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TEORIAS E HISTÓRIA DA COMUNICAÇÃO E-book 3 Luciana Félix Neste E-Book: INTRODUÇÃO ���������������������������������������������� 3 OS ESTUDOS CULTURAIS ������������������������4 STUART HALL E UMA ANÁLISE CULTUROLÓGICA VERSUS ESTRUTURALISTA ���������������������������������������11 COMUNICAÇÃO E CULTURA ������������������16 GRAMSCI, HEGEMONIA E AS IDENTIDADES CULTURAIS ���������������������18 AS CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA MIDIALÓGICA DE MARSHALL MCLUHAN ����������������������������24 A ESCOLA LATINO-AMERICANA ����������31 TEORIA DAS MEDIAÇÕES ���������������������37 TEORIA DA HIBRIDIZAÇÃO ������������������ 40 CONSIDERAÇÕES FINAIS ����������������������42 SÍNTESE �������������������������������������������������������43 2 INTRODUÇÃO Neste módulo adentramos no pensamento de au- tores e escolas que permitiram que a comunicação passasse de uma área de estudos que nasceu a partir de recortes e conceitos de diversas áreas do conhecimento, fossem elas humanas, exatas ou bio- lógicas, para um campo em busca de legitimidade e identidade. Essa transição das teorias clássicas vistas nos mó- dulos anteriores para olhares e compreensões que se aproximam da contemporaneidade saem um pouco dos Estados Unidos, local de surgimento dos estudos dos meios de comunicação de massa, e navegam por Birmingham, na Inglaterra, onde conheceremos como os Estudos Culturais surgiram, consolidaram- -se e que outras escolas influenciaram; passaremos pelo Canadá para estudarmos as contribuições da perspectiva midialógica de Marshall McLuhan até chegarmos na América Latina para entendermos a importância dos estudos da comunicação no nosso território, idioma e cultura. 3 OS ESTUDOS CULTURAIS As teorias crítico-radical (da Escola de Frankfurt) e a culturológica chegaram a compartilhar a ideia de que há um conflito permanente nas relações entre indivíduo e meios de comunicação. Mas é impos- sível confundi-los. O campo dos Estudos Culturais surge justamente como uma contraposição crítica aos estudos dos meios de comunicação de massa. E embora um retome e revise o outro, não há uma continuidade linear. As influências marxistas da te- oria crítica, por exemplo, são substituídas pelas de Antonio Gramsci e seu conceito filosófico e políti- co de hegemonia, que veremos em detalhes mais adiante. Os Estudos Culturais se organizam com a fundação do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) por Richard Hoggart, em 1964, diante da altera- ção dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra do pós-guerra. O CCCS nasce ligado ao English Department da Universidade de Birmingham, constituindo-se num centro de pesquisa de pós-gra- duação da mesma instituição. Três textos publicados no final dos anos 1950 são considerados a pedra fundamental dos Estudos Culturais: The Uses of Literacy (1957), de Richard Hoggart; Culture and Society (1958), de Raymond 4 Williams; e The Making of the English Working-class (1963), de E. P. Thompson. Esses autores, incluindo também Stuart Hall, co- meçavam a trabalhar com uma multiplicidade de objetos de investigação, tendo a cultura como uma manifestação heterogênea e diferenciada, que não significava simplesmente a sabedoria recebida ou a experiência passiva, mas um grande número de intervenções ativas. Apesar de existirem desacordos entre eles, os consi- derados “pais fundadores” dos Estudos Culturais, é mais significativo para a constituição dessa tradição destacar os pontos de vista compartilhados entre eles. De acordo com STOREY (1997, p. 46): O que os une é uma abordagem que insiste em afirmar que através da análise da cultura de uma sociedade – as formas textuais e as prá- ticas documentadas de uma cultura – é possí- vel reconstituir o comportamento padronizado e as constelações de ideias compartilhadas pelos homens e mulheres que produzem e consomem os textos e as práticas culturais daquela sociedade. É uma perspectiva que enfatiza a atividade humana, a produção ativa da cultura, ao invés de seu consumo passivo. Os estudos culturais tinham como princípios as ideias de que a realidade e a identidade são cons- truções sociais e que as crenças são baseadas em 5 percepções da realidade. Eles afirmavam que a so- ciedade é marcada pelo poder e que os códigos cul- turais criam uma identidade para o produtor e para o receptor. A principal falha da teoria crítica foi justamente des- considerar o receptor como um ser humano com características individuais e necessidades peculiares, dotado de capacidade de seleção por sua própria história pessoal. Polistchuk e Trinta (2003, p. 129) explicam que “tal receptor não é uma abstração in- dispensável ao processo de comunicação, mas um ser humano concreto, que possui repertório cultural ao qual recorre quando capta, captura, interpreta e assimila, digerindo as mensagens a ele destinadas”. A teoria crítica tende a reduzir a ação da mensagem sobre o receptor a “atos de manipulação” ou de puro “efeito ideológico”, preparados por uma fonte emis- sora que pretende submetê-lo. Surgiu, então, o conceito do real cotidiano, feito dos valores e das rotinas vivenciadas diretamente pelas pessoas e também o conceito do real midiático, uma dimensão relacionada a tudo o que se produz de sím- bolos através dos meios massivos de comunicação. Em suas diferenças, conflitos e contradições, mas também em suas intersecções de identidade, essas realidades são o que podemos chamar do real social. Dentro do conceito de identidade discutiu-se o papel dos meios de comunicação na constituição de iden- tidades de gênero, classes geracionais e culturais. Essas relações de cultura e de poder, particularmente as desigualdades de poder, estão relacionadas à raça, 6 à classe, ao gênero e ao colonialismo. E é o papel dos símbolos as linguagens e imagens visuais na criação de significado, particularmente em relação às questões de poder, cuja representação como formas de comunicação (a língua falada, escrita, a música, a televisão e a mídia impressa) representa, forma e distorce o significado cultural. As principais questões de interesse dos estudos cul- turais giravam em torno dos seguintes temas: a) Que significados possíveis podemos extrair dos textos? b) Como as audiências interpretam esses textos/ mensagens de formas diferentes e por quê? c) Sob o prisma da identidade cultural, como