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Autoras: Profa. Siomara Ferrite Pereira Pacheco Profa. Ana Lúcia Machado da Silva Colaboradoras: Profa. Cielo Griselda Festino Profa. Tânia Sandroni Gramática Aplicada da Língua Portuguesa Professoras conteudistas: Siomara Ferrite Pereira Pacheco / Ana Lúcia Machado da Silva Siomara Ferrite Pereira Pacheco Doutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora de disciplinas ligadas à área de Língua Portuguesa. Além da experiência no nível superior, já lecionou no ensino básico, tanto em escolas particulares quanto em escola pública. Participa de bancas de correção como as do Enem e do Enade. Ana Lúcia Machado da Silva Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora na Universidade Paulista (UNIP) de disciplinas ligadas à área de língua portuguesa. Além da experiência no nível superior, já lecionou no ensino básico, tanto em escolas particulares quanto em escola pública, e ministra aulas em cursos de especialização de pós-graduação. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. U511.33 – 21 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P116 Pacheco, Siomara Ferrite Pereira Gramática Aplicada da Língua Portuguesa. / Siomara Ferrite Pereira Pacheco, Ana Lúcia Machado da Silva. - São Paulo: Editora Sol, 2021. 128 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Gramática 2. Norma 3. Variedade Linguística I. Silva, Ana Lúcia Machado da. II. Título. CDU 801.5 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Ricardo Duarte Elaine Pires Sumário Gramática Aplicada da Língua Portuguesa APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 LINGUAGEM, LÍNGUA E NOÇÃO DE SISTEMA ...................................................................................... 11 2 A INVENÇÃO DA GRAMÁTICA ................................................................................................................... 18 3 ESTRUTURA DA GRAMÁTICA TRADICIONAL ......................................................................................... 28 3.1 Fonética e fonologia ........................................................................................................................... 29 3.2 Morfologia............................................................................................................................................... 30 3.3 Sintaxe ...................................................................................................................................................... 35 3.4 Semântica ................................................................................................................................................ 37 3.5 Estilística .................................................................................................................................................. 40 4 TIPOS DE GRAMÁTICA ................................................................................................................................... 43 4.1 Gramáticas da língua: normativa, descritiva e internalizada ............................................ 44 Unidade II 5 CONCEITO DE NORMA E GRAMÁTICA .................................................................................................... 53 6 NÍVEIS DA LINGUAGEM E REGISTROS .................................................................................................... 61 6.1 Variação dialetal ................................................................................................................................... 62 6.2 Variação de registro ............................................................................................................................. 68 Unidade III 7 NORMA CULTA ................................................................................................................................................. 80 7.1 Estudo gramatical: uso da norma culta na expressão escrita ........................................... 80 7.1.1 Pronomes ................................................................................................................................................... 81 7.1.2 Tempos verbais ......................................................................................................................................... 88 7.1.3 Concordância nominal ........................................................................................................................ 89 7.1.4 Concordância verbal ............................................................................................................................. 91 7.1.5 Constituintes da frase ........................................................................................................................... 99 7.1.6 Grafia das palavras ...............................................................................................................................101 8 ESTUDO CRÍTICO DA METODOLOGIA DE ENSINO-APRENDIZAGEM DA GRAMÁTICA NORMATIVA EM SALA DE AULA ..................................................................................................................104 7 APRESENTAÇÃO Caro aluno e leitor, A nossa disciplina tem como foco a gramática, entretanto é preciso compreendê-la de modo amplo e sem as restrições que advêm do preconceito social. Por isso, iniciaremos com definições como a de linguagem/língua, de sistema, de norma e de fala. Além dessas definições, veremos os níveis de linguagem e os registros da língua, assim como observaremos normas do padrão culto que devem ser seguidas na produção de textos, ampliando nossos conhecimentos linguísticos. É preciso também refletir sobre o ensino da língua portuguesa e os aspectos relevantes da metodologia de ensino dessa disciplina, entendendo-a como uma área ampla e complexa, que necessita ser vista com maior atenção por aqueles que estão se preparando para ser profissionais nela. Como objetivos gerais, temos: • Propiciar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da competência linguística. • Aprimorar a intelecção e a produção de textos. • Introduzir a reflexão e o estudo de questões relevantes ao ensino-aprendizagem da língua materna. Para atingirmos nossos objetivos gerais, temos por objetivos específicos: • Desenvolver a habilidade de observação e de análise das estruturas e dos processos sintático-semânticos na organização de textos em diferentes tipologias. • Aprimorar o conhecimento da gramática em seus diferentes registros. • Refletir sobre a metodologia de ensino da gramática da língua materna, direcionando-apara a conscientização do emprego adequado das diversas possibilidades ou modalidades de uso. Assim, nosso conteúdo programático consiste em: • Linguagem, sistema, língua e fala. • Divisões da gramática e disciplinas afins. Âmbitos de estudo da gramática (fonologia, morfologia, sintaxe e semântica). • Conceito de norma-padrão e desvios, conceito de gramática normativa e de gramática descritiva, e outros conceitos. 8 • Descrição da língua portuguesa em seus aspectos morfológicos: formação de palavras; processos de derivação e composição; classes de palavras. • Níveis de linguagem. Registros. Norma culta. • Estudo gramatical: casos produtivos da norma culta para a expressão escrita do texto. • Emprego de pronomes; uso dos tempos verbais; concordância nominal e verbal; regência nominal e verbal; colocação ou ordem dos termos na oração e das orações no período e seus efeitos estilísticos. • Estudo crítico da metodologia de ensino-aprendizagem da gramática normativa em sala de aula. Além de acompanhar o conteúdo teórico deste material e fazer os exercícios, leia também obras sugeridas na bibliografia (indicada no final do livro-texto) para ampliar seu conhecimento. Bom estudo! INTRODUÇÃO Na escola, em aulas de língua portuguesa, aprendemos gramática como um conjunto de regras difíceis de memorizar. Por exemplo: • A crase é usada antes de palavra feminina, mas não antes de palavra masculina. • O verbo anteposto ao sujeito pode concordar com o núcleo do sujeito mais próximo. • O pronome relativo “onde” faz referência e substitui termo anterior indicador de lugar. Devido à dificuldade em lembrar as regras, muitas pessoas passam a acreditar que não conhecem a própria língua. Na verdade, elas confundem a gramática com a língua. A língua – seja a portuguesa, a espanhola, a tâmul, a guarani ou outra entre tantas existentes – é aprendida desde a infância. Se a gramática é um livro cheio de regras, a língua é um sistema, cuja estrutura e funcionamento são aprendidos de maneira espontânea na convivência com outros usuários de determinada língua. Como outros sistemas de comunicação, a língua constitui a linguagem, a qual faz parte da capacidade humana. Assim, percorreremos a noção de linguagem como conjunto de sistemas, entre eles o da língua, até chegar à invenção da gramática. Esta disciplina tem por objetivo principal desmitificar os conceitos que se tem sobre a gramática, tornando-a um instrumento de construção do conhecimento linguístico para aquele que quiser saber mais acerca da sua própria língua, e não a apresentar como um instrumento de tortura, como muitas vezes tem sido feito na Educação Básica. Por isso, iniciaremos este material tratando de conceitos 9 referentes à gramática, para que possamos pensá-la em sua forma plural, até chegarmos às questões da norma de prestígio, selecionada como padrão de uso do falante que deseja ser reconhecido socialmente. É importante observar que, enquanto estudante do curso de Letras, você está sendo preparado para formar outras pessoas que também terão contato com essas questões e, portanto, lhe caberá a responsabilidade de desvendar os mistérios que assombram o mundo da gramática e acabam desestimulando o interesse dos nossos jovens no estudo da língua portuguesa. Para encerrar a introdução, lançamos a você alguns desafios, que poderão ser respondidos durante a leitura deste livro-texto. Desafios: • Você sabia que a gramática que aprendemos na escola é apenas um tipo entre vários outros existentes? Você sabe quantos tipos de gramática existem? • Qual tipo de gramática é tradicionalmente ensinado nas escolas de ensino básico? • Qual é a diferença entre saber português e saber gramática? • Entre os conteúdos de ensino de gramática, constatamos o ensino de verbo. Como o verbo pode ser abordado no ensino de: — gramática normativa? — variação da língua? • A gramática normativa tem como foco o uso culto e padrão da língua. Em que essa gramática se diferencia da gramática de uso quanto ao português culto falado? 