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DESCRIÇÃO Concepções de cultura alimentar; Compreensão dos conceitos de etnocentrismo, relativismo cultural, tabus, crenças e sistemas alimentares, e sua importância para o profissional da área da Nutrição. PROPÓSITO Compreender as concepções de cultura alimentar e as características dos sistemas alimentares é importante para sua formação, pois é necessário estar atento à diversidade cultural e aos conceitos, crenças e valores relativos à alimentação do seus pacientes/público- alvo para promover saúde e mudanças de hábitos alimentares de forma mais ética, eficiente e empática. OBJETIVOS MÓDULO 1 Definir o conceito de cultura MÓDULO 2 Reconhecer os mitos, os tabus e as crenças MÓDULO 3 Identificar os sistemas alimentares INTRODUÇÃO Neste tema, você vai compreender as diferentes concepções do conceito de cultura. A alimentação é um fenômeno biopsicossocial que vai muito além dos nutrientes. A alimentação tem uma dimensão biológica, que é aquela que estuda a ciência da Nutrição, entre outras. Mas, ela também tem um aspecto relacionado ao prazer, ao desejo de comer para satisfazer algo além da fome. Esta dimensão psicológica fica muito clara nos fenômenos de compulsão e nos transtornos do comportamento alimentar. A perspectiva social, por sua vez, compreende a função social da alimentação, os aspectos culturais etc. Por isso, dizemos que ela é um fato biopsicossocial. A cultura alimentar dos indivíduos molda as suas práticas e hábitos alimentares e a sua compreensão sobre o que é uma alimentação saudável. Tais aspectos culturais estão ligados à forma como o indivíduo se desenvolve no decorrer da sua existência. São crenças, valores e representações sobre a comida que definem a visão que as pessoas têm sobre a alimentação. Com objetivo de transformar comportamentos e promover saúde e bem-estar, o profissional da área de Nutrição deve estar em constante agenciamento com os aspectos culturais da alimentação de seus pacientes e/ou público-alvo. Para isso, ele precisa compreender a definição desse conceito e seus múltiplos desdobramentos. MÓDULO 1 Definir o conceito de cultura Fonte: Andrii Horulko/Shutterstock. CONCEITO DE CULTURA NA HISTÓRIA A palavra cultura vem do latim e significa cultivar, tratar (Ferreira, 1999). Com este mesmo significado da palavra em latim, cultura se refere a tudo que é cultivado pelo homem. Falamos em cultura de soja, em cultura de bactérias ou em cultura de subsistência. Esse conceito vem sendo discutido pelos homens desde a Antiguidade, com vários significados que são válidos até os dias de hoje. Cícero (106 – 43 a. C.), que foi cônsul da República romana, fala em cultura animi, que seria o cultivo do espírito, pois a alma era como um campo a ser cuidado. (Vannucchi, 2002) EM MEADOS DO SÉCULO XVI Esse significado vai ser utilizado na Renascença, opondo o homem culto aos animais e aos “bárbaros”. Durante o Iluminismo, cultura será o atributo daquele que tem propriedade em ciências, letras e artes (Rivière apud Boudon et al., 1990). Cultura ainda teve o significado de civilização no século XIX. Ainda hoje, utilizamos o vocábulo com essa acepção, mas cultura e civilização não têm o mesmo sentido. O termo civilização se consolida na Europa durante o século XVII. SÉCULO XVII Ele indica um certo estado de desenvolvimento, um acúmulo de progressos técnicos, intelectuais e sociais (Taylor apud Bonte; Izard, 1991). Ele se coloca como um ideal a ser alcançado pelos outros povos, e, com a pretensão de “civilizar” outros povos considerados menos evoluídos, se justificou cruéis expansões coloniais. Os civilizados também podem ser aqueles que se opõem aos primitivos ou selvagens. MAS, A PARTIR DO SÉCULO XIX A palavra cultura se tornará um termo central na Antropologia cultural, ciência que surge neste momento e vai, logo nos seus primórdios, definir este conceito. CONCEITO DE CULTURA NA ANTROPOLOGIA Antes mesmo de existir qualquer ciência que reflita sobre a cultura humana, no sentido que a Antropologia dá a esse termo, desde a Antiguidade, os homens já se surpreendiam com a visão de mundo de outros povos. Fonte: Jornal Beira do rio – UFPA / Foto: Shamara Fragoso. Roque de Barros Laraia A Antropologia cultural enquanto ciência surge no século XIX como resultado da expansão neocolonialista europeia em direção à Ásia e a África, que tinha como objetivo a expansão do capital, a busca de mão de obra e matérias-primas. Os pais fundadores da Antropologia vão organizar as informações que chegavam das colônias sobre aqueles povos exóticos, fundando, assim, a disciplina. Em um momento de expansão colonial, a definição do conceito de cultura auxiliava os europeus a conhecer os povos que eles estavam dominando. Todo o desenvolvimento teórico inicial da Antropologia se deu através do olhar do europeu sobre estes povos, que era quem impunha sua cultura a estes povos, subjugando-os (Santos, 2005). Nesse início da Antropologia o conceito de cultura é definido por um de seus pais fundadores, Edward Tylor (Tylor apud Laraia, 2007) da seguinte forma: Fonte: Archive. Capa do livro Primitive culture, de Edward Tylor. (...) TOMADA EM SEU AMPLO SENTIDO ETNOGRÁFICO, É ESTE TODO COMPLEXO QUE INCLUI CONHECIMENTOS, CRENÇAS, ARTE, MORAL, LEIS, COSTUMES OU QUALQUER OUTRA CAPACIDADE OU HÁBITOS ADQUIRIDOS PELO HOMEM COMO MEMBRO DE UMA SOCIEDADE. Tylor, 2007. A etnografia se refere ao trabalho de campo, o método por excelência da Antropologia, que será detalhado mais adiante. ATENÇÃO Esta definição é bastante ampla e define a cultura como algo que é inventado pelo homem, e não é ligado à sua biologia, mas transmitido entre os seres humanos através do aprendizado. Agora, tentaremos compreender melhor este conceito a partir da metodologia de DaMatta (1986), utilizada em um artigo de divulgação científica. Na pergunta presente no título do artigo, “Você tem cultura?”. O que significa esta palavra? Quando dizemos que fulano tem cultura e beltrano, não, cultura significa conhecimento. Um significado similar àquele da época do Iluminismo. O autor usa um procedimento muito eficiente para discutir um conceito que é tão complexo: Ele compara o seu sentido no senso comum e na Antropologia. Efetivamente, no senso comum, cultura significa conhecimento, sabedoria, inteligência etc. Mas este conceito também é usado para estabelecer diferenças hierárquicas entre as pessoas, como se aquelas que tivessem mais cultura fossem melhores do que as outras. Podemos ver isto claramente quando dizemos que os pobres não têm cultura. Na Antropologia, cultura significa o estilo de vida de um povo, a maneira específica como eles vivem. Podemos dizer também que a cultura é um conjunto de regras, um mapa ou uma receita que nos diz como devemos nos comportar e agir em sociedade. O que concluímos a partir daí é que, se enxergamos cultura do ponto de vista da Antropologia, não podemos dizer que existem homens sem cultura. A vida em sociedade implica a aquisição de cultura. ATENÇÃO Não se pode considerar também que existam culturas melhores ou piores, pois, quando falamos algo assim, estamos usando conceitos de melhor e pior, que são característicos da nossa cultura. Falamos em complexidade e em desenvolvimento tecnológico, mas não em desenvolvimento cultural. Em um país desigual como o nosso, pensar sobre cultura com o sentido que a Antropologia lhe atribui nos ajuda a descontruir preconceitos. O funk é uma manifestação cultural, assim como a música clássica. Da mesma forma, o samba e o balé clássico são danças. Não existe hierarquia entre manifestações culturais, elas somente são diferentes umas das outras. Fonte: A.PAES/Shutterstock. Reconhecer que existem culturas diferentes será importante na sua atuação profissional. Não se pode fazer julgamentos de valor sobre as crenças, valores, conceitos e hábitos dos seus pacientes ou do seu público-alvo. Veja algumas definições de Cultura citadaspor antropólogos: EDWARD TYLOR A primeira definição formal que foi dada acima, aquela de Edward Tylor, vê a cultura como um feixe de hábitos. Existem definições mais atuais, que dão mais dinamismo ao conceito. CLIFFORD