nos identificamos e como os outros se identificam? d) Como os produtos culturais ou da mídia contri- buem para essa identificação? A cultura tem uma autonomia relativa. Não é depen- dente nem reflexo das relações econômicas, mas tem influências e sofre consequências das questões políticas e econômicas. No âmbito popular não existe apenas submissão, mas também resistência. A sociedade é concebi- da como um conjunto hierárquico e antagonista de relações sociais, caracterizada pela opressão das classes, sexos, raças, etnias e extratos sociais. A cul- tura popular alcança a legitimidade transformando- -se num lugar de atividade crítica e de intervenção 7 como a construção de uma tendência de questionar o estabelecimento de hierarquia entre formas e prá- ticas culturais. Da relação entre cultura baixa, alta, superior e inferior. A emergência dos estudos culturais e sua análise dos meios de comunicação de massa rompem essa polarização e procuram oferecer uma visão mais ampla e mediada para o entendimento do papel dos meios de comunicação. Havia a divisão de cultura alta, atividade cultural elitis- ta considerada a arte fina, como os concertos, sinfo- nias, espetáculos de dança clássica e alta literatura, e a cultura baixa, tudo o que não se encaixasse nessa categoria, tais como vídeos musicais, programas de televisão, grafite e filmes norte-americanos. Esse é o sistema cultural que a maioria das pessoas conhece e compartilha, que se tornou popular pelo e para o povo, e que não é por ele criado, mas pro- duzido por grandes conglomerados midiáticos para o consumo.Essas questões fundamentais dos estudos culturais estavam em divergência tanto com o funcionalismo quanto com a teoria crítica (Escola de Frankfurt). Onde o funcionalismo via um grande organismo vivo tendendo ao equilíbrio, no qual os conflitos eram tratados como anomalia, ou onde a teoria crítica via uma sociedade dominada, submetida completamen- te ao poder do capitalismo e da mídia, os estudos culturais viam o conflito, a luta, a disputa da hege- monia por classes, setores e blocos diferenciados. 8 A sociedade não é harmônica, mas conflitiva. Existe sim dominação, mas como processo e disputa e não como algo imutável. O campo da comunicação e da cultura se constituem numa arena decisiva para a luta social e política na sociedade contemporânea. Os estudos culturais reconhecem que existe intencio- nalidade de dominação por parte da indústria cultu- ral, no entanto partem de uma visão de que existem muitos elementos intervenientes que fazem com que essas intencionalidades se realizem ou não, em par- tes ou integralmente. Acredita-se que os emissores não são assim os todos poderosos do processo de comunicação, mas isso não pressupõe desconsiderar que eles detêm o poder no conflito e na disputa exis- tente na sociedade. Relativizar seu poder de mando não quer dizer subestimá-lo. As mediações sociais são decisivas para determinar como se realiza o processo comunicacional em cada sociedade. Partem de uma visão de que é necessário antes de tudo se reconhecer as especificidades de dada sociedade, seus dados de configuração his- tórica para a partir deles buscar entender como os meios atuam. Nos anos 1980 esses estudos se aprofundaram com a definição de outros dados de análise dos meios de comunicação a partir da pesquisa de recepção. São as investigações que combinam a análise de texto com a pesquisa de audiência. Os estudos de recepção são implementados nos meios massivos, especialmente nos programas televisivos. O que se 9 buscava era ver na recepção um papel ativo e impor- tante que pode alterar o resultado de todo o processo de comunicação. A partir das mediações sociais as pessoas se relacionam com a comunicação de mas- sa estabelecendo negociações simbólicas a partir da oferta proposta pelos veículos, mas também de sua visão de mundo, de seus hábitos, suas crenças, ou seja, de sua própria cultura. Sem idealização desse público e de suas capaci- dades, é preciso esclarecer que ele se constitui por ação ou omissão em um sujeito do processo, ator que determina o desfecho da trama em questão. 10 STUART HALL E UMA ANÁLISE CULTUROLÓGICA VERSUS ESTRUTURALISTA Dentre os pesquisadores dessa escola, gostaríamos de destacar o autor inglês Stuart Hall, de grande im- portância para os estudos culturais e sua análise das escolas culturológica e estruturalista. Em seu clássico livro Da diáspora, mais especificamente no capítulo “Estudos culturais: dois paradigmas”, ele descreve como essas duas correntes de pensamen- to contribuíram, dentro dos estudos culturais, para a análise de como o pensamento vai se relacionar com a realidade histórica e com os jogos de poder. Começaremos pelo culturalismo. Na década de 1950 buscou-se uma forma diferente de se teorizar o que vinha a ser cultura e as palavras-chaves são: cultura (termo no qual os autores mergulharam na complexidade do conceito), modo de vida, relações e experiência. Ele explica que Raymond Willians fez duas tentativas de definir o conceito de cultura. A primeira como a soma das descrições disponíveis pelas quais a sociedade dá sentido e reflete suas experiências comuns e ainda remete à origem das ideias. A cultura segundo ele será socializada, democratizada. Ela não é vista como o melhor que já foi pensado, como o conceito classista de alta cultura, mas o objeto de estudo que enxerga a cultura como um processo 11 social geral que vai dar e tomar significados, que se desenvolve lentamente ao longo da história. Todas as descrições disponíveis que a sociedade estabe- lece sentido, todas as experiências comuns que são produzidas por uma sociedade é cultura para os cul- turalistas. O conceito de cultura é ampliado para o comum, para o ordinário, para o cotidiano. Dentro do processo comunicativo seria a comunhão das ideias como um todo. O segundo modo de conceituar cultura parte da conclusão do primeiro, de cultura como um modo de vida global. As relações que temos ao longo da nossa vida, da nossa sociedade enquanto indivíduo, também vão se tornar cultura, ou seja, a forma como utilizamos os significados das ideias e passamos a nos relacionar uns com os outros a partir delas. Cultura não será só uma prática social e soma de culturas, mas nesse segundo conceito é a interre- lação dos elementos que compõem a sociedade. É o modo de organização da energia humana, o que temos de identidade, correspondência e descontinui- dade um em relação aos outros, como me relaciono com determinados grupos e seus padrões sociais. Para os culturalistas, é preciso estudar os processos específicos e indissolúveis expressos pelo tempo e pela história. Já para E. P. Thompson, cultura é tudo aquilo que produzimos como prática social, como manifestação da atividade humana, manifestação dos homens e mulheres que fazem história. 