11 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA Unidade I 1 LINGUAGEM, LÍNGUA E NOÇÃO DE SISTEMA Caro aluno, você é uma dessas pessoas que declaram “Não sei português”, mesmo falando a língua portuguesa desde bebê? Se a resposta for positiva, você está confundindo a língua portuguesa com o livro de gramática. Se a resposta for negativa, você sabe que a língua é um sistema da linguagem, aprendido de maneira natural e espontânea. Enfim, precisamos entender o que é linguagem e língua para diferenciá-las da gramática. Comecemos pela definição de Fiorin (2013, p. 15): a linguagem “é a capacidade específica da espécie humana de se comunicar por meio de signos”. Essa definição envolve vários fatores. O primeiro é sobre a “capacidade humana”, significando uma distinção entre os animais humanos e os animais não humanos, sendo os primeiros os únicos a possuir linguagem. Essa capacidade significa também que a linguagem é um traço genético, ou seja, está na condição físico-biológica e cognitiva de cada pessoa. Assim como o ser humano tem necessidade de comer, dormir etc., igualmente tem de se comunicar; porém, ao contrário dessas outras necessidades, a linguagem deve ser aprendida, porque ela não se manifesta de forma natural, mas cultural. Outro fator importante é referente à comunicação. A linguagem possibilita a comunicação, que consiste na interação entre, no mínimo, dois indivíduos. Nesse caso, a linguagem tem função social, que marca a relação entre as pessoas e a identidade do grupo do qual elas fazem parte. Por fim, a definição de linguagem remete a signos. A linguagem consiste em um conjunto de signos; ou, em outras palavras, a manifestação da linguagem pode ocorrer de diversas maneiras. A linguagem abarca um número maior de signos do que aquele referente à língua. Podemos esquematizar isso do seguinte modo: Língua Cor Gesto Movimento Expressão fisionômica Sinais etc. Linguagem Figura 1 12 Unidade I A linguagem oferece diversos signos para a mesma informação. Por exemplo, para informar que se deve parar, temos, entre outros: • a palavra “pare” – língua (escrita/oral) como linguagem; • a cor vermelha no semáforo – cor como linguagem; • um sinal de apito – ruído como linguagem; • o ato de abrir a palma da mão – gesto como linguagem. Podemos expressar uma ideia de várias formas, ou seja, por diversos signos: a língua (oral e escrita), o gesto, a cor, os sinais (matemáticos, químicos, de trânsito etc.), o corpo e a expressão facial, a escala musical, entre outros. Exemplo de aplicação 1. Identifique o que é linguagem: • cor amarela; • cor amarela em cartão na mão de um juiz de futebol; • conversa em língua portuguesa entre dois amigos; • mensagem com emoticon enviada por rede social; • poema escrito em língua alemã; • narrativa contada em língua guarani; • gesto de boas-vindas; • espirro; • ato de limpar o pó com a mão; • dança merengue; • quadro O grito, de Edvard Munch. 13 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA 2. A expressão fisionômica e a expressão corporal são signos. Assim, com base somente no que você observa, invente uma história sobre uma das pessoas mostradas a seguir. O texto deve ser uma breve narrativa, e não uma descrição. Figura 2 3. Observe que a informação “Entrada proibida” pode ser manifestada em diferentes linguagens: língua falada, língua escrita, sinal. É proibido entrar. É proibida a entrada Figura 3 Agora, é a sua vez. Com base na informação “Fazer silêncio”, varie o signo. 14 Unidade I Comentários Na atividade 1, os elementos – cor amarela, espirro e ato de limpar o pó com a mão – não são linguagem. A cor pela cor não constitui linguagem. Apenas quando tem um significado, tal como num cartão na mão de um juiz de futebol, a cor se torna linguagem. Nesse caso, não apenas a cor, mas um barulho e um gesto quaisquer também não representam linguagem, a não ser queestejam em contexto de comunicação e se assumam como um sistema de significado. A atividade 2 é sobre a linguagem constituída da expressão fisionômica, cujos significados podem ser de euforia, indiferença, dor, entre outros. Essa linguagem é extremamente usada em textos visuais (tirinha, charge, pintura) e por meio dela o autor consegue informar muito ao leitor. Em relação à atividade 3, você, aluno, pode desenhar, representar uma onomatopeia, uma fala (oral), entre outras maneiras de expressar o sentido “Fazer silêncio”. Saiba mais Há vários estudos sobre linguagem, entre eles: ÁVILA, B. O significado das cores. [s.d.]. E-book. Em texto leve e gostoso de ler, com muitos recursos visuais, o autor mostra significados das cores em diversas situações culturais. PIGNATARI, D. O que é comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1977. Apesar de não ser uma obra atual, continua sendo muito útil em relação à linguagem que constitui a poesia, não apenas a linguagem verbal (a língua), mas também a linguagem visual. RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. Paulo Ramos é linguista, especialista na linguagem visual das histórias em quadrinhos. Nesse livro, ele apresenta os elementos que constituem a linguagem dessas histórias. Além dessas linguagens, existem também as artificiais, usadas na lógica, na matemática e na computação. Essas linguagens igualmente são constituídas de um sistema de comunicação, mas sua elaboração é consciente, para que determinados saberes sejam desenvolvidos. 15 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA Afinal, o que é sistema? O sistema que permeia a linguagem é complexo, composto de outros subsistemas também complexos, resultado da relação biocognitiva, social e cultural. Por ser um sistema, a linguagem possui não apenas uma estrutura – aspectos formais –, mas também uma produção de sentido na interação entre os sujeitos. Isso significa que, da interação, surgem padrões de sentido devido à dinamicidade nas práticas sociais de linguagem. As características do sistema da linguagem são: • Multiplicidade: de sujeitos de uma comunidade. • Dinamicidade: do sistema, sempre em processo de mudança. • Não linearidade: dos efeitos do uso da linguagem, os quais podem ser desproporcionais às suas causas. • Adaptação: do comportamento dos sujeitos devido às experiências de linguagem em interações anteriores. • Multimodalidade: das diversas formas de manifestação. Cada signo – língua, cor, gesto etc. – tem um sistema próprio, o qual é constituído por partes que se relacionam para seu funcionamento. No caso da língua, é um sistema que se manifesta oralmente, ou seja, por meio de sons (fonemas). A espécie humana nasce com a capacidade de aprender uma língua, pois o corpo humano possui aparelho fonador, que permite distinguir os sons de determinada língua e produzi-los. Observação O aparelho fonador abrange desde os pulmões, de onde sai o ar, que propaga os sons da fala, até a cavidade nasal, uma vez que o ar pode sair pela boca, mas também pelo nariz. Sistema respiratório (pulmões, músculos pulmonares, brônquios, traqueia) Sistema articulatório (faringe, língua, nariz, palato, dentes, lábios) Sistema fonatório (laringe, onde está a glote) Figura 4 – Aparelho fonador 16 Unidade I Qualquer falante nativo da língua portuguesa não terá dificuldade em entender sequências fonéticas como estas: • /desdedeze~bro/ • /dɛsdedeze~bro/ A separação das palavras somente ocorre na escrita, porque na fala nós as unimos. Assim, nas sequências mostradas, temos as seguintes frases: • Desde dezembro. • Dez de dezembro. Na fala, a única diferença entre as sequências fonéticas é /e/, som fechado, na palavra “desde” e /ɛ/, som aberto, na palavra “dez”. Nosso aparelho fonador é treinado desde que somos bebês para distinguir os fonemas abertos /ɛ/ e / c/ dos fechados /e/ e /o/. Conseguimos distinguir /avo/ de /av c/ (avô/avó), /sede/ de /sɛde/ (sede/cede de “ceder”) e outras ocorrências da língua em que há diferença entre os fonemas fechados e abertos. Os adultos não nos ensinaram de maneira formal e consciente essa diferença fonética; cada um de nós aprendeu de modo intuitivo e espontâneo. Observação A aprendizagem natural ocorre com qualquer língua, sem distinção. Esta disciplina focaliza a língua portuguesa, mas o processo de conhecimento se dá igualmente com os falantes de outras línguas. Outro nível da língua, além da fonética, é a morfologia. Nesse nível, aprendemos as palavras e sua formação. Uma criança e um adulto podem confundir os sufixos “-ção” e “-mento”, trocando um por outro em final de palavra, mas eles sabem da existência desses dois sufixos e, intuitivamente, sabem também que estão presentes em substantivos. Do mesmo modo, conseguem criar palavras com os elementos estruturais existentes na língua. Por exemplo, o substantivo “sexta-feira” tornou-se verbo em “sextou”. O final de “sextou” é “-u”, elemento que marca quem praticou a ação no passado: “ligou”, “amarrou”, “vendeu”, e assim