GEERTZ Foi Geertz (1989) que disse que a cultura é “um conjunto de mecanismo de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam de ‘programas’) para governar o comportamento”. O autor pensa também que o homem, enquanto animal, depende desses mecanismos de forma muito importante. E nada disto faz parte da nossa biologia. São valores, crenças, hábitos e visões de mundo que são aprendidos pelos homens com seus semelhantes. RUTH BENEDICT Para finalizar esta seção, vamos refletir sobre a famosa metáfora de Benedict (2019) sobre o conceito de cultura. Ela diz que “cultura é uma lente através da qual vemos o mundo”. Essa comparação é muito pertinente, uma vez que ela indica que os homens veem o mundo através dos “óculos” de sua cultura, que é colado em seu rosto depois do nascimento. Cada cultura tem a sua lente, que serve somente para enxergar aquele modo de existir. Quando olhamos outras culturas com a nossa lente, as vemos desfoadas, feias, erradas. Fonte: wavebreakmedia/Shutterstock. CULTURAS OU SUBCULTURAS? Em uma sociedade complexa e multifacetada como a nossa, pertencemos a diferentes culturas. Há quem fale em várias subculturas dentro de uma cultura. (DaMatta, 1986) Mas devemos ficar atentos a este termo, pois ele pode significar que existe uma cultura maior que contém outras subculturas menores e menos importantes, o que dá uma visão equivocada das relações entre estas várias culturas. Mesmo assim, é um termo bastante utilizado nas Ciência Sociais. As “subculturas” são culturas à parte. Cada profissional participa da cultura da sua profissão. EXEMPLO Você está entrando em contato com a cultura da Nutrição. Os praticantes do candomblé vivem esta cultura especificamente, e os cristãos, budistas ou muçulmanos também vivem as culturas associadas a suas religiões. Se você faz dança de salão, joga vôlei na praia, ou frequenta uma academia, no momento em que você está nesses espaços, vê o mundo através da lente destas culturas. Quando você está trabalhando como nutricionista, usa uma roupa adequada, utiliza um vocabulário específico. Ao estudar os temas relativos à Nutrição, você, provavelmente, já está vendo o mundo através dessa lente, olhando com mais atenção os rótulos dos alimentos, buscando um equilíbrio maior na alimentação etc. Da mesma forma, quando alguém está lutando capoeira, ou num baile funk, a lente se ajusta a essas culturas. Na capoeira, há uma vestimenta específica, jargões, os instrumentos, a música. No funk, ocorre a mesma coisa, com roupas e danças específicas, conversas, paqueras etc., que representam esta cultura. Portanto, na contemporaneidade, pertencemos aos mais variados grupos culturais e nos identificamos de diferentes formas com cada um deles. Mas, mesmo com todas as culturas se equivalendo, existem culturas que estão em desacordo com a lei e com nossos valores que desejamos extinguir. Por exemplo, aquelas culturas que representam um atentado à dignidade da pessoa humana, princípio de nossas leis. Que culturas são essas? A cultura da violência, do machismo, do racismo, da xenofobia (aversão aos estrangeiros), da misoginia (aversão às mulheres), da intolerância religiosa, da destruição do meio ambiente etc. Fonte: Cienpies Design/Shutterstock. São culturas que têm suas respectivas visões de mundo como todas as outras mencionadas anteriormente. E existem pessoas que participam destas culturas e acreditam que elas são corretas e válidas. Mas, de acordo com a lei e com os valores de outras pessoas que não participam destas culturas, elas são erradas e deveriam desaparecer. CARACTERÍSTICAS DA CULTURA Para melhor refletirmos sobre o papel da cultura na alimentação, vamos falar sobre algumas características da cultura, que são também características das culturas alimentares. A cultura condiciona os sistemas alimentares e tem um papel fundamental na visão de mundo dos indivíduos. A categoria comida é culturalmente determinada, assim como as formas de explorar os recursos e de classificar os alimentos. Fonte: Elizaveta Galitckaia/Shutterstock. A cultura pode também interferir no plano biológico (Laraia, 2007). A este propósito, podemos pensar no clássico tabu da mistura de leite com manga. Por crer que esta mistura faz mal, o indivíduo pode realmente passar mal se a ingerir. Fonte: muk woothimanop/Shutterstock. Por outro lado, como uma espécie de efeito placebo, a ingestão do suco do maracujá pode acalmar algumas pessoas. O que elas não sabem é que os compostos químicos calmantes não se encontram no fruto. Mas e o que deve fazer o profissional de saúde em relação a isto? Será que ele deve esclarecer seu paciente, ou, caso este relate efeitos positivos, não desfazer esta crença? Provavelmente, ele promoverá mais o bem-estar do paciente omitindo a verdade do que revelando-a, já que a cultura interfere na forma como o corpo vai se portar. SAIBA MAIS Outro ponto interessante, e que já foi mencionado, é o fato de que as diferentes culturas têm lógicas que lhes são próprias e que não são lógicas pragmáticas nem racionais, e sim culturais. O fato de que uma grande parte das culturas despreza o consumo de insetos demonstra que não há nenhum pragmatismo nos hábitos culturais e que eles possuem uma racionalidade que lhes é própria. Os mitos, crenças e tabus, assim como todo o complexo de proibições e prescrições, estão relacionados a uma forma de classificar os alimentos, que é própria da lógica de cada cultura. Outra característica levantada por Laraia (2007) é o dinamismo das culturas. Efetivamente, não podemos pensar as culturas como algo terminado ou estático. A cultura é, antes de mais nada, um processo, que está em constante transformação. Podemos ver este dinamismo na própria alimentação. Comemos hoje de forma bem diferente do que comíamos há dez anos. Existem diversos modismos na alimentação e uma série de produtos relativamente novos. É o caso da linhaça, da chia, da quinoa, da farinha de amêndoas, do Goji Berry, dos produtos sem glúten, dos laticínios sem lactose. Esses produtos surgiram no esteio da busca por uma alimentação mais saudável e que possibilite o emagrecimento. Uma preparação que já existia, mas também virou a queridinha do povo fit, é a tapioca, por ser feita de goma da mandioca e não possuir glúten. O mesmo aconteceu com a batata doce e o abacate. Fonte: Dionisvera/Shutterstock. PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO Você já ouviu falar em crianças que foram criadas por animais? Certamente você já ouviu falar de Tarzan, criado por macacos, e Mogli, do Livro da Selva. Há também a história dos gêmeos que fundaram Roma, Rômulo e Remo, que foram amamentados por uma loba quando pequenos. Nesses casos, estamos falando de lendas e de histórias fictícias. Mas existem histórias verdadeiras de crianças que foram criadas por animais. Conheça a história do menino de Aveyron: Fonte: Wikipedia. Victor de Aveyron Existem outras histórias de crianças cuidadas por animais, geralmente por lobos e macacos. Elas apresentam, no geral, muitas dificuldades de viver entre os seres humanos. Essas crianças pertencem obviamente à nossa espécie. Mas será que, no sentido amplo e filosófico do termo, elas são humanas? Como podemos compreender o pensamento de um ser humano que não fala, não chora e não sorri? Essas crianças são verdadeiras aberrações, e o fato de não terem convivido entre humanos faz com que elas se comportem como animais. Essas crianças não passaram pelo processo de socialização primário. O processo de socialização é aquele através do qual o indivíduo se torna membro de determinado grupo social, introjetando seus valores. A socialização primária é aquela através da qual a criança se tornaum membro da sociedade, aprendendo seus conceitos, suas regras etc. É nesse processo que ela aprende a falar, a andar ereta e que há horários para as diferentes atividades. Dessa forma, ela vai tornar suas essas formas de pensar, de agir e de sentir. (Cherkaoui, 1990) Durkheim foi um dos primeiros a falar em socialização. Ele se referia sobretudo à criança (Grigorowitsch, 2008). Mas o processo de socialização não termina nunca, e ele nunca é perfeito, pois todos temos