12 Partindo para o estruturalismo, as palavras-chave são referências linguísticas, relações interiores, formas de compreensão de mundo e ideologia. Os estudos culturalistas são interrompidos pelos estudos estruturalistas, segundo Hall. Ele destaca a influência de Claude Lévi-Strauss na formação desse paradigma e Althusser no que se refere ao conceito de ideologia. Ambos foram importantes para a relei- tura do marxismo. Lévi-Strauss conceitua cultura como as categorias ou quadros de referências linguísticas do pensamento com os quais classificamos a vida e nos relaciona- mos com o mundo natural e humano. Tudo o que produzimos no referencial linguístico, tudo a que damos palavras, nomeamos e elaboramos nossa forma de pensamento seria cultura segundo ele. Ele passa a verificar que essas referências mentais se- riam produzidas e transformadas por analogia dentro da linguagem, que é o principal meio da cultura. Há uma relação intrínseca entre aquilo que nós damos sentido na sociedade, sentidos linguísticos, e aquilo que comunicamos, nos relacionamos e produzimos enquanto cultura. Já ideologia, de acordo com Althusser, é definida por temas, conceitos e representações através dos quais homens e mulheres vivem uma relação imagi- nária. E vivem suas relações a partir desses temas e conceitos. As ideologias são entendidas não como conteúdo e formas superficiais das ideias, mas ca- tegorias inconscientes pelas quais as condições são 13 representadas e vividas. Normalmente, nós temos concepções inconscientes porque não nos pergunta- mos o tempo inteiro sobre elas, mas é a partir delas que movemos nossa vida e tomamos decisões, a partir das nossas concepções de mundo. Dentro do paradigma estruturalista há uma correla- ção quase óbvia, uma similaridade entre os concei- tos de cultura e de ideologia na obra de Althusser. Para ele, cultura e ideologia são coisas parecidas, similares. Hall passa então a tratar do contraste entre o cultu- ralismo e o estruturalismo, onde, segundo ele, reside o conceito de experiência. Para os culturalistas, a experiência é o terreno vivido no qual interagem a condição e a consciência. A experiência será o lugar e a condição onde estou e a minha consciência emerge desse lugar. Para o estruturalismo, a experiência não é o fundamento, pois sua base é mais racionalista e acredita-se que só se pode viver e experimentar dentro das referências linguísticas da própria cultura. A experiência e a vida seriam definidas pelas formas linguísticas, ou seja, as experiências são feitas da própria ideologia contida no sujeito. Temos então duas posições antagônicas: o culturalis- mo diz que experiência é aquiloque experimentamos no mundo e que ajuda a criar nossa consciência; enquanto o estruturalismo diz que a experiência tem a ideologia como sua mediadora. Para os estrutura- listas, quem fala não é o sujeito, mas suas estruturas linguísticas e as categorias culturais. 14 Para os culturalistas, a visão de mundo é construída de forma consciente. Já os estruturalistas acredi- tam que ela é formada inconscientemente, como reflexo de uma estrutura imaginária e não uma fonte de autoidentificação do mundo e do discurso como acreditam os culturalistas. 15 COMUNICAÇÃO E CULTURA Embora haja debates conceituais em algumas cor- rentes de pensamento, como acabamos de estudar, é indiscutível a influência da cultura e seus impactos na evolução humana. Comunicação e cultura fornecem, uma à outra, seus mais preciosos nutrientes. Comunicar não é “manipular por meio de símbolos”, mas intensificar, renovando, uma troca simbólica. E se a cultura não atua de forma perceptível em nosso corpo, o mesmo não se pode dizer em relação à reali- dade. “Entendendo-se a cultura como um código, como um sistema de comunicação, percebe-se o seu caráter dinâmico ao produzir interpretações, significados, sím- bolos diante de uma realidade permanentemente em mudança.” (VELHO; CASTRO, 1978. p. 22). A relação não é estática nem unilateral. É um jogo de inter-relações, elaboração e reelaboração de sentidos. “Os indivíduos também desempenham o papel de agentes na trans- formação e mudança da cultura e da sociedade e não são meros joguetes de forças impessoais” (VELHO; CASTRO, 1978. p. 22). Os autores que problematizaram a linguagem e desen- volveram as linhas teóricas de estudo da comunicação observam, em maior ou menor grau, essas questões no estudo do cotidiano e das relações dos meios de co- municação de massa com os receptores. Adam Schaff (1974) diz que a linguagem influencia o nosso modo de percepção da realidade e que é, em certo sentido, a criadora da nossa imagem de mundo. 16 GRAMSCI, HEGEMONIA E AS IDENTIDADES CULTURAIS Mais alinhados com essa ideia dos indivíduos como agentes da transformação e construtores de sentido estão os estudiosos da recepção. Antonio Gramsci – um dos estudiosos do modelo culturológico (cul- tural studies), que retoma e revisa o paradigma crítico-radical (que teve Karl Marx como referência fundamental) – defende o oposto do que diziam os teóricos da Escola de Frankfurt, dedicados aos es- tudos da produção, em especial Theodor Adorno e Max Horkheimer, criadores do conceito de “indústria cultural” em oposição ao termo “cultura de massa”. Para eles, essa indústria, que nasceu quando as leis de mercado atingiram a cultura, age por imposição e a massa é conduzida sem ter a chance ou a ideia de mudar a situação porque não tem capacidade de reação. A preocupação dos frankfurtianos, classificados por Umberto Eco como apocalípticos, era saber o que os meios fazem com os indivíduos. O que Gramsci fez foi inverter a pergunta para saber o que os indivíduos fazem com os meios. Essa discussão crítica do cul- tural studies também foi liderada na Inglaterra pelos pensadores marxistas Raymond Williams e Stuart Hall. Pela mesma linha, só que estudando a recepção na América Latina, estão Jesús Martín-Barbero e 17 Néstor García-Canclini (1995), tratando das media- ções e da