por diante. Qualquer forma de expressão pode ser considerada linguagem, ao passo que a língua é um código que pressupõe o uso de palavras e é organizado de acordo com a estrutura e as regras de cada grupo que o utiliza. Ao analisar tal código, pode-se observar que ele tem um sistema de funcionamento. A sintaxe é outro nível da língua. No uso do dia a dia, os falantes da língua portuguesa constroem orações como as seguintes: 17 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA • Você é desonesto. • Desonesto é você. Percebemos que a seleção das três palavras é a mesma nas duas orações, mas sua disposição é diferente, modificando o sentido de cada oração. Os falantes, em seu conhecimento intuitivo, usam a primeira construção para fazer uma afirmativa e a segunda para uma réplica. O sentido de um sufixo, de uma palavra, de uma oração faz parte do nível semântico da língua. Dependendo do contexto e de nossas intenções, escolhemos uma palavra em detrimento de outra (por exemplo, “bonita” em vez de “linda”; “assar carne” em vez de “fazer churrasco”), porque temos noção da diferença da intensidade da beleza entre as palavras “bonita” e “linda” ou do contexto do preparo da carne. Em torno dos 3 anos de idade, cada pessoa já conhece a língua de sua comunidade e consegue produzir os sons dela. Não apenas conhece os fonemas, mas também como eles podem ser combinados para formar palavras e como as palavras podem ser combinadas para formar orações. Em outros termos, a pessoa já conhece a própria língua. A linguagem, enfim, é essencial para o desenvolvimento humano. É uma capacidade que cada pessoa tem, mas só é constituída na interação social. Nesse sentido, de acordo com Geraldi (2006), desde a infância, nós nos apropriamos da linguagem – da língua, em especial – para usá-la em necessidades comunicativas específicas e a reconstruímos a cada interação. Desse processo de interação entre nós e o outro, passamos a ter consciência do mundo e de como cada situação interativa de comunicação é singular, determinada pelo contexto histórico e social, com suas interferências, controles e seleções. Vamos imaginar o seguinte: Sussu é uma criança de 3, 4 anos e, por isso, não pode sair sozinha para brincar. Em determinada tarde, ela não pede direta e explicitamente para a mãe que a deixe sair. Antes, apresenta argumentos sobre a necessidade de ar fresco e de vitamina solar na pele. Ela soube adequar a língua ao contexto, selecionou argumentos e recorreu à informação subentendida. Verificamos, então, um conhecimento implícito do uso da língua, desenvolvido nas interações sociais. As ações linguísticas dão-se na intenção de compreender a fala do outro e de nos fazer compreender pelo outro. Em consequência, essas ações são ditadas pelos objetivos pretendidos e, para alcançá-los, as práticas linguísticas precisam incidir sobre o outro. Na fala da criança Sussu, seu objetivo era sair de casa para brincar,e o que falou e o modo como usou a língua (pedido implícito, argumentos, seleção de palavras adequadas ao contexto) foram entendidos pela mãe. Lembrete O ser humano nasce com condições físico-biológicas para produzir os sons da fala, bem como com condições cognitivas de aprender determinada língua. 18 Unidade I Nessa perspectiva, a língua é entendida como um código social, portanto de natureza coletiva. Se esse código é de natureza social e/ou coletiva, ele obedece às leis do contrato estabelecido pelos integrantes do grupo social em que se instaura. Exemplo de aplicação Observe uma criança de 4, 5 anos e um adulto sem conhecimento escolar. Discuta: • São pessoas que sabem usar a língua portuguesa em diversas situações comunicativas? • Em algum momento você verificou um adulto corrigir a criança no uso da língua? Que tipo de correção? • Observou correção feita por um adulto sobre a disposição das palavras realizada pela criança? Por exemplo: a criança não sabe dispor artigo e substantivo, criando frases como “Mamãe, quero bola a”. • A experiência de vida de um adulto é bem mais extensa do que a de uma criança. Nesse caso, dê um exemplo de uso de língua feito pelo adulto que demonstra essa experiência. • Por fim, você continua achando que um falante natural da língua portuguesa não sabe a própria língua? Por quê? 2 A INVENÇÃO DA GRAMÁTICA Até este ponto do livro-texto, esperamos que você tenha percebido que, em razão de a linguagem ser uma capacidade nossa, humana, e ela se constituir de um sistema, todos os falantes naturais de uma língua já nascem com condições de aprender uma língua, e essa aprendizagem ocorre de maneira espontânea, pela convivência com os falantes de determinada língua. A linguagem e, por conseguinte, a língua sustentam-se em estrutura e regularidades de seu sistema. Essas regularidades são apreendidas pela pessoa desde bebê, e ela consegue treinar seu aparelho fonador para a pronúncia dos sons da língua, empregar determinadas palavras, fazer combinações adequadas de palavras nas orações, relacionar o sentido ao contexto. Em síntese, na infância a pessoa já conhece e usa sua língua. Por que, então, muitos brasileiros passam a acreditar que não conhecem a própria língua? Essa crença se intensifica no decorrer das interações sociais e pelo conhecimento de que existe um livro chamado gramática. Esse livro de gramática foi criado no século II a.C. na Grécia, fruto dos estudos realizados de textos da literatura de autores consagrados. Tais estudos serviram para catalogar o acervo e para estabelecer a obra-prima de cada um dos autores gregos clássicos. 19 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA De acordo com Faraco (2008), os estudos mostram a caracterização da língua manifestada nessas obras-primas: • Fonética: determinados aspectos da pronúncia da língua grega e da métrica. • Morfologia: as palavras identificadas por classes – nomes, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, conjunções etc. • Sintaxe: a estrutura da oração simples (abrangendo noções como sujeito, predicado, complemento e adjunto) e a distinção dos períodos compostos por coordenação e por subordinação. • Estilística: as figuras de linguagem. Com o tempo, esses estudos constituíram um ramo específico do conhecimento: a gramática. Foi Dionísio, o Trácio, o criador da primeira gramática. Ele fez descrições da língua grega e tornou seu livro de gramática um modelo para as gramáticas posteriores. Em Tekhné grammatiké [Arte da gramática], Dionísio apresenta apenas a fonética e a morfologia. Nessa gramática, oito classes gramaticais são listadas: • nome; • verbo; • particípio; • pronome; • artigo; • advérbio; • preposição; • conjunção. Para Dionísio, a gramática é o conhecimento empírico da língua usada nas obras dos escritores literários. Nesse caso, o exemplo de língua é a escrita, tornando-se o objeto do gramático, cujos objetivos foram descrever essa língua e estabelecer um modelo de uso de língua a ser seguido por todos os que escreviam. A língua grega apresentava ampla diversidade, dentro e fora da literatura, porém a língua encontrada nos textos dos grandes escritores foi escolhida como referência de ideal. Assim, essa gramática fundou 20 Unidade I uma tradição no mundo ocidental, persistindo em seu modelo durante os últimos milênios. Devido a essa tradição, seu papel na sociedade contemporânea continua sendo normativo. Essa gramática fundamentou as outras do mundo ocidental no que concerne: • à base, que é a língua dos autores consagrados; • às regras, que servem para falar e escrever corretamente; • à descrição da estrutura das sentenças (sintaxe); • à classificação das palavras com uma apresentação de sua morfologia flexional (conjugação dos verbos e declinação dos substantivos). A criação da gramática deve-se ao medo de a língua grega perder sua integridade, uma vez que os romanos estavam conquistando grande parte da Europa. Uma língua conquistada significa toda uma cultura (literatura, filosofia, medicina etc.) dominada e, muitas vezes, completamente subjugada. Nesse sentido, a invenção da gramática relaciona-se à ideologia política. No entanto, a elite do povo romano valorizou a cultura grega ao aprender a língua e conhecer a literatura e a própria gramática. Os romanos adaptaram o modelo gramatical à língua latina e deram continuidade à concepção normativa, fixando um modelo de latim com referência aos escritores consagrados. Varrão foi o criador da primeira gramática latina. Para esse autor, a gramática é “a arte de escrever e falar corretamente; e de compreender os poetas” (FARACO, 2008, p. 137). Nesse processo, a gramática passou a ser associada à pessoa culta – que segue determinados modelos de língua tanto ao falar em público quanto ao escrever – e tornou-se grande objeto do ensino de língua. Com finalidade pedagógica, várias gramáticas do latim foram criadas, porém a mais famosa foi a de Prisciano, que viveu no século VI d.C. Sua gramática foi a última a ser produzida e tornou-se grande modelo de gramática escolar. De forma geral, os gregos e os romanos produziram um conhecimento sobre a linguagem em três aspectos, sintetizados por Faraco (2008): • Criaram um vocabulário específico para falar sobre a língua. Esse vocabulário circula até hoje, apesar das dificuldades em entender os conceitos e das insuficiências empíricas. • Formularam perguntas fundamentais sobre a linguagem presentes até o momento nas pesquisas linguísticas e filosóficas. • Sistematizaram três direções para o estudo da língua. 