comportamentos desviantes. Cada vez que entramos em um novo grupo, ou em uma nova cultura, temos que nos socializar. Fonte: Wikipedia. Émile Durkheim ATENÇÃO Para os nutricionistas, é muito importante compreender que é nesse processo que os indivíduos de determinada cultura vão aprender a gostar de certos alimentos, vão desenvolver seus hábitos e suas preferências alimentares, vão criar conceitos sobre o que é uma alimentação saudável etc. Portanto, todo esse arcabouço cultural é muito íntimo e ancorado na forma como as pessoas se constroem. É necessário que o profissional da Nutrição leve tudo isso em consideração para que possa desenvolver a melhor forma de promover saúde. Mas como a Antropologia estuda a cultura e o processo de socialização? Através da etnografia, que é o assunto da nossa próxima seção. ETNOGRAFIA E OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE Como a Antropologia coleta seus dados para poder realizar suas pesquisas, elaborar seus conceitos e suas teorias? Nos seus primórdios, os antropólogos não iam a campo conhecer os povos “exóticos” sobre quem escreviam. Eles recebiam informações de terceiros e até de livros de curiosidades. Como esses antropólogos falavam de pessoas que estavam do outro lado do mundo e elaboravam teorias sobre elas sem nunca as ter visto, a Antropologia deste período é chamada de Antropologia de gabinete. Com Bronislaw Malinowski (1884-1942), antropólogo polonês que trabalhou na Inglaterra, a Antropologia mudou sua forma de obter dados. Esse pesquisador trabalhou muitos anos com habitantes da Nove Guiné, instituindo o trabalho de campo e ressaltando sua importância. Fonte: Wikipedia. Bronisław Malinowski Desde então, a etnografia é o método por excelência da Antropologia. Etnografia vem do prefixo grego etno, que significa povo ou nação, e do sufixo grafia, cujo significado é escrever, ou seja, é a descrição do modo de vida de uma determinada sociedade. Dessa forma, o antropólogo procura se imbuir da visão de mundo daqueles que está pesquisando para poder melhor compreendê-los. A partir de então, a Antropologia não é somente aquela ciência que estuda os povos “exóticos”, mas aquela que estuda o “Outro”, com O maiúsculo, que significa aquele que é diferente de mim. A etnografia é o método por excelência da Antropologia. Assim, o antropólogo é quem produz os dados necessários para sua pesquisa. Para isso, ele precisa ir a campo e estar em contato com seu objeto de estudo, seja na Nova Guiné ou em um baile funk. A técnica utilizada é a da observação participante. ATENÇÃO Este tipo de observação consiste no fato de que o pesquisador não somente observa à distância seu objeto de estudo, mas também procura participar, na medida do possível, das mais variadas atividades daqueles com quem está convivendo durante o trabalho de campo. Fonte: Gunnerchu/Shutterstock. O método da etnografia e a técnica da observação participante são bastante utilizados por outras ciências na atualidade. Em relação à Nutrição, não poderia ser diferente. Pesquisadores da área utilizam a etnografia em enquetes nutricionais e na implementação de programas e políticas de saúde pública relacionados à nutrição. Programas e projetos de promoção da saúde que não levam em consideração os aspectos culturais e as representações sobre a saúde e comida das populações-alvo podem utilizar muitos recursos e não atingir os objetivos propostos por inadequação. SAIBA MAIS Jiménez et al. (2017), em um artigo no qual refletem sobre a importância da teoria antropológica nas práticas de educação em saúde, enfatizam a importância de se explorarem as crenças e práticas culturais quando se trata de cuidados em saúde. A CULTURA COMO INFLUÊNCIA DIRETA DA ESCOLHA ALIMENTAR. Assista ao vídeo em que a professora Laura Perez aborda o conceito de cultura e a sua influência na escolha alimentar. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. EM UMA AULA DE SOCIOLOGIA, O PROFESSOR, AO ENTRAR EM SALA, ENCONTROU UM GRUPO DE ALUNOS NUMA CALOROSA DISCUSSÃO SOBRE CULTURA. APROVEITANDO O INTERESSE PELO TEMA, ORGANIZOU UM DEBATE NO QUAL FICARAM EVIDENCIADAS VÁRIAS FORMAS DE ENTENDER O QUE É CULTURA. ENTRE ELAS, DESTACARAM-SE AS RESPOSTAS A SEGUIR. QUAL É A QUE MELHOR CORRESPONDE AO SIGNIFICADO DO CONCEITO NA ANTROPOLOGIA? A) Cultura é a leitura de muitos livros. B) É estudar bastante, é o saber lidar com muita coisa. C) Quando uma pessoa é bem educada a gente diz: Que culta! D) A cultura é aquilo que a gente sabe, é aquilo que a gente faz, portanto, todas as pessoas têm cultura. E) Cultura só se adquire lendo bons livros e ouvindo música clássica. 2. ETNOGRAFIA É: A) Tudo aquilo que é produzido pelo homem enquanto membro de uma sociedade. B) A descrição de uma cultura, ou seja, dos hábitos e estilo de vida de um grupo cultural. C) Acreditar que os valores de sua própria cultura são os mais corretos e naturais. D) As diferenças existentes entre as culturas. E) A observação de uma cultura a partir das “próprias lentes”. GABARITO 1. Em uma aula de Sociologia, o professor, ao entrar em sala, encontrou um grupo de alunos numa calorosa discussão sobre cultura. Aproveitando o interesse pelo tema, organizou um debate no qual ficaram evidenciadas várias formas de entender o que é cultura. Entre elas, destacaram-se as respostas a seguir. Qual é a que melhor corresponde ao significado do conceito na Antropologia? A alternativa "D " está correta. Cultura no senso comum significa sabedoria, conhecimento. Mas, na Antropologia, é a maneira total de viver de um povo, ou seja, seu estilo de vida, seus valores, crenças, hábitos. Assim, não podemos dizer que alguém não tem cultura, pois quem vive em sociedade adquire cultura. 2. Etnografia é: A alternativa "B " está correta. A etnografia é o método utilizado na Antropologia. Para coletar dados para sua pesquisa, o antropólogo precisa ir a campo e procurar se imbuir da cultura que pretende estudar. A palavra etnografia significa literalmente escrever uma cultura. MÓDULO 2 Reconhecer os mitos, os tabus e as crenças SAGRADO E PROFANO Antes mesmo de definir e discutir as relações entre mitos, tabus e crença sobre a alimentação, é importante distinguir a esfera do sagrado e a do profano, uma vez que tanto mitos, como tabus, proibições e crenças podem ser sagados ou profanos. O universo do sagrado inclui tudo aquilo que é excepcional, superior, sobrenatural, transcendente, divino. O sagrado com frequência se traduz por um sentimento de respeito religioso (Robert, 1995). Enquanto a palavra sagrado se refere a um domínio separado, a religião tem origem no termo religare, do latim, que significa atar ou ligar. Assim, aquilo que é separado é reunido por meio de ritos. (Silva, 2013) Já o profano se refere ao que não é sagrado. É aquilo que é comum, cotidiano, próximo. Mas é importante sinalizar que o que significa sagrado e profano muda de sociedade para sociedade (Barreto, 2018). Enquanto alguns adoram as estrelas, outros podem sacralizar a água dos rios ou uma árvore específica. O sagrado trata das relações dos homens com a divindade, e o profano, da relação dos homens entre si. (Herrenschmidt, 1991) Dessa forma, o sagrado se opõe ao profano. Mas, por outro lado, as religiões tentam levar o sagrado em direção ao profano (Coelho, 2015). A esse propósito, as múltiplas aparições midiáticas do papa Francisco falando de temas como desigualdade social, capitalismo e meio ambiente, temas tradicionalmente profanos, vêm demonstrar estaaproximação entre sagado e profano (Oliveira e Farias, 2019). Fonte: SPboy13/Shutterstock. Vemos, assim, que essas esferas são separadas, mas, em algumas situações, elas se aproximam. Consequentemente, fica mais fácil compreender o caráter sagrado ou profanos dos mitos tabus e crenças. MITOS E ALIMENTAÇÃO A narrativa mítica se traduz por uma série de formas discursivas que fazem referência ao sobrenatural , que são características de um determinado grupo cultural, e somente fazem sentido dentro deste. Esta narrativa não é histórica, ela se refere ao início dos tempos, sem uma data definida. O mito dá sentido ao real, organiza a experiência do ser humano e traduz o seu