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Fármacos opioides 1- INTRODUÇÃO O ópio, substância original desse grupo farmacológico, é extraído da papoula, nome popular do Papaver somniferum, uma das muitas espécies da família das Papaveráceas, que se caracteriza por apresentar folhas solitárias e frutos capsulados. Vem sendo usado com finalidades sociais e medicinais há milhares de anos como agente promotor de euforia, analgesia e para evitar a diarreia. 2- CONTEXTO HISTÓRICO A primeira referência inquestionável ao ópio encontra-se nos escritos de Teofrasto, no século III AC. Os médicos árabes eram bem versados no uso do ópio; os comerciantes árabes introduziram a droga no Oriente, onde era empregado principalmente para o controle da disenteria. Em 1806, Frederich Sertürner, assistente de farmacêutico, descreveu o isolamento por cristalização de uma substância pura no ópio e a denominou morfina, em referência a Morfeu, o deus grego dos sonhos. Do mesmo modo que os seus notáveis efeitos benéficos, os efeitos colaterais tóxicos e o potencial de causar dependência dos opioides são também conhecidos há séculos. Durante a guerra civil americana, a administração da “alegria dos soldados” comumente causava a “doen ça dos soldados”, ou seja, a drogadição opioide desencadeada pela droga usada para controlar as dores crônicas causadas por feridas de guerra. Esses problemas estimularam a busca por analgésicos opioides sintéticos potentes, livres do potencial de causar dependência e outros efeitos colaterais. Em 1874, a descoberta inicial do produto sintético denominado heroína por C. R. Alder Wright em 1874 foi seguida de sua utilização disseminada como supressor da tosse e sedativo que, segundo se afirmava, não causava dependência. Infelizmente, a heroína e todos os compostos sintéticos subsequentes introduzidos na prática clínica compartilham as mesmas propriedades dos opioides clássicos, inclusive seu potencial de causar dependência. Até o início da década de 1970, os efeitos da morfina, da heroína e dos outros opioides como substâncias antinociceptivas e causadoras de dependência estavam bem descritas, mas os mecanismos responsáveis pela interação dos alcaloides opioides com os sistemas biológicos eram desconhecidos. Estudos fisiológicos in vitro e in vitro, que investigaram a farmacologia dos agonistas opiáceos, seus antagonistas e a tolerância cruzada geraram a hipótese da existência de três receptores opioides diferentes: mu (μ), kappa (κ) e delta (δ). A hipótese dos três receptores foi confirmada pela clonagem subsequente, que indicou a existência de três tipos principais de receptores na farmacologia dos opioides. Simultaneamente à identificação desses receptores opioides, Kostelitz e colaboradores identificaram um fator semelhante aos opiáceos endógenos, que denominaram de encefalina (“originada do cérebro”). Pouco depois, foram isoladas duas classes adicionais de peptídeos endógenos, que passaram a ser conhecidos como endorfinas e dinorfinas. 3- RELEMBRANDO A MODULAÇÃO DA DOR A modulação compreende um conjunto de mecanismos que atenuam ou amplificam os impulsos nociceptivos, podendo ocorrer a nível periférico ou central. Porém, é o corno posterior da espinhal medula o local mais importante onde se dá esta ação. A percepção consiste num conjunto de mecanismos cerebrais em que se discrimina, descodifica e se atribui significado ao fenômeno doloroso. Regulação Aferente: a dor provocada pela atividade dos nociceptores também pode ser reduzida pela atividade simultânea de mecanorreceptores de limiar baixo (fibras Aβ). Presumivelmente, esse é o motivo pelo qual você se sente melhor quando massageia a pele da sua canela logo após contundi-la. ↳ A teoria do portão da dor sugere que certos neurônios do corno dorsal, os quais projetam seus axônios pelo trato espinotalâmico, são excitados tanto por axônios sensoriais de grande diâmetro como por axônios não mielinizados. O neurônio de projeção também é inibido por um interneurônio, e o interneurônio é simultaneamente excitado pelo axônio sensorial calibroso e inibido pelo axônio nociceptivo. Por meio desse circuito, a atividade apenas do axônio nociceptivo resultaria em excitação máxima do neurônio de projeção, permitindo que os sinais nociceptivos cheguem ao encéfalo. Contudo, se os axônios de mecanorreceptores dispararem conjuntamente, eles ativarão o interneurônio que suprimirá a sinalização nociceptiva. 4- OPIOIDE X OPIÁCEO Opioide: qualquer substância, endógena ou sintética, que produza efeitos semelhantes aos da morfina e que sejam bloqueadas por antagonistas, como a naloxona. Opiáceos: compostos como a morfina e a codeína que são encontrados na papoula. 5- OPIOIDES ENDÓGENOS Opioide endógeno é uma molécula biológica presente no cérebro que atua por meio de um receptor opioide. Existem descritas várias famílias diferentes de peptídeos opioides endógenos, sendo os principais: as encefalinas, as endorfinas e as dinorfinas. Cada família tem em comum se originar de uma proteína precursora, respectivamente: pré-POMC, pré-proencefalina e pré- prodinorfina. Além disso, A maioria dos peptídeos opioides com atividade em determinado receptor compartilha da mesma sequência aminoterminal de Tir-Gli-Gli-Fen-(Met ou Leu), seguida de várias extensões C-terminais que formam peptídeos compostos de poucas ou muitas moléculas. 