21 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA Podemos afirmar que a gramática tradicional se estagnou desde Prisciano, porque não apresenta inovação nos conhecimentos sobre a língua. Por consequência, as gramáticas escolares não são significativamente renovadas na apresentação da língua. Saiba mais O percurso da gramática na história, de seu surgimento até a atualidade, e o modo como ela se tornou tradicional podem ser examinados em profundidade na obra da pesquisadora Rosa Silva. SILVA, R. M. Tradição gramatical e gramática tradicional. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2016. Esse modelo de gramática da língua latina perdurou durante a Idade Média na Europa ocidental, sendo considerado grande referência pedagógica. Nesse período, os estudos da língua eram realizados nos mosteiros e procuravam preservar o latim clássico, como língua de erudição. Os primeiros textos escritos nas novas línguas – formadas das diferentes variedades da língua latina popular falada, como o galego-português, o catalão e o francês – somente apareceram por volta do século IX d.C. O latim continuou a ser usado na escrita, mas progressivamente as línguas vernáculas foram adotadas pelos governos em substituição ao latim nos documentos oficiais. O início dos estudos gramaticais das línguas vernáculas ocorreu entre o século XV e o XVI, quando a sistematização da descrição dessas línguas passou a ser necessária.Um registro para referência normativa atenderia aos objetivos de unificação da língua por causa dos novos Estados centralizados. Ou seja, mais uma vez na história a gramática precisaria ser criada devido a motivos ideológico-políticos. Tratava-se do início das grandes colonizações. Assim, nesse período: • as primeiras gramáticas das línguas vernáculas foram criadas; • as primeiras propostas com vistas à fixação da ortografia foram feitas; • os primeiros dicionários foram organizados. Essas gramáticas seguiram o modelo das antigas gramáticas latinas, em especial a de Prisciano. Quadro 1 – As primeiras gramáticas 1450 1492 1530 1536 1537 1586 Itália Espanha França Portugal Alemanha Inglaterra 22 Unidade I Saiba mais Para conhecer mais sobre a gramatização, consultar o livro: AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Unicamp, 1992. A primeira gramática desse período foi a da língua castelhana. Seu autor, Antonio de Nebrija, publicou-a em 1492. Essa gramática atendeu, segundo o próprio autor, à “necessidade de se fixar uma língua enobrecida” (FARACO, 2008, p. 142), que seria difundida pelo império que começava a ser constituído. A Espanha iniciou seu empreendimento colonial – subvencionando a primeira viagem de Colombo em direção ao oeste – no mesmo ano da publicação da gramática. Quanto à língua portuguesa, sua primeira gramática foi criada em 1536, quando Portugal ainda estava no auge político como potência marítima e mercantil. Figura 5 – Capa da primeira gramática da língua portuguesa, Grammatica da lingoagem portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira A mais famosa das primeiras gramáticas é a de João de Barros, publicada em 1540. Conforme o autor, gramática é um “vocábulo grego: quer dizer ciência de letras. E segundo a definição que lhe deram os gramáticos, é um modo certo e justo de falar e escrever, colhido do uso e da autoridade dos barões doutos” (FARACO, 2008, p. 143). 23 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA João de Barros recuperou a tradição grega sobre “o modo certo e justo de falar e escrever”. O gramático também ampliou a referência gramatical: ele não se restringiu ao uso da língua de escritores literários e recorreu ao uso dos letrados em geral. Os primeiros gramáticos da língua portuguesa procuraram contribuir para fixar um padrão de língua para os novos Estados centralizados. No Brasil, esse modelo foi fixado nas práticas pedagógicas dos jesuítas, resultando em um ensino elitista e artificial da língua materna. Na opinião do linguista Faraco (2008), formou-se um ensino de língua baseado no normativismo e na gramatiquice. Até o fim do século XIX, esse modelo insistiu em apontar os pretensos erros de língua e em dizer como os brasileiros deveriam falar e escrever. Um exemplo evidente está no uso dos pronomes pessoais. As gramáticas indicavam como emprego correto dos pronomes aquele ocorrido até o começo do século XIV. A partir desse período, o sistema pronominal do português alterou-se profundamente, mas as gramáticas insistiam em um uso de séculos atrás, sem atualizar o registro dessas mudanças. No Brasil atual, temos gramáticas de autores renomados e respeitados. Entre essas gramáticas da língua portuguesa, encontram-se: • BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 32. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988. • CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017. • LUFT, C. P. Moderna gramática brasileira. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1981. • ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. 47. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Não podemos confundir a gramática – milenar, histórica, tradicional – com outras publicações atuais. Uma gramática tradicional é constituída por fonética, morfologia, sintaxe, podendo também tratar de semântica e estilística. Contém conceitos com exemplos retirados de livros literários, mas não apresenta exercícios. No mercado editorial, há muitas publicações com o título de gramática, mas que são na verdade manuais didáticos com exercícios. Seus autores podem ou não ser especialistas na nossa área e sempre precisam se basear na obra de gramáticos verdadeiros. Por exemplo: • CEGALLA, D. P. Novíssima gramática da língua portuguesa. 48. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2012. • MESQUITA, R. M. Gramática da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1994. • SARGENTIM, H. Gramática didática da língua portuguesa. São Paulo: Ibep, [s.d.]. 24 Unidade I Existem, também, os livros didáticos adotados nas escolas, que são divididos em leitura de texto, exercícios de interpretação, apresentação de conteúdo de gramática com exercícios e proposta de redação. Seus autores podem ou não ser da nossa área e não têm autonomia para tratar de gramática, devendo buscar os verdadeiros gramáticos para ter base em seus livros. Exemplo de aplicação 1. Faça um levantamento de livros de gramática que sua família tenha. Verifique se há: • uma gramática tradicional; • uma gramática com exercícios; • um livro didático que ofereça conteúdo de gramática. 2. Procure a bibliografia no final do livro de gramática com exercícios e/ou do livro didático. O autor buscou referência em qual obra de um verdadeiro gramático? O autor usou o mesmo exemplo do gramático ou criou outro exemplo? Fez citação de uma definição ou fez paráfrase? 3. Leia esta entrevista do gramático Evanildo Bechara, considerado um dos melhores gramáticos da língua portuguesa, e depois faça o que se pede. Senhor Norma Culta Evanildo Bechara defende que o aluno deva ser poliglota em sua própria língua. “Ninguém vai à praia de fraque ou de chinelo ao Municipal”, diz. Por Clara Becker Há coisas nas quais é difícil ser original: a primeira palavra que Evanildo Bechara falou foi “mãe”. “O registro mais antigo do vocábulo está no indo-europeu, antes disso não temos conhecimento”, ele explicou durante um almoço na Academia Brasileira de Letras. “A palavra veio do latim matrem. No francês temos mère; mother, no inglês; mutter, no alemão. Em quase todas as línguas, a palavra começa com a bilabial M, que nos obriga a juntar e abrir os lábios para pronunciá-la. Quando os bebês falam “mamãe”, talvez o que queiram mesmo é mamar.” Com 65 anos de magistério, o professor Evanildo Bechara ainda dá aulas, de análise sintática, na especialização em língua portuguesa do Liceu Literário Português, no Rio de Janeiro. Seu curso, carro-chefe da casa, é disputadíssimo por pós-graduandos no vernáculo – querem estar perto daquele que é tido pelos pares como um dos grandes filólogos, linguistas e gramáticos do idioma em que Camões chorou no exílio amargo. Todos os anos, ele recebe dezenas de convites para ser paraninfo Brasil afora e periferia adentro. Para surpresa de quem o convida, espanto dos colegas e às vezes contragosto da família, ele costuma 25 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA aceitá-los. Já foi ao Acre e a São Gonçalo, Mato Grosso e Nova Iguaçu, cumprir com o dever de prestigiar os jovens que militarão no magistério da última flor do Lácio. Constantemente, começa os discursos com a frase: “Bem-vindos à nau dos insensatos: só louco para ser professor de português no Brasil hoje”. Evanildo Cavalcante Bechara nasceu no Recife, em 26 de fevereiro de 1928. Filho primogênito do comerciante libanês João Bechara e da dona de casa maranhense Maria Izabel Cavalcante, foi criado para seguir a profissão do pai. Os estudos não eram valorizados em casa: a nota que desse para passar de ano bastava. Pequeno, acompanhava o pai em viagens para comprar tecidos, roupas femininas, brinquedos e outras mercadorias. Nessas expedições, usavam uma língua própria: “bom”, “barato”, “caro” e “não presta” eram falados em árabe para não ofender os interlocutores. Evanildo tinha 11 anos, andava de bicicleta com seu irmão Everaldo, quando Tatá, a empregada da casa, os chamou e avisou que o pai deles havia falecido.Maria Izabel, viúva aos 25 anos, não teve condições de ficar com todos os cinco filhos, e distribuiu os dois mais velhos. Numa manhã de abril de 1940, Bechara subiu a bordo do Itaité, rumo ao Rio. Seguia para a casa do tio-avô, Benedito Cavalcante, um capitão do Exército. Nos anos que se seguiram, o menino passou por outras tantas desavenças lexicais. Na escola, seu sotaque nordestino era motivo de chacota. “No Rio, o chiamento da pronúncia vem da influência dos portugueses quando a cidade era capital”, disse. “Como em Pernambuco nós não chiamos, eu era o diferente da turma.” Bechara não disse, contudo, que sofreu