característico desejo por segurança. Para isso, eles se apoiam nas crenças sobrenaturais em “forças superiores que protegem ou ameaçam, recompensam ou castigam” (Aranha & Pires, 2009), como as mitologias grega e indígena. Uma vez que apresentamos o conceito de mito e sua importância, vamos falar dos mitos relativos à alimentação, que nem sempre têm o mesmo significado tratado acima. Nesse caso, tratamos como mito aquilo que não é verdade do ponto de vista racional, coisas em que muitas pessoas acreditam, mas não correspondem ao que a ciência afirma. ATENÇÃO Nesse contexto, é importante ficar atento à quantidade de pessoas sem nenhuma formação em Nutrição ou áreas afins que estão presentes nas mídias sociais dando conselhos sobre o que comer. Mesmo o Conselho Federal de Nutrição determinando que somente nutricionistas deem orientação neste sentido, é comum ver blogueiros(as), youtubers e influencers espalhando todo tipo de orientação equivocada. O mais dramático é que eles são seguidos por milhares de pessoas que adotam seus conselhos e podem prejudicar sua saúde. Nesse caso, estas diretrizes entram na categoria de mito, ou seja, informações falsas não comprovadas pela ciência, que, muitas vezes, são compartilhadas até por profissionais da área da Saúde. ATENÇÃO É muito importante que o nutricionista enfrente este tipo de situação junto aos seus pacientes de forma ética, dando orientações e sempre explicando o que é valido ou não e por que. Fazer pouco dos mitos, crenças e tabus trazidos pelos seus pacientes é um comportamento arrogante, antiético e que provavelmente não irá promover a saúde. Se for o caso de uma crença religiosa, deve-se compreender que ela não pode ser transgredida. Também acreditamos que certos alimentos engordam mais que outros, como o exemplo trazido por Vieira (2010) em seu artigo sobre mitos e crendices na Nutrição. Ele comenta sobre o fato de as pessoas acreditarem que o açúcar engorda mais que a ricota, sendo que os carboidratos e as proteínas produzem a mesma quantidade de Kcal por grama. Logo, o que engorda é a quantidade, não a qualidade do alimento. Outro que virou um vilão da dieta é o glúten. O número de adeptos das dietas sem glúten e low carb aumentou muito nos últimos anos, trazendo a promessa de emagrecimento e saúde. Entretanto, pesquisas posteriores demonstraram que o baixo consumo de glúten cria propensão para a diabetes tipo 2 e que a privação de glúten em celíacos – pacientes que apresentam intolerância ao glúten – pode aumentar o risco de AVC. (Potter et al., 2017) Fonte: YRABOTA/Shutterstock. Lembramos que o trigo foi o primeiro cereal cultivado pelos homens há aproximadamente 10 mil anos, e vem sendo intensamente consumido desde então. Existem ainda muito outros exemplos de mitos relacionados à alimentação. O que ficou claro aqui é que é sempre importante ver a origem das informações e ter uma aproximação crítica sobre elas, afinal, mesmo o conhecimento científico não produz uma verdade última sobre as coisas. O conhecimento produzido pela ciência é provisório e, no limite, todos os pesquisadores ficam testando as verdades estabelecidas. Podemos ver isso claramente na ciência da Nutrição, em que alimentos que eram vilões se tornaram heróis e vice-e-versa. EXEMPLO O próprio ovo já foi considerado um alimento que aumentava o colesterol, e toda uma geração de jovens passou boa parte da vida querendo aumentar o consumo de ovos e não podia. Podemos adicionar a esta lista a manteiga, o abacate, o café, o chocolate amargo etc. TABUS E ALIMENTAÇÃO Fonte: Wikipedia. James Cook Portanto, tabu é aquilo que é objeto de uma proibição que, se transgredida, trará perigo, desgraça e o caos. É o caso do tabu do incesto, que é comum a todas as sociedades humanas das quais se tem notícia. Nas mais variadas sociedades, a transgressão desse tabu é punida, inclusive na nossa. Não temos uma lei que proíbe o incesto, mesmo o casamento entre irmãos e entre pais e filhos é proibido por lei. Adultos maiores de idade em situação de mútuo consentimento não transgridem a lei se cometerem incesto. Mas ele é um tabu moral tão forte que indivíduos nesta situação serão colocados em isolamento social. O tabu tanto se refere àquilo que é proibido e intocável por ser sagrado, como ao que é impuro ou perigoso. Aqui, trataremos sobretudo do segundo significado, pois é o que se apresenta nos fenômenos que estudaremos. Mas o que nos interessa aqui são os tabus alimentares, ou seja, as proibições relativas ao consumo de determinados alimentos, sejam elas profanas ou sagradas. Como não é o objetivo aqui fazer uma lista exaustiva de todos os tabus existentes, escolhi alguns exemplos de proibições sagradas, aquelas do catolicismo e a das religiões de matriz africana no Brasil. Fonte: Motortion Films/Shutterstock. Na Europa do século XVII, os católicos deveriam respeitar até 166 dias de jejum, sendo os quarenta dias da Quaresma extremamente rígidos (Carneiro, 2003), mas, na atualidade, as proibições se restringem basicamente à proibição do consumo de carne vermelha na Sexta- feira Santa. Algumas famílias mais tradicionais e religiosas mantêm o interdito de comer carne durante todas as sextas-feiras da Quaresma, ou mesmo mais dias da semana. QUARESMA É o período de quarenta dias que vai da Quarta-feira de Cinzas até a Quinta-feira Santa antes da Páscoa. É um período de recolhimento e reflexão entre os cristãos. javascript:void(0) Fonte: Joa Souza/Shutterstock. O candomblé possui interdições permanentes, como o consumo de peixes sem escama e da carambola, mas a maior parte delas está ligada aos filhos de um determinado orixá ou a certas datas. Existem proibições que são ligadas a alimentos que são usados nas oferendas, e outras aos alimentos específicos que não são tolerados pelas diferentes divindades. Essas proibições são as quizilas. Se elas não forem respeitadas, as consequências não serão boas. Por exemplo, Oxalá não tolera o azeite de dendê, Oxóssi não pode comer mel e Iansã execra o carneiro (Souza, 2014). Portanto, as proibições variam de indivíduo pra indivíduo. Esses e outros tabus religiosos devem ser respeitados pelo profissional da área da Nutrição, pois sempre será possível fazer substituições. Em algumas situações, as pessoas preferem não comentar o contexto de seus tabus alimentares religiosos. ATENÇÃO É importante que, na anamnese, seja perguntado se o paciente tem alguma restrição alimentar religiosa, sem necessidade de mais explicações. Quanto aos tabus profanos, quem nunca ouviu falar que comer manga com leite faz mal à saúde? Existe uma explicação para este tabu tão difundido no Brasil. Alguns afirmam que, no tempo da escravidão, os senhores inventaram esta história para impedir que os escravizados comessem manga (Vieira, 2010). Outros já afirmam o contrário, que a origem deste tabu é por que os senhores não queriam que os escravizados tomassem leite. De todas as formas, é uma invenção. Os mitos e os tabus são invenções. Mas isto não significa que eles não sejam muito importantes e que devam ser respeitados, inclusive pelos nutricionistas no contexto do seu atendimento. Trigo et al. (1989), em comunidades do Pará, observaram inúmeros tabus alimentares e ressaltaram aimportância do conhecimento destas concepções para qualquer intervenção e programas de educação nutricional nesta região. As autoras relataram a proibição do consumo de várias frutas com leite, não somente a manga, mas também o consumo de frutas misturadas com ovos, e carne misturada com peixe. Tais misturas, segundo os entrevistados, faziam mal, ofendiam, envenenavam e podiam até matar. Mas os tabus alimentares podem ser permanentes, como o tabu de consumir carne humana, ou temporários, se referindo a certos momentos do ciclo de vida. As crianças, os idosos, os enfermos, as mulheres menstruadas, as mulheres grávidas e as nutrizes, são sujeitos a restrições alimentares mais importantes. Um exemplo de tabu temporário é aquele que se refere ao complexo da reima. A origem desta palavra vem do grego rheum, que significa viscoso (Silva, 2007). As comidas reimosas são conhecidas no Sudeste como comidas “carregadas”. A reima é