hibridação, das questões da cultura, suas raízes e identidades e o estudo do consumo como um conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Gramsci trabalhou os conceitos de intelectual orgâni- co, hegemonia e culturas subalternas, usadas assim no plural para designar diversidade. A essas culturas pertence a população de baixa renda. Subalterna não quer dizer dominada ou submissa. Ela apenas indica uma posição de quem está em um nível político e econômico inferior, mas não significa que seja uma condição irreversível. Para Gramsci, o significado de hegemonia também se afasta da ideia de imposição forçada e aproxima-se da ideia de permanência, negociação, legitimação e convencimento. A linguagem “não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intenciona- lidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia” (BRANDÃO, 1991, p. 12) e também “não é usada apenas para transitar informações, mas, e sobretudo, para firmar interes- ses, estabelecer níveis de dominação, fazendo do mundo dos signos uma arena onde são travadas as mesmas batalhas encontradas no mundo dos homens” (BACCEGA; CITTELLI, 1989, p. 29). Os meios de comunicação de massa são um dos lados fortes dessa disputa por dominação e poder. Mas, embora a Escola de Frankfurt os definisse como uma grande máquina de manipulação, todos os es- 18 forços dos monopólios e das grandes centrais capi- talistas não foram tão bem-sucedidos nesse sentido, já que o rádio, a televisão e os jornais (e agora as redes sociais) se tornaram elementos de uma grande explosão e multiplicação de visões de mundo. “Nos Estados Unidos das últimas décadas, tomaram a palavra minorias de todo o gênero, apresentaram-se na ribalta da opinião pública culturas e subculturas de toda espécie” (VATTIMO, 1992, p. 11). Essa grande explosão e multiplicação de visões de mundo é um fenômeno típico da pós-modernidade. Segundo Gianni Vattimo (1992, p. 8), seu sentido está ligado ao fato de vivermos em uma sociedade de “comunicação generalizada, a sociedade dos mass media”, posterior à modernidade, na qual os valores do passado e a tradição foram superados e passou- -se a se dar importância à concepção de história como algo progressivo, para justificar a valorização daquilo que é mais avançado e emancipado. O cará- ter unitário e linear de história acaba perdendo o sen- tido, principalmente quando a filosofia dos séculos 19 e 20 revela o caráter ideológico desse conceito. Walter Benjamim afirmou que “a história como curso unitário é uma representação do passado construída pelos grupos e pelas classes sociais dominantes” (VATTIMO, 1992, p. 8), porque o que é transmitido é o que parece relevante para quem está no poder, sob um ponto de vista. 19 “A crise da ideia de história traz consigo a da ideia de progresso: se não há um curso uni- tário dos acontecimentos humanos, também não se poderá sustentar que eles avançam para um fim, que realizam um plano racional de melhoramento, educação, emancipação” (VATTIMO, 1992, p. 9). É o fim da modernidade e o advento da pós-moder- nidade, um período marcado pelo descentramento, desordem, incertezas, caos, fragmentação, ruptura, ambivalência, pluralização, crise de identidade e da compressão do tempo e do espaço. Na explicação de Stuart Hall, um tipo diferente de mudança estrutural transformava as sociedades mo- dernas no final do século 20. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos ti- nham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudan- do nossas identidades pessoais, abalando a ideia de que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. Segundo o filósofo alemão Jünger Habermas, re- manescente da Escola de Frankfurt e autor do mo- 20 delo teórico do agir comunicacional, a modernidade acabou porque ela não cumpriu as promessas fei- tas no seu surgimento. O mundo foi desencantado com promessas do materialismo e agora precisa ser reencantado. A modernidade, cujo projeto se colocou sob abrigo da razão, visa à emancipação e à au- torrealização do ser humano, mas seu resul- tado histórico é precisamente o contrário, a racionalização da dominação social,a destrui- ção da natureza e a coisificação do homem (RÜDIGER, 1995, p. 79). Como o sujeito pode então emancipar-se diante dessas condições? Segundo Laclau, a crise e o descentramento das identidades não deveriam nos desencorajar. “O deslocamento tem características positivas. Ele desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre espaço de novas arti- culações” (HALL, 1999, pp. 17-18). De acordo com Vattimo (1992): A emancipação consiste mais no desenrai- zamento, que é também, e ao mesmo tempo, libertação das diferenças, dos elementos lo- cais [...]. Derrubada a ideia de uma realidade central da história, o mundo da comunicação generalizada explode como uma multiplicida- de de racionalidades locais – minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas – 21 que tomam a palavra, finalmente já não silen- ciadas (movimento amplificado pela internet e pelas redes sociais contemporâneas) e repri- midas pela ideia de que só existia uma única forma de verdadeira humanidade a realizar, com prejuízo de todas as peculiaridades, de todas as caracterizações limitadas, efêmeras, contingentes. As identidades, como diz Stuart Hall, são um pro- cesso em andamento. Encarar a comunicação da mesma forma, em um processo constante de de- senvolvimento, nos parece uma postura interessante para enxergarmos outras possibilidades. 