bullying. Por quê? Para o lexicógrafo, à diferença de “mangar”, “caçoar”, “zoar” e “bulir”, o traço distintivo de bullying – nuance que não permite que uma palavra seja sinônimo de outras do mesmo campo semântico – está no teor mais agressivo que o termo em inglês implica. “A palavra entrou na moda porque é nova, a sociedade é novidadeira, e a novidade faz parecer que o sentido da palavra é mais forte, fica mais apelativa”, explicou o gramático entre uma garfada e outra de picadinho com ovo e farofa, no restaurante da Academia Brasileira de Letras. Pediu feijão, mas não havia. Aos 83 anos, Bechara tem excelentes apetite e memória. Decora até os nomes dos filhos das garçonetes dos restaurantes dos quais é freguês, e é sempre recebido com beijinhos e abraços. Não vi ninguém que o cumprimentasse sem lhe tocar o ombro ou passar as mãos em volta da cintura. Bechara mantém os ombros largos e o peito aberto da sua infância de nadador, quando foi campeão de natação pelo Náutico, no Recife. A idade e a vaidade só se notam nos ralos cabelos que lhe restam, devidamente tingidos. Sua fala eloquente, sempre acompanhada de gestos com as mãos, ainda guarda um sotaque quase imperceptível, desbastado da exuberância regional. Ele integra a Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, que, entre outras missões, faz um dicionário ortoépico. Bechara explicou: “A ortoépia ensina a articular bem os fonemas – se se fala obéso ou obêso. Toda língua tem variações, em primeiro lugar no tempo, e depois diferenças regionais, sociais e de estilo, conforme o uso mais ou menos culto. Quando fazemos um trabalho normativo desse tipo, levantamos os fatos da língua exemplar. Não é correção”. 26 Unidade I “Antigamente, colocavam-se vários dicionários na mesa e as pessoas copiavam como se lhes conviesse, mas hoje fazemos um levantamento de milhões de ocorrências e vemos as variações semânticas dentro do contexto de uso”, explicou. “No Brasil, ainda engatinhamos na lexicografia. O Dicionário Houaiss conta com 250 mil vocábulos. Já o Oxford, com 600 mil palavras, é excelente: só para a letra C há um volume inteiro. A letra C, na maioria das línguas, é a que tem o maior número de palavras.” Bechara ficou felicíssimo com a recente conclusão do levantamento do léxico de Machado de Assis. “Os lusíadas foram escritos com 5 mil palavras, a Bíblia com 7 mil”, disse. “Nós imaginávamos que iríamos encontrar não mais de 4 mil palavras nas obras completas de Machado. Quando você o lê, dificilmente tem que abrir o dicionário, ele usa um vocabulário comum. É diferente de um Euclides da Cunha, um Coelho Neto ou um Rui Barbosa, que escreveram em um momento da estilística nacional em que se expressar bem era usar palavras difíceis”, contou. O resultado do levantamento mostrou, no entanto, que Machado utilizou 16 mil palavras diferentes. “Que surpresa boa, menina”, disse, orgulhoso da riqueza do seu escritor dileto. Bechara aprendeu português no Colégio Leverger, instituto educacional modesto no Méier, cujo dono era um coronel amigo do tio-avô capitão. Teve como ferramenta de aprendizado a gramática de Eduardo Carlos Pereira, que, vinte anos mais tarde, seria convidado a atualizar. “Trabalhávamos a gramática de Pereira de cabo a rabo, sabíamos passagens de cabeça”, contou. Mas a disciplina que mais gostava era a matemática, pois queria seguir carreira militar como engenheiro aeronáutico. Um de seus programas prediletos era visitar o aeroclube do Campo dos Afonsos. Não foram penas perdidas. “Estudando matemática disciplinei meu pensamento”, avaliou. Como precisava mandar dinheiro para a mãe e os irmãos que ficaram no Recife, passou a dar aulas particulares. Oferecia lições de matemática, mas só lhe apareciam alunos de português e latim, as disciplinas que mais reprovavam. Não podia se dar ao luxo de recusá-los, e então se dedicou aos estudos daquela que é esplendor e sepultura. Certo dia, ao ajudar o tio-avô na faxina da garagem topou com Lexicologia do português histórico, de Manuel Said Ali, um dos maiores sintaxistas da língua portuguesa. Terminada a limpeza, o menino correu para o quarto e começou a leitura. “Quando li a primeira frase do prefácio, soube que, como dizia Dante, Said seria Il mio autore”, contou Bechara. O prefácio começava com: “Não estudo a língua separada do homem que a fala”. Leu-as todas as obras de Said Ali. Mas “um belo dia eu tive dificuldade no entendimento de um texto e precisei falar com o autor”. No viço da mocidade, e cheio de iniciativa, procurou Said Ali no catálogo de telefones. Ligou, apresentou-se como admirador de seus livros e pediu um encontro para sanar dúvidas. No dia combinado, pôs a melhor farda colegial, pegou um trem do Méier até a Central do Brasil e de lá seguiu a pé até a rua da Glória. “Apareceu um homem que parecia um sultão com barbas longas, tendo ao lado uma cachorrinha preta com quem só falava em alemão”, lembrou-se. Bechara e Said Ali conversaram longamente, tarde adentro. O menino contou que desejava ser professor de português. O mestre lhe indagou se tinha alguma coisa escrita. Bechara contou que escrevia um trabalhinho, em rascunho, inspirado na leitura do próprio Said Ali. 27 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA Passado algum tempo, numa sexta-feira, dia de encerar a casa, Bechara estava com a enceradeira para lá e para cá, quando o telefone tocou. Era da casa de Said Ali, pedindo que ele fosse lá, no dia seguinte. No sábado, o pupilo recebeu um elogio austero: “Para sua idade, achei bom o trabalho que o senhor fez”. Veio então o presente: “Está vendo aquela pilha de livros ali? São seus. À medida que o senhor for lendo, vá levando-os”. A pilha media mais de 1 metro e incluía Diogo do Couto, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e outros de jaez excelso. Eça e Machado eram o que a torre tinha de mais recente. Durante 12 anos, até a morte de Said Ali, aos 91, Bechara frequentou a casa do professor. Trabalhavam em traduções do alemão, ou estudavam os antigos. Said Ali lia em voz alta, e frequentemente se interrompia para fazer comentários filológicos do texto, elucidando a história de palavras. Perguntado sobre quantas línguas fala, Bechara respondeu: “Só português, mal e parcamente”. Modéstia à parte, disse que para uso pessoal tem o português, o inglês, o francês e o alemão. Consegue ler em todas as línguas românicas, que são dez. “Do Ocidente para o Oriente, excluindo os dialetos, temos o português, o galego, o espanhol, o catalão, o francês, o provençal, o italiano, o dalmático, o reto-românico e o romeno”, explicou apontando no ar, como se estivesse mostrando as regiões em um mapa. O bom conhecimento de grego e latim, disse, facilitou o aprendizado. “Em árabe, não leio, mas sei xingar muito porque era o que as avós mais faziam”, brincou. Em 1946, quando começou a dar aulas, não havia concurso público para escolas, os cargos eram todos preenchidos por indicação. “Como não tinha ninguém que me indicasse, sabia que teria de estudar o dobro”, contou. Para o primeiro concurso que prestou – para a cátedra de língua portuguesa no Colégio Pedro II, em 1954 –, escreveu a tese Evolução do pensamento concessivo no português. Boatos se espalharam de que Bechara teria plagiado um trabalho de Said Ali. Os 20 e poucos anos do rapaz não condiziam com a bibliografia fora de órbita que apresentara.Quando veio o exame escrito, tirou dez com todos os arguidores. O boato então mudou: o espírito de Said Ali havia feito a prova. Em 1961, a Companhia Editora Nacional propôs a Bechara que escrevesse um capítulo para atualizar a Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira, publicada em 1910. “Quando eu apresentei o capítulo, que também incluía os estudos americanos adiantados sobre fonêmica e fonologia, viram que eu tinha feito um novo livro, já não era mais o Pereira”, contou. “Pediram então que eu escrevesse a minha própria gramática.” A Moderna gramática, dedicada a Said Ali, está na 37ª edição. Só a edição de 1999 teve mais de vinte reimpressões. Na década de 1980, o editor da Nacional disse a Bechara que a gramática já havia vendido mais de 2 milhões de exemplares. “Só sei que eu não fiquei rico”, brincou o autor. Até o século XIX, as gramáticas eram mais normativas do que descritivas. No século seguinte, com Ferdinand de Saussure, a linguística adquiriu proeminência, e a ênfase foi para o estudo interno e a descrição das línguas, feitos com base na oposição de diferenças e semelhanças, de sintagmas e paradigmas, de significados e significantes – foi o primado do método estrutural. 