uma classificação dos alimentos. Os alimentos reimosos são considerados perigosos para a saúde. No geral, a reima tem importância em momentos da vida, como durante os episódios de doença, durante a menstruação e o pós-parto. Mas existem lugares onde as mulheres não devem comer carne de porco, por exemplo, porque ela é muito reimosa. Não existe a lista definitiva da reima, mas, em geral, entram nesta categoria os frutos do mar, a carne de porco, algumas carnes de caça, os peixes sem escama, chocolate etc. Em alguns casos, a reima de um alimento pode atingir não somente aquele que o consome, mas também aqueles que lhe são próximos (Ibid), como em uma espécie de contágio. Fonte: AS Food studio/Shutterstock. A gravidez e a amamentação são objetos de uma série de tabus alimentares. Durante a gravidez, algumas frutas, como a melancia, o pepino e a manga são proibidos em algumas regiões de Pernambuco. Também devem ser evitados, tanto na gestação como no aleitamento, ovos de galinha, peixes e carne de porco. Já a canela seria abortiva (Gomes et al., 2011). As mulheres que estão amamentando também estão sujeitas a variadas proibições alimentares. Os alimentos mais citados como prejudicial pelas mães em Programas de Puericultura em Unidades Básicas de Saúde foram refrigerantes, carne de porco, pimenta, chocolate e comidas ácidas. O mal causado por essas comidas seria cólicas, gases, diarreias e alergias, entre outros (Ciampo et al., 2008). Em certas regiões do Piauí e do Distrito Federal, o leite da mãe seria venenoso para o seu filho e outra mulher deve amamentá-lo (Daniel & Cravo, 2005). Fonte: Kingspirit Image Room/Shutterstock. SAIBA MAIS Em algumas situações, os tabus alimentares podem vir a prejudicar a saúde da gestante e do bebê. O nutricionista deve estar atento a isto, sempre lidando com a situação de forma empática, para que possa dar orientações sem ofender ou descredenciar os tabus pertencentes àquela população e poder provocar mudanças. CRENÇAS E ALIMENTAÇÃO O verbo crer é um verbo que representa alguns problemas, pois, sobretudo no aspecto sagrado, quando falamos em crença, fica subentendido que existem aqueles que não creem. Quando alguém diz que crê em Deus, compreendemos isso perfeitamente. Entretanto, quando vemos escritos nas portas de templos neopentecostais “Jesus Cristo é o Senhor”, nesse caso, não há referência há uma crença, mas a uma verdade, uma realidade. Muito se fala em crenças e o significado desta palavra é compreendido por todos através do senso comum. Efetivamente, o Aurélio (Ferreira, 1999) define o verbo crer como aquilo que se tem por certo, por verdadeiro, e, o vocábulo crença, ele define como aquilo em que se crê, fé religiosa ou convicção íntima. Podemos dizer que a crença é uma convicção íntima, aquilo que se tem por verdadeiro, e que não precisa de comprovação. Como vimos acima, existem crenças que estão relacionadas ao sagrado, e outras que são profanas. Entretanto, é importante enfatizar que todos os mitos e tabus estão fundamentados em uma crença. Em relação ao aleitamento materno: EXEMPLO Enquanto algumas mães acreditam que consumir leite de vaca fará com que ela produza mais leite, outras já pensam que isto fará com que o bebê tenha cólicas (Gomes et al., 2011). Fubá, canjica e sopa também aumentariam a produção de leite. Crenças muito difundidas também são aquelas relacionadas à produção do leite materno. Todos já ouviram falar na crença de que beber cerveja preta aumentaria a produção de leite materno. Não há comprovação desse fato e consumir álcool durante a lactação pode ser prejudicial para a saúde da criança. A crença de que existe um leite fraco pode ser bastante prejudicial à amamentação e está entre as principais causas da complementação precoce. A aparência do leite materno comparado ao da vaca fundamenta tal crença (Marques et al., 2011). Podemos ainda acrescentar outras crenças, como a de que comer banana ouro pela noite seria fatal, ou de que a banana prende o intestino e a cerveja dá barriga (Vieira, 2010). Mas é importante enfatizar o fato de que crenças sobre o emagrecimento também abundam e podem ser prejudiciais para a saúde. Fonte: LightField Studios/Shutterstock. Ficar sem comer, pular refeições, comer de três em três horas, evitar frutas porque têm muito açúcar, cortar carboidratos e outras crenças são muito difundidas e, neste caso, cabe ao nutricionista esclarecer o paciente sobre estas questões. ATENÇÃO Sempre lembrando que crenças que fazem parte dos sistemas alimentares não podem ser simplesmente descartadas como inúteis. O nutricionista não deve questionar de forma assertiva as crenças dos seus pacientes, pois, para eles, elas fazem todo o sentido. Ao contrário, ele deve buscar compreender a riqueza destas concepções e promover a saúde dando as orientações necessárias sem desprezar as crenças populares. OS TABUS E SUAS IMPLICAÇÕES NO ATENDIMENTO NUTRICIONAL. Assista ao vídeo em que a nutricionista clínica Aline Monteiro aborda os mitos presentes na alimentação e que podem interferir no consumo alimentar dos pacientes. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. QUAL DAS ASSERTIVAS ABAIXO SE REFERE A UM TABU ALIMENTAR? A) Tomar canjica faz a mulher ter mais leite. B) Todos os iogurtes contêm probióticos. C) A mulher não pode comer carne reimosa durante a gravidez. D) A vaca é um animal sagrado na Índia. 2. LEIA O DIÁLOGO A SEGUIR: LÉIA - VI NO INSTAGRAM UMA NOVA DIETA MARAVILHOSA! JOANA - E COMO ELA É? LÉIA - VOCÊ PULA O ALMOÇO TODOS OS DIAS, MENOS NO FIM DE SEMANA. JOANA – E FUNCIONA? LÉIA - CLARO, EU VI A FOTO DO “ANTES E DEPOIS” NO INSTA! O DIÁLOGO ACIMA SE REFERE A: A) Crenças na alimentação. B) Tabus na alimentação. C) Comida sagrada. D) Relativismo cultural. GABARITO 1. Qual das assertivas abaixo se refere a um tabu alimentar? A alternativa "C " está correta. Os mitos e os tabus são invenções. O tabu alimentar representa a proibição temporária ou permanente de consumir determinados itens alimentares. No caso, é um tabu temporário. 2. Leia o diálogo a seguir: Léia - Vi no Instagram uma nova dieta maravilhosa! Joana - E como ela é? Léia - Você pula o almoço todos os dias, menos no fim de semana. Joana – E funciona? Léia - Claro, eu vi a foto do “antes e depois” no insta! O diálogo acima se refere a: A alternativa "A " está correta. As crenças são conceitos, suposições e ideias que o indivíduo tem como certas sem comprovação, é uma certeza sem provas. MÓDULO 3 Identificar os sistemas alimentares Fonte: Africa Studio/Shutterstock. SISTEMAS ALIMENTARES A definição de sistema trazida pelo Aurélio (FERREIRA, 1999) fala em conjunto de elementos entre os quais existe uma relação, ou, como partes de um todo, coordenadas entre si, e que formam uma estrutura organizada. Em um sistema, os seus variados elementos estão conectados e afetam uns aos outros. Quando falamos de sistema alimentar, vamos no mesmo sentido. Poulain (2004) o define como: [...] CONJUNTODE ESTRUTURAS TECNOLÓGICAS E SOCIAIS QUE, DA COLETA ATÉ A COZINHA, PASSANDO POR TODAS AS ETAPAS DE PRODUÇÃO- TRANSFORMAÇÃO, PERMITEM QUE O ALIMENTO CHEGUE ATÉ O CONSUMIDOR E SEJA RECONHECIDO COMO COMESTÍVEL. Poulain, 2004. Na construção dos sistemas alimentares, há uma interação entre as dimensões naturais e culturais da alimentação. Contreras & Gracia (2015) afirmam que, em cada etapa do sistema, diferentes indivíduos lançam mão tanto de conhecimento tecnológico, como de valores, crenças e representações para tomarem decisões até que o alimento chegue no consumidor final. Vemos que os sistemas alimentares diferem de sociedade para sociedade, e, mesmo quando existe uma tendência à homogeneização, eles guardam características próprias. Eles incluem as operações de produção, distribuição, preparo, consumo e podemos acrescentar o dejeto dos resíduos. Fonte: stockcreations/Shutterstock. Barbosa (2007) enfatiza que, no Brasil, ao contrário da maior parte dos países desenvolvidos, compramos os ingredientes in natura e os cozinhamos em casa. Compramos os cereais, legumes, verduras e tubérculos e preparamos nossa refeição. Ou se delega a um trabalhador doméstico, luxo que, por conta do baixo