22 AS CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA MIDIALÓGICA DE MARSHALL MCLUHAN Herbert Marshall McLuhan, importante filósofo, edu- cador e teórico canadense que, com fama de ser objetivo, sisudo e rigoroso, viveu de 1911 a 1980, traz em seu pensamento e sua obra elementos das teorias do funcionalismo americano, mas sem a aridez das “análises de conteúdo” e nos instiga a enxergar os meios de comunicação de uma forma mais técnica. Em seus estudos sobre o impacto das novas tecno- logias e os efeitos dos meios de comunicação no rumo da sociedade, ele defendia que os meios que transmitiam as mensagens eram mais importantes que a mensagem em si. E nessa linha de raciocínio podemos dizer que ele representa uma transição da teoria matemático-informacional para a midiológica. Como explica Polistchuk e Trinta (2003), seu modelo pode ser descrito como histórico-evolucionista ou técnico-antropológico, em oposição a característi- cas técnico-instrumentais do modelo de Shannon e Weaver. “Além disso, o sujeito (técnico) competente do modelo da engenharia de telecomunicações se contrapõe ao sujeito (tecnológico) renovado, surgido da estrutura midiatizada da Comunicação, no modelo McLuhan” (POLISTCHUK; TRINTA, 2003, p. 134). A 23 premissa de sua pesquisa não está na eficácia téc- nica, mas nos efeitos do processo de Comunicação sobre a sensibilidade individual e coletiva. Uma men- sagem não é mais considerada um “conteúdo”, senão uma “massagem” psíquica, ou seja, um conjunto de resultados práticos de uma tecnologia da comuni- cação sobre o sensório humano. Também se diferenciou por não se interessar pelos “efeitos ideológicos” da ação da mídia, por criar o conceito de que os meios de comunicação são ex- tensões do corpo humano e por ter profetizado na década de 1950 a revolução da era eletrônica que vivenciaríamos no final do século 20. Visionário, uma de suas frases célebres foi a de que no futuro, uma rede mundial de computadores tornaria acessível, em alguns minutos, todo o tipo de informação aos estudantes do mundo inteiro. Em tempos de internet, essa frase não traz nenhuma novidade, mas dita na década de 1950, quando os computadores (criados em 1945) eram usados exclusivamente para fins bé- licos, ele foi bem criticado, sendo classificado como louco e sonhador. Em 1960 (quando a internet não nos era sequer uma hipótese remota), ele vislumbrou a forma como a utilizamos hoje para nos comunicarmos instanta- neamente com pessoas em qualquer parte do mun- do, ao dizer que o planeta seria uma aldeia global, conceito que só se comprovaria e fortaleceria com o avanço tecnológico. Por ser nossa realidade atual- mente, parece-nos algo muito natural, mas imagine na época da invenção do telefone, descoberta em 24 si suficientemente impactante, supor que ele seria praticamente um computador de mão no século 21. O mesmo acontece no mundo contemporâneo à me- dida que a eletricidade e a eletrônica possibilitam o avanço tecnológico a uma velocidade nunca antes imaginada. Você pode estar lendo este e-book pelo seu celular, tablet, tela do computador ou mesmo na sua TV tela full hd e até mesmo compartilhar os seus novos conhecimentos adquiridos nessa leitura com qualquer pessoa conectada à internet em qualquer lugar do mundo, com uma tecnologia relativamente barata. McLuhan também fez uma distinção entre meios quentes e meios frios. Quando assistimos à televisão, por exemplo, usamos mais de um sentido (a visão e a audição), o que aumenta nossa interação e diminui o tempo necessário para entender a mensagem, o que a torna um meio frio. Ao contrário do rádio, que por envolver apenas um sentido (a audição), qualquer dispersão compromete a mensagem e exige pouca interação, o que o configura como meio quente. Entre suas produções intelectuais destacam-se os livros A galáxia de Gutemberg, O meio é a mensa- gem, Guerra e paz na aldeia global, Revolução na Comunicação e o clássico Os meios de comunica- ção como extensões do homem (na época de seu lançamento, em 1964, foi mais discutido do que lido, mais desprezado do que estudado). Sem saber, também seria um precursor da criação do campo de estudos Comunicação e Educação, somen- 25 te explorado a partir da década de 1990. “Em nossas cidades, a maior parte da aprendizagem ocorre fora da sala de aula. A quantidade de informações trans- mitidas pela imprensa excede, de longe, a quantidade de informações transmitidas pela instrução e textos escolares”, afirmou McLuhan no livro Revolução na Comunicação. Para McLuhan, o próprio meio era a mudança que ocorria na sociedade. Se eu ligar para você, o que conversarmos não impactará as pessoas em geral, mas o meio, que nesse caso é o telefone, muda a sociedade, as formas de relação e de comunicação. Assim foi com a televisão, que passou a reunir as pessoas em torno dela, ou mesmo o smartphone, que individualizou o acesso (não é incomum vermos pessoas reunidas e cada uma focada na tela do seu próprio aparelho) ou alguém desviando a atenção de uma conversa olho no olho para checar o celu- lar. Nesse contexto, sua tese de que os meios são extensões do homem é reforçada. A escrita é uma extensão da fala, a televisão, uma extensão da visão, o rádio, uma extensão do ouvido. Por isso, McLuhan foi chamado de determinista tec- nológico. Ele não tratava desse conceito de extensão restrito aos veículos de comunicação, mas em todas as tecnologias criadas pelos seres humanos para su- prir nossas necessidades, por exemplo, a roda seria uma extensão dos nossos pés e daria velocidade a esse processo comunicativo. A leitura também se- ria uma extensão da visão ou a forma de manusear um livro uma extensão das mãos, forma esta que 26 também passou por transformações ao longo de sua história, do rolo (que era desenrolado para ser lido) para o códice, formato encadernado tal qual o conhecemos hoje, com sumário, índice, paginação, sistema que facilita não só a leitura linear, mas a con- sulta de partes diferentes da obra sem que precise ser desenrolado como o formato anterior. Dentro dessa comparação ele cita o mito de Narciso, que morreu afogado por ter se apaixonado pela sua própria imagem refletida no lago, para afirmar que o ser humano se encanta por toda extensão de si mesmo. Temos essa conexão e aderência a tudo o que é novidade ou ao que supre nossas necessidades (mesmo aquelas que nem sabíamos que tínhamos). McLuhan também defendia a simultaneidade e não a sucessão de um meio de comunicação por outro e para isso utilizou o conceito de tétrade como ins- trumento teórico para fundamentarsua teoria. Quando a tétrade é modificada ou quando se mexe nas suas extremidades (composta por quatro ele- mentos: ampliação, obsolescência, recuperação e inversão), ela mostra o reverso, o que tem por trás. Cada modificação, cada mudança não causa ruptura, mas retoma a sua base. A ampliação representa o surgimento do veículo de comunicação; a obsolescência é quando ele perde seu caráter de atualidade ou quando se ofusca; a recuperação ocorre na retomada da atualidade, indo para a inversão, sua adaptação e adequação às no- vas tecnologias. 