28 Unidade I A língua falada, supostamente espontânea e livre, passou cada vez mais a ser objeto de estudo científico, enquanto a gramática era tida como dogmática e conservadora. Baseada num corpus literário de escolha subjetiva – o cânone dos grandes autores, sem fundamento científico –, dizia-se que a gramática impunha uma língua artificial e elitista, fora do uso comum. Consolidaram-se, assim, estereótipos. Enquanto o linguista era vinculado à ideia de liberdade, o gramático simbolizava a opressão. Todo o falar seria legítimo, não existiria certo ou errado, desde que o falante se fizesse entender. A correção seria uma violência a jeitos diferentes de falar do aluno. A posição de Bechara é a de que os grandes escritores depuram e aperfeiçoam a língua, não aceitam qualquer influência popular ou aderem a modas. Eles desbastam os excessos e os caprichos, e é neles que se encontra o “deve ser” da língua. Ele defende que o aluno deva ser poliglota em sua própria língua. “Ninguém vai à praia de fraque ou de chinelo ao Municipal”, disse. “As pessoas têm de saber adequar o registro linguístico à situação, de modo que aprender a norma culta seria somar e não substituir uma variedade da língua.” Para não haver confusão, no entanto, acha que nas escolas se deva ensinar tão somente a norma culta, sem relativismos que venham a deixar crianças e adolescentes em dúvida. Adaptado de: Becker (2011). • Você já conhecia Bechara por meio de sua gramática? A leitura dessa entrevista trouxe novidades sobre esse notório gramático? • Faça uma síntese em forma de esquema, separando informações sobre o gramático Bechara, seu conhecimento gramatical, e sobre o uso da língua. • Tire trechos da entrevista que mostram que Bechara é um especialista nos estudos da língua. Comentário Essa atividade serve para distinguir o que é gramática de fato de outros livros, que têm o mesmo título, mas cujos autores não são especialistas na área. 3 ESTRUTURA DA GRAMÁTICA TRADICIONAL Sabemos que toda língua tem uma estrutura – a sua gramática. Esta, por sua vez, ao registrar e descrever os aspectos de uma língua em particular, costuma tratar de vários itens, usualmente organizados em diferentes níveis. Identificamos, assim, a fonética, a fonologia, a morfologia, a sintaxe, a semântica e a estilística. Vamos à conceituação básica de cada um desses níveis. 29 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA • Fonética e fonologia: são o nível de descrição da linguagem em que encontramos os sons que fazem parte do sistema linguístico, tendo cada um sua função no sistema comunicativo. Também cuida de aspectos relacionados à divisão silábica, à ortografia e à acentuação de palavras, de acordo com o padrão culto da língua. Aborda o aspecto fônico e tem como unidade básica de estudo o fonema. • Morfologia: é o nível de análise linguística que se ocupa do estudo das palavras, de sua formação, de sua classificação e de suas flexões. Estuda palavras que pertencem a grupos bem diferentes: substantivo, artigo, adjetivo, numeral, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição. • Sintaxe: é o estudo das combinações e relações entre as palavras de um enunciado e entre as frases de um texto. • Semântica: é definida, de maneira genérica, como o estudo do sentido das palavras e dos enunciados. • Estilística: é o estudo dos aspectos afetivos que envolvem e caracterizam a linguagem emotiva, que perpassa todos os fatos da língua. Vejamos, a seguir, como o sujeito trabalha com elementos próprios de cada um desses níveis de organização linguística, a fim de obter os efeitos de sentido que deseja. 3.1 Fonética e fonologia Existe uma parte da fonologia que trata da pronúncia adequada das palavras, segundo o padrão culto da língua: a ortofonia, que, para efeito de estudo, costuma se dividir em ortoépia e prosódia. • Ortoépia: trata da correta pronúncia dos fonemas das palavras. • Prosódia: trata da acentuação (acento da fala) e da entoação adequada dos fonemas. Algumas palavras de nossa língua causam dúvidas quanto à sílaba tônica. Veja algumas das infrações mais frequentes de pronúncia, tomando-se como referência o padrão culto da língua. • São oxítonas: Nobel, refém, ruim, sutil, ureter. • São paroxítonas: âmbar, avaro, ciclope, clímax, filantropo, fluido (“ui” ditongo), fortuito (“ui” ditongo), gratuito (“ui” ditongo), ibero, libido, pudico, rubrica. 30 Unidade I Observação Acentuação refere-se à sílaba tônica das palavras. Em português, a maioria das palavras é paroxítona: “caneta”, “mesa”, “cotidiano”, “leitura”, e assim por diante. Há palavras que sofrem alteração em sua acentuação, sendo uma delas “rubrica”. Em vez de os falantes destacarem a penúltima sílaba, “rubrica”, destacam a antepenúltima, “rubrica”. • São proparoxítonas: aeródromo, arquétipo, autóctone, barbárie, boêmia, condômino, etíope, ínterim. • Admitem dupla prosódia: acrobata ou acróbata, ambrósia ou ambrosia, hieróglifo ou hieroglifo, homília ou homilia, Madagáscar ou Madagascar (mais comum), Oceânia ou Oceania, projétil ou projetil. Observação Vogal é o fonema produzido pelo ar que faz vibrar as cordas vocais e que não encontra obstáculo na sua passagem pelo aparelho fonador. Semivogal é fonema produzido como vogal, mas pronunciado com baixa intensidade, como se fosse uma consoante. Veja: s a u d a d e / b o i |w| |y| v sv v sv Consoante é o fonema em cuja produção o ar encontra obstáculo na passagem pelo aparelho fonador. Palavra é a unidade linguística de som e significado que entra na composição dos enunciados da língua. 3.2 Morfologia Além de recursos expressivos no nível fonológico, podemos também encontrar recursos expressivos morfológicos. Observemos o poema “Tensão”, de Augusto de Campos. 31 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA Figura 6 – Poema “Tensão”, de Augusto de Campos A morfologia é o nível de análise linguística que se ocupa do estudo das palavras, de sua formação, de sua classificação e de suas flexões. As palavras, assim, não constituem unidades indivisíveis. Elas, na maioria das vezes, decompõem-se em elementos menores: os radicais. Em nossa língua há palavras formadas apenas por radical (“sol”, por exemplo) e palavras constituídas de radical e afixos (in + feliz + mente). Há dois processos básicos de formação de novas palavras: a derivação e a composição. No primeiro, acrescenta-se um afixo (prefixo e sufixo). Já no segundo, ao menos dois radicais formam um novo, as palavras compostas. Observe: I Pedro, pedra, pedreira, pedrinha, pedregulho, apedrejar, empedrar. II Desfazer, desaparecer, desmontar, desenrolar, desapropriar. Felizmente, docemente, delicadamente, atualmente, calmamente Em I, temos, em destaque, o radical ao qual se acrescentou,em cada caso, um elemento distinto, responsável pelas diferenças de significação entre as palavras. Já em II, o prefixo “des-” e o sufixo “-mente” foram acrescentados a radicais diferentes, determinando, em cada caso, um sentido específico para as palavras. Assim como podemos explorar os recursos fonológicos da língua, também é possível explorar seus recursos morfológicos para obter efeitos de sentido particulares. Observe o que fez Millôr Fernandes num texto em que cria neologismos engraçados a partir da combinação de elementos mórficos da língua. 32 Unidade I Dicionovário (palavras que precisam ser inventadas) • Abacatimento: redução no preço do abacate. • Abensuado: louvado cristãmente por ter feito um grande esforço físico. • Abrilgar: dar morada em abril. • Altaração: modificação no oratório. • Anãofabeto: pequenininho que nem sabe assinar o nome. • Anthepático: sujeito desagradável porque sofre do fígado. • Assassinatura: a rubrica de um criminoso de morte. • Cálcoolar: dosar a batida. • Caligrafeia: letra ruim. • Calvício: mania de estar ficando careca. • Cãodência: um latido rítmico. • Capetão: oficial diabólico. • Cartomente: uma adivinha que nunca diz a verdade. • Comemoriação: festa em regozijo por ter boa memória. • Difaculdade: empecilho para entrar na academia. • Dozistência: uma dúzia de pessoas que não querem mais. • Equilébrio: o balanço do bêbado. • Fãtigado: admirador cansado. • Filhosofia: sabedoria do descendente. • Fronthospício: fachada do manicômio. • Instintor: aparelho para aplacar as nossas ânsias. • Larbuta: o trabalho doméstico. • Martrapilho: marinheiro muito malvestido. • Miltidão: uma reunião de mais de 999 pessoas. • Nortícia: informação vinda do Norte. • Novocábulo: uma palavra deste dicionovário. • Pavãoroso: ave horrorosa da família dos galináceos. 33 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA • Repulgnante: pulga nojenta. • Sacrotário: um auxiliar de igreja que é facilmente enganável. • Soltão: dono de harém, mas inteiramente livre de compromissos. • Velhocidade: pressa do ancião. • Xalafrário: governador persa safado. Fonte: Fernandes (s.d.). Note, por exemplo, que em “calvício” o autor trabalha com duas palavras da nossa língua, “calvo” e “vício”, e explora o fato de que uma delas, “calvo”, termina com uma sílaba iniciada pela consoante V, e a outra, “vício”, tem em sua primeira sílaba a mesma consoante. A partir dessa coincidência fonológica, junta as duas palavras e forma uma nova, “calvício”, com o sentido que se propõe: “mania de estar ficando careca”. Apesar de essa palavra não existir em nossa língua, somos obrigados a reconhecer o humor presente nessa surpreendente criação. Nos processos de derivação, quando há acréscimo apenas de prefixo, o processo é denominado prefixação ou derivação prefixal (in + feliz = infeliz). Quando se acrescenta apenas sufixo, denomina-se sufixação ou derivação sufixal (feliz + mente = felizmente). Também é possível acrescentar tanto sufixo quanto prefixo, o que corresponde a dois tipos diferentes de derivação. Um é denominado prefixação e sufixação (derivação prefixal e sufixal), e o outro é chamado parassíntese (derivação parassintética). A diferença é que, no primeiro processo, o de prefixação e sufixação, a ideia é que houve primeiro uma e depois a outra. Por isso, podemos separar a palavra em duas outras que tenham sentido. Por exemplo, “infelizmente” pode ser desmembrada em “infeliz” e “felizmente”. Já na parassíntese isso não ocorre. Por exemplo, “amanhecer” não pode ser decomposta em duas palavras que tenham significado no léxico. Daí a noção de que ambos (prefixo e sufixo) foram acrescentados simultaneamente. A parassíntese é um processo bastante utilizado na formação de verbos, principalmente os que representam mudança de estado, como “endurecer”, “amadurecer”, “anoitecer” e “escurecer”. Existe ainda a derivação regressiva ou deverbal, em que há redução de morfemas na palavra. Por exemplo, de “falar” obtemos “fala”. São normalmente verbos que originam substantivos abstratos. A derivação imprópria é assim denominada porque há mudança de classe gramatical da palavra. Por exemplo, se dizemos “O meu viver é repleto de alegria”, podemos observar a derivação imprópria em “viver”, pois o determinante “meu” transformou “viver” de verbo em substantivo, ou seja, na organização sintática há mudança de classe da palavra, e esta passa a nomear uma ação por meio da classe que não lhe é habitual, o substantivo, no lugar da mais comum, o verbo. 