custo deste trabalho, é permitido às famílias de classe média. Nas famílias menos abastadas, muitas vezes, a mulher cozinha para a família durante a noite, quando chega do trabalho. Isto já muda alguns componentes do sistema alimentar. Entretanto, no Brasil, verifica-se uma lenta redução no consumo de itens alimentares tradicionais, como feijão, arroz, farinha de mandioca e farinha de milho e um aumento do consumo de produtos industrializados (Bleil, 1998) e de massas, pães e refrigerantes (IBGE, 2019). Isso mostra que os sistemas alimentares são dinâmicos. Fonte: StockImageFactory.com/Shutterstock. A PESQUISA DE ORÇAMENTOS FAMILIARES E OS DESAFIOS DO NUTRICIONISTA FRENTE A ESTE CENÁRIO A seguir, assista ao vídeo em que a nutricionista Vanessa Natividade fala sobre os dados da pesquisa do IBGE de 2019, explicando como o orçamento das famílias está relacionado às escolhas alimentares. Os sistemas alimentares nativos das Américas mudaram completamente com a chegada dos conquistadores, e os itens alimentares americanos, como a batata, o tomate, o pimentão, o milho, entre outros, transformaram os sistemas alimentares europeus e africanos. Na África, introduziu-se o amendoim, a mandioca e o milho (Maciel, 2005). Hoje é difícil convencer muitos europeus e africanos que estas plantas são nativas das Américas. Assim como pode ser difícil convencer um brasileiro de que a manga e a jaca não são nativas daqui. Mas essas transformações também ocorrem em função de interesses econômicos e políticos. O Guia Alimentar para a População Brasileira (BRASIL, 2014) sublinha que a forma de produzir e distribuir alimentos vem aumentando a desigualdade social no mundo. No Brasil, os sistemas alimentares tradicionais baseados na agricultura familiar que promovem um manejo sustentável dos solos e uma distribuição local dos alimentos está sendo substituído por um sistema fundamentado em grandes monoculturas que abastecem sobretudo as indústrias de ultraprocessados e o mercado de rações para animais (Ibid). Fonte: Laranja na colher. Guia Alimentar - 2014 Como diz Maciel (2005): [...] NA CONSTITUIÇÃO DESSES SISTEMAS, INTERVÊM FATORES DE ORDEM ECOLÓGICA, HISTÓRICA, CULTURAL, SOCIAL E ECONÔMICA QUE IMPLICAM REPRESENTAÇÕES E IMAGINÁRIOS SOCIAIS ENVOLVENDO ESCOLHAS E CLASSIFICAÇÕES. Maciel, 2005. Há, efetivamente, interesses econômicos pressionando a mudança dos sistemas alimentares em benefício da indústria alimentícia e no sentido contrário de uma produção e distribuição dos alimentos que sejam sustentáveis socialmente e ambientalmente. O estilo de vida, aliado às mudanças nos sistemas alimentares, tem provocado um aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como a diabetes, a hipertensão, a obesidade, câncer e problemas cardíacos. DIVERSIDADE CULTURAL As crenças, valores, mas também as técnicas de produção e de preparo dos alimentos variam enormemente de sociedade para sociedade. Esses valores orientam os tabus e as prescrições sobre os quais falamos acima. Chamamos de diversidade cultural todas diferenças culturais existentes entre os grupos, as sociedades e as múltiplas culturas. Esse termo se refere à cultura material e à imaterial. Tais diferenças são características de cada grupo cultural, que constroem o seu sentimento de pertencimento àquele grupo através destas especificidades, a chamada identidade cultural. Sonati et al. (2009), também dentro da noção de sistemas alimentares, dizem o seguinte: [...] O ATO DA ALIMENTAÇÃO, MAIS DO QUE BIOLÓGICO, ENVOLVE AS FORMAS E TECNOLOGIAS DE CULTIVO, MANEJO E A COLETA DO ALIMENTO, A ESCOLHA, SEU ARMAZENAMENTO E FORMAS DE PREPARO E DE APRESENTAÇÃO, CONSTITUINDO UM PROCESSO SOCIAL E CULTURAL. Sonati, 2009. Cada cultura executa essas etapas de forma diferente. Não somente a própria definição do que é comida varia entre os grupos humanos, como também todas as etapas dos sistemas alimentares que vimos acima. No Brasil, temos uma diversidade cultural à mesa muito grande por conta de todas as diferentes influências que a culinária brasileira recebeu no decorrer do tempo. Fonte: Shutterstock/stockcreations. Se nossa matriz cultural vem dos indígenas, africanos e portugueses, será que a cozinha brasileira seria uma mistura da culinária desses povos? É importante ressaltar, a este propósito, que a contribuição desses diferentes povos não foi a mesma. O português estava no topo da pirâmide social (DÓRIA, 2009). Fonte: Arthur Mota/Shutterstock. Os negros escravizados não tinham direito à palavra, eram semoventes. Não participaram ativamente da construção da culinária nacional nesta condição. Os ingredientes africanos, como o azeite de dendê, o jiló, o quiabo e a pimenta malagueta, foram trazidos pelos portugueses. A culinária de comidas de santo só floresce no Brasil depois do fim da escravidão, mas isso não significa que esses pratos não façam parte da cozinha brasileira. Fonte: ingridagrants/Shutterstock. Já os indígenas foram valorizados no indigenismo brasileiro no século XIX. Este era um projeto do Próprio D. Pedro II junto ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), com a construção de um mito de origem do povo brasileiro, como aquele descrito nos romances da época de José de Alencar (1829-1877) e nas peças de Gonçalves Dias (1823-1864). Entretanto, sobre a influência indígena na culinária brasileira, ela se deu sobretudo em relação aos ingredientes e às formas de beneficiar a mandioca e, eventualmente, de assar a carne, excetuando o Norte do Brasil, onde as influências da culinária indígena e do consumo de peixes de água doce se faz mais presente. Fonte: 5PH/Shutterstock. Os modos de preparo da nossa cozinha são essencialmente portugueses, assim como todas as criações e laticínios que consumimos. Ao chegar aqui no período colonial, as sinhás usavam os ingredientes nativos para preparar pratos europeus. Assim, as frutas brasileiras, como o caju e a goiaba e o mamão, foram usadas para fazer doces e compotas, e as diferentes farinhas e polvilhos da mandioca fizeram os mais variados tipos de bolos e pães, como o nosso querido pão de queijo. Mas, além de toda a diversidade das cozinhas regionais, também influenciaram a nossa culinária os imigrantes europeus, sírios, libaneses e os japoneses, que vieram para cá em diferentes épocas. A influência alemã e ucraniana no Rio Grande do Sul. A açoriana em Santa Catarina, a italiana em São Paulo, a síria e libanesa no Sudeste, entre outras, só vieram enriquecer nossas receitas, nossos hábitos e nosso paladar. DETERMINISMOS BIOLÓGICO E GEOGRÁFICO Os homens sempre se perguntaram como, existindo entre eles uma unidade biológica facilmente constatável, é possível que tenham comportamentos, visões de mundo, valorese sistemas alimentares tão diferentes. Os homens são tão diferentes porque são biologicamente diferentes. Embora esse pensamento já existisse anteriormente, ele ganha força nas teorias de Franz Gall (1758-1828), médico alemão e Cesare Lombroso (1835-1909), criminologista alemão. COMENTÁRIO Ambos acreditavam que características físicas, como a forma da cabeça e condições como a epilepsia, determinavam o criminoso nato. Logo, o criminoso não podia ser recuperado e deveria ficar isolado para proteger a sociedade. Essas teorias, científicas na época, são apenas um aspecto de uma visão deturpada sobre a diversidade cultural. Se são aspectos físicos e biológicos que determinam o comportamento, isto é algo imutável, inato. Podemos achar absurdas estas teorias que ganharam força no século XIX, mas elas estão presentes entre nós de forma importante ainda nos dias de hoje. O conceito de raça é um exemplo clássico de determinismo biológico. Devemos esclarecer que este conceito foi originariamente definido nas Ciências Biológicas. A raça é a categoria taxonômica que vem abaixo da espécie, é a subespécie. Nós, por exemplo, somos do gênero Homo, da espécie sapiens e da subespécie sapiens. Somos Homo sapiens sapiens, ou seja, da espécie humana e da raça humana. Existe somente uma raça da espécie humana. Porém, os indivíduos acreditam que existem raças e que os membros delas têm capacidades, inteligência, temperamento, ética e disposições