27 Sempre que se mexe nessa figura ela mostra duas figuras e dois fundos. E falando na aplicabilidade da tétrade, o meio nunca se extingue, mas se adapta, se adequa. Por exemplo, com a internet, em vez do jornal impresso ser extinto, há uma renovação desse meio para o digital, com a possibilidade de inclusão de conteúdo em outros formatos como o audiovisual. Para finalizar esse tópico, não podemos deixar de mencionar a disputa entre McLuhan e Adorno. Enquanto McLuhan estudava o meio, Adorno focava na mensagem. Enquanto o primeiro fala dos efeitos do meio sobre a sociedade, o segundo fala dos efei- tos da mensagem sobre a sociedade. Com relação à televisão, por exemplo, Adorno a enxergava como um vilão, um agente que alienava e não acrescentava à massa; enquanto McLuhan estudava os efeitos sem vê-la com tanta crítica e tanto pessimismo como Adorno. Não à toa, os frankfurtianos foram classifi- cados como apocalípticos por Umberto Eco. A televisão trouxe uma relação mais íntima das pessoas com os meios. Prova disso é que até hoje algumas pessoas ainda dão boa noite para os apre- sentadores dos telejornais e possuem uma relação de extrema confiança com o que é veiculado para formar sua opinião. No que se refere à política e às eleições, elas sempre foram tema de estudo tendo os meios de comunica- ção como mediadores desde a escola funcionalista, e com McLuhan não foi diferente. Dentro da ideia de que o meio mudava a sociedade, McLuhan fez 28 uma análise das eleições de 1950 entre Kennedy e Nixon para entender por que o debate televisionado teria mais efeito sobre as pessoas do que o debate ao vivo. As hipóteses levantadas por ele eram pelo cunho emotivo da TV e pela linguagem voltada dire- tamente ao telespectador no conforto da sua casa. Até hoje, inclusive, a televisão está no centro da maioria das residências. É o que ele chamou de “tato ativo”, como se você se sentisse tocado como em uma conversa presencial, muito efetivo num debate entre candidatos visto pela televisão. Mas não se pode desconsiderar Adorno nessa abordagem pela análise do uso da linguagem e que tipo de efeitos são causados pela mensagem quando se escolhe o uso de determinadas palavras em detrimento de outras. Eles eram rivais, mas também complementares. Podcast 1 29 https://famonline.instructure.com/files/952449/download?download_frd=1 A ESCOLA LATINO-AMERICANA O impacto social dos meios de comunicação de mas- sa, os estudos frankfurtianos e as demandas políti- co-sociais são fatores que impulsionam os estudos sobre a comunicação na América Latina. Em meio a contextos contraditórios é que os estudos sobre os meios de comunicação de massa são introdu- zidos no Chile, Uruguai, Argentina e outros países latino-americanos. O contexto político é a marca da reflexão. Surge uma oposição ao American way of life e, segundo Berger (2001), a pesquisa em comunicação na América Latina é marcada pela dependência estrutural, pela cultura do silêncio e pela submissão, mas também pela luta e pela resistência. Fazem parte desse contexto a luta pelo socialismo, metodologias de desenvolvimento do espaço rural, investimento econômico, projeto de do- minação, intervenção militar, capital norte-americano e financiamento da televisão no continente latino. Desde 1930 são realizados estudos sobre jornalismo, liberdade de imprensa e legislação e uma peça funda- mental para o entendimento da escola latino-ameri- cana é o Centro Internacional de Estudos Superiores de Periodismo para a América Latina (Ciespal), criado em 1959 pela Unesco e pelo Governo Equatoriano em Quito e oferecia cursos para quem atuava nas pesqui- sas dos meios de comunicação de massa. 30 A influência norte-americana entra na América Latina pela tradição de importar e incorporar ideias de países desenvolvidos. Os Estados Unidos trouxeram consigo os métodos, temas e o Ciespal, criado no contexto da aliança pelo progresso. A descrição se sobrepôs à análise e desenvolveu-se ali o modelo difusionista, que deu origem à divisão comunicação ou extensão. A difusão na agricultura e a estrutura e função dos meios impressos e eletrônicos, comunicação edu- cativa e programação especial de programas rurais foram as áreas mais influenciadas pela orientação norte-americana. O Ciespal foi a principal ponte entre os especialistas, as escolas e os diversos centros de reflexão, e com a difusão de suas publicações iniciou e sustentou um importante esforço de reflexão sobre os problemas da comunicação, além de ter formado um centro de documentação especializado, registrando a memória histórica sobre os centros da região. Em 1973 o Ciespal foi redirecionado porque sua atu- ação até então foi bastante criticada. As principais críticas foram para a falta de conceitos próprios, de juízos críticos, de sistematização, de visão qualitativa profunda, de engajamento político, social e econômico, para a preferência por temas limitados, concentração excessiva em meios de comunicação de massa, falta de racionalidade da pesquisa, de coordenação e ao enclausuramento das disciplinas. A partir dessa ava- liação o Ciespal passa a buscar raízes na América 31 Latina, preocupando-se com a comunicação popular, a pesquisa participante, substituindo os professores estrangeiros por latino-americanos, entre os quais o argentino Daniel Prietto, o chileno Eduardo Contreras Budge e o brasileiro Luiz Antônio Gonzaga Mota. Em 1959 surge o Instituto Venezuelano de Investigaciones de Prensa de la Universidad Central, interessado em entender o que se publicava na im- prensa venezuelana durante a ditadura. Em 1973 esse centro deu origem ao Instituto de Investigaciones de la Comunicacion (ININCO), com o objetivo de pesquisar os meios de comunicação de massa, analisando os meios e suas incidências na região. Assim, Equador e Venezuela são os primeiros a agregar a pesquisa em comunicação. Em 1970 é criado o Centro de Estudos da Realidade Nacional (CEREN), no Chile, vinculado à Universidade Católica, tendo como alguns de seus integrantes Michelle Mattelart e Paulo Freire, e realizou estudos sobre o domínio das multinacionais na comunicação da América Latina, com base nas ideias marxistas de ideologia e conflitos de classe. Depois se estendeu para toda a América Latina, marcando a identidade dos estudos latinos. Após o golpe militar no Chile o grupo se desfez e al- guns membros começam a se encontrar no México, no Instituto Latino-americano de Estúdios Transnacionais (ILET) e se tornou a principal instituição difusora de propostas de meios para democratizar a comunicação no continente. 