País, vez que as constituições dirigentes vincularão o poder constituinte derivado em sua ação legiferante superveniente. A característica dirigente e compromissória tem a pretensão de reafirmar a Constituição como orientação vinculante na formulação de políticas públicas supervenientes deixadas a cargo do legislador ordinário. Eis aqui a relevância da normatividade constitucional dirigente de Canotilho: 4 A Constituição- Dirigente impõe a todos a obediência aos direitos fundamentais nela previstos, impedindo-os de ser rebaixados a simples declarações axiológicas, desprovidas de eficácia jurídica; meras fórmulas de oportunidade e discricionariedade políticas, sem nenhuma vinculação jurídica imposta pela ordem constitucional. A Constituição é o topo normativo, portanto, dotada da capacidade de moldar a realidade política e social e não apenas regulamentá- la. Em suma, a teoria canotilhiana da Constituição-Dirigente continua relevante no âmbito da doutrina constitucional pós-positivista, porque afasta a tentativa neoliberal de retorno ao arquétipo constitucional pré-weimariano, cuja releitura constitucional professa a neutralização/enfraquecimento da 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 15. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 14 efetividade dos direitos sociais, notadamente os direitos trabalhistas, vislumbrados pela teoria neoliberal como empecilhos para a abertura mundial do comércio e para a real competitividade dos Estados no contexto da globalização. Esta temática será aprofundada na aula 8, por ocasião do estudo da fase de metaconstitucionalização dos direitos humanos. Por ora, o importante é constatar a importância do constitucionalismo welfarista dirigente no plano da efetividade dos direitos fundamentais. Com efeito, nesses tempos pós- modernos de globalização neodarwinista, não convém embarcar na tão propalada “Morte da Constituição Dirigente que o Estado neoliberal de Direito tenta impor, alegando que o próprio Canotilho 5 assim se manifestou. Aceitar a morte do constitucionalismo dirigente compromissório é deixar à própria sorte camadas cada vez maiores de homens e mulheres vivendo sem nenhuma dignidade humana e sob condições subumanas. Enfim, no plano da efetividade dos direitos fundamentais, essas ideias de Hesse e Canotilho configuram uma insatisfação com relação às categorias jusfundamentais do Estado liberal de Direito, cuja arquitetura constitucional não realiza satisfatoriamente a perspectiva de uma sociedade democrática e plural, eivada de assimetrias econômicas e sociais, dentro de um quadro de grande miserabilidade humana. Nos últimos anos, felizmente, os caminhos percorridos pela dogmática dos direito fundamentais fizeram avanços significativos que afastaram o debate constitucional dos domínios da estatalidade mínima e absenteísta do paradigma liberal positivista. 5 Não é assim. Veja a dicção do próprio Canotilho: “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional dirigente introvertidamente vergado sobre si próprio e alheio aos processos de abertura do direito constitucional ao direito internacional e aos direitos supranacionais”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, op. cit., p. 29. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 15 A construção doutrinária brasileira no plano da efetividade dos direitos fundamentais A influência do pensamento de Hesse e Canotilho deslocou a ênfase do estudo constitucional brasileiro para a parte orgânica da Constituição, vale explicitar, a parte que contém o catálogo de direitos fundamentaisdo cidadão comum. Surge, assim, no Brasil, a preocupação com um direito reflexivo, baseado na reaproximação com a ética e reativo ao modelo anterior de caráter autoritário e antidemocrático. Este fenômeno refere-se à redemocratização do País com a promulgação da Constituição de 1988, muito embora o movimento constitucional focado na efetividade das normas constitucionais seja bem anterior a tal data. Nesse sentido, vale lembrar tanto a obra pioneira de J.H. Meirelles Teixeira,6 quanto a célebre classificação de José Afonso da Silva 7 que se ocuparam da eficácia jurídica das normas constitucionais, muito embora não tivessem alcançado a ideia-força de eficácia social ou efetividade, cuja essência dogmática busca saber se os efeitos potenciais das normas constitucionais efetivamente se realizam. É de sabença geral que, no Brasil, a doutrina da efetividade 8 difundiu a tese de que os direitos constitucionais, e em especial os direitos fundamentais, não podem ser restringidos a ponto de se tornarem invólucros normativos vazios de efetividade. Assim sendo, verificou-se um grande movimento de renovação jurídica da interpretação constitucional a partir das obras de José 6 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional, 1991. 