diferentes uns dos outros e que isto está escrito em sua biologia. O racismo existe, é muito presente e provoca estragos e desigualdades enormes. Em uma sociedade como a nossa, em que o racismo é estrutural, muitas vezes nem percebemos como palavras e expressões podem ser racistas. Também observamos um discurso naturalizado sobre o gênero, dizendo que a mulher é o sexo frágil. Essa ideia reforça o machismo e a visão inferior sobre elas. Efetivamente, as mulheres têm estatisticamente um percentual maior de gordura no seu corpo e os homens, um percentual maior de músculos. Mas isso não quer dizer que a mulher seja o sexo frágil. O gênero é uma construção cultural e cada sociedade define quais são os comportamentos mais adequados para o homem e para a mulher. Entre os indígenas Cinta-Larga de Rondônia, a mulher é sempre aquela que carrega o peso, a água, os trinta quilos de mandioca desde a roça, assim como quem corta e carrega a lenha para o fogo. Não precisamos nem ir tão longe, a função de subir os morros com uma lata d´água na cabeça no Rio de Janeiro de antigamente era feminina. Fonte: wlablack/Shutterstock. Nós nascemos com o potencial genético para sermos socializados em qualquer cultura. Esta é a especificidade humana. Temos a possibilidade de viver mil vidas diferentes, mas acabamos vivendo somente uma (GEERTZ, 1989). Enquanto o determinismo biológico acredita que as diferenças entre os homens são função de sua biologia, o determinismo geográfico diz que os homens são diferentes porque eles vivem em ambientes diferentes. Ou seja, o seu modo de vida seria determinado pelo ambiente físico. Este tipo de teoria existe desde a Antiguidade, mas é somente no final do século XIX que ela se tornou popular, sendo formulada sobretudo por geógrafos (Laraia, 2007). A Antropologia também contesta esta teoria dizendo que homens que vivem no mesmo ambiente têm culturas diferentes, fazem escolhas alimentares diferentes e exploram os recursos de formas específicas. EXEMPLO Aqui no Brasil temos uma costa de mais de nove mil quilômetros. Entretanto, exceto em comunidades pesqueiras, não temos o hábito de comer peixe regularmente. Os que vivem no interior da região Norte comem peixes de rio com muito mais frequência do que os que moram no litoral em relação aos peixes do mar. Os maiores mercados de peixe do mundo são a cidade de Tóquio, no Japão, o que não é muito surpreendente, e a cidade de Madrid, capital da Espanha, que fica no centro da península Ibérica. O peixe é trazido de avião das costas marítimas para atender a esse mercado. Vemos, assim, que a Antropologia contradiz essas duas teorias e enfatiza a importância da cultura na determinação dos hábitos, do estilo de vida e dos sistemas alimentares. Porém, essas concepções são ainda muito difundidas na contemporaneidade, e o profissional da área de Nutrição deve ficar atento a elas. Mas a diversidade cultural também pode ser compreendida de outras formas. Vamos a elas. ETNOCENTRISMO Vamos pensar juntos em qual é a etimologia desta palavra. Etnocentrismo significa “minha etnia no centro do mundo”. Segundo Rocha (2004): [...] ETNOCENTRISMO É UMA VISÃO DO MUNDO ONDE O NOSSO PRÓPRIO GRUPO É TOMADO COMO CENTRO DE TUDO E TODOS OS OUTROS SÃO PENSADOS E SENTIDOS ATRAVÉS DOS NOSSOS VALORES, NOSSOS MODELOS, NOSSAS DEFINIÇÕES DO QUE É A EXISTÊNCIA. Rocha, 2004. Se pensarmos na metáfora que vimos anteriormente, de que “a cultura é uma lente através da qual vemos o mundo”, nossa lente é ajustada para enxergarmos a nossa cultura. Quando olhamos para outra cultura com nossos “óculos”, a vemos embaçada, disforme. E isso é o etnocentrismo, um estereótipo através do qual olhamos para a diversidade cultural. O etnocentrismo implica não somente um estranhamento, mas também um julgamento de valor. Se achamos que alguns orientais são bárbaros porque comem carne de cachorro, ou outros são sujos porque arrotam na mesa ou não têm os mesmos princípios de higiene alimentar que nós, estamos sendo etnocêntricos. Este sentimento que, por vezes, é até inconsciente, é uma forma muito comum entre os homens de lidar com a diferença. Podemos nos perguntar se é possível nós não sermos etnocêntricos. A conclusão a que chegaremos é que não. Sempre teremos posturas julgadoras diante daquilo que desconhecemos ou mesmo discordamos. No processo de socialização, somos treinados para sermos etnocêntricos. Desde pequenos, nos ensinam que as coisas são certas ou erradas, limpas ou sujas, boas ou más, justa ou injustas. Necessitamos deste referencial ético para podermos formar nosso caráter e nos adaptarmos à sociedade na qual vivemos. Muitas sociedades tradicionais se nomeiam, o que chamamos de etnônimo, com nomes que significam “nós, o povo”, ou “nós, os homens”, expulsando da província humana aqueles que não pertencem à sua etnia. ATENÇÃO Mas não precisamos estar diante de um asiático comendo cachorro para sermos etnocêntricos. Quando dizemos que alguém é paraíba, piriguete, patricinha, carte, doidão ou favelado, estamos lidando com a diferença através do etnocentrismo. Por outro lado, existem culturas que rejeitamos, como foi dito anteriormente. Legalmente, devemos ser etnocêntricos com as culturas que atingem a dignidade humana. Mas vemos que existem muitas pessoas para quem o preconceito, a violência e o machismo representam a forma correta de se pensar. E, de seu ponto de vista, quem pensa diferente deles é que está errado. O etnocentrismo se situa na origem de todos os preconceitos, pois ninguém nasce preconceituoso. É no processo de socialização que nos tornamos racistas, homofóbicos, intolerantes religiosos etc. Fonte: BLACKDAY/Shutterstock. O que podemos concluir em relação a este tema é que, no absoluto, não existe certo ou errado. Somente as religiões e a Filosofia estabelecem estes parâmetros, a ciência não. Podemos dizer o que determinado grupo humano acredita ser o certo, mas não podemos afirmar o que é o certo. Certo e errado são pontos de vista que as culturas colocam sobre a realidade. Não é certo ou errado comer isto ou aquilo, é diferente. Mas não vamos esquecer que os valores são fundamentais para ordenar o nosso comportamento, pois, dentro de nossa cultura, existem, sim, certo e errado. E que o etnocentrismo pode ter consequências muito graves, como escravidão, guerras e genocídios. Mas podemos ter outra postura diante da diversidade cultural, é possível relativizar, e é disto que falarmos agora. RELATIVISMO CULTURAL O relativismo culturalpode ser visto como oposto ao etnocentrismo. Relativizar não significa que, ao contrário do etnocentrismo, acharemos correto comer cachorros ou arrotar à mesa, nem que iremos fazer isso. Relativizar significa compreender que a nossa lente cultural não é ajustada para enxergar as outras culturas. Não podemos tentar compreender a diversidade através da lógica da nossa própria cultura, pois cada uma tem uma lógica, que só é compreensível dentro daquele contexto cultural. Relativizar é “ver que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição” (ROCHA, 2004). Enquanto o etnocentrismo está na origem do preconceito, o relativismo cultural está na origem da tolerância. O relativismo cultural é a postura utilizada pela Antropologia na compreensão da diversidade cultural. ATENÇÃO A postura do nutricionista deve ser sempre relativista. Como já comentamos, ele não deve fazer juízos de valor sobre seus pacientes em nenhum aspecto, pois isso seria uma postura muito antiética, que certamente não está entre as boas práticas de promoção da saúde. Fonte: Civil/Shutterstock. CULTURA ALIMENTAR Tudo o que temos discutido neste tema está relacionado à cultura alimentar. Tanto os múltiplos significados simbólicos que atribuímos aos alimentos, que vão determinar o que se come ou não, como também as imagens, comportamentos e situações relacionadas à alimentação (BRAGA, 2004). Ela se constitui também no dinamismo entre aquilo que é tradicional e as inovações e todas as mudanças ocorridas nos nossos hábitos alimentares e na comensalidade em função do estilo de vida contemporâneo. A cultura alimentar é uma fonte muito importante de construção de pertencimentos, sendo