32 Apenas no fim dos anos 1960 e início dos 1970 que se inicia um estudo realmente latino-americano, pois se começa a pensar na situação de subdesenvolvimento e incorporá-la na análise dos meios. As características gerais da escola latino-americana são o engajamento público, a aplicabilidade prática, que tem como princípio a solução dos problemas la- tino-americanos, e a legitimidade internacional dos pesquisadores. A partir de 1990, o contexto é a globalização e a mun- dialização. Mesmo permanecendo as razões que orientam a denúncia dos modos de atuação da co- municação, o modelo pesquisa-denúncia se deslocou e dois caminhos se perderam: 1. A ilusão do estado mudar o mundo cultural e 2. A ausência da temática da comunicação popular e alternativa. Inicia-se a legitimaçãodo campo comunicacional como uma área transdisciplinar dentro das ciências sociais. A pesquisa em comunicação é um exemplo para a observação do movimento histórico, político, cultural e social do continente. Para Antonio Pasquali, o trabalho dos estudos da comunicação na América Latina foram um fracasso porque não soube convencer os poderes democrati- camente constituídos, nem as forças políticas e as bases populares, que consomem os bens culturais. Dessa forma, conclui-se que esses estudos tentaram conquistar um lugar na luta popular do continente. Essa preocupação continua em alguns autores. 33 A pesquisa é feita hoje em programas de pós-gradua- ção, vislumbrando a tradição do compromisso social. O mais importante nesses escritos iniciais em Mattelart e outros intelectuais que trabalhavam com ele é a busca de apontar elementos conceituais para tomar distância frente aos fenômenos mediáticos e de propor novos modos de fazer comunicação. Luis Ramiro Beltrán tem como principal obra Comunicação dominada, na qual busca compreender os modos de dominação e imperialismo norte-americano pelos meios de comunicação. Eliseo Verón apresentou em um seminário de linguística na Argentina em 1967 um texto de análise da imprensa, no qual levou a pro- blemática ideológica para o campo da comunicação. Já Paulo Freire, por seu livro Pedagogia do oprimido, escrito em 1968, é incluído no rol de pesquisadores da comunicação. Ele não tratou da comunicação de massa, mas orientou interpretações na área. Em suma, a pesquisa da escola latino-americana se resume a duas áreas: estudos da estrutura de poder dos meios de comunicação e estratégias de domina- ção dos países capitalistas e sobre os discursos e as mensagens da cultura de massas. Foram considera- das pelos pesquisadores latino-americanos a estrutura e a função mercantil dos meios e a expressão das contradições predominantes na cultura. Acumulou-se, então, um grande material empírico. A preocupação de explicar o desenvolvimento cultural na relação com o desenvolvimento do capitalismo e com o destaque do conceito de ideologia foi geral. 34 Por causa da repetição e simplificação da abordagem, a posição desse campo de estudo esgotou-se e ela acabou se confundindo com a Escola de Frankfurt. As ditaduras no Cone Sul dificultaram a concretização do sonho marxista na América Latina, mas o projeto de pensar a comunicação seguiu. As pesquisas de recepção trouxeram novas perspec- tivas para o campo de estudo. E posteriormente o tema volta sob novas avaliações. Passa-se a reduzir a recepção à audiência apenas, segundo alguns autores. Ainda nos 1990, as categorias são as de mediação e hibridação, que facilitam repensar a relação entre popular e massivo da comunicação com movimen- tos sociais do receptor com o meio, medidas pelas estruturas. A partir da década de 1960, a América Latina começou a ser representada por pensadores locais, que assumi- ram a tarefa de analisar a comunicação para entender melhor como a mídia influencia a cultura latino-ame- ricana, dentro deles se destacaram o espanhol Jesus Martin-Barbero, o argentino Nestor Garcia Canclini, o brasileiro José Marques de Melo e o uruguaio Nestor Orozco. Vamos detalhar um pouco mais o papel dos dois primeiros, autores de duas importantes linhas teóricas dentro da escola norte-americana: a teoria das mediações e a do hibridismo. 35 TEORIA DAS MEDIAÇÕES Jesus Martin-Barbero nasceu em 1937 na Espanha e formou-se em Filosofia, Antropologia e Semiótica. É um dos grandes pesquisadores da comunicação na América Latina e procura esclarecer através dos estu- dos de linguagem questões sociais da América Latina como a desigualdade social. Seu livro Dos meios às mediações, lançado na Colômbia em 1985, é a sín- tese de sua tese onde ele escreve sobre o conceito de “mediação”, desenvolvido por Walter Benjamin e adotado por ele. A ideia de mediação trata da resis- tência ao simplismo da transmissão. Os meios não transmitem conteúdos (música, palavra, audiovisual etc.), mas são mediadores das relações humanas, do conhecimento e da sensibilidade. Na modernidade, grande parte da produção e da distribuição de objetos culturais tem passado, progressivamente, à gerencia da mídia, e com isso quase toda a gestão simbólica das sociedades tem sido submetida às operações da indústria e do mercado. Desse ponto de vista, a mídia não é outra coisa senão a expressão institucional e econômica dessa transformação. Entender o conceito de cultura de massa é essen- cial para compreender os pensamentos de Martin- Barbero. Relembrando, a cultura de massa foi criada pela elite para padronizar o pensamento e o gosto da maioria popular, com o objetivo de que o povo mas- 36 sificado consuma suas ideologias políticas, sociais e econômicas. A cultura de massa é criada pela indústria cultural, termo filosófico criado por Adorno e Horkheimer, que define essa “fábrica de cultura” como uma mistura entre a cultura popular e a erudita, afim de despertar nas massas o desejo de adquirir os seus produtos. A indústria cultural utiliza os meios de comunicação de massa para direcionar suas mensagens à grande audiência consumidora. Martin-Barbero discorda e coloca o receptor em uma posição mais protagonista do processo comunicativo e se opõe a qualquer linha de pesquisa funcionalista, especialmente ao modelo linear imposto por Harold Lasswel. A recepção é vista como a principal parte da comuni- cação, se não a principal, pelo menos a que merece mais atenção, por ser a mais elaborada. O consumi- dor passa a ter uma opinião, deixando de ser acrítico, apenas uma massa receptora, para ser parte ativa no processo comunicativo. A mídia perde o seu poder absoluto e o conteúdo passa a ser questionado e re- elaborado para ser consumido em cada comunidade. Não se pensa mais na mídia como a única formadora dos modos modernos de agir, pensar e atuar no ce- nário social. As propostas de uma influência direta e massificante dos meios de comunicação de massa sobre uma população alienada são, definitivamente, enterradas. Barbero revaloriza o receptor, definindo-o como o sujeito que re-elabora o conteúdo que recebe. 