7 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998. 8 Foi longa a trajetória do direito constitucional em busca de efetividade, na Europa em geral e na América Latina em particular. No Brasil, notadamente, a influência do modelo francês deslocava a ênfase do estudo para a parte orgânica da Constituição, com o foco voltado para as instituições políticas. Consequentemente, negligenciava-se a sua parte dogmática (prescritiva, deontológica), a visualização da Constituição como carta de direitos e de instrumentação de sua tutela. Nos últimos anos, todavia, com grande proveito prático, boa parte do debate constitucional afastou-se dos domínios da ciência política e aproximou-se do direito processual. Cf. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 80 e segs. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 16 Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso, que na verdade deram continuidade aos trabalhos de Meireles Teixeira. Na doutrina estrangeira, destaca-se o princípio da força normativa da Constituição de Konrad Hesse, fonte de inspiração dos autores brasileiros. Para uma melhor compreensão da doutrina da efetividade, vale começar pela análise do caráter compromissório da Constituição brasileira e cujo símbolo maior é o extenso rol de normas programáticas contidas no seu corpo normativo. Com efeito, os direitos sociais são fruto de um poder constituinte originário essencialmente bipartido, cujo produto final foi a elaboração de uma Constituição compromissória que busca, a um só tempo, homenagear as vertentes do liberalismo burguês e da social democracia. Daí a tendência de positivar normas constitucionais de modo amplo sem maiores detalhamentos acerca das condutas necessárias para a realização dos fins pretendidos, optando-se por textos abertos que projetam “estados ideais”, cuja exegese é mais complexa, na medida em que o intérprete fica obrigado a definir a ação a tomar. Observe, com atenção, que a textura aberta das normas constitucionais garantidoras de direitos sociais é um fato que não pode ser desconsiderado no plano da efetividade, porque exige uma postura ativa do poder judiciário no processo hermenêutico de concretização da Constituição. Surge, pois, a necessidade do ativismo judicial na concretização dessas normas abertas insusceptíveis de subsunção automática. E mais: nesse contexto de criação do direito por juízes e tribunais na apreciação do caso concreto, desponta a questão da legitimidade democrática de o Poder Judiciário querer sobrelevar sua vontade política sobre a do legislador democrático que permanece inconstitucionalmente omisso. Todos esses fatos se apresentam como óbices à plena efetividade dos direitos fundamentais, notadamente dos direitos sociais. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 17 Portanto, com a devida atenção científica, o aluno deve compreender que, no contexto jurídico de uma Constituição compromissória canotilhiana (dividida entre duas ideologias conflitantes: liberalismo versus socialismo), para além da textura aberta das normas constitucionais, a efetividade dos direitos sociais passa a enfrentar outro obstáculo de grande magnitude, qual seja a falta de recursos financeiros do Estado (reserva do possível fática) para atender a todas as demandas sociais. Eis aqui a grande contribuição da doutrina brasileira da efetividade: enfrentar e superar todos esses obstáculos de modo a se garantir a plena efetividade dos direitos fundamentais sociais. De fato, com o advento da doutrina da efetividade, as normas constitucionais feitas sob a forma de princípios conseguem realizar-se efetivamente mediante a força normativa que se lhes imprime a nova interpretação constitucional. Com efeito, a doutrina