34 Unidade I No processo de composição, como vimos, juntam-se ao menos dois radicais para formar uma nova palavra, denominada palavra composta. Isso pode ocorrer pela simples justaposição ou pela aglutinação desses radicais. Por exemplo, “malmequer” é uma palavra composta por justaposição, enquanto “fidalgo” (filho de algo) é composta por aglutinação. Para sabermos se houve aglutinação de radicais, é preciso conhecermos as palavras primitivas que formaram a palavra. Disso podemos nos inteirar por meio de um dicionário, principalmente o do tipo etimológico. Saiba mais Com a nova ortografia, depois da realização do acordo ortográfico entre os países lusófonos, houve mudança nas regras do hífen em palavras compostas. Portanto, consulte um material específico que trate desse assunto. Sugerimos os seguintes: AZEREDO, J. C. (coord.). Escrevendo pela nova ortografia: como usar as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. São Paulo: Instituto Antônio Houaiss; Publifolha, 2008. BECHARA, E. O que muda com o novo acordo ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. Além desses processos básicos de formação de palavras na língua portuguesa, há outros recursos que produzem novas palavras em nosso léxico. É o caso da abreviação (foto, moto, micro), da reduplicação (nenê, Zezé), da sigla (INSS, CNH, CPF, RG), assim como do neologismo. Ao selecionar as palavras, o usuário da língua deve considerar não apenas o sentido e a função que assumem na frase, mas também sua forma, isto é, sua respectiva classe gramatical: substantivo, adjetivo, verbo, pronome, advérbio etc. O agrupamento das palavras de acordo com sua forma deve ser feito observando-se a função sintática que elas assumem nas frases. Observe a seguinte construção: • Eu não posso ver ninguém passando mal e “devolvendo” o que comeu porque tenho estômago fraco. A palavra “fraco”, por exemplo, pode pertencer a mais de uma classe gramatical. No enunciado, “fraco” é um adjetivo, caracterizando o substantivo “estômago”. Já num outro contexto, como “O fraco mostrou-se arrependido ao final da batalha”, “fraco” é substantivo. 35 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA 3.3 Sintaxe Antes de tratarmos dos conceitos básicos da sintaxe, lembremos que as classes de palavras da língua portuguesa, combinadas sintaticamente, formam frases que constituirão o texto. A sintaxe é o estudo das combinações e relações entre as palavras de um enunciado e entre as frases de um texto. Assim, estudar a sintaxe de uma língua implica estudar as maneiras como se associam as palavras para formar frases. Os enunciados da língua constituem unidades linguísticas que têm uma estrutura, o que significa dizer que não podemos formar enunciados juntando palavras de maneira aleatória. Entender a noção de estrutura, em sintaxe, significa entender os modos pelos quais se podem combinar as palavras para construir estruturas autorizadas pela língua. Para ilustrar isso, considere o seguinte enunciado: • Na última semana, André, meu vizinho, foi o vencedor do campeonato estadual de tênis, em Campinas. Veja que é possível alterar a ordem dos termos constituintes desse enunciado. • Em Campinas, André, meu vizinho, foi o vencedor do campeonato estadual de tênis, na última semana. • Em Campinas, na última semana, André, meu vizinho, foi o vencedor do campeonato estadual de tênis. • André, meu vizinho, foi o vencedor do campeonato estadual detênis, em Campinas, na última semana. • Meu vizinho, André, na última semana, foi o vencedor do campeonato estadual de tênis, em Campinas. Certamente, esses exemplos não esgotam as possibilidades de alteração aceitáveis na ordem dos constituintes do enunciado. No entanto, há modificações nessa ordem que são impossíveis na língua portuguesa. Com esses mesmos elementos, não seria aceitável dizer o seguinte: • Foi campeonato semana vizinho de estadual o meu Campinas André em última vencedor na tênis do. Apesar de reconhecermos todas as palavras, verificamos de imediato que tal combinação constitui um enunciado que não se realiza na língua portuguesa. Isso nos leva a entender, definitivamente, que as combinações são sempre reguladas por uma sintaxe, que define as ordens possíveis dos elementos lexicais no interior de estruturas sintáticas. Daí a importância desse estudo. 36 Unidade I Fazer a análise sintática dos enunciados da língua passa, necessariamente, pelo reconhecimento das estruturas sintáticas e pelo estudo das relações e funções dos termos que as constituem. Sem a compreensão clara dessas noções básicas, de nada adianta decorar termos, conceitos e regras e tentar aplicá-los aos exercícios de análise. Devemos lembrar que a nossa língua tem um padrão SVC (sujeito – verbo – complemento), e tudo que fugir a esse padrão não se encontra na ordem direta. É preciso observar se a ordem usada não modificou o sentido e, se foi o caso, até que ponto isso aconteceu. Temos ainda de estar atentos aos elementos discutidos na sequência. Frase é a unidade de texto que, numa situação de comunicação, é capaz de transmitir um pensamento completo. A frase pode ser curta ou longa e pode ou não conter verbo. Observe: • Socorro! • Atenção! • Choveu todo o fim de semana. Oração é o enunciado que se organiza em torno de um verbo. Na oração há sempre a relação sujeito/predicado. • O ferimento provocou uma inflamação no organismo. • A plateia não questionou o palestrante durante o evento. Período é o enunciado constituído de uma ou mais orações. • “Sonhei que estava sonhando/ e que no meu sonho havia/ um outro sonho esculpido” (ANDRADE, 2012, p. 32). Intencionalmente, pode-se inverter a sintaxe em um texto. Por exemplo, o autor pode colocar em primeiro lugar o objeto, se a intenção for focalizá-lo. Veja: • A moral, o homem não preservou naquele momento. No exemplo, o elemento “a moral” é complemento do verbo “preservou”. Entretanto, na organização da oração, ele foi colocado em primeiro lugar, invertendo-se a ordem direta. Esse processo é chamado de topicalização. Também pode ocorrer, principalmente em textos mais informais, o uso da clivagem. Por exemplo: 37 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA • Foi aquele garoto que comentou o fato. A construção “Foi… que…” é denominada clivagem. Esses processos, de topicalização e clivagem, são utilizados para dar ênfase a determinado termo na oração. Aí se encontram a riqueza da língua e a capacidade humana de lidar com ela. 3.4 Semântica A semântica é definida, de maneira genérica, como o estudo do sentido das palavras e dos enunciados. Só atingimos o sentido dos enunciados linguísticos, em qualquer contexto, por meio de um exercício de interpretação, a partir do qual os possíveis significados das palavras e de suas combinações são avaliados em situações específicas, na busca daquele que melhor se ajusta ao contexto de enunciação. Para exemplificar essas considerações, leia o enunciado a seguir, trecho de uma propaganda brasileira. • Toma que o BB é seu. A leitura desse enunciado, num primeiro momento, dá-nos uma impressão, no mínimo, estranha, pois a sigla BB rompe com o dito popular, no qual temos o enunciado “Toma que o filho é seu”. Observamos que a sonoridade da sigla foi usada como meio de produzir o significado de “bebê” no lugar de “filho”. Entretanto, a sigla representa a abreviatura do nome de um banco. É o que podemos observar no texto completo da propaganda. Figura 7 – Campanha publicitária do Banco do Brasil 38 Unidade I No contexto do anúncio publicitário, rapidamente recuperamos o sentido que nos parecia estranho ao tomar o texto isoladamente. A metáfora foi produzida pelo processo já descrito. Também há ambiguidade no uso do verbo “tomar”, pois podemos entender tanto como assumir a responsabilidade pelo bebê quanto como assumir o lugar de cliente desse banco. Como vemos, a compreensão é um processo ativo. Ela não depende apenas da palavra, mas do contexto em que está inserida. É com ele, e não com a palavra em si, que “negociamos” os significados. Diante de dada palavra, somamos as intenções do outro – o interlocutor – às nossas intenções, e somente aí produzimos significado. Observe: • Olha aí! Cuidado! O valor unicamente linguístico é insuficiente para completar a significação. É preciso recorrer também à situação da fala. O “objeto” do olhar pode ser algo perigoso perto do ouvinte – dependendo do lugar, uma pedra, um buraco, um abismo etc. De modo geral, as palavras e os enunciados de uma língua operam em dois eixos de significação: • Conotativo: sentido figurado, ampliado e modificado. • Denotativo: sentido literal, primeira significação atribuída à palavra nos dicionários. Em um diálogo entre os personagens Hagar e Sortudo, numa de suas viagens pelo mar, o primeiro solicita ao segundo que “dê corda”, com o intuito de que este lance a corda para que possam atracar, mas Sortudo entende que é para distrair o responsável pelo cais e inicia uma conversa banal, perguntando ao outro sobre uma mulher que o acompanhava na noite anterior. Hagar faz uso literal – denotativo – da palavra “corda”, mas Sortudo dá outra interpretação à mensagem: julga que “dar corda” significa distrair o responsável pelo cais. Utiliza, então, o sentido figurado – conotativo – da palavra “corda”. É exatamente nesse jogo de significação que se atinge o humor da tira. O usuário da língua – bem diferente do personagem – estabelece, desde cedo, uma relação natural