37 Ele também mostra em sua tese que mesmo com a predominância da massificação, o popular não é algo externo ao massivo, mas sobrevive dentro dele. Em uma sociedade são massivos o sistema de educação, as formas de representação e participação política, os modelos de consumo e a religião. O popular vive nas beiradas da sociedade massificada e muitas vezes consegue se infiltrar nos meios massivos de comu- nicação. Temos como exemplo disso a música popu- lar brasileira. Nos centros de repressão da ditadura militar o sucesso “Cálice”, de Chico Buarque, furou a barreira da censura que o governo impôs aos meios de comunicação. Durante o regime do AI-5, os artistas e a imprensa não podiam mostrar em seus discursos uma posição contrária ao governo ditatorial. “Cálice” retrata o sofrimento da população aterrorizada com a censura e a tortura do regime autoritário, rompe as barreiras e se infiltra nas rádios dos meios de comu- nicação de massa da ditadura. O fato de o receptor ser reconhecido como um ser crítico diante da informação consumida traz algumas implicações práticas para a atuação do profissional de comunicação. Jornalistas, publicitários, assesso- res de imprensa, relações-públicas e tantas outras subdivisões funcionais da profissão de comunicólogo são agora encarados como “facilitadores das media- ções”, “a interface entre as linguagens populares e as linguagens tecnológicas”, o que exige muito mais sensibilidade, percepção, criatividade e ética do que se exigia dos “autores” ou “vendedores” de conteúdo das comunicações-mercadorias de massa. 38 TEORIA DA HIBRIDIZAÇÃO Nestor Garcia Canclini é um antropólogo contempo- râneo nascido na Argentina e radicado no México. O foco do seu trabalho é a pós-modernidade e a cultura do pontode vista latino-americano. É autor de diver- sas obras, entre elas Culturas híbridas, premiado com o Book Award em 2002 como o melhor livro do ano sobre a América Latina. Canclini afirma não haver uniformidade no processo de recepção. Há, sobretudo, uma hibridização, uma mistura em vários níveis culturais. A massa, segundo o teórico, é, antes de tudo, muito diferente e consome os produtos dos meios de comunicação de massa de forma muito diferente, sofrendo influencias do meio, da sua cultura particular e das culturas dos ou- tros. As audiências são plurais, e é na recepção que acontecem a negociação e a produção do sentido. O que é emitido pelos meios de comunicação de mas- sa não é exatamente o mesmo produto consumido pelas pessoas, nos diferentes lugares simbólicos de recepção. O consumo não poderia mais ser pensado, hoje, da mesma maneira que Adorno e Horkheimer fizeram na década de 1940. De acordo com Canclini, o receptor ainda constituía uma massa, mas não poderia mais, nem de longe, ser considerado consumidor passivo, que não questiona. Pensadores modernos admitem 39 que, entre a emissão e a recepção de massa, agem mediadores poderosos, com enorme carga simbólica, como a família, os amigos do bairro, a associação da igreja, o grupo de trabalho. As relações entre os dois pontos do esquema de comunicação deixam de ser pensadas em termos de dominação, pois se admite que a comunicação precisa, necessariamente, de colaboração e transação entre quem emite e quem recebe. O consumo não seria, então, praticado de forma arbitrária e impensada. O continente americano é um local por excelência para a hibridização cultural, por ser um espaço de migração e emigração desde tempos remotos, re- sultando na mistura de culturas. O próprio processo de miscigenação étnica brasileira promoveu a hibridização. Ao se observar nossas matrizes étnicas notamos a existência de elementos europeus, africanos e indígenas e esse processo não aconteceu somente no Brasil. Em menor proporção também ocorreu nos países latinos, o que faz da América Latina um solo fértil para o estudo da hibri- dização e um espaço de grande fomento para essas intersecções culturais. Podcast 2 40 https://famonline.instructure.com/files/952450/download?download_frd=1 CONSIDERAÇÕES FINAIS À medida que adentramos nos estudos das teorias da comunicação, percebemos uma multiplicidade de autores, hipóteses e ideias, ora visionárias como as de McLuhan, ora nascidas como crítica ou releitura de escolas anteriores ou contemporâneas, como o embate funcionalismo versus estudos culturais. E olhar para a história de como essas teorias e con- ceitos surgiram, amadureceram, se fortaleceram ou amadureceram nos ajuda a compreender criticamen- te o impacto das mudanças e inovações tecnológicas cada vez mais velozes em nosso cotidiano. 41 SÍNTESE • Teoria da hibridização. • Teoria da recepção. • Teoria das mediações. • Valorização de pesquisadores/professores da América Latina. • 2º momento: valorização do contexto político e social locais, da cultura latino-americana. • 1º momento: influência norte-americana. Daniel Prietto (Argentina) Eduardo Contreras Budge (Chile) Luiz Antônio Gonzaga Mota (Brasil) Paulo Freire (Brasil) Michelle Mattelart Jesus Martin-Barbero (Espanha/Colômbia) Nestor Garcia Canclini (Argentina) José Marques de Melo (Brasil) Nestor Orozco (Uruguai) Escola latino-americana • Meios quentes (rádio, cinema), meios frios (TV, telefone). • Meios eletrônicos (prolongamentos do sistema nervoso central). • Aldeia global. • Galáxia Gutemberg. • Civilização da oralidade, da imprensa, da eletricidade. • O meio é a mensagem. Marshall McLuhan Escola de Toronto • Posição crítica do receptor/repertório cultural do receptor. • Audiência é receptora e fonte da mensagem. • Cultura popular não tem prestígio, mas oferece resistência. • Sistema cultural dominante: hegemonia. Martín-Barbero, Stuart Hall, Gramsci, Williams, Hoggart Estudos Culturais A TRANSIÇÃO NO CAMPO DA COMUNICAÇÃO TEORIAS E HISTÓRIA DA COMUNICAÇÃO Referências Bibliográficas & Consultadas ADORNO, T. W. A Indústria Cultural. 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