6- RECEPTORES OPIOIDES A proposta de que os opioides induzem analgesia e seus outros efeitos através da interação com receptores específicos surgiu pela primeira vez na década de 1950, e baseava-se nos requisitos estruturais e estereoquímicos específicos e essenciais para essa atividade. Entretanto, somente com o desenvolvimento de moléculas com atividade antagonista (p. ex., a naloxona) que a noção de um receptor específico foi aceita. Os três receptores opioides — δ, μ e κ — pertencem à família da rodopsina das GPCRs (receptores acoplados à proteína G) e estão amplamente distribuídos: cérebro, medula espinal, tecidos periféricos, vasos sanguíneos, coração, vias respiratórias/pulmões, intestino e em muitas células imunes/ inflamatórias fixas e circulantes. A ligação dos agonistas causa alterações conformacionais da GPCR e inicia o ciclo de ativação/inativação da proteína G. Os receptores μ, κ e δ ligam-se principalmente por meio das proteínas Gi /Go sensíveis à toxina pertussis (embora ocasionalmente também a Gs ou Gz). Com a ativação do receptor, o acoplamento Gi /Go desencadeia vários eventos intracelulares, inclusive: Inibição da atividade da adenililciclase Redução da abertura dos canais de Ca2+ controlados por voltagem Estimulação da corrente de K+ por vários canais, inclusive os canais de K+ retificadores internos ativados pelas proteínas G (GIRKs) Ativação da PKC e da PLC Ligantes agonistas: Quase todos os agonistas clinicamente úteis têm como alvo o receptor μ. Os ligantes que se ligam especificamente, mas têm pouca atividade intrínseca, são descritos como agonistas parciais. Um desses ligantes é buprenorfina. Ligantes antagonistas: Os antagonistas opioides utilizados normalmente, inclusive naloxona ou naltrexona, são pan-antagonistas com afinidade por todos os receptores opioides conhecidos. 7- A INIBIÇÃO DA PERCEPÇÃO DA DOR As vias descendentes controlam a transmissão de impulsos no corno posterior. Uma parte chave deste sistema descendente é a área cinzenta periaquedutal (CPA) do mesencéfalo. A CPA recebe impulsos de muitas outras regiões cerebrais, inclusive do hipotálamo, amígdala e córtex, sendo a principal via pela qual impulsos corticais e outros atuam sobre o controle da “comporta” no corno posterior. A CPA projeta-se primeiramente para o bulbo rostroventral e daí, por meio do funículo posterolateral da medula, para o corno posterior. Dois transmissores importantes são a serotonina e a encefalina, que atuamdiretamente ou por meio de interneurônios, inibindo a descarga de neurônios espinotalâmicos. A via inibitória descendente provavelmente é o local importante de ação para analgésicos opioides. CPA e SG são particularmente ricas em neurônios contendo encefalina, e os antagonistas, como a naloxona. Os interneurônios no corno dorsal liberam GABA que inibe a transmissão pelos terminais primários aferentes. Uma outra via a partir do locus coeruleus, a via noradrenérgica, apresenta efeito inibitório semelhante sobre a transmissão no corno dorsal. Surpreendentemente, os opioides inibem esta via em vez de ativá-la. 8 – MECANISMO DE AÇÃO DOS OPIOIDES Os 4 tipos de receptores opioides pertencem à família de receptores acoplados à proteína Gi/Go, portanto, os opioides exercem efeitos poderosos sobre os canais iônicos presentes na membrana neuronal por intermédio do acoplamento direto da proteína G ao canal. Em nível bioquímico, a ativação de um dos 4 receptores inibe a adenilato ciclase (AC), levando à ativação da MAP quinase. Assim, promovem abertura dos canais de potássio (K+) e inibem a abertura de canais de cálcio (Ca2+) controlados por voltagem. Esses efeitos causam uma hiperpolarização da membrana, fazendo com que seja menos provável que a célula dispare potenciais de ação, reduzindo liberação de transmissores. O efeito global, portanto, é inibitório no nível celular, mas aumentam a atividade em algumas vias neuronais (excitação de neurônios de projeção por supressão da atividade de interneurônios inibitórios). Os opioides promovem analgesia, em parte por ativarem essas vias descendentes, em parte por inibirem a transmissão no corno dorsal e em parte por inibirem a excitação das terminações nervosas sensitivas na periferia. 