entre esses dois eixos de significação, devido, em grande parte, ao fato de participarmos das mais diversas situações de interação comunicativa, prática que gradativamente nos leva a reconhecer que o sentido das palavras e expressões não é fixo e imutável. Ao contrário, define-se e torna-se preciso nos contextos específicos em que elas são empregadas. Veja como isso também ocorre em alguns provérbios populares, gênero de linguagem predominantemente conotativo. • Quem semeia vento colhe tempestade. (As pessoas devem arcar com as consequências dos próprios atos.) 39 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA • Mais vale um pássaro na mão do que dois voando. (É melhor contentar-se com o que já tem, sob risco de ficar sem nada.) • Pimenta nos olhos dos outros é refresco. (O sofrimento dos outros, em geral, não nos afeta.) Ressaltamos que, diferentemente dos estudos de fonologia, morfologia ou sintaxe, os estudos semânticos constituem uma área bastante complexa, pois tratam da relação entre as estruturas linguísticas e a sua significação. Esse fato leva-nos a ressaltar a importância deles nas aulas de língua materna. A linguagem – sistema de sinais convencionais que nos permite realizar atos de comunicação – lida com a atribuição de sentidos em todas as suas manifestações. Propiciar o estudo semântico passa a ser, certamente, um eixo fundamental na construção de uma prática pedagógica que pretenda favorecer a formação de leitores e escritores competentes. A gramática, enfim, tem uma tradição milenar, e os seus estudos foram adaptados a diversas línguas, incorporando noções, conceitos e parâmetros de áreas diferentes, como a filosofia e a lógica. Por consequência, a classificação das palavras, por exemplo, tem mais de um critério. Esses critérios são o semântico, o mórfico e o funcional. O critério semântico é aquele que analisa o vocábulo conforme o seu significado no mundo biossocial. O critério mórfico é aquele queanalisa as propriedades que as formas gramaticais podem apresentar. Por fim, o critério funcional propõe uma análise a partir da função ou do papel sintático que cabe ao vocábulo na sentença. Observe o quadro a seguir, baseado em Almeida (1999). Quadro 2 Classe de palavra Critério semântico Critério funcional Critério mórfico Substantivo Palavra que especifica substância, ou seja, coisa que tenha existência, ou animada (homem, cachorro, laranjeira) ou inanimada (casa, lápis, pedra), quer real (sol, automóvel), quer imaginária (Júpiter, sereia), quer concreta (casa), quer abstrata (pureza) Serve de núcleo do sujeito, do objeto direto, do objeto indireto e do agente da passiva Varia em gênero, número e grau Verbo Palavra que encerra ideia de ação (escrever, cortar, andar, ferir) ou estado (Pedro é bom) Exerce a função de núcleo do predicado, assim como o substantivo e o adjetivo. Essa função lhe é obrigatória na oração Varia em número, pessoa, modo, tempo, aspecto e voz Devido a essa multiplicidade de categorias para descrever a língua, a gramática tradicional passou a ser considerada, pelos especialistas da área da linguística, incongruente em muitos aspectos. 40 Unidade I Exemplo de aplicação Vamos fazer uma análise da gramática tradicional? Conhecê-la melhor? Tenha em mãos uma gramática. Não se esqueça: é A gramática, com A maiúsculo. Não queremos livro didático ou livro de gramática com exercícios. Queremos a verdadeira e original gramática. 1. A gramática tem uma tradição milenar e desde a sua primeira formulação (por Dionísio da Trácia, II a.C.) apresenta o conteúdo do menor elemento (fonema) ao maior elemento (oração). Com base nessa formulação primeira, verifique a disposição do conteúdo da gramática escolhida por meio do sumário. • Anote apenas os títulos gerais do sumário. • Indique conteúdo acrescentado pelos gramáticos. • Discuta sobre a quantidade de conteúdo e de páginas da gramática. 2. Na introdução das gramáticas, o autor estabelece o objetivo geral do seu livro. Pode ser objetivo político, conhecimento da própria língua, entre outros. Qual é o objetivo mais importante esclarecido pelo gramático cujo livro você tem em mãos? 3. Quando uma pessoa tem dúvida gramatical, pode consultar uma gramática. No entanto, por desconhecer a disposição do conteúdo nela, tem dificuldade em encontrar respostas. Em que ponto da gramática você pode tirar estas dúvidas: • O sufixo de determinada palavra é “-ção” ou “-mento”? • Qual é a classe de palavra de “e”? • Por que na expressão “era uma vez” o verbo ser fica no singular? 3.5 Estilística Observar a sonoridade de um texto ajuda a captar o sentido que se quis traduzir com a disposição de palavras e frases. Nos enunciados em geral – um poema, um texto em prosa, uma propaganda, uma história em quadrinhos etc. –, podemos encontrar sons que se repetem com maior frequência, aproximando a produção fonética do enunciado daquilo que ele sugere. Acompanhe este poema de Oswald de Andrade. 41 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA Relógio As coisas são As coisas vêm As coisas vão As coisas Vão e vêm Não em vão As horas Vão e vêm Não em vão. Fonte: Andrade e Ribeiro (2003, p. 55). No texto, o poeta “traduziu” o som e o movimento pendular do relógio pela utilização de determinadas combinações sonoras de palavras e, ainda, pela disposição delas no texto. Aliteração e assonância referem-se à repetição de um mesmo fonema. A repetição da mesma consoante ao longo do texto – a aliteração – provoca efeitos sonoros variados, conforme o caso. Observe este poema de Manuel Bandeira. Canção do vento e da minha vida O vento varria as folhas, O vento varria os frutos, O vento varria as flores... E a minha vida ficava Cada vez mais cheia De frutos, de flores, de folhas. O vento varria as luzes O vento varria as músicas, O vento varria os aromas… E a minha vida ficava Cada vez mais cheia De aromas, de estrelas, de cânticos. O vento varria os sonhos E varria as amizades… O vento varria as mulheres. E a minha vida ficava Cada vez mais cheia De afetos e de mulheres. 42 Unidade I O vento varria os meses E varria os teus sorrisos… O vento varria tudo! E a minha vida ficava Cada vez mais cheia De tudo. Fonte: Bandeira (1993, p. 175-176). Nesse poema, Bandeira explora um recurso expressivo fonológico para provocar o efeito desejado: a aliteração. A repetição dos fonemas /v/ e /f/ no início ou no meio de um significativo número de palavras permite que se associe o texto lido em voz alta ao som produzido pelo vento. De acordo com as teorias que descrevem a língua, o fonema representa a sonoridade, e a letra representa a grafia do som. Por isso, não devemos confundir ambos. Quando se trata de transcrição do fonema, este deve ser representado entre barras, como /s/ em “sol” ou /z/ em “casa”. Portanto, não devemos confundir letra com fonema, e vice-versa. Veja como ocorre a aliteração neste texto de Cecília Meireles, agora provocada pela repetição do fonema /k/. Colar de Carolina Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina. O colar de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina. E o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral nas colunas da colina. Fonte: Meireles (s.d.). A assonância é a repetição da mesma vogal no texto. Note a repetição do /a/ neste trecho da letra de “Clara”, de Caetano Veloso e Perinho Albuquerque (1968): “Quando a manhã madrugava/ Calma, alta, clara/ Clara morria de amor”. 43 GRAMÁTICA APLICADA DA LÍNGUA PORTUGUESA As onomatopeias, outro recurso fonológico, representam certos sons e ruídos produzidos por animais ou coisas, ou mesmo certos sons humanos. Têm como função “imitar” a realidade. O uso de onomatopeias é bastante comum nos quadrinhos e, muitas vezes, delas se extrai o pretendido efeito de humor. É comum encontrarmos expressões como “pof”, “paf” para indicar que um personagem está batendo no outro, ou, por exemplo, quando alguém está admirado ou em dúvida sobre algo, vermos “hum”. Enfim, há uma série de representações dos sons, muito frequentes em tipos de texto que se denominam história em quadrinhos. Observe onomatopeias traduzindo vozes de animais e sons das coisas: o “tique-taque” do relógio, o “marulho” das ondas, o “zunzunar” da abelha, o “arrulhar” dos pombos. Ortoépia e prosódia tratam, respectivamente, da pronúncia e da acentuação das palavras. No texto a seguir, temos exemplo de alteração de como pronunciamos as palavras. Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados. Fonte: Andrade (s.d.). O texto mostra algumas transformações fonéticas que as palavras podem sofrer na pronúncia de alguns falantes da língua. Veja, por exemplo, os pares “milho/mio”, “pior/pió”, “telha/teia”, “telhado/teiado”. Essas variações de pronúncia de uma palavra dependem de fatores de ordem social, regional, individual e estilística. 4 TIPOS DE GRAMÁTICA Você sabia que a gramática tradicional não é a única existente? Há outros tipos de gramática, apontados pela linguística, a qual se opõe aos estudos da gramática tradicional, na medida em que tem por objetivo descrever os mecanismos de funcionamento e uso da língua sem a preocupação de estabelecer um padrão e os desvios em relação a ele, o que é feito pela gramática tradicional. A primeira procura descrever e explicar os padrões sonoros, gramaticais e lexicais em uso, sem avaliar esse uso em relação a outro padrão, o que é feito pela segunda. Ao contrário do que se defende pelo senso comum, a linguística não é uma ciência que se opõe à gramática. Ela é a “ciência-mãe”, da qual se originaram outras vertentes, inclusive novos olhares para os estudos relacionados à gramática. 44 Unidade I 4.1 Gramáticas da língua: normativa, descritiva e internalizada Passemos, então, a conceituar a gramática, a fim de desmistificar