brasileira da efetividade é especialmente importante na proteção dos direitos sociais de segunda dimensão, na medida em que se preocupa com o cumprimento da Constituição sob o ângulo da proteção das posições jusfundamentais dos indivíduos, e, tudo isso, feito sob o pálio da norma constitucional de per se. Em outras palavras, a doutrina da efetividade tem como substrato metodológico o reconhecimento de que todo e qualquer direito constitucional tem aplicabilidade direta e imediata, sem necessidade de interposição legislativa superveniente. É um método que se consubstancia na força intrínseca de cada um dos dispositivos constitucionais, não dependendo de nenhuma lei infraconstitucional regulamentadora do direito constitucional. 9 Em suma, a 9 Como bem elucida o Professor Barroso, as poucas situações em que o Supremo Tribunal Federal deixou de reconhecer aplicabilidade direta e imediata às normas constitucionais foram destacadas e comentadas em tom severo. E exemplifica o estimado Mestre com os casos referentes aos juros reais de 12% (art. 192, § 3°), ao direito de greve dos servidores públicos (art. 37, VII) e ao próprio objeto e alcance do mandado de injunção (art. 5°, LXXI). Todos esses três exemplos trazidos pelo Professor Barroso demonstram a consolidação da força normativa da Constituição, uma vez que a doutrina ressalta o erro do STF em negar DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 18 doutrina brasileira da efetividade supera o dogma da subsunção do fato à norma, passando a fazer uso das vertentes da escola pós-positivista, cujo pilar de sustentabilidade é a normatividade dos princípios constitucionais, que por sua vez possibilitou a rearticulação axiológica entre a ética e o direito e muito especialmente a consolidação do princípio da dignidade da pessoa humana. Fazer valer a Constituição de per si é o espírito que anima a doutrina brasileira da efetividade. Com isso, difundiu-se a intelecção dogmática de que o direito constitucional é norma, logo, se um direito está na Constituição é para ser cumprido. E mais: uma vez violado, torna-se plenamente sindicável perante o poder judiciário, que deve reparar a lesão. Nesse exato sentido, vale reproduzir a lição de Barroso, por essencial, verbis: A doutrina da efetividade serviu-se, (...), de uma metodologia posi- tivista: direito constitucional é norma; e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos: se está na Constituição é para ser cumprido. O sucesso aqui celebrado não é infirmado pelo desenvolvimento de novas formulações doutrinárias, de base pós-positivista e voltadas para a fundamentalidade material da norma. Entre nós – talvez diferentementede outras partes –, foi a partir do novo patamar criado pelo constitucionalismo brasileiro da efetividade que ganharam impulso os estudos acerca do neoconstitucionalismo e da teoria dos direitos fundamentais. 10 Parece inexorável a ideia de que o exegeta constitucional, versado no estado da arte da dogmática pós-positivista, consagra, no Brasil, a onipresença da Constituição em todo o sistema jurídico, exatamente porque compreende a eficácia a tais dispositivos. Observe que o STF reconheceu o espaço de deliberação do Poder Legislativo, o que evidentemente inviabilizou a fruição do direito público subjetivo de greve, outorgado aos servidores civis pela Carta Política. Diferente foi a posição perfilhada pelo STJ, cuja posição progressista reconheceu que a inércia legiferante do Estado esvazia o direito de greve, em sua dimensão essencial, logo classificou o dispositivo como norma de eficácia contida assegurando desde logo o direito subjetivo de greve dos servidores públicos. O mesmo raciocínio se aplica aos outros dois exemplos citados pelo Professor Barroso, os juros reais de 12% (art. 192, § 3°) e a questão do objeto e alcance do mandado de injunção (art. 5°, LXXI). 10 Cf. A doutrina brasileira da efetividade. In: Temas de direito constitucional. Tomo III, p.77. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 19 invasão da ética – e muito especialmente do princípio da dignidade da pessoa humana – nos diferentes subsistemas jurídicos infraconstitucionais, a partir de matrizes teóricas pautadas no principialismo constitucional. Fazer ode ao neoconstitucionalismo é fazer ode à doutrina da efetividade, tendo em vista o impulso gestado no plano da efetividade ou eficácia social dos direitos fundamentais. Afinal, o tensionamento entre normas constitucionais será resolvido com a participação do intérprete com espeque em formulação pós-positivista superadora da lei. Sua grandeza epistemológica é exatamente a noção de que a efetividade de uma norma constitucional só depende única e exclusivamente do seu próprio texto contido no enunciado normativo. A doutrina da efetividade, pelo menos em relação a seus objetivos, faz avançar a efetividade das normas constitucionais, notadamente, os direitos sociais, cuja natureza é a de direito estatal prestacional. Sob a égide da doutrina da efetividade, as normas programáticas, muito embora não possuam eficácia plena, prestam-se a garantir o conteúdo jurídico mínimo nelas projetado. O dever de garantir a efetividade das normas constitucionais é de todos os poderes constituídos pelo legislador originário. É por tudo isso que a hodierna dogmática dos direitos fundamentais não deve se afastar da busca da plena efetividade dos direitos fundamentais de todas as dimensões sem o que se compromete os alicerces do Estado Democrático de Direito. Com efeito, entre nós, infelizmente, as condições de vida digna ainda são negadas para grande parte da sociedade brasileira, não sendo correto, portanto, a negação da doutrina da efetividade e a imposição do império da norma legislada. No neoconstitucionalismo, o juiz não pode impor decisões judiciais que sabe, de antemão, serem violadoras dos direitos fundamentais, ainda que decorrentes de atos omissivos do legislador democrático. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 20 Assim sendo, nosso próximo desafio é fazer uma breve, porém, sólida, análise de novas modalidades de eficácia que surgiram no âmbito da dogmática constitucional pós-positivista, que certamente elevam o nível de proteção jurídica dos direitos fundamentais. As novas modalidades de eficácia das normas constitucionais à luz da dogmática pós-positivista A dogmática pós-positivista assenta-se na criação jurisprudencial do direito (ativismo judicial) a partir da incidência dos elementos fáticos do caso concreto sobre o texto constitucional e não o contrário: o sentido inequívoco e único da letra da norma. Assim sendo, vamos agora conhecer as modalidades de eficácia dos princípios jurídicos no âmbito do direito constitucional contemporâneo e que são as seguintes: a) Eficácia negativa; b) Eficácia vedativa de retrocesso; c) Eficácia interpretativa; d) Eficácia positiva ou simétrica. e) Eficácia nuclear. A eficácia negativa, a eficácia nuclear e a eficácia positiva ou simétrica Luís Roberto Barroso em “O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro,” 11 desenvolve sistematicamente as modalidades de eficácia dos princípios jurídicos. 11 Cf. Temas de Direito Constitucional. Tomo III, p.42-45. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 21 Vale, pois, iniciar pela definição de eficácia negativa que o autor define como sendo aquela que: autoriza que sejam declaradas inválidas todas as normas ou atos que contravenham os efeitos pretendidos pela norma. É claro que para identificar se uma norma ou ato viola ou contraria os efeitos pretendidos pelo princípio constitucional é preciso saber que efeitos são esses. Como já referido, os efeitos pretendidos pelos princípios podem ser relativamente indeterminados a partir de um certo núcleo; é a existência desse núcleo, entretanto, que torna plenamente viável a modalidade de eficácia jurídica negativa. Imagine-se um exemplo. Uma determinada empresa rural prevê, no contrato de trabalho de seus empregados, penas corporais no caso de descumprimento de determinadas regras. Ou sanções como privação de alimentos ou proibição de se avistar com seus familiares. Afora outras especulações, inclusive de natureza constitucional, não há dúvida de que a eficácia negativa do princípio da dignidade humana conduziria tal norma à invalidade. É que nada obstante a relativa indeterminação do conceito de dignidade humana, há consenso de que em seu núcleo central deverão estar a rejeição às penas corporais, à fome compulsória e ao afastamento arbitrário da família.12 Partindo exatamente dos pontos levantados pelo autor, verificamos que a eficácia negativa tem na verdade dois componentes bem definidos, um atinente ao núcleo essencial dos direitos fundamentais protegidos pelas cláusulas pétreas (eficácia negativa do núcleo dessas normas) e outro atinente à legislação infraconstitucional, seja em relação a ato comissivo, seja em relação a ato omissivo (eficácia negativa da norma constitucional). Com relação à aplicação da eficácia nuclear negativa, constatamos, por exemplo, que será possível declarar que uma emenda constitucional 13 é 12 Idem, p 43-44. 