uma referência para o estabelecimento das identidades individuais e coletivas. A comida regional, mesmo não sendo cotidiana, cria marcadores identitários específicos. ATENÇÃO É importante ressaltar que a cultura, como algo que determina as escolhas alimentares, está profundamente impregnada no indivíduo. Este desenvolveu seus hábitos e preferências alimentares desde a infância. Por conta desta intimidade que as pessoas têm com suas formas de comer, a cultura pode se apresentar como uma dificuldade para o nutricionista. Isto porque a mudança de comportamentos alimentares neste contexto cultural é bastante complexa. O nutricionista deve promover a saúde em uma constante negociação com a cultura alimentar do paciente, sempre tendo em vista que é ele que está no centro do processo. PAPEL DA CULTURA NA ALIMENTAÇÃO E DA ALIMENTAÇÃO NA CULTURA Quando falamos anteriormente de sistemas alimentares, isso significa justamente que cultura e alimentação fazem parte desses sistemas e estão profundamente conectadas. Vimos que esses sistemas são dinâmicos e o que podemos perceber é que, quando há mudanças na cultura, a alimentação se transforma. Da mesma forma, não somente nas sociedades tradicionais, mas também nas contemporâneas, se os recursos disponíveis mudam, a cultura alimentar também se transformará. Só que, nos dias de hoje, estes recursos alimentares mudam segundo interesses econômicos atrelados ao lucro. As indústrias alimentares são empresas capitalistas, muitas vezes com capital aberto, que têm como principal objetivo, o lucro. Das dez maiores empresas de consumo no mundo, nove são grandes conglomerados multinacionais na área da alimentação que possuem uma enorme riqueza, muitas vezes maior do que PIB de alguns países. Assim, essas empresas são capazes de fazer potentes lobbies junto aos governos. Fonte: Bogdan Vacarciuc/Shutterstock. O estilo de vida dos seres humanos tem mudado profundamente nas últimas décadas, e sua alimentação também. Desta forma, temos aí uma ótima oportunidade de discutirmos a relação entre alimentação e cultura nesta perspectiva dinâmica. Para isso, utilizaremos o conceito de modernidade alimentar. Fonseca et al. (2011) definem este conceito da seguinte forma: [...] SINTETIZA E REPRESENTA OS IMPACTOS QUE A ALIMENTAÇÃO TEM SOFRIDO EM FUNÇÃO DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS, ECONÔMICAS E CULTURAIS OCORRIDAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA. Fonseca, 2011. A vida do comedor moderno mudou profundamente. A alimentação fora de casa cresce muito e a própria mulher também foi para o mercado de trabalho, impactando a alimentação da família. Ao mesmo tempo, surgiu toda uma indústria de gadgets para a cozinha e de alimentos pré- preparados ou prontos que pretendem facilitar a vida desta mulher que trabalha. Pois, mesmo dentro deste novo contexto, a mulher ainda é aquela que cuida da alimentação da família (BARBOSA, 2007). Com esta modernidade alimentar, cresce também a preocupação com uma alimentação mais saudável e surgem diferentes tribos alimentares como os orgânicos, vegetarianos, veganos, etc. (FONSECA et al., 2011). Fonte: Olga Klochanko/Shutterstock. Neste quadro, a transmissão de tradições culinárias fica comprometida. Assim, podemos ver o fenômeno da aprendizagem individual, que pode misturar diferentes tipos de culinária, além de incorporar as preocupações dietéticas. Por outro lado, há uma desconfiança em relação aos produtos industrializados, mesmo se o seu consumo for alto. Se a alimentação é uma fonte potente de construção das identidades culturais, com o que este comedor moderno vai se identificar? Ademais, estas mudanças culturais e alimentares estão afetando também a saúde da população, com um aumento nas DCNT, como vimos anteriormente. ATENÇÃO O profissional da área de Nutrição deve ficar atento a todas estas transformações e seus impactos para a saúde dos indivíduos e nos seus comportamentos e representações acerca desta modernidade alimentar. Assim, ele terá instrumentos para planejar estratégias de intervenção em relação ao paciente e no âmbito de uma ação política junto aos conselhos de Nutrição. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. ASSINALE A AFIRMATIVA QUE FALA SOBRE O PAPEL DA CULTURA NA ALIMENTAÇÃO: A) A máquina de colher soja quebrou quando passou sobre uma pedra. B) Umas das causas de anemia ferropriva é uma dieta pobre em vitamina C. C) As abelhas estão morrendo por conta dos agrotóxicos. D) Muitas pessoas se tornam vegetarianas por solidariedade aos animais. 2. MONTAIGNE (1533-1572) ASSIM COMENTOU A ANTROPOFAGIA DOS TUPINAMBÁ: NÃO ME PARECE EXCESSIVO JULGAR BÁRBAROS TAIS ATOS DE CRUELDADE, MAS O FATO DE CONDENAR TAIS DEFEITOS NÃO NOS LEVE À CEGUEIRA ACERCA DOS NOSSOS. ESTIMO QUE É MAIS BÁRBARO COMER UM HOMEM VIVO DO QUE O COMER DEPOIS DE MORTO; E É PIOR ESQUARTEJAR UM HOMEM ENTRE SUPLÍCIOS E TORMENTOS E O QUEIMAR AOS POUCOS, OU ENTREGÁ-LO A CÃES E PORCOS, A PRETEXTO DE DEVOÇÃO E FÉ, COMO NÃO SOMENTE O LEMOS MAS VIMOS OCORRER ENTRE VIZINHOS NOSSO CONTERRÂNEOS. EXTRAÍDO DE LARAIA, R. CULTURA: UM CONCEITO ANTROPOLÓGICO. 14. ED. RIO DE JANEIRO: ZAHAR, 2001. P.13. O CONCEITO QUE SE APLICA AO TRECHO EM NEGRITO É: A) Socialização B) Diversidade Cultural C) Relativismo Cultural D) Etnocentrismo GABARITO 1. Assinale a afirmativa que fala sobre o papel da cultura na alimentação: A alternativa "D " está correta. A dieta vegetariana refere-se a questões culturais relacionadas à alimentação. É uma mudança na cultura que altera o hábito alimentar. As outras alternativas abordam aspectos fisiológicos, nutricionais ou biológicos. 2. Montaigne (1533-1572) assim comentou a antropofagia dos Tupinambá: Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nosso conterrâneos. Extraído de LARAIA, R. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.13. O conceito que se aplica aotrecho em negrito é: A alternativa "C " está correta. Montaigne, mesmo tendo vivido no século XVI, demonstra, com este texto, que relativiza as práticas consideradas “normais” em sua própria cultura diante do canibalismo. O relativismo é justamente compreender a diferença do outro dentro da sua própria concepção de mundo. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste tema, vimos a importância do conceito de cultura na compreensão de variados aspectos da alimentação. Por mais que as crenças dos sujeitos possam parecer absurdas diante da formação científica do nutricionista, elas devem ser tratadas de forma empática e respeitosa. Se o profissional da área da Nutrição tiver uma postura arrogante em relação a estas concepções culturais, ele não somente está se comportando de maneira antiética, como também reduz as possibilidades de sucesso do tratamento. Concluímos sobre o papel da cultura na alimentação com um exemplo relativo à modernidade alimentar. A cultura alimentar vem se transformando muito nas últimas décadas, e cabe ao nutricionista compreender estas mudanças e lutar por uma alimentação mais saudável e sustentável. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS ARANHA, M.; PIRES, M. Filosofando: Introdução à Filosofia. 4 ed. São Paulo: Moderna, 2009. BARBOSA, L. Feijão com arroz e arroz com feijão: o brasil no prato dos brasileiros. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 87-116, jul./dez. 2007. Consultado em meio eletrônico em: 23 out. 2020. BARRETO, E. A experiência religiosa, o sagrado e o profano. In: Século Diário, 2018. Consultado em meio eletrônico em: 23 out. 2020. BENEDICT, R. O Crisântemo e a Espada. Padrões da cultura japonesa. Petrópolis: Vozes, 2019. BLEIL, S.I. O Padrão Alimentar Ocidental: considerações sobre a mudança de hábitos no Brasil. In: Revista Cadernos de Debate, Campinas, Vol. VI, p. 1-25, 1998. Consultado em meio eletrônico em: 23 out. 2020. BRAGA, V. Cultura alimentar: contribuições da antropologia da alimentação. In: Saúde Rev., Piracicaba, 6(13): 37-44, 2004. Consultado em meio eletrônico em: 23 out. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. CÂMARA CASCUDO, L. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. 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