9 - EFEITOS DOS OPIOIDEIS A morfina é típica de muitos opioides analgésicos e será tomada como composto de referência. Os efeitos mais importantes da morfina ocorrem no SNC e no trato gastrintestinal, embora tenham sido descritos inúmeros efeitos de significância menor sobre muitos outros sistemas. ↳ Sobre o SNC • Analgesia: mediada, principalmente, pelos receptores μ. A ativação dos receptores δ resulta em analgesia, mas também pode ser pró-convulsivante. Os opioides são menos eficazes no tratamento da dor neuropática e em outros estados de dor crônica. • Euforia: mediada pelos receptores μ, enquanto a ativação dos receptores κ produz disforia e alucinações. Desse modo, diferentes opioides variam muito no grau de euforia que produzem. • Depressão respiratória: mediada por receptores μ, o efeito está associado à diminuição de sensibilidade do centro respiratório à PCO2 arterial e à inibição da geração de ritmo respiratório. A depressão respiratória pelos opioides não é acompanhada por depressão dos centros bulbares que controlam a função cardiovascular (diferentemente da ação dos anestésicos gerais e outros depressores do SNC). • Supressão da tosse: não se relaciona estreitamente com as ações analgésicas e depressoras dos opioides, e seu mecanismo no nível dos receptores não está claro. Em geral, aumentar a substituição no grupo hidroxila fenólico da morfina aumenta a atividade antitussígena em relação à atividade analgésica. A codeína e a folcodina suprimem a tosse em doses subanalgésica, porém causam constipação como efeito adverso. • Náuseas e vômitos: O local de ação é a área postrema (zona quimiorreceptora do gatilho), região do bulbo em que muitos tipos de estímulos químicos podem iniciar vômitos. Podem ser efeitos transitórios que desaparecem com a repetição da injeção ou persistir e limitar a adesão do paciente. • Constrição pupilar: causada por estimulação do núcleo do nervo oculomotor mediada pelos receptores μ e κ. Pupilas puntiformes são características importantes para diagnóstico na intoxicação por opioides, porque a maioria das outras causas de coma e depressão respiratória produz dilatação pupilar. ↳ Trato gastrointestinal • Constipação intestinal: decorrente do aumento do tônus e redução da motilidade gastrointestinal. É provável que seja mediada principalmente pelo plexo nervoso intramural. É parcialmente mediada também pela ação central, pois a injeção intracerebroventricular de morfina inibe os movimentos propulsivos gastrointestinais. O brometo de metilnaltrexona, o alvimopan e o naloxegol são opioides que não ultrapassam a barreira hematoencefálica e, portanto, apresentam menos efeitos adversos sobre o trato GI, sem reduzir a analgesia. • Retardo do esvaziamento gástrico: levando ao retardo da absorção, inclusive de outros fármacos. ↳ Outros efeitos • Urticária e prurido: a morfina promove liberação de histamina dos mastócitos por meio de ação não relacionada com os receptores de opioides. • Hipotensão e bradicardia: com doses elevadas da maioria dos opioides devido à ação sobre o bulbo. Além disso, a própria liberação de histamina pode contribuir para a hipotensão. • Efeitos no musculo liso: exceto no TGI, podem ocorrer espasmos uterinos, de bexiga e dos ureteres. • Imunossupressão: ainda não está clara esta correlação, mas se acredita que o uso abusivo dos opioides por longo tempo possa agravar deficiências imunitárias 10 - EFEITOS DAS ATIVAÇÕES AGUDA E CRÔNICA DOS RECEPTORES OPIOIDES Além do alívio pretendido da dor, a ocupação dos receptores opioides pelos agonistas durante intervalos curtos e longos resulta na perda do efeito, com propriedades bem definidas e relacionadas com o desenvolvimento de tolerância e dependência. • Dessensibilização: relacionada a uma ativação transitória (minutos a horas); a dessensibilização de curto prazo, provavelmente, envolve a fosforilação dos receptores, resultando no desacoplamento do receptor de sua proteína G ou na interiorização do receptor. Desaparece com evolução temporal paralela à depuração do agonista. • Tolerância: refere-se à redução da eficácia aparente do agonista opioide com sua administração contínua ou repetida (ao longo de dias ou semanas). É refletida pela redução do efeito máximo alcançável ou por um desvio da curva de dose-efeito para direita. Desaparece depois da remoção do agonista, ao longo de várias semanas. • Dependência: é uma condição de adaptação evidenciada por uma síndrome de abstinência desencadeada pela cessação da exposição à substância. Em nível orgânico, a abstinência dos opiáceos se evidencia por ativação somatomotora e autônoma significativas, refletida em agitação, hiperalgesia, hipertermia, hipertensão, diarreia, dilatação pupilar e secreção de quase todos os hormônios hipofisários e do córtex suprarrenal. Alguns analgésicos opioides, como codeína, buprenorfina e tramadol, têm muito menos probabilidade de causar dependência física ou psicológica. Os agonistas do receptor de ação longa, como a metadona e a buprenorfina, podem ser utilizados para aliviar os sintomas da síndrome de abstinência. • Adição: é um padrão comportamental caracterizado pelo uso compulsivo de uma substância. Os efeitos compensadores positivos dos opiáceos são considerados o componente motivador para a iniciação do uso ilícito dessas substâncias, à qual também está sujeito o mecanismo de tolerância. Dependência não é sinônimo de adição. Tolerância e dependência são reações fisiológicas encontradas em todos os pacientes, mas não preveem o desenvolvimento de adição
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