13 (lembre-se norma constitucional derivada) O legislador constituinte derivado tem competência constitucionalmente assegurada para modificar por processo legislativo mais rigoroso a Constituição da República. Nesta tarefa, encontra apenas as limitações de ordem DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 22 inconstitucional por violar o núcleo essencial de um direito constitucional protegido por cláusula pétrea. Já o segundo tipo de eficácia negativa se aplica, por exemplo, nas declarações de inconstitucionalidade por omissão, que indica a mora inconstitucional da falta da lei. Da mesma forma se aplica quando uma lei infraconstitucional é declarada inconstitucional, seja por inconstitucionalidade material (violação do princípio da razoabilidade), seja por inconstitucionalidade formal (vícios de iniciativa, competência ou rito). O que é importante observar é que a eficácia nuclear negativa atua contra o poder constituinte reformador na formulação de emendas à Constituição, enquanto que a eficácia negativa atua tão somente contra a legislação ordinária que contrarie a ConstituiçãoFederal, seja por ação, seja por omissão. Observe, portanto, que a ideia de eficácia negativa atua apenas no plano da validade jurídica (controle de constitucionalidade) e não no plano da eficácia social ou da efetividade (realização efetiva da Constituição, assegurando-se que um direito subjetivo seja direta e imediatamente exigível do Poder Público ou do particular, por via de uma ação judicial). Com efeito, na aplicação da eficácia negativa, reconhece-se que não cabe ao Poder Judiciário agir como legislador positivo em substituição ao Poder Legislativo. Trata-se de um espectro normativo, dentro do qual o intérprete da Constituição vai reconhecer o poder discricionário do legislador democraticamente eleito pelo povo. Em outras palavras, quando o juiz ou intérprete aplica a eficácia negativa significa que identificou uma inconstitucionalidade no plano do julgamento da validade dos atos do material, formal, circunstancial e temporária, sendo que as limitações materiais dizem respeito às cláusulas pétreas. Fora isso, o legislador derivado reformador pode modificar a seu inteiro talante o conteúdo não essencial dos direitos perpétuos, ficando, porém, impossibilitado de penetrar no seu conteúdo essencial. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 23 legislador democrático, porém, reconhece que cabe a este realizar o conteúdo dos direitos constitucionais. Eis que a eficácia negativa tem caráter meramente declaratório, uma vez que não se presta para a realização da Constituição (eficácia social ou efetividade), ou seja, o Poder Judiciário, nesta hipótese, não tem papel ativo e decisivo na concretização da Constituição. Diferente é a ideia de eficácia positiva ou simétrica. Na definição de Luís Roberto Barroso 14 temos que “é o nome pelo qual se convencionou designar a eficácia associada à maioria das regras. Embora sua anunciação seja bastante familiar, a aplicação da eficácia positiva aos princípios ainda é uma construção recente”. Assim sendo, para o autor, seu objetivo é reconhecer àquele que seria beneficiado pela norma, ou simplesmente àquele que deveria ser atingido pela realização de seus efeitos, direito subjetivo a esses efeitos, de modo que seja possível obter a tutela específica da situação contemplada no texto legal. A ideia de eficácia positiva ou simétrica é fundamental no âmbito da dogmática dos direitos fundamentais, porque se os efeitos pretendidos pela norma constitucional não ocorrem, seja em virtude de ato comissivo, seja em decorrência de um ato omissivo, é a eficácia positiva ou simétrica que irá garantir ao interessado recorrer ao poder judiciário para reparar a lesão sofrida. Enfim, por eficácia positiva ou simétrica deve-se entender a capacidade de a norma constitucional produzir diretamente os efeitos jurídicos no mundo dos fatos, em consonância com o fim constitucional para o qual foi concebida, sem necessidade de intermediação de quem quer que seja. É a chamada 14 BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 368. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 24 eficácia social ou efetividade, que assegura direitos públicos subjetivos, quer sejam políticos, individuais, sociais ou difusos, ainda que se reconheça que, em determinadas hipóteses, tal produção de efeitos fique restrita ao conteúdo jurídico mínimo da norma, ao seu núcleo essencial intangível. Esta temática será estudada com detalhes na aula 6, que versará exatamente sobre a eficácia do núcleo essencial dos direitos fundamentais. Por ora, o importante é reconhecer que, até mesmo as normas programáticas e as normas de eficácia limitada, insculpidas sob a forma de princípios, têm, sim, um espectro normativo dentro do qual o poder judiciário deve garantir o conteúdo jurídico mínimo, atribuindo-lhes eficácia positiva ou simétrica. Dentro dessa área normativa, a criação jurisprudencial do direito é legitimada democraticamente em nome da força normativa da Constituição e da efetividade dos direitos fundamentais. A eficácia vedativa de retrocesso e a eficácia interpretativa Para além da eficácia negativa, vale agora examinar a chamada eficácia vedativa de retrocesso, assim definida pelo autor ut supra: A vedação do retrocesso, por fim, é uma derivação da eficácia negativa, particularmente ligada aos princípios que envolvem os direitos fundamentais. Ela pressupõe que esses princípios sejam concretizados através de normas infraconstitucionais (isto é: frequentemente, os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio de legislação ordinária) e que, com base no direito constitucional em vigor, um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva ampliação dos direitos fundamentais. Partindo desses pressupostos, o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é: a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 25 quando se revoga uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar. Não se trata, é bom observar, da substituição de uma forma de atingir o fim constitu- cional por outra, que se entenda mais apropriada. A questão que se põe é a da revogação pura e simples da norma infraconstitucional, pela qual o legislador esvazia o comando constitucional, exatamente como se dispusesse contra ele diretamente. A atribuição aos princípios constitucionais das modalidades de eficácia descritas acima tem contribuído decisivamente para a construção de sua normatividade. Entretanto, como indicado em vários momentos no texto, essas modalidades de eficácia somente podem produzir o resultado a que se destinam se forem acompanhadas da identificação cuidadosa dos efeitos pretendidos pelos princípios e das condutas que realizem o fim indicado pelo princípio ou que preservem o bem jurídico por ele protegido.15 De tudo se vê, por conseguinte, a relevância da eficácia vedativa de retrocesso na proteção dos direitos fundamentais, em especial os de segunda dimensão que geralmente são modelados com textura aberta e apenas indicando um fim ou programa a seguir. O aluno deve observar com atenção que a eficácia vedativa de retrocesso não impede que o legislador ordinário modifique uma lei infraconstitucional que regulamenta um direito constitucional, uma vez que está constitucionalmente autorizado a fazê-lo de acordo com sua própria discricionariedade; com rigor, o que eficácia vedativa de retrocesso faz é impedir a mera revogação da antiga lei infraconstitucional regulamentadora sem que haja sua substituição por uma outra qualquer. Em outras palavras, o legislador ordinário não está proibido de trocar uma lei regulamentadora de um direito fundamental por outra lei, o que ela não pode fazer é revogar uma lei sem colocar outra em seu lugar, deixando um vazio 15 Idem, p. 44-45. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 26 legislativo que antes não existia. Em suma, a eficácia vedativa de retrocesso simplesmente veda a revogação da lei sem que haja sua substituição por outra. Esta é a sua importância para a proteção dos direitos fundamentais carentes de regulamentação legislativa superveniente. Prosseguindo o estudo das modalidades de eficácia dos princípios jurídicos, propomos, em seguida, investigar a eficácia interpretativa,uma vez que também tem caráter negativo. Mais uma vez, recorrendo ao magistério de Luís Roberto Barroso, temos: A eficácia interpretativa significa, muito singelamente, que se pode exigir do Judiciário que as normas de hierarquia inferior sejam interpretadas de acordo com as de hierarquia superior a que estão vinculadas. Isso acontece, e.g., entre leis e seus regulamentos e entre as normas constitucionais e a ordem infraconstitucional como um todo. A eficácia interpretativa poderá operar também dentro da própria Constituição, em relação aos princípios; embora eles não disponham de superioridade hierárquica sobre as demais normas constitucionais, é possível reconhecer-lhes uma ascendência axiológica sobre o texto constitucional em geral, até mesmo para dar unidade e harmonia ao sistema. A eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar a interpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente. 16 Com isso, acabamos de examinar as principais modalidades de eficácia dos princípios jurídicos em tempos de pós-positivismo, quais sejam: a) Eficácia negativa (do núcleo essencial das cláusulas pétreas e das demais normas constitucionais); 16 Idem, p.42-43. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 27 b) Eficácia positiva ou simétrica; c) Eficácia vedativa de retrocesso; d) Eficácia interpretativa. Em tempos de dogmática pós-positivista, não basta apenas considerar se a norma é regra ou princípio jurídico, se é de eficácia plena ou limitada, se é ou não é norma programática, o importante é compreender que há que se perquirir o valor embutido no princípio constitucional e, mais do que isso, é preciso atribuir-lhe normatividade autônoma. Com isso, o modelo interpretativo pós-positivista ganha densidade científica para solucionar os casos difíceis, que projetam a colisão de normas constitucionais de mesma hierarquia. Atividade proposta A intensificação da atuação de juízes e tribunais pode ser identificada em diversas causas, dentre as quais: I. A visão lassalleana de constituição real advinda dos fatores reais de poder. II. A imposição de imperatividade vinculante às normas constitucionais, reconhecendo-lhes o status de norma jurídica, que, no direito brasileiro, surge com a doutrina da efetividade. III. Em decorrência do reconhecimento da força normativa da Constituição, abre-se o caminho em direção à plena efetividade dos direitos fundamentais de primeira dimensão, isto é, os direitos negativos de defesa. Estão corretas: a) ( ) I e II; b) ( ) II; c) ( ) I e III; DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 28 d) ( ) III; e) ( ) I, II e III. Exercícios de fixação Questão 1 São diferenças dogmáticas entre o positivismo e o pós-positivismo: a) ( ) O pós-positivismo é formado por um sistema de princípios jurídicos e regras jurídicas enquanto que o positivismo jurídico é formado por um sistema de regras jurídicas; b) ( ) O pós-positivismo é formado por um sistema de regras jurídicas enquanto que o positivismo jurídico é formado por um sistema de princípios jurídicos e regras indicativas; c) ( ) O pós-positivismo é formado por um sistema de princípios indicativos e regras jurídicas aplicadas mediante ponderação, enquanto que o positivismo jurídico é formado por um sistema de princípios aplicados mediante subsunção; d) ( ) O pós-positivismo é formado por um sistema de regras jurídicas enquanto que o positivismo jurídico é formado por um sistema de princípios jurídicos. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 29 Questão 2 Leia o trecho abaixo: “O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição; e b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de interpretação constitucional.” (Prova de aptidão acadêmica para a seleção do curso de mestrado em Direito Público da UERJ). A partir da leitura acima, analise as assertivas abaixo: I. A teoria canotilhiana da Constituição-Dirigente defende o retorno ao arquétipo constitucional pré-weimariano de estatalidade mínima. II. A busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição, é a característica marcante do pensamento normativista estrito. III. A doutrina da efetividade difundiu a tese de que os direitos constitucionais, e em especial os direitos fundamentais, não podem ser restringidos a ponto de se tornarem invólucros normativos vazios de efetividade. IV. O método hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse defende que toda e qualquer norma constitucional deve ter reconhecida sua “pretensão de eficácia”, simbolizando, pois, sua força normativa. Somente é CORRETO o que afirma em: a) ( ) I e III; b) ( ) II e IV; c) ( ) III e IV; d) ( ) I, II e IV. e) ( ) II, III e IV DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 30 Questão 3 Analise as assertivas abaixo e assinale a resposta CORRETA: I. A eficácia vedativa de retrocesso impede a revogação de normas que, regulamentando o princípio constitucional, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. II. Por eficácia nuclear negativa deve-se entender a capacidade de a norma constitucional produzir diretamente os efeitos jurídicos no mundo dos fatos, em consonância com o fim constitucional para o qual foi concebida, sem necessidade de intermediação de quem quer que seja. a) ( ) As duas assertivas são falsas; b) ( ) A assertiva I é verdadeira e a assertiva II é falsa; c) ( ) Ambas as assertivas são verdadeiras; d) ( ) A assertiva I é falsa e a assertiva II é verdadeira. Questão 4 Assinale a alternativa INCORRETA: a) Não existe relação de hierarquia entre normas constitucionais in abstracto; b) É característica dos princípios constitucionais a sua aplicabilidade mediante uma dimensão de peso a partir de um caso concreto; c) A qualificação de "comandos de otimização” imprime aos princípios jurídicos a perspectiva de poderem ser cumpridos em diferentes graus, de acordo com as possibilidades reais e jurídicas do caso concreto; DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 31 d) Os princípios não têm eficácia, pois dependem sempre da intervenção superveniente do legislador democrático. Questão 5 Marque a assertiva correta: a) ( ) Enquanto os princípios são "comandos de definição", as regras são “comandos de otimização”; b) ( ) Os princípios e as regras são "comandos de otimização"; c) ( ) Enquanto os princípios são "comandos de otimização", as regras são “comandos de definição”; d) ( ) As regras e os princípios são “comandos de definição”. Referências ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy Livraria Editora e Distribuidora, 2001. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Rio de janeiro: Malheiros, 2004. Prefácio feito pelo Ministro Eros Grau. BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ______. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003. CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. ______. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. 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Questão 2: C Justificativa: As alternativas I e II estão erradas, pois a teoria canotilhiana da Constituição-Dirigente defende o arquétipo constitucional welfarista de estatalidade positiva, bem como a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa de que a força normativa da Constituição não é característica do pensamento normativista estrito e, sim, da dogmática pós-positivista. Questão 3: B Justificativa: Somente a alternativa II está incorreta, pois não é a eficácia nuclear negativa, mas, sim, a eficácia positiva ou simétrica que projeta a capacidade de a norma constitucional produzir diretamente os efeitos DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 4 34 jurídicos no mundo dos fatos, em consonância com o fim constitucional para o qual foi concebida, sem necessidade de intermediação de quem quer que seja. Questão 4: D Justificativa: Somente a alternativa D está incorreta, pois sob a égide da dogmática pós-positivista, os princípios têm eficácia positiva ou simétrica referente ao núcleo essencial sem a necessidade de atuação do legislador democrático. Questão 5: C Somente a alternativa C está correta, ou seja, os princípios são "comandos de otimização" aplicados uma dimensão de peso, enquanto que as regras são